
Fonte: Viteri (2020, p. 10)
Figura Reprodução do padrão gráfico de urna do Museo Jacinto Jijón y Caamaño, código: JC-AE-8852.
ARQUEOLOGIA E ANTROPOLOGIA DA ARTE NA AMAZÔNIA
O registro das antigas ocupações ameríndias da Amazônia é repleto de imagens: desenhos, grafismos, figurações tridimensionais em modelagens e esculturas, nas gravuras e pinturas rupestres, nas cerâmicas e em outros suportes presentes ao longo de todo o passado arqueológico da região. De modo geral, o potencial analítico destes universos estéticos foi pouco explorado nos estudos arqueológicos, sobretudo se os compararmos com a vizinha região andina, onde os estudos da chamada “Arte pré-colombiana” foram por muito tempo o carro-chefe das investigações sobre o passado ameríndio.
A Arqueologia amazônica sempre buscou aprofundar a relação entre cultura material e identidade, o que, muitas vezes, resultou em uma interpretação estática e cristalizada dos artefatos, definidos em fases e tradições tecnológicas, nas quais a estética ou o estilo dos objetos não eram uma chave para a classificação dos diferentes ‘tipos’ e complexos culturais. Para além de estudos essencialmente descritivos, sobretudo para a arte rupestre, estes materiais raramente tiveram protagonismo na produção acadêmica da região, contrastando largamente com os numerosos estudos e debates de tipologia e tecnologia cerâmica (Barreto et al., 2016).
No Brasil, isso se deve ao fato de que a Arqueologia amazônica pioneira praticada por Meggers e Evans, e posteriormente pelo Projeto Nacional de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazônica (PRONAPABA)1, desde seus primeiros estudos na foz do Amazonas, privilegiou os aspectos funcionais e tecnológicos das cerâmicas, lidando principalmente com as pastas e morfologias (que poderiam informar sobre os sistemas de produção e consumo de alimentos) e as técnicas decorativas, que dentro do determinismo ecológico meggeriano poderiam informar sobre o ‘estágio tecnológico’ dos povos estudados (Meggers & Evans, 1957, p. 24; Barreto & Oliveira, 2016, p. 52). Mas a análise iconográfica não teve lugar nestas pesquisas.
Fora do Brasil, na Arqueologia amazônica do Peru, da Colômbia e do Equador, estudos pioneiros como os de Reichel Dolmatoff, ou as etnoarqueologias de Peter Stahl, Peter Roe e Warren DeBoer (não por acaso, todos alunos de Donald Lathrap), consideraram o universo estético a partir da aproximação entre a Etnologia e a Arqueologia. Por um lado, os autores se debruçaram sobre imagens e objetos ligados a práticas xamânicas amazônicas e, por outro, se embrenharam na gramática dos motivos gráficos das cerâmicas, refletindo sobre a relação entre identidades e estilos, relacionando-os a um corpo de mitos e narrativas indígenas e demonstrando seu papel enquanto agente de reprodução e transformação da cultura, um verdadeiro instrumento replicador de cosmologias (Reichel-Dolmatoff, 1978; Roe, 1982; DeBoer, 1984).
Mais tarde, ainda que a complexidade e a maestria técnica das imagens modeladas e estampadas nas cerâmicas Santarém e Marajoara estivessem no cerne dos importantes debates sobre formas de organização social na Amazônia antiga, como na proposta de Roosevelt (1988, 1992) sobre cacicados complexos, o primeiro estudo sistemático voltado especificamente para a iconografia só viria a ser realizado em 1996, na dissertação de mestrado de Denise Pahl Schaan, sobre a cerâmica marajoara (Schaan, 1996). O desenvolvimento dos estudos focados na linguagem simbólica e na iconografia dos artefatos passa, então, a abrir campo para outras formas de interpretação destas materialidades e a uma nova compreensão da relação entre identidade e cultura material (Schaan, 2001; Gomes, 2001).
Do lado da Etnologia amazônica, apesar dos aportes pioneiros de Lévi-Strauss (1975, 1996), por muito tempo, o estudo da cultura material dos povos indígenas foi sub-representado na produção acadêmica. Com poucos trabalhos, estes também com ênfase na tecnologia (Ribeiro, 1989), apenas mais tarde tomam algumas perspectivas inovadoras sobre os grafismos e as materialidades, as quais já alertavam para o potencial dos estudos de Etnoestética e para a importância do caráter agentivo das imagens e dos objetos entre os povos indígenas estudados (Vidal, 1992; van Velthem, 1992). O renovado interesse na produção estética indígena foi também impulsionado por novas propostas vindas da Antropologia da arte, em especial, pelos debates em torno da obra de Alfred Gell sobre agência (Gell, 1992, 1998) e também por algumas discussões tangentes à virada ontológica das quais destacam-se certos aportes mais generalizantes, como as teorias tecidas sobre o perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 2002) e as formas de figuração no animismo amazônico (Descola, 2010).
Assim, nos últimos anos vimos o despertar de um interesse nas artes ameríndias a partir de teorias sobre agência, práticas de subjetificação de objetos em geral e, sobretudo para a Amazônia, sobre a relação entre produção de imagens, figuração e percepção em universos cognitivos específicos, sempre marcados pela instabilidade e transformabilidade das formas dos seres. Nestas abordagens, a ênfase não está tanto na arte enquanto sistema de comunicação, mas em práticas e formas de concepção e manutenção de ontologias particulares, nas quais as imagens bi e tridimensionais operam ações estruturantes. Exemplos destas perspectivas sobre as artes ameríndias amazônicas são as contribuições que compõem as coletâneas editadas por Santos Granero (2012) e Severi e Lagrou (2013).
Muitas são as implicações destas abordagens para a Arqueologia da Amazônia, e alguns de seus desdobramentos podem ser observados em pesquisas recentes, a exemplo de Barreto (2009), Oliveira (2016), Barreto e Oliveira (2016), Gomes (2016) e Nobre (2017). Estes movimentos vêm permitindo uma aproximação inédita entre a Arqueologia e a Etnologia da Amazônia, uma vez que, muitas vezes, os contextos do passado e do presente são muito semelhantes e até mesmo, em alguns casos, marcados por continuidades e persistências, sobretudo na esfera das práticas rituais e da produção estética que as estruturam.
Esta aproximação é facilitada também pela recente produção arqueológica que questiona a aplicação de modelos tipológicos sobre complexidade social na Amazônia antiga (Neves, 2012), modelos estes que, de certa forma, foram importados da arqueologia norte-americana – como as propostas de cacicados agrícolas e de centralização política – e que, como apontou Viveiros de Castro (2002, p. 343), “casam mal” com o que a Etnologia vem documentando para as sociedades indígenas atuais, marcadas pelas interações simbólicas e sociais com o mundo animal (e não vegetal) e por formas instáveis de poder. Assim, torna-se possível para a Arqueologia desvencilhar a discussão sobre a complexidade iconográfica das cerâmicas antigas destes modelos sobre complexidade social (Barreto, 2010), e se juntar à Etnologia amazônica na sua pergunta sobre a existência de uma “arte de sociedades contra o Estado” (Lagrou, 2011). Portanto, para além das questões sobre a arte dos antigos povos amazônicos como índice de formas de organização social, esta aproximação abre um enorme leque de implicações sobre novas formas de se olhar os objetos arqueológicos amazônicos.
Os estudos iconográficos, antes focados em entender os princípios semânticos das expressões materiais e imagéticas, passam a compreendê-las como formas de perceber, pertencer e agir sobre o mundo. Assim, a Arqueologia na Amazônia tem se valido de duas ideias centrais ao estudo das materialidades. Primeiro, o entendimento de que as diferentes formas de figuração e composição das imagens podem constituir chaves importantes para detectarmos tradições e modos particulares de perceber o mundo, intimamente ligados às identidades e aos sistemas ontológicos. Em segundo lugar, o foco nos diferentes atributos físicos e imagéticos, que conferem agentividade aos objetos e estimulam a percepção, pode nos iluminar quanto às práticas cotidianas e rituais que envolvem a produção, a utilização e o descarte destes materiais dentro de uma perspectiva de análise tecnológica, que inclui também as tecnologias de encantamento e os universos estéticos.
Neste dossiê, reunimos um conjunto de trabalhos que reconhecem e atuam a partir destas abordagens, vindos de autores que vêm refletindo sobre os universos estéticos da Amazônia antiga em diferentes contextos e a partir de distintos materiais. O objetivo foi reunir proposições que têm na materialidade e nas expressões estéticas do passado sua fonte de inspiração para dialogar com o presente etnográfico, através de uma abordagem mais sensível, decolonial e inclusiva, considerando também a circulação dos artefatos arqueológicos no presente e suas formas de ressignificação.
Agrupamos os artigos em uma estrutura tripartite, de acordo com as abordagens propostas e as temporalidades assumidas. Iniciamos com estudos iconográficos, focados nos artefatos e nos contextos antigos, passando para olhares mais integrados à etnografia e propositivos quanto a uma mudança epistemológica na Arqueologia, e finalizamos com artigos sobre as diferentes formas com que variados segmentos sociais se apropriam e ressignificam as materialidades do passado.
A perspectiva da agência dos objetos enquanto vetores que agem sobre as relações sociais perpassa quase todos os trabalhos aqui reunidos, que, neste sentido, se alinham com a proposta geral de Alfred Gell de que os objetos podem ser analisados enquanto veículos de comunicação, negociação e reprodução cultural e, sobretudo, da sua pergunta maior sobre como e o que a arte é capaz de mobilizar em termos sociais (Gell, 1992, 1998). Além disso, a ideia de agência proposta por Gell permitiu compreender e analisar não só a produção de artefatos, mas também as ‘mutações’ relacionadas aos diferentes usos e contextos (Poulot, 2013).
TECNOLOGIAS DE ENCANTAMENTO EM CONTEXTOS AMAZÔNICOS ANTIGOS
A primeira parte do dossiê explora o potencial de universos estéticos e as expressões artísticas da Amazônia antiga, buscando integrar a Arqueologia, a Antropologia da arte e a Etnologia. Os artigos lidam com expressões estéticas em variados suportes, como tangas, adornos, estatuetas e urnas funerárias, indo do Marajó ao rio Napo. As análises aqui apresentadas debruçam-se sobre os regimes de figuração e de composição de objetos no passado, buscando dialogar com diversos conjuntos de teorias nativas que cercam o mundo da materialidade. De modo geral, o foco é a relação entre a iconografia dos artefatos e suas agências com as ontologias, centradas no corpo e suas transformações. Destaque também é dado à importância do rigor sistemático em interpretações iconográficas e à contribuição da Etnologia no estudo das tecnologias do passado, com base nos processos e nas etapas da cadeia operatória, no uso e desuso dos objetos.
O artigo inicial, escrito por Nobre (2020), trata da complexa iconografia das tangas cerâmicas da fase marajoara. São imagens elaboradas a partir de princípios e recursos gráficos que lhes conferem capacidades agentivas e que priorizam a produção de corpos feitos a partir da bricolagem na composição de seres e de suas partes anatômicas. O uso de justaposições e encaixes cria anatomias compósitas, mostrando, assim, um regime de figuração que materializa princípios cosmológicos ligados à corporalidade ameríndia, a exemplo da fabricação, composição e transformabilidade dos corpos, observadas entre tantos povos amazônicos. Assim como em outros dos artigos deste dossiê, estabelece-se um diálogo com a Etnologia ameríndia, sobretudo no tocante aos regimes de produção e concepção de corpos e artefatos, contribuindo também com a construção de uma História indígena de longa duração.
Em seguida, o artigo de Amaral et al. (2020) propõe uma revisão das análises e interpretações funcionais atribuídas aos discos líticos perfurados encontrados em contextos tapajônicos. Os autores exploram os distintos contextos em que estes artefatos foram encontrados na região de Santarém, e reconstituem os complexos processos envolvidos em sua história de vida, desde a aquisição da matéria-prima, a confecção, o uso, até o descarte ou a reciclagem. Essa leitura da cadeia operatória, somada à interpretação da iconografia tapajônica, permite revisitar as antigas hipóteses sobre a função destes objetos e propor novas leituras, que consideram as dimensões simbólicas da sua produção, de seu uso e de seu descarte.
Alves (2020) volta sua análise para os chamados alter egos – tema visual que, nas iconografias pré-coloniais, é empregado para caracterizar uma figura humana ou animal sobreposta por outra –, a partir da análise iconográfica do estilo cerâmico Konduri. A iconografia desta cerâmica, marcada pela presença de faces e seres zoomorfos, sugere que o tema do alter ego pode ser associado a pelo menos três conjuntos de motivos com animais e humanos. O autor propõe, então, diferentes abordagens para a interpretação destes temas iconográficos na cerâmica Konduri, problematizando o caráter reducionista e generalizante empregado em leituras prévias. Argumenta que reduzir a análise iconográfica à identificação de xamãs e a seus “duplos” ou espíritos auxiliares desconsidera outros aspectos importantes da análise iconográfica e da potencialidade interpretativa destes objetos.
No artigo de Oliveira (2020), é explorada a complexa iconografia das urnas funerárias da Tradição Polícroma da Amazônia a partir das intencionalidades envolvidas nas práticas de confecção deste objeto funerário. Feitas à imagem de seres antropomorfos ou antropozoomorfos, as urnas compõem corpos compósitos que parecem transitar entre formas humanas e animais, aludindo ao tema da transformação corporal. A partir de referências da Etnografia sobre os universos estéticos ameríndios, onde os grafismos coloridos e os adornos corporais podem ser elementos sociais diacríticos, argumenta que pintar e decorar artefatos e corpos seriam gestos equivalentes na produção e sociabilidade de corpos e sujeitos, assim como na transformação e ressignificação destes corpos nas cerimônias funerárias.
Encerrando esta parte do dossiê, segue o artigo escrito por Viteri (2020), focado também na iconografia das urnas funerárias da Tradição Polícroma, classificadas na fase Napo, da alta Amazônia equatoriana. Na mesma linha dos artigos anteriores, a autora se vale da Etnografia e de conceitos próprios da Antropologia da arte para identificar princípios estruturantes nos campos gráficos das urnas e a forma com que estes operam efeitos sinestésicos e jogos visuais, ao modo das armadilhas de Gell (1998). Sua análise mostra diferentes modos de execução dos motivos gráficos, que oscilam entre formas estilizadas, com abstrações metafóricas e sinedóquicas, e figurações naturalistas de serpentes, ativando diferentes processos de cognição icônica, e criando uma estética particular de composição de seres híbridos e transformação de corpos.
A IMATERIALIDADE DA MATERIALIDADE ARQUEOLÓGICA
O segundo bloco do dossiê explora, de um ponto de vista epistemológico, as contribuições indígenas sobre as interpretações dos contextos arqueológicos e sobre os regimes de produção, uso e descarte dos objetos. Soma-se à abordagem etnográfica uma perspectiva decolonial mais integrada à produção de conhecimento acerca do passado indígena. O artigo de Jácome e Wai Wai (2020) aborda a incorporação da perspectiva indígena no próprio método da Arqueologia, a partir da formação de arqueólogas e arqueólogos indígenas. Frente à questão de como estabelecer um diálogo entre as perspectivas nativas e arqueológicas, sobretudo no que diz respeito aos locais de memória e artefatos rituais, o artigo nos leva a repensar metodologias e formas de produzir conhecimento científico. A interpretação dos objetos e de suas histórias, funções e significados torna-se, assim, mais fluída, e os artefatos arqueológicos agem não apenas enquanto testemunhos de tradições e memórias, mas também como vetores ativos de construção de narrativas e de relações sociais e cosmológicas.
Em seguida, o artigo de Barcelos Neto (2020) trata de um raro instrumento musical amazônico, o trocano, no contexto dos objetos que compõem os sistemas músico-rituais xinguanos. Entre os Wauja, este artefato historicamente produzido para incorporar os poderes xamânicos da anaconda, apesar de estar ausente fisicamente há mais de 40 anos, permanece presente nas narrativas e figurações gráficas, exercendo sua potência ritual. Compreendido em um estágio de ‘adormecimento’, sua agência é fundamental nas relações interartefatuais com outros objetos essenciais ao complexo ritual, e nas relações com determinados espíritos animais. Entre algumas das implicações deste estudo de caso para a Arqueologia, está a importância de pensarmos a agência de um artefato que não mais existe fisicamente, mas que continua agindo virtualmente, a partir dos corpos e grafismos de outros objetos e das narrativas míticas e ações rituais, mostrando que a estética e as artes também podem ser mapeadas e interpretadas na memória gráfica.
Ainda nesta linha de pesquisas, o artigo de Cabral (2020) propõe um exercício interpretativo sobre os contextos funerários da costa norte do Amapá e as materialidades que os compõem. A autora parte de teorias e modelos da Etnologia regional, da produção de conhecimento indígena sobre os contextos em pauta e de sua própria experiência de diálogo e prática arqueológica com indígenas na região. Interpretando os poços funerários enquanto ‘grupos de substância’, ela desenha uma rede de possíveis relações entre materialidade, substância, identidade e território presentes nesses complexos artefatuais e nas formas nas quais são produzidos e articulados com o espaço ao redor. De maneira semelhante ao artigo de Jácome e Wai Wai (2020), Cabral (2020) destaca a contribuição do pensamento indígena sobre os ‘modos de pensar e analisar a materialidade arqueológica’. Para a autora, podemos combinar as análises mais sistemáticas próprias da metodologia arqueológica com dimensões mais simbólicas dos modos de produção e concepção dos objetos, corpos e lugares nas ontologias indígenas.
O PASSADO RESSIGNIFICADO
A última parte do dossiê inclui três artigos que tratam da agência de objetos arqueológicos no presente. Se há tempos os arqueólogos se deram conta de que seus objetos de estudo, apesar de terem sido feitos em um passado por vezes longínquo, só adquirem significado no presente, existem ainda poucos estudos sobre as ressignificações de artefatos arqueológicos fora de seus contextos originais, seja ao longo da história ou mesmo no presente.
O artigo de Barreto (2020) parte da reapropriação de objetos arqueológicos amazônicos em diferentes contextos para propor uma discussão sobre a resistência de certas potências agentivas desses objetos. O uso de motivos gráficos marajoara na arte decorativa modernista brasileira, a representação de cerâmicas amazônicas no carnaval ou a inspiração nas peças antropomorfas arqueológicas no artesanato cerâmico de Belém são três exemplos onde alguns dos atributos dos objetos arqueológicos, apesar de ressignificados em contextos muito distintos dos originais, continuam exercendo sua agência, pois exibem elementos de abdução e encantamento que agem de forma transcultural. A autora argumenta que este exercício se faz necessário dentro da Arqueologia por ser uma forma de reconhecer a força e a persistência das artes indígenas amazônicas do passado e, sobretudo, de devolver o protagonismo da autoria indígena a essas artes que vêm há tempos sendo reapropriadas e ressignificadas em diferentes discursos identitários, inclusive colonialistas.
A contribuição de Bezerra (2020) também trata de ressignificações contemporâneas em torno de um artefato bastante icônico da Arqueologia amazônica, que é a urna marajoara. Na mesma linha de Barreto (2020), Bezerra explora a criação, no presente, de artefatos artesanais a partir dos artefatos arqueológicos, réplicas, híbridos e derivados, uma ‘família extensa de coisas’ que se inspiram e exaltam as artes do passado arqueológico. Com um olhar mais intimista sobre sua própria coleção de objetos ‘marajoarescos’, a autora argumenta que essa produção não deve ser desqualificada, pois, de certa forma, reconhece e dialoga com a potência estética das artes amazônicas do passado e, mesmo que de uma forma desfocada ou dormente, contribui para a permanência e continuidade da arte indígena de longa duração na Amazônia.
Por fim, o artigo de Linhares (2020) parte de sua pesquisa sobre a escolha de objetos da cultura marajoara enquanto emblemas de identidade nacional, no âmbito de um projeto político que vem se apropriando desta produção desde o século XIX, para focar nos usos do que ela chama de ‘simbolismos’ marajoara em produtos relacionados aos cuidados com o corpo, como sabonetes, perfumes e vestimentas. Mostra, assim, como este ‘cuidar-se marajoara’ reflete a transformação do conceito ‘marajoara’, passando de símbolo de pertencimento a uma identidade nacional à comodificação do mercado. No sentido inverso, mas complementar às análises de Barreto (2020) e Bezerra (2020), Linhares trata as ressignificações da cultura marajoara não a partir da agentividade da arte marajoara, mas de processos históricos específicos que ela caracteriza como ‘espetacularização’ e ‘espólio’ e que, sem dúvida, contribuem para o apagamento do protagonismo indígena nos usos descritos por ela acerca da arte marajoara.
Esperamos que os artigos aqui reunidos gerem novas reflexões e debates em um campo ainda pouco explorado pela Arqueologia brasileira, que é o das análises iconográficas, suas potencialidades e ressignificações.
Agradecemos aos autores que contribuíram com seus artigos, assim como aos revisores anônimos e a toda a equipe do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, pelo empenho em zelar pela qualidade de forma e conteúdo deste dossiê.
Boa leitura!