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Sobre urnas, lugares, seres e pessoas: materialidade e substâncias na constituição de um poço funerário Aristé

On urns, places, beings and people: materiality and substances in the constitution of an Aristé funerary pit

Resumo

Na última década, uma série de escavações arqueológicas sistemáticas foi realizada pela equipe do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá, produzindo um acervo muito rico e diversificado, que tem sido estudado e discutido por várias pessoas da equipe. Neste artigo, vou tomar como foco uma estrutura funerária que contém um conjunto de cerâmicas indígenas, algumas antropomorfas, oriundas de contextos arqueológicos cuidadosamente registrados, buscando explorar suas capacidades agentivas, e articulando suas propriedades materiais, aspectos estéticos e os próprios contextos de deposição. Partindo de uma perspectiva alimentada pela etnologia indígena da Amazônia, que tem salientado a potência da materialidade na relação com diversas gentes, procuro tecer narrativas que evidenciam o lugar do cuidado estético na produção destas peças para atrair olhares e produzir relações com quem as encontra. Para além da beleza, no entanto, minha proposta é explorar de que modos estas vasilhas e os demais materiais com os quais se conectam podem nos apontar uma série de relações que as pessoas que as produziram e utilizaram estavam criando e como as estavam usando entre outras pessoas, lugares e seres.

Palavras-chave
Fase Aristé; Etnologia indígena; Materialidade; Substâncias

Abstract

In the last decade, a series of systematic archaeological excavations was carried out by the Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá, resulting in very rich and diversified assemblages, which have been studied by many members of the research team. In this article, I propose to study a funerary structure which contains a collection of ceramics, including anthropomorphic urns from archaeological contexts which were carefully documented. From there, I seek to explore their agentive capacities, connecting their material properties, aesthetic aspects and contextual information. I follow a perspective drawn from Amazonian indigenous Ethnology, which highlights the potency of materiality in the relationships with different peoples, aiming at producing narratives which express the aesthetic care in their production in order to attract the eye and produce relations to whoever encounter them. Beyond their beauty, my aim is to explore ways in which pottery and other materials might point to a series of relationships which people who produced and used them were activating and using among people, places and other beings.

Keywords
Aristé Phase; Indigenous Ethnology; Materiality; Substances

INTRODUÇÃO

A costa norte do atual estado do Amapá, na Amazônia brasileira, atrai atenção da arqueologia desde o século XIX. Em uma expedição científica liderada por Emílio Goeldi a esta região, em 1895, em que o “serviço arqueológico” esteve sob o comando do tenente-coronel Aureliano Pinto de Lima Guedes (Goeldi, 1905Goeldi, E. (1905). Excavações archeologicas em 1895. 1ª parte: as cavernas funerarias atificiaes dos indios hoje extinctos no rio Cunany (Goanany) e sua ceramica (Memórias do Museu Goeldi, I). Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia., p. 6), foram coletadas vasilhas cerâmicas que posteriormente foram usadas (em associação com outros conjuntos) para a descrição e definição da chamada Fase Aristé (Meggers & Evans, 1957Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology.). Nas palavras de Goeldi (1905, p. 43)Goeldi, E. (1905). Excavações archeologicas em 1895. 1ª parte: as cavernas funerarias atificiaes dos indios hoje extinctos no rio Cunany (Goanany) e sua ceramica (Memórias do Museu Goeldi, I). Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia., esta coleção pertencia, “. . . incontestavelmente, aos melhores productos cerâmicos conhecidos dos indígenas da região amazônica”. Estas vasilhas, assim como tantas outras oriundas de coleções classificadas como Fase Aristé1 1 A produção de urnas antropomorfas na Amazônia pré-colonial foi bastante vasta e diversificada. Para a Fase Aristé, as especificidades das urnas antropomorfas, descrições e discussões podem ser consultadas em Meggers e Evans (1957), Rostain (1994, 2011, 2013) e Cabral e Saldanha (2012, 2017). , apresentam decorações exuberantes e formas diversificadas, que, ainda hoje, nos fascinam pela delicadeza dos traços e pelas intrincadas formas, misturando motivos humanos e motivos animais, além de padrões considerados como menos figurativos para a arqueologia.

O material cerâmico Aristé tem sido estudado com certa intensidade nos últimos anos, servindo de foco de pesquisas não apenas no Brasil (Nunes Filho, 2003Nunes Filho, E. (2003). Túmulos pré-históricos em poço com câmara, no Amapá. Clio. Série Arqueológica, 1, 177-192.; Cabral & Saldanha, 2012Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2012). Du corps à la ceramique: un regard sur les objects funéraires Aristé. In M. Thys (Ed.), Índios no Brasil (pp. 135-136). Bruxelles, Anvers: Europalia International.; Hiriart, 2012Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris.; Silva, 2016Silva, M. B. F. (2016). Aldeias e organização espacial dos povos produtores da cerâmica Aristé: contribuições para a arqueologia das unidades habitacionais da costa Atlântica do Amapá (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil., entre outros), mas também na Guiana Francesa (Rostain, 1994Rostain, S. (1994). L’Occupation Amérindienne Ancienne du littoral de Guyane. Paris: Université de Paris I., 2008Rostain, S. (2008). The archaeology of the Guianas: an overview. In H. Silverman & W. H. Isbell (Eds.), Handbook of South American Archaeology (pp. 279-302). New York: Springer., 2011Rostain, S. (2011). Que hay de nuevo al norte: apuntes sobre el Aristé. Revista de Arqueologia SAB, 24(1), 10-31.; van den Bel, 2015Van den Bel, M. (2015). Archaeological investigations between Cayenne Island and the Maroni River: a cultural sequence of western coastal French Guiana from 5000 BP to present. Leiden: Sidestone Press.). Somadas a isso, escavações arqueológicas sistemáticas em sítios com cerâmica Aristé também produziram, especialmente na última década, um conjunto bastante amplo de informações contextuais sobre este material (i.e. Cabral & Saldanha, 2009Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2009). Note sur des strucures mégalithiques en Guyane Brésilienne, Amapá. Journal de la Société des Américanistes, 95(1), 97-100. doi: https://doi.org/10.4000/jsa.10803
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; Mestre & Hildebrand, 2011Mestre, M., & Hildebrand, M. (2011). Pointe Morne: la rencontre de deux mondes amérindiens. In G. Migeon (Ed.), Un Pont sur l’Oyapock: guide de l’exposition (pp. 10-13). Cayenne: MEEDT.; Saldanha & Cabral, 2012Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2012). Du corps à la ceramique: un regard sur les objects funéraires Aristé. In M. Thys (Ed.), Índios no Brasil (pp. 135-136). Bruxelles, Anvers: Europalia International.; Saldanha, 2016Saldanha, J. D. M. (2016). Poços, potes e pedras: uma longa história indígena na Costa da Guayana (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.).

As pesquisas recentes na costa norte do Amapá, em especial, permitiram confirmar sugestões que Rostain (1994)Rostain, S. (1994). L’Occupation Amérindienne Ancienne du littoral de Guyane. Paris: Université de Paris I. já havia feito em relação aos sítios megalíticos conhecidos nesta área, que seriam relacionados à Fase Aristé, e não à Fase Aruã, como Meggers e Evans (1957)Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology. haviam proposto. As pesquisas conduzidas pela equipe do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA), a partir de 2006, mostraram, sem sombra de dúvidas, que as cerâmicas presentes nos sítios megalíticos são características da Fase Aristé (Cabral & Saldanha, 2008Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2008). Paisagens megalíticas na costa norte do Amapá. Revista de Arqueologia, 21(1), 9-26. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v21i1.237
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, 2009Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2009). Note sur des strucures mégalithiques en Guyane Brésilienne, Amapá. Journal de la Société des Américanistes, 95(1), 97-100. doi: https://doi.org/10.4000/jsa.10803
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, 2017Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2010). Projeto de Investigação Arqueológica na Bacia do Rio Calçoene e seu Entorno - Amapá. Sexto Relatório para IPHAN. Projeto autorizado pelo Portaria IPHAN nº 8, de 7 de Março de 2008 (Anexo IV-01). Macapá: IEPA.; Saldanha & Cabral, 2012Saldanha, J. D. M., & Cabral, M. P. (2012). Potes e pedras: uma gramática de monumentos megalíticos e lugares naturais na costa norte do Amapá. Revista de Arqueologia, 25(1), 44-53. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v25i1.339
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; Saldanha, 2016Saldanha, J. D. M. (2016). Poços, potes e pedras: uma longa história indígena na Costa da Guayana (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.).

O desenvolvimento de um conjunto de escavações cuidadosas em estruturas megalíticas nesta porção da Amazônia desencadeou um renovado interesse nestas coleções cerâmicas, que permitiram novos estudos sobre a constituição dos arranjos funerários identificados nos sítios megalíticos e em outros sítios que compõem a paisagem arqueológica desta região (Hiriart, 2012Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris.; Saldanha & Cabral, 2012Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2012). Du corps à la ceramique: un regard sur les objects funéraires Aristé. In M. Thys (Ed.), Índios no Brasil (pp. 135-136). Bruxelles, Anvers: Europalia International.), além de provocarem discussões sobre espaços domésticos (Silva, 2016Silva, M. B. F. (2016). Aldeias e organização espacial dos povos produtores da cerâmica Aristé: contribuições para a arqueologia das unidades habitacionais da costa Atlântica do Amapá (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.). Estes estudos nos oferecem descrições bastante cuidadosas sobre diversos contextos, produzindo narrativas sobre o passado indígena desta região, bem mais complexas do que tínhamos há poucos anos. Eles nos mostram que as populações indígenas que produziram a cerâmica classificada como Fase Aristé mantiveram modos de construção de paisagens e de materialidades ao longo de vários séculos (Rostain, 2011Rostain, S. (2011). Que hay de nuevo al norte: apuntes sobre el Aristé. Revista de Arqueologia SAB, 24(1), 10-31.; Saldanha & Cabral, 2012Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2012). Du corps à la ceramique: un regard sur les objects funéraires Aristé. In M. Thys (Ed.), Índios no Brasil (pp. 135-136). Bruxelles, Anvers: Europalia International.; Saldanha, 2016Saldanha, J. D. M. (2016). Poços, potes e pedras: uma longa história indígena na Costa da Guayana (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.).

Este revigorado interesse na arqueologia desta região e meu próprio trajeto de pesquisa ao longo destes anos têm servido para me provocar sobre outros potenciais para pensar estes contextos arqueológicos tão complexos. A arqueologia amazônica tem sido provocada, nos últimos anos, a repensar nossos modos de análise, de descrição e mesmo de construção de narrativas, tensionando discursos e produzindo novas reflexões. De certo modo, há vários esforços recentes que demonstram interesse na aproximação da arqueologia com conceitos e teorias indígenas, evidenciados pela etnologia amazônica (ver Barreto, 2009Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.; Cabral & Saldanha, 2012Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2012). Du corps à la ceramique: un regard sur les objects funéraires Aristé. In M. Thys (Ed.), Índios no Brasil (pp. 135-136). Bruxelles, Anvers: Europalia International.; Gomes, 2012Gomes, D. M. C. (2012). O perspectivismo ameríndio e a ideia de uma estética americana. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 133-159. doi: https://doi.org/10.1590/S1981-81222012000100010
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; E. Oliveira, 2016; Valle et al., 2018Valle, R., López, G. T. E., Tuyuka, P. H. T., & Munduruku, J. S. (2018). What is anthropogenic? on the cultural aetiology of geo-situated visual imagery in Indigenous Amazonia. Rock Art Research, 35(2), 123-144.; Polo, 2019Polo, M. J. A. (2019). Corpo e figuração na arqueologia da Foz do Amazonas: uma abordagem pós-representacional aos conjuntos Maracá, Caviana e Cupixi (Tese de doutorado). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.).

É justamente neste caminho que este texto se insere, como um exercício de pensar outros modos de abordagem à materialidade arqueológica, buscando fortalecer diálogos com perspectivas indígenas e experimentando outras relações. Tomando como foco uma estrutura funerária que contém um conjunto de cerâmicas indígenas, algumas antropomorfas, oriundas de contextos arqueológicos cuidadosamente registrados, eu procuro explorar suas capacidades agentivas, articulando suas propriedades materiais, aspectos estéticos e os próprios contextos de deposição. Partindo de uma perspectiva alimentada pela etnologia indígena da Amazônia, que tem salientado a potência da materialidade na relação com diversas gentes, procuro tecer narrativas que evidenciam o lugar do cuidado estético na produção destas peças para atrair olhares e produzir relações com quem as encontra. Para além da beleza, no entanto, minha proposta é explorar de que modos estas vasilhas e os demais materiais com os quais se conectam podem nos apontar para uma série de relações que as pessoas que as produziram e utilizaram estavam criando e como as estavam usando entre outras pessoas, lugares e seres.

DELINEANDO UM CAMINHO

De certo modo, as reflexões deste texto, e o experimento analítico que ele evidencia, se alinham não apenas com os debates que têm ganhado fôlego na arqueologia amazônica a respeito da agência de objetos (ver Barreto, 2009Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.), mas também com uma espécie de retorno às coisas que a etnologia regional tem expressado – ver van Velthem (2003)Van Velthem, L. H. (2003). O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim. e, especialmente, o volume editado por Santos-Granero (2009a)Santos-Granero, F. (Ed.). (2009a). The occult life of things: native amazonian theories of materiality and personhood. Tucson: University of Arizona Press.. Neste sentido, é particularmente importante, aqui, o que tem sido discutido a respeito do próprio estatuto dos objetos para populações indígenas amazônicas, o que tomo como uma forte inspiração para pensar a materialidade arqueológica.

Como já exposto no volume editado por Santos-Granero (2009a)Santos-Granero, F. (Ed.). (2009a). The occult life of things: native amazonian theories of materiality and personhood. Tucson: University of Arizona Press., os objetos não tiveram um espaço marcante nas reflexões pioneiras a respeito do ‘perspectivismo ameríndio’ (Viveiros de Castro, 1998Viveiros de Castro, E. (1998). Cosmological Deixis and Amerindian perspectivism. Journal of the Royal Anthropological Institute, 4(3), 469-488. doi: https://doi.org/10.2307/3034157
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, 2002; Lima, 2005Lima, T. S. (2005). Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: Edunesp.), uma teoria nativa que a antropologia amazônica evidenciou com muito vigor e potência, colocando-a no centro das reflexões sobre a socialidade indígena da região. Apesar disso, havia já indicações de que o estatuto dos objetos para as populações ameríndias contrastava fortemente com as concepções usuais manipuladas na antropologia e na arqueologia, como evidenciado nesta passagem:

. . . o que chamamos ‘sangue’ é a ‘cerveja’ do jaguar, o que temos por um barreiro lamacento, as antas têm por uma grande casa cerimonial, e assim por diante. Os artefatos possuem esta ontologia interessantemente ambígua: são objetos, mas apontam necessariamente para um sujeito, pois são como ações congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade não material (Viveiros de Castro, 2002Viveiros de Castro, E. (2002). A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify., p. 361).

Esta natureza ‘ambígua’ dos objetos tornou-se, posteriormente, foco de vários estudos na etnologia amazônica, que, então, evidenciaram a dimensão subjetiva das coisas para as populações indígenas da região, ressaltando não apenas suas capacidades de interação, de fato, com os sujeitos humanos, mas também seus potenciais na expressão das suas histórias de relação com outros sujeitos e suas próprias biografias, como sintetizado por Santos-Granero (2009b, p. 3)Santos-Granero, F. (2009b). Introduction: Amerindian constructional views of the world. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things: native amazonian theories of materiality and personhood (pp. 1-29). Tucson: University of Arizona Press.. O experimento analítico que este artigo traz reside justamente em um exercício de ativar estas concepções nativas sobre a materialidade como guia para pensar a materialidade arqueológica. Se, em parte, este interesse está diretamente relacionado com esta produção etnográfica regional, que me parece provocar a arqueologia (ainda que talvez não intencionalmente) a adensar a reflexão sobre o potencial de pensarmos objetos através de outro estatuto, também tenho sido fortemente impactada por vivências e trocas de experiências com povos indígenas na Amazônia, ativadas tanto por projetos de pesquisa colaborativa quanto por oportunidades de participar em ações de colegas e organizações não governamentais (ONG).

Obviamente, discussões paralelas que têm sido travadas dentro da arqueologia, a partir de outros caminhos, também contribuem neste processo. Para a Amazônia, o impacto das ideias de Gell (1992Gell, A. (1992). The technology of enchantment and the enchantment of technology. In J. Coote & A. Shelton (Eds.), Anthropology, art and aesthetics (pp. 41-63). Oxford: Clarendon Press., 1998)Gell, A. (1998). Art and agency, an anthropological theory. Oxford: Oxford University Press. sobre a agência das coisas gerou uma importante guinada nos estudos da cerâmica arqueológica (Barreto, 2009Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.; Gomes, 2012Gomes, D. M. C. (2012). O perspectivismo ameríndio e a ideia de uma estética americana. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 7(1), 133-159. doi: https://doi.org/10.1590/S1981-81222012000100010
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; E. Oliveira, 2016Oliveira, E. (2016). Potes que encantam: estilo e agência na cerâmica polícroma da Amazônia central (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.), contribuindo para renovar o interesse sobre o potencial ativo das peças arqueológicas na relação com as pessoas. Em um contexto mais amplo, é também importante ressaltar discussões relacionadas tanto com a chamada ‘arqueologia simétrica’ (Webmoor, 2007Webmoor, T. (2007). What about ‘one more turn after the social’ in archaeological reasoning? Taking things seriously. World Archaeology, 39(4), 563-578. doi: https://doi.org/10.1080/00438240701679619
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; Webmoor & Witmore, 2008Webmoor, T., & Witmore, C. L. (2008). Things are us! A commentary on human/things relations under the Banner of a ‘Social’ archaeology. Norwegian Archaeological Review, 41(1), 1-18. doi: https://doi.org/10.1080/00293650701698423
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; Olsen, 2010Olsen, B. (2010). In defense of things: archaeology and the ontology of objects. Lanham: Altamira Press.), quanto os desdobramentos mais recentes dos estudos chamados de ‘pós-representacionais’ (Alberti & Marshall, 2009Alberti, B., & Marshall, Y. (2009). Animating archaeology: local theories and conceptually open-ended methodologies. Cambridge Archaeological Journal, 19(3), 344-356. doi: https://doi.org/10.1017/S0959774309000535
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; Marshall & Alberti, 2014Marshall, Y., & Alberti, B. (2014). A matter of difference: Karen Barad, ontology and archaeological bodies. Cambridge Archaeological Journal, 24(1), 19-36. doi: https://doi.org/10.1017/S0959774314000067
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; Polo, 2019Polo, M. J. A. (2019). Corpo e figuração na arqueologia da Foz do Amazonas: uma abordagem pós-representacional aos conjuntos Maracá, Caviana e Cupixi (Tese de doutorado). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.), que delinearam caminhos para um retorno à materialidade aberto às múltiplas possibilidades de pensar sobre a agência das coisas.

Este contexto, bastante profícuo de reflexões, tem fortalecido a crítica sobre um estatuto dos objetos que os limitava a produtos de uma agência exclusivamente humana (Ingold, 2007Ingold, T. (2007). Materials against materiality. Archaeological Dialogues, 14(1), 1-16. doi: https://doi.org/10.1017/S1380203807002127
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; Hodder, 2012Hodder, I. (2012). Entangled: an archaeology of the relationships between humans and things. Oxford: Wiley-Blackwell.), em um movimento que me parece bastante similar ao que havia ocorrido com o conceito de paisagem na arqueologia (Tilley, 1994Tilley, C. Y. (1994). A phenomenology of landscape: places, paths and monuments. Oxford, Providence: Berg Publishers.; Ashmore & Knapp, 1999Ashmore, W., & Knapp, A. B. (Eds.). (1999). Archaeologies of landscape: contemporary perspectives. Oxford: Blackwell Publishers.; Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge.; Bowser & Zedeño, 2009Bowser, B. J., & Zedeño, M. N. (Eds.). (2009). The Archaeology of meaningful places. Salt Lake City: University of Utah Pr.) e que provocou uma guinada às percepções de que pessoas e seu entorno se constituem mutuamente. Neste sentido, é possível pensar estas múltiplas abordagens a respeito da agência dos objetos também como uma guinada à percepção de constituições mútuas, ainda que atravessadas por influências teóricas diversas e nem sempre convergentes.

De qualquer modo, o interesse aqui é muito mais de expor essa multiplicidade de abordagens que têm sido ativadas para pensar o arqueológico do que de apresentá-las detalhadamente, tarefa muito mais ampla do que poderia almejar aqui. Além disso, como já ressaltado mais acima, o exercício analítico que elaboro aqui está particularmente focado em teorias, conceitos e modelos indígenas expostos na literatura etnológica regional, na produção indígena de reflexões textuais e nas minhas experiências de diálogo com populações indígenas na linha das chamadas ‘arqueologias etnográficas’ (Castañeda, 2008Castañeda, Q. (2008). The “Ethnographic Turn” in archaeology. In Q. E. Castañeda & C. N. Matthews (Eds.), Ethnographic archaeologies: reflections on stakeholders and archaeological practices (pp. 25-61). Plymouth: Altamira Press.; Edgeworth, 2006Edgeworth, M. (Ed.). (2006). Ethnographies of archaeological practice: cultural encounters, material transformations. Oxford: AltaMira Press.; Hamilakis & Anagnostopoulos, 2009Hamilakis, Y., & Anagnostopoulos, A. (2009). What is archaeological ethnography? Public Archaeology, 8(2/3), 65-87. doi: https://doi.org/10.1179/175355309X457150
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). Ao evidenciar estas outras abordagens que provocam reflexões sobre o estatuto convencional dos objetos, busco reconhecer que há esforços diversos sendo construídos neste caminho, ainda que escolha – neste momento – enfocar com mais atenção o potencial do pensamento indígena amazônico sobre modos de pensar e analisar a materialidade arqueológica. Em certo sentido, esta é também uma escolha pela valorização do pensamento indígena e periférico (Haber, 2017Haber, A. (2017). Al otro lado del vestigio: políticas del conocimiento y arqueología indisciplinada. Buenos Aires: Del Signo.).

PARA CONHECER O CONTEXTO

“Tudo tem dono. Não existe nada que não tenha dono”

(Professores Wajãpi, 2007Professores Wajãpi. (2007). Ija mã’e kõ. São Paulo: FALE-UFMG., p. 5)

Esta afirmação assertiva dos Wajãpi servirá aqui como motor para pensar o quanto todas as coisas, lugares e pessoas (humanas ou não) estão sempre, do ponto de vista indígena, amarradas em redes de relações com outras gentes, coisas e lugares. O conceito de ‘dono’ que os Wajãpi manipulam, e presente nesta epígrafe, está alinhado com uma categoria mais ampla sobre a maestria no mundo indígena amazônico, que Fausto (2008a)Fausto, C. (2008a). Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, 14(2), 329-366. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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evidenciou como um elemento essencial das ‘sociocosmologias indígenas’. Diferentemente da noção de propriedade à qual este termo é usualmente associado, o que Fausto (2008a, p. 348)Fausto, C. (2008a). Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, 14(2), 329-366. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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demonstra é que, etnograficamente, a noção de dono aponta para um forte “. . . esquema relacional . . .”, que entrelaça pessoas, lugares, espíritos, plantas e coisas. É justo neste sentido que considero a afirmação dos Wajãpi potente para guiar este exercício analítico: se tudo tem dono, as coisas arqueológicas também estão emaranhadas nestas relações e, portanto, são potencialmente passíveis de serem investigadas relacionalmente. Interessa-me, aqui, investigar de que modo a materialidade arqueológica expressa essas relações, quais relações podem ser evidenciadas e o que elas podem nos oferecer sobre a socialidade indígena na qual elas se assentam e se conectam.

Para avançar neste exercício, escolhi um contexto particularmente rico, que servirá como modelo para testar a provocação que me coloquei, de avaliar a potência de uma análise voltada a perceber as relações entre uma multiplicidade de agentes na constituição da materialidade arqueológica, mantendo como eixo forte um referencial indígena sobre o estatuto dos objetos. O contexto escolhido, como já adiantado anteriormente, está relacionado com a cerâmica classificada na arqueologia dentro da Fase Aristé. Mais especificamente, vou ater meu olhar sobre uma estrutura funerária do sítio arqueológico AP-CA-18: Rego Grande, um sítio megalítico, localizado no município de Calçoene, nordeste do estado do Amapá (Figura 1).

Figura 1
O sítio arqueológico AP-CA-18: Rego Grande, uma estrutura megalítica localizada no município de Calçoene, porção nordeste do estado do Amapá. Mapas: Mariana Petry Cabral (2019) (mapa principal) e Bruno Barreto (2019) (mapa regional).

Este sítio arqueológico é caracterizado como uma estrutura megalítica, de formato relativamente circular, composta por centenas de blocos de granito, dispostos sobre uma pequena elevação à beira do igarapé Rego Grande, na costa norte do Amapá (Cabral & Saldanha, 2008Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2008). Paisagens megalíticas na costa norte do Amapá. Revista de Arqueologia, 21(1), 9-26. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v21i1.237
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). As escavações realizadas pela equipe do IEPA evidenciaram quatro poços funerários, além de inúmeras outras deposições no entorno dos poços e dos blocos megalíticos (Cabral & Saldanha, 2008Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2008). Paisagens megalíticas na costa norte do Amapá. Revista de Arqueologia, 21(1), 9-26. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v21i1.237
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; Saldanha, 2016Saldanha, J. D. M. (2016). Poços, potes e pedras: uma longa história indígena na Costa da Guayana (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.; Cabral & Saldanha, 2017Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2017). Sitios megalíticos en Guayana oriental. In S. Rostain & C. J. Betancourt (Eds.), Las Siete Maravillas de la Amazonía precolombina (pp. 137-151). Bonn: Bonner Altamerrika-Sammlung un Studien.). Um conjunto de datações radiocarbônicas situa o início da construção deste sítio por volta do século XI AD, com uma duração que pode alcançar o século XVIII AD (Saldanha & Cabral, 2012Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2012). Du corps à la ceramique: un regard sur les objects funéraires Aristé. In M. Thys (Ed.), Índios no Brasil (pp. 135-136). Bruxelles, Anvers: Europalia International.; Saldanha, 2016Saldanha, J. D. M. (2016). Poços, potes e pedras: uma longa história indígena na Costa da Guayana (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.).

Optei por selecionar aqui um destes poços funerários, ainda que esboce esforços de conectá-lo a outras estruturas evidenciadas neste sítio (Figura 2). O Poço 4 foi escavado pela equipe do IEPA em 2010, período em que também foi escavado outro poço funerário (Poço 3), localizado próximo ao Poço 4 e associado a este, de modo muito visível, por uma ampla deposição de fragmentos cerâmicos, que cobriam completamente o topo do Poço 3 e avançavam sobre o Poço 4 (Cabral & Saldanha, 2010Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2010). Projeto de Investigação Arqueológica na Bacia do Rio Calçoene e seu Entorno - Amapá. Sexto Relatório para IPHAN. Projeto autorizado pelo Portaria IPHAN nº 8, de 7 de Março de 2008 (Anexo IV-01). Macapá: IEPA., 2017).

Figura 2
Poço 4 do sítio AP-CA-18: A) plano de topo da estrutura megalítica com malha de escavação, sendo indicada em azul a área escavada quando da identificação dos Poços 3 e 4; B) desenho do perfil esquemático do Poço 4; C) fotografia registrando momento anterior ao fechamento das escavações, com Poços 4 (esquerda) e 3 (direita) evidenciados em relação à estrutura megalítica. Fontes: Cabral & Saldanha (2010)Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2010). Projeto de Investigação Arqueológica na Bacia do Rio Calçoene e seu Entorno - Amapá. Sexto Relatório para IPHAN. Projeto autorizado pelo Portaria IPHAN nº 8, de 7 de Março de 2008 (Anexo IV-01). Macapá: IEPA. (A) e Cabral & Saldanha (2017)Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2017). Sitios megalíticos en Guayana oriental. In S. Rostain & C. J. Betancourt (Eds.), Las Siete Maravillas de la Amazonía precolombina (pp. 137-151). Bonn: Bonner Altamerrika-Sammlung un Studien.. Desenho de J. Saldanha (2010). Foto: Mariana Petry Cabral/acervo do IEPA (2010).

Os poços funerários são estruturas construídas e associadas diretamente com os sítios megalíticos (Goeldi, 1905Goeldi, E. (1905). Excavações archeologicas em 1895. 1ª parte: as cavernas funerarias atificiaes dos indios hoje extinctos no rio Cunany (Goanany) e sua ceramica (Memórias do Museu Goeldi, I). Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia.; Cabral & Saldanha, 2009Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2009). Note sur des strucures mégalithiques en Guyane Brésilienne, Amapá. Journal de la Société des Américanistes, 95(1), 97-100. doi: https://doi.org/10.4000/jsa.10803
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, 2017; Saldanha & Cabral, 2012Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2012). Du corps à la ceramique: un regard sur les objects funéraires Aristé. In M. Thys (Ed.), Índios no Brasil (pp. 135-136). Bruxelles, Anvers: Europalia International.; Saldanha, 2016Saldanha, J. D. M. (2016). Poços, potes e pedras: uma longa história indígena na Costa da Guayana (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.). No seu interior, são encontradas vasilhas cerâmicas, muitas vezes antropomorfas, com presença de vestígios ósseos humanos, inclusive com mais de um indivíduo dentro de uma única urna (Py-Daniel, 2014Py-Daniel, A. R. (2014). Os contextos funerários na arqueologia da Calha do Rio Amazonas (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.). Além das urnas funerárias, outras vasilhas cerâmicas – inteiras ou fragmentadas – também são encontradas dentro ou sobre os poços funerários (Goeldi, 1905Goeldi, E. (1905). Excavações archeologicas em 1895. 1ª parte: as cavernas funerarias atificiaes dos indios hoje extinctos no rio Cunany (Goanany) e sua ceramica (Memórias do Museu Goeldi, I). Belém: Museu Paraense de História Natural e Ethnographia.; Cabral & Saldanha, 2009Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2009). Note sur des strucures mégalithiques en Guyane Brésilienne, Amapá. Journal de la Société des Américanistes, 95(1), 97-100. doi: https://doi.org/10.4000/jsa.10803
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, 2017Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2017). Sitios megalíticos en Guayana oriental. In S. Rostain & C. J. Betancourt (Eds.), Las Siete Maravillas de la Amazonía precolombina (pp. 137-151). Bonn: Bonner Altamerrika-Sammlung un Studien.), assim como blocos de granito, de diversos tamanhos. Alguns poços são compostos por poucas vasilhas, enquanto outros podem ter mais de uma centena delas (Cabral & Saldanha, 2009Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2009). Note sur des strucures mégalithiques en Guyane Brésilienne, Amapá. Journal de la Société des Américanistes, 95(1), 97-100. doi: https://doi.org/10.4000/jsa.10803
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; Hiriart, 2012Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris.). Há também, em alguns casos, deposição de lâminas de machado polidas e outros vestígios líticos, assim como deposição de enterramento fora de urna cerâmica (Cabral & Saldanha, 2017Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2017). Sitios megalíticos en Guayana oriental. In S. Rostain & C. J. Betancourt (Eds.), Las Siete Maravillas de la Amazonía precolombina (pp. 137-151). Bonn: Bonner Altamerrika-Sammlung un Studien.). Outro aspecto interessante a ressaltar é que alguns poços foram reutilizados ao longo do tempo, com a retirada da deposição original e deposição de novos conjuntos, o que foi observado em outro poço funerário do mesmo sítio aqui estudado (Cabral & Saldanha, 2009Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2009). Note sur des strucures mégalithiques en Guyane Brésilienne, Amapá. Journal de la Société des Américanistes, 95(1), 97-100. doi: https://doi.org/10.4000/jsa.10803
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).

Estas breves descrições servem para salientar o caráter bastante complexo e variado destes poços funerários, dificultando, portanto, definições restritivas para descrevê-los. A intensificação das pesquisas em estruturas megalíticas realizadas pela equipe do IEPA aponta para uma enorme variação entre os poços funerários presentes em sítios megalíticos desta região, o que parece indicar que a diversidade é a regra para organizar estes conjuntos.

A escolha pelo Poço 4 se deu em função de alguns elementos que potencializam o exercício analítico aqui proposto. Já durante as escavações, foi possível observar que ele era o resultado de uma sucessão de eventos de deposição, com intervalos bem marcados (ainda que não necessariamente distantes temporalmente). Complementarmente, este poço apresentou uma quantidade bastante significativa de vasilhas completas, nos diferentes depósitos, compondo conjuntos diversificados. Neste sentido, considerando que parte do exercício está em buscar relações, esta diversidade de peças e arranjos potencializa o esforço.

Além disso, o material cerâmico presente no Poço 4 foi cuidadosamente analisado por Maitena Hiriart (2012)Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris., através de seu trabalho monográfico visando a finalização do ‘Master 2’ na Universidade Paris 1, Pantheon-Sorbonne (França). Seu estudo detalhado da composição dos conjuntos cerâmicos, aliado às informações contextuais da escavação, contribuiu para delimitar os eventos de composição do Poço 4, identificando três conjuntos bem delimitados e um outro conjunto com limites menos precisos (‘depósito intermediário’). Para além dos dados publicados no trabalho monográfico de Hiriart (2012)Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris., também faço uso aqui da documentação de análise que ela produziu e que compõe o acervo documental do sítio AP-CA-18, sob guarda do IEPA. Desse modo, faço aqui uso de diferentes fontes, tais como relatórios, artigos e monografias de pesquisa, documentação de campo, documentação de laboratório e acervo fotográfico2 2 Ainda que utilize os dados produzidos por Hiriart (2012), as reflexões apresentadas neste artigo são oriundas de um esforço analítico mais amplo, articulando não apenas os dados produzidos por Hiriart (2012), mas também um conjunto mais extenso de informações disponíveis no acervo arqueológico do IEPA. Vale lembrar, ainda, que as escavações arqueológicas do sítio AP-CA-18 foram por mim coordenadas, em conjunto com o arqueólogo João D. de Moura Saldanha. As escavações do Poço 4, em especial, realizadas em fevereiro de 2010, foram particularmente importantes para gerar em mim inquietações, que busco, neste artigo, finalmente expor e discutir. .

SEGUINDO AS COISAS E SUAS RELAÇÕES

Para seguir as coisas e tentar mapear suas relações, meu trajeto está fortemente marcado por dois aspectos complementares. De um lado, talvez por ser arqueóloga, sempre fui atenta ao mundo material, interessando-me por matérias-primas e suas características, suas procedências, seus modos de fazer. Por outro, o interesse na etnologia indígena e as oportunidades de dialogar com pessoas indígenas, especialmente no estado do Amapá, expuseram-me a concepções sobre a materialidade que potencializam – ao meu ver – os estudos da arqueologia. Nestas interações e diálogos cotidianos, fui exposta a outros estatutos a respeito do mundo material.

Aquilo que Lévi-Strauss (2010)Lévi-Strauss, C. (2010). O pensamento selvagem (11 ed.). Campinas: Papirus. chamou de ‘ciência do concreto’, um modo de conceber e explicar o mundo em que as características da materialidade têm papel ativo, se desdobrava para mim. Como os Wajãpi me ensinaram, foi imitando o jacamim, um pássaro que sobe pelas casas e caminha pelas vigas estreitas, que aprendi a cruzar os troncos que servem de ponte sobre igarapés maiores. Meu agir como jacamim aproximava nossos corpos e me transmitia certa potência-jacamim, impedindo que eu caísse. De modo similar, o uso de matérias-primas específicas transmite ao objeto produzido a potência contida na fonte de procedência, alinhando não apenas as características físicas, mas também xamânicas (van Velthem, 2003Van Velthem, L. H. (2003). O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim.). É também na produção de desenhos que relações são alimentadas e constituídas, conectando o suporte do grafismo com um referencial que se faz presente, ao ser evocado nos traços (van Velthem, 1998Van Velthem, L. H. (1998). A pele de Tuluperê: uma etnografia dos trançados dos Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.; Lagrou, 2007Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Top Books.; Severi & Lagrou, 2013Severi, C., & Lagrou, E. (2013). Introdução. In C. Severi & E. Lagrou (Eds.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração nas artes indígenas (pp. 11-24). Rio de Janeiro: 7Letras.). E foi justamente esta convergência sobre o material, que perpassa desde suas características físicas até conexões xamânicas, que me pareceu instigante de operacionalizar na arqueologia.

A escolha por um poço funerário, neste sentido, exige explicitar algumas relações. A morte é um elemento incontornável aqui, é um contexto em que os mortos estão presentes, não apenas como potenciais lembranças, mas com a materialidade de seus corpos. Vale lembrar que a noção de pessoa no mundo indígena, como já exposto no texto seminal de Seeger et al. (1979)Seeger, A., Da Matta, R., & Viveiros de Castro, E. (1979). A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional. Antropologia, 32, 2-19., aponta para um regime de múltipla composição. Complementarmente, é interessante alinhar esta concepção compósita de pessoa com a noção de afinidades criadas na interação física entre pessoas, através da troca de substâncias (Seeger et al., 1979Seeger, A., Da Matta, R., & Viveiros de Castro, E. (1979). A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional. Antropologia, 32, 2-19.), produzindo o que a etnologia veio a chamar de ‘grupos de substância’, modos de relação em que as trocas de fluidos advindas da convivência lado a lado criam “. . . uma conexão corporal entre um conjunto de parentes . . .” (J. Oliveira, 2012Oliveira, J. C. (2012). Entre plantas e palavras: modos de constituição de saberes entre os Wajãpi (AP) (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil., p. 166). Neste sentido, um poço funerário, como um local de contenção, acaba por apreender múltiplas materialidades das pessoas ali reunidas, produzindo e ativando trocas entre suas múltiplas substâncias. O poço cria um ‘grupo de substância’, formado – importante salientar – não apenas pelas parcelas dos mortos ali colocados, mas por todo conjunto material ali encerrado: ossos, cerâmicas, granitos, terra. Desdobra-se, a partir daí, também a relação que cada peça vai ativar com outros lugares, outras coisas e outras pessoas. De certo modo, como vou mostrar adiante, esse ‘grupo de substância’ criado no poço funerário se constrói na decomposição e (re)composição de pessoas, humanas ou não.

Este poço, como os outros conhecidos neste contexto, está localizado dentro de uma estrutura megalítica, que é formada por blocos de granito. Os blocos de granito são trazidos de jazidas no entorno do sítio, que ficam expostas sobre o terreno. Uma observação dos blocos que compõem a estrutura, tanto aqueles expostos em superfície, quanto aqueles depositados dentro dos poços funerários, permite perceber que eles são extraídos na forma de placas. Alguns blocos, mas nem todos, têm marcas evidentes de desbate para sua formatação. No sítio AP-CA-18, de modo por enquanto ainda único, há, inclusive, um bloco com um buraco de formato arredondado, suficientemente grande para que a cabeça de uma pessoa adulta possa atravessá-lo. Ao visitar as jazidas de onde estes blocos foram retirados, nota-se o padrão de placas nos negativos, indicando um aproveitamento do processo de destacamento natural destes afloramentos, ainda que ativado possivelmente com alavancas e outros mecanismos de pressão. Todas as estruturas megalíticas mapeadas até o momento nesta região estão sobre elevações sem afloramentos graníticos diretos. Todo sítio megalítico, portanto, aponta para outro lugar, de onde foram extraídos seus blocos. Ao chegar a um sítio destes, os marcantes blocos graníticos remetem para as jazidas, conectando estes lugares.

O granito, para além de sua presença na forma de blocos, nos mais variados tamanhos, também está presente nos sítios megalíticos de outro modo, bem mais sutil. Algumas peças cerâmicas têm granito moído adicionado às suas pastas, às vezes produzindo um aspecto mais grosseiro ao acabamento, em função de grãos macroscópicos. A presença de granito na cerâmica Aristé também ocorre em sítios não megalíticos (Silva, 2011Silva, M. B. F. (2011). Análise tipológica e espacial do sítio Arqueológico AP-OI-06, extremo norte do Amapá (Monografia de especialização). Universidade do Estado do Amapá, Macapá, Brasil.). Estudos em andamento, iniciados por Marina Costa (2017)Costa, M. S. (2017). Cacos de pedra: granito como antiplástico cerâmico, uma experimentação (Trabalho de conclusão de curso). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil., estão investigando uma proposição de Denis Williams (2003)Williams, D. (2003). Prehistoric Guiana. Kingston: Ian Randle Publishers. sobre a adição do granito como modo de aumentar a dureza das peças cerâmicas. Ao seguir, no entanto, as proposições indígenas de que as matérias-primas carregam substâncias mesmo através de suas transformações físicas nos processos de produção dos objetos, este entrelaçamento do granito (afloramento-megalitos-poços-cerâmica) pode ser ativado como uma conexão entre lugares e coisas. A cerâmica que contém o granito, visualmente aparente ou não, carrega, portanto, sua substância, e – assim como os blocos megalíticos – aponta também para o lugar do afloramento, e, portanto, também para as potências que este material evoque. De certo modo, o que aparece neste entrelaçamento é um desdobramento de relações e de suas substâncias. Existe aí uma economia de substâncias que rege estas relações.

É interessante, no entanto, que as peças cerâmicas presentes no Poço 4 não tenham granito como seu antiplástico, havendo forte predomínio do uso de chamote (caco moído), que alcança 56% das peças deste poço (Hiriart, 2012Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris., p. 65). Voltarei a estes outros elementos da cerâmica mais adiante. Porém, como será mostrado, o granito é, de fato, bastante presente na composição do Poço 4.

Por ora, vale acompanhar a composição do conjunto cerâmico do Poço 4. Hiriart (2012)Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris. contabilizou um expressivo número mínimo de vasilhas (NMI). Foram identificados 151 potes cerâmicos, classificados em sete formas gerais, que abarcam desde pratos e tigelas abertas a moringas e jarros restringidos (Hiriart, 2012Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris.). Os estudos de Hiriart (2012)Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris., como já apontado, permitiram também a definição mais precisa dos diferentes momentos de deposição que formaram o Poço 4. De modo a explicitar a complexidade desta estrutura, a Figura 3 ilustra oito etapas da escavação deste poço, que são conectadas com os eventos de construção da estrutura.

Figura 3
As diferentes etapas de construção do Poço 4, a partir dos registros de escavação da estrutura: 1) base inicial do poço; 2) cerca de 30 cm acima da base, blocos de granito formam um piso; 3) sobre o piso, vasilhas inteiras e fragmentadas (ao que parece, intencionalmente no local) foram depositadas; 4) preenchimento com terra cobre deposição, também há inserção de novos blocos de granito; 5) um grande bloco de granito é depositado inclinado sobre a parede norte; 6) sobre este bloco, outra deposição cerâmica é colocada, ela parece estar conectada com vasilhas inteiras que estavam na porção sul do poço, no momento do piso de granito (aparente nas etapas 3, 4 e 5); 7) a ampla deposição é formada também por um conjunto de muitas vasilhas completas, colocadas diretamente sobre o bloco de granito inclinado, a deposição é coberta com outro bloco de granito, posteriormente fragmentado (neste momento da escavação, parte dele havia sido retirada); 8) sobre a deposição, o último grande bloco de granito é colocado, além da deposição de outro bloco inclinado na porção sul.

Os registros de campo, assim como as reflexões levantadas por Hiriart (2012)Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris., apontam para um processo bastante complexo na estruturação do Poço 4. Sua base inicial está a 133 cm de profundidade, sendo escavado diretamente no solo laterítico decomposto, que forma o embasamento da elevação onde o sítio está localizado. Sobre esta base, havia uma deposição, formada basicamente por terra, com cerca de 30 cm de espessura, com presença de alguns fragmentos cerâmicos dispersos e três contas de osso, também dispersas (Cabral & Saldanha, 2010Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2010). Projeto de Investigação Arqueológica na Bacia do Rio Calçoene e seu Entorno - Amapá. Sexto Relatório para IPHAN. Projeto autorizado pelo Portaria IPHAN nº 8, de 7 de Março de 2008 (Anexo IV-01). Macapá: IEPA.), um tipo de elemento bastante singular e raramente relatado. A partir das fotografias produzidas em campo, é possível observar que uma das contas tem formato tipo canutilho, com cerca de 14 mm de comprimento e 6 mm de largura. É importante lembrar que contas costumam compor adereços corporais, elementos importantes na constituição de corpos fortes e belos (ver van Velthem, 2003Van Velthem, L. H. (2003). O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim.; Miller, 2009Miller, J. (2009). Things as persons: body ornaments and alterity among the Mamaindê (Nambikwara). In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things: native amazonian theories of materiality and personhood (pp. 60-80). Tucson: University of Arizona Press.), ressaltando mais uma relação que é criada dentro do Poço 4, apontando para a decomposição de pessoas, não apenas no sentido estritamente biológico, mas seguindo a concepção compósita de pessoa indígena.

O piso formado por blocos de granito é assentado, portanto, depois da deposição de terra sobre a base do poço. Ainda que não se tenha uma cronologia absoluta destes eventos, é evidente que há etapas distintas marcadas materialmente. Neste sentido, é possível que os fragmentos cerâmicos e as contas de osso observados nesta deposição de terra, abaixo do piso, sejam migrações pós-deposicionais.

Os registros de campo mostram que havia 14 blocos assentados, com tamanhos entre 10 e 100 cm de largura máxima. Apenas um bloco não era de granito, mas sim de diabásio, indicando, portanto, a inserção de mais um lugar e de outro tipo de substância no recinto. Com exceção de um pequeno bloco com 2,5 cm de espessura, todos os blocos de granito tinham espessura bastante regular: entre 5 cm e 6 cm. O bloco de diabásio destoa neste aspecto, com 10 cm de espessura. Apesar das diferentes espessuras, todos os blocos foram assentados, formando um piso relativamente regular.

Na ficha de campo, é registrado que os blocos estavam envoltos e assentados sobre um sedimento diferente, que parecia ‘barro socado’, composto por “argila cinza, fragmentos de laterita em decomposição, carvões e poucos cacos dispersos”3 3 Dados não publicados, disponíveis em documento do acervo do IEPA, Ficha de Campo 2395, Área 1, nível 100-110 cm/110-120 cm. . Há, portanto, não apenas a deposição de blocos de granito e diabásio, mas também de sedimentos alheios ao poço, como a ‘argila cinza’, compondo mais um elemento substantivo e apontando para mais outro lugar de onde a argila foi retirada. Quanto à laterita em decomposição, lembro que esta é a composição do embasamento geológico onde o sítio está implantado. Vale ainda ressaltar o esforço empreendido neste momento de construção, com um cuidado em assentar os blocos de modo regular por meio do uso de um solo especialmente preparado.

Sobre este piso, foram, então, colocadas vasilhas que parecem quebradas intencionalmente no local, depositadas na porção norte do poço (Figura 3, etapa 3). Sobre este material, na escavação, havia uma grande deposição de terra, sobre a qual se assentava um grande bloco de granito (Bloco C), em posição inclinada, encostado sobre a parede norte do poço. Este bloco, de fato, cobriu a deposição descrita, ocupando cerca de um terço da área do poço. Sua base não estava assentada diretamente sobre o piso, indicando que sua deposição ocorreu sobre uma camada de terra que poderia ter coberto, ao menos parcialmente, a deposição. Aqui, novamente, temos os intervalos entre as etapas marcados materialmente. Na porção sul do poço, blocos menores de granito também são depositados, rente à parede.

O Bloco C, por sua posição inclinada, cria uma espécie de rampa para o interior do poço. É sobre ele, e sobre a terra acumulada no mesmo sentido da rampa, que é, então, depositado o maior conjunto de cerâmicas que constitui o Poço 4, a chamada Deposição 2 (Figura 3, etapas 5, 6 e 7), contendo duas urnas antropomorfas e mais de uma dezena de outras vasilhas inteiras ou quase completas, além de conjuntos de fragmentos cerâmicos.

Este conjunto foi posteriormente coberto com outra laje de granito (Bloco B), também apoiada sobre a parede do poço e inclinada no mesmo sentido da rampa produzida pelo Bloco C. No lado oposto do poço, junto à parede sul, outro bloco grande (Bloco A) foi colocado, também inclinado para o interior, encostando sobre o Bloco B. Na etapa final deste poço, quando o Bloco B já estava parcialmente coberto de terra, uma ampla deposição, formada por fragmentos cerâmicos e alguns blocos de granito, cobre o Poço 3 e alcança a parede sudoeste do Poço 4, com escorrimento de material para seu interior. Este parece ser o evento final deste poço, conectando-o materialmente com o Poço 3, através de um verdadeiro tapete de fragmentos cerâmicos (Figura 4).

Figura 4
Em primeiro plano, Poço 4 sendo evidenciado nos primeiros níveis de escavação; mais ao fundo, Poço 3 com deposição de fragmentos cerâmicos e blocos de granito, que se estende e entra pela parede sudoeste do Poço 4.

Explicitado o complexo processo de construção do Poço 4, já é possível perceber que este recinto ativa conexões com um conjunto diversificado de lugares. Participam da composição estrutural deste poço os afloramentos de onde blocos de granito e de diabásio foram retirados, e a fonte de argila cinza que foi utilizada para construir o piso com blocos de rocha. Além disso, o escorrimento da deposição sobre o Poço 3 para dentro do Poço 4 ativa também uma troca entre os dois poços. Não estou ainda inserindo os lugares que as vasilhas cerâmicas, os fragmentos de peças líticas, as contas de adereço e mesmo os vestígios humanos podem apontar, o que vai complexificar ainda mais as relações expressas materialmente no Poço 4.

Para isso, vou iniciar voltando aos dados produzidos por Hiriart (2012)Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris. a respeito do conjunto cerâmico deste poço. Como já indicado, a cerâmica mostrou forte predomínio do antiplástico chamote na composição das pastas. Produzido pela maceração de fragmentos de vasilhas, o uso do chamote – seguindo a perspectiva sobre a potência das substâncias na constituição das coisas – cria um movimento de retorno e reforço da própria cerâmica. A argila temperada com caco moído mescla as vasilhas antigas com a nova produção, que é composta não só do barro, mas também de muitos dos fluidos da ceramista, como o suor e a saliva. É importante lembrar, ainda, que a produção cerâmica é também um processo de constituição e fabricação do corpo da ceramista (Panachuk, 2018Panachuk, L. (2018). As ceramistas e a arqueóloga: a argila na construção de corpos distintos. Habitus, 16(1), 28-53.).

Para além do chamote, as cerâmicas presentes neste poço também têm na composição da pasta a presença de quartzo, uma matéria-prima lítica com propriedades físicas marcantes, como sua dureza. Estes dois elementos, chamote e quartzo, juntos ou associados, são o que caracteriza a pasta dessa coleção, nas diversas deposições (Hiriart, 2012Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris., p. 65).

Outros possíveis elementos minerais também estão presentes na cerâmica através das pinturas, que aparecem nas cores branca e vermelha (Hiriart, 2012Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris.). Ainda que não tenham sido feitas análises de composição destas tintas, a alta durabilidade que elas apresentam pode ser um indício de origem mineral. De qualquer modo, como outros elementos adicionados à vasilha, elas contribuem na composição não apenas com suas cores, mas também apontando para os lugares de onde foram extraídas. Neste sentido, uma única vasilha cerâmica, que tenha antiplásticos adicionados à pasta e contenha decoração pintada, engloba minimamente o lugar de extração da argila, do antiplástico e da pintura. Adicionalmente, irá ainda se compor pela aldeia onde foi feita e, no caso daquelas depositadas nos sítios megalíticos, também deste último lugar de deposição. Uma única peça aponta, portanto, para cinco lugares diferentes, expressando materialmente relações que constituem não apenas a própria peça, mas também as pessoas que circularam por estes lugares. É neste sentido que essa perspectiva relacional de análise contribui para refletir sobre a socialidade tanto das peças quanto das outras diversas pessoas.

Ainda no contexto das tintas e das decorações, os grafismos e as formas expressos na cerâmica, que são elementos marcantes dos conjuntos associados à Fase Aristé, adensam ainda mais a composição das vasilhas. Como explicitado por Severi e Lagrou (2013, p. 15)Severi, C., & Lagrou, E. (2013). Introdução. In C. Severi & E. Lagrou (Eds.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração nas artes indígenas (pp. 11-24). Rio de Janeiro: 7Letras. a respeito dos modos indígenas de produção gráfica, “. . . o que se desenha é, antes que sua forma, a relação que os conecta e constitui . . . ”, em um processo que, muitas vezes, comunica também pela ausência, quando o invisível é evocado com a presença do visível, “. . . onde muito do que pode ser visualizado não se dá a ver . . .” (Severi & Lagrou, 2013Severi, C., & Lagrou, E. (2013). Introdução. In C. Severi & E. Lagrou (Eds.), Quimeras em diálogo: grafismo e figuração nas artes indígenas (pp. 11-24). Rio de Janeiro: 7Letras., p. 14). O não visível está latente, e por isso consegue agir, sua aparente ausência não impede as relações.

Esta é uma lição importante que pode ser aplicada em contextos para além dos grafismos, seguindo a noção de substância, por exemplo, em que a presença de determinada matéria-prima, ainda que não aparente, segue ativando relações. O granito moído encontrado na cerâmica arqueológica, nem sempre aparente, seguiria conectando a vasilha com a substância granito, que, por sua vez, aponta tanto para os afloramentos quanto para as estruturas megalíticas. Na mesma linha, as urnas antropomorfas depositadas dentro dos poços funerários, que ficam cobertas de terra e de lajes graníticas, continuariam emitindo sua potência para as pessoas que circulam pela estrutura. O fato de não estarem aparentes não significa que não são conhecidas, ou que estejam esquecidas. A reabertura de poços, com novas deposições e recolocação das vasilhas mais antigas, mostra, de modo mais explícito, que as pessoas indígenas seguiam se relacionando com o que foi enterrado.

Pensar as relações que podem ser ativadas neste jogo entre o visível e o invisível é particularmente instigante a partir de perspectivas indígenas, em que o mundo está povoado por uma série muito mais ampla de gentes do que as pessoas humanas (ver Gallois, 1988Gallois, D. T. (1988). O movimento na cosmologia Waiãpi: criação, expansão e transformação do universo (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.; Viveiros de Castro, 2002Viveiros de Castro, E. (2002). A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.; van Velthem, 2003; Professores Wajãpi, 2007Professores Wajãpi. (2007). Ija mã’e kõ. São Paulo: FALE-UFMG.). Seguindo a proposição dos Wajãpi, em que tudo tem dono, é possível pensar que os diferentes lugares já listados aqui, na composição do Poço 4, tenham também conexões com seus invisíveis, o que amplia a rede de relações com as quais o poço se conecta. De modo similar, os grafismos pintados e as formas moldadas, geralmente como apliques, adicionam às vasilhas não apenas elementos decorativos, mas potências que, de fato, transformam, substancialmente, as peças.

No caso das vasilhas antropomorfas, há alguns detalhes das deposições que parecem reforçar esta sugestão. Parece-me, nestes casos, que a composição morfológica como pessoa humana investe a vasilha dessa potência, que, então, precisa ser negociada para não causar conflitos. Os rostos humanos que caracterizam tão fortemente as vasilhas antropomorfas Aristé parecem requerer cuidados especiais quanto à visão (tanto ver quanto serem vistos). A composição usual de uma urna antropomorfa Aristé é feita pela junção da urna-corpo com uma vasilha, usualmente uma tigela carenada, que serve de tampa. Esta tigela, diferente de outras composições de urnas antropomorfas da Amazônia, não tem um encaixe sobre a boca da urna, sendo mais ampla e, de fato, cobrindo o rosto da peça quando usada como tampa4 4 Para ilustrações sobre esta composição, ver Rostain (1994, 2011). . A tampa, portanto, funciona como uma restrição à visão da própria urna, mas também da sua capacidade de contactar através dos olhos, ou do rosto, com aqueles que a encontrem.

No sítio AP-CA-18, houve dois momentos em que esta restrição do olhar de urnas antropomorfas ficou muito evidente. Na escavação do Poço 3, uma belíssima urna antropomorfa estava depositada no fundo da estrutura (Figura 5). Além da típica tampa cobrindo seu rosto, ela foi depositada de tal modo junto à parede do poço, que seu rosto ficou escondido até o momento final da escavação, sendo evidenciado apenas quando ela finalmente foi retirada, mostrando a face que estava voltada diretamente para a parede.

Figura 5
Urna antropomorfa, oriunda do Poço 3, que estava depositada com seu rosto virado para a parede do poço. Esta urna tem ainda, além dos aspectos antropomorfos, detalhes em apliques de um animal que cruza seu corpo transversalmente. Acervo do IEPA.

Já no Poço 4, havia uma vasilha antropomorfa, participando da Deposição 2 (a mais ampla), que fora colocada de lado, deitada; sobre a porção da cabeça, um amplo fragmento cerâmico foi cuidadosamente colocado (Figura 6). Seu rosto estava mirando para baixo, ela não tinha uma tampa associada, mas o grande fragmento sobre sua cabeça servia como uma proteção. Estas duas urnas estão na origem embrionária deste artigo, pois me provocaram justamente a pensar sobre suas agências, através de suas capacidades relacionadas à visão (ver e serem vistas).

Nesta linha de argumentação, estas potências substantivas podem ser desdobradas nas múltiplas escalas, como mostrei para a composição do Poço 4 ou para a constituição das peças cerâmicas. Também a articulação entre os múltiplos materiais associados, quer num recinto restrito, como um poço funerário, quer na composição de uma paisagem, pode ser pensada a partir desta mesma lógica. O que este exercício evidencia é a possibilidade de seguirmos relações outras entre a materialidade arqueológica, os lugares e as múltiplas pessoas com os quais ela se relaciona, potencializando a materialidade como um elemento, de fato, relacional, parte ativa e constante de uma vida social capaz de englobar muito mais do que pessoas humanas, incluindo, obviamente, o rico universo material com o qual as pessoas humanas interagiram.

PARA ENCERRAR, A MATERIALIDADE SUBSTANCIAL

Um olhar disciplinado para as cerâmicas classificadas na Fase Aristé, assim como para seus múltiplos contextos de deposição, pode ter dificuldade para organizar suas composições, já que nossas categorias usuais parecem não se encaixar com facilidade. Assim, é possível observar uma forte recorrência na associação entre formas humanas e animais, não apenas através da deposição de urnas zoo e antropomorfas lado a lado, mas também na presença de formas híbridas ou misturadas, como animais que têm faces humanas ou humanos que são atravessados por animais. A distinção entre uns e outros, que é tão clara nas nossas concepções de humanidade e animalidade, pode ser ambígua nestes potes.

Figura 6
A) Urna antropomorfa oriunda da Deposição 2; B) sua posição de deposição, com o fragmento cerâmico cobrindo a parte traseira da cabeça.

Essa mesma ambiguidade ocorre na tentativa de distinguir entre espaços naturais e espaços culturais5 5 Ver também Descola (2013), Rostain (2013), Bowser & Zedeño (2009) e Bradley (2000). (Saldanha & Cabral, 2012Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2012). Du corps à la ceramique: un regard sur les objects funéraires Aristé. In M. Thys (Ed.), Índios no Brasil (pp. 135-136). Bruxelles, Anvers: Europalia International.), domínios quase óbvios na perspectiva moderna ocidental, porém às vezes intrincados nas paisagens arqueológicas. Esta ambiguidade – e certa fluidez – entre natureza e sociedade tem sido vista como uma das características do pensamento ameríndio, como discutido por antropólogos e antropólogas que trabalham com grupos indígenas na região (ver Viveiros de Castro, 2002Viveiros de Castro, E. (2002). A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.; van Velthem, 2003; Lagrou, 2007Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Top Books.; Descola, 2013Descola, P. (2013). Beyond nature and culture. Chigago: The University of Chicago Press.).

No contexto da arqueologia amazônica, estas reflexões oriundas de etnografias têm alterado a maneira como interpretações arqueológicas são construídas. As relações entre pessoas e outros seres, que aparecem não apenas nos desenhos das cerâmicas dessa região, mas também nas suas formas e nos contextos de deposição, quando observadas à luz do perspectivismo ameríndio, sugerem o tema da instabilidade das formas corporais (Barreto, 2009Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.). A importância do corpo no pensamento indígena amazônico e o papel da socialidade na construção desses corpos são, nesse sentido, elementos que oferecem novas perspectivas para o estudo de coleções arqueológicas. Para além do corpo, no entanto, é interessante justamente seguir os desdobramentos que a etnologia indígena da Amazônia aponta, como o caráter compósito da pessoa, a potência das substâncias na constituição de coisas e de pessoas (e certo paralelismo entre estes processos), e o lugar ativo da materialidade na vida social (não como adereço, mas como agente propriamente dito).

Tendo como foco um poço funerário que compõe uma estrutura megalítica, alguns elementos materiais chamam a atenção na sua composição. Os poços funerários estão sempre associados com blocos de granito, que podem ser usados como tampas, como marcadores e mesmo como piso ou base para colocação de peças cerâmicas. São blocos muitas vezes não formatados, carregados dos afloramentos para os sítios sem alterações nas suas formas (ainda que alguns deles tenham sido claramente trabalhados em formatos específicos). É também o mesmo granito6 6 Na Guiana Francesa, outros recintos naturais em rochas não graníticas também foram utilizados com uso similar para deposição de urnas da Fase Aristé (Rostain, 1994). que forma algumas das cavernas também usadas como recintos funerários (Meggers & Evans, 1957Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology.; Saldanha & Cabral, 2012Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2012). Du corps à la ceramique: un regard sur les objects funéraires Aristé. In M. Thys (Ed.), Índios no Brasil (pp. 135-136). Bruxelles, Anvers: Europalia International.). O granito, em alguns casos, também está associado de outra maneira à cerâmica, na forma de tempero para a argila, apontando para uma economia de materiais também transformativa. O mesmo granito que forma cavernas, que cria cachoeiras, que marca lugares especiais, que é trabalhado na construção de megalitos, também pode produzir a cerâmica e fazer parte da peça acabada. O granito, assim, permeia e se conecta com múltiplos elementos, mostrando-se de modo marcante na composição desta antiga paisagem indígena.

A estética das vasilhas cerâmicas também aparece como outro elemento muito forte. Não são apenas os grafismos, os desenhos de pintura delicada e precisa, que atraem o olhar; a forma das peças, seus perfis recortados e os apliques que adicionam novos elementos a elas interagem com os desenhos, competindo pelo olhar de quem as observa, de modo similar ao que já foi explorado em outros contextos amazônicos (Barreto, 2009Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.; E. Oliveira, 2016Oliveira, E. (2016). Potes que encantam: estilo e agência na cerâmica polícroma da Amazônia central (Dissertação de mestrado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Se a constituição do corpo é um processo, e não um fato, o embelezamento do corpo com desenhos e ornamentos é parte integrante deste processo, como demonstrado por van Velthem (2003)Van Velthem, L. H. (2003). O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim. para o caso Wayana.

Nas urnas antropomorfas Aristé, em que os rostos são sempre muito bem marcados (diferente do sexo e dos membros), a pintura facial é marcante, e os lóbulos das orelhas são comumente furados, possivelmente portando adereços que não resistiram ao tempo. No corpo das vasilhas, padrões variados preenchem espaços delimitados pelos diferentes volumes das peças e por apliques. São composições, como sugerido, que relacionam não apenas os grafismos, mas também o conjunto de materiais e lugares que participam da biografia da peça (Santos-Granero, 2009bSantos-Granero, F. (2009b). Introduction: Amerindian constructional views of the world. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things: native amazonian theories of materiality and personhood (pp. 1-29). Tucson: University of Arizona Press.).

Nas cerâmicas, também são materializadas relações que parecem ambíguas entre humanos e animais. Em uma urna antropomorfa do sítio AP-CA-18 (Figura 5), seu corpo está atravessado por um animal. As patas traseiras e o rabo em espiral aparecem em um lado, enquanto as patas dianteiras e a cabeça, talvez de onça, estão no extremo oposto do pote. O animal cruza, através do corpo humano, na altura do tronco. Nas urnas zoomorfas, esse hibridismo é ainda mais latente. Além da associação imediata de um corpo animal contendo (os restos de) um corpo humano, as cabeças das urnas muitas vezes têm faces humanas. O limite entre uns e outros é borrado, como um indício da fluidez destas formas (Lagrou, 2007Lagrou, E. (2007). A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Top Books.). Se as urnas funerárias podem ser vistas como uma possibilidade de fixar uma perspectiva, como sugerido por Cristiana Barreto (2009)Barreto, C. (2009). Meios místicos de reprodução social: arte e estilo na cerâmica funerária da Amazônia antiga (Tese de doutorado). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil., esta perspectiva nem sempre pertence a um único corpo. Humanos e animais, nestes conjuntos funerários, continuam intrincados na composição da cerâmica, materializando essas relações entre seres e fortalecendo certa derivação entre eles.

Os conjuntos cerâmicos Aristé, e seus contextos de deposição, permitem um exercício interessante neste sentido. É sobre as relações entre corpos, lugares e seres – constituídas, mediadas e ativadas através do mundo material – que este exercício analítico se debruçou, buscando entendê-las dentro de um referencial sensível às proposições expressas nos pensamentos indígenas. É evidente que houve, aqui, um recorte limitado sobre o universo a ser estudado. A riqueza do contexto arqueológico escolhido, um poço funerário de um sítio megalítico na costa norte do Amapá, certamente rende aprofundamentos e desdobramentos, os quais não puderam ser seguidos aqui. Do mesmo modo, análises comparativas com outros contextos da região também renderiam ótimas reflexões, indicando um importante potencial de continuidade dessa abordagem. A escolha limitada aqui se deve, primordialmente, pelo caráter experimental da abordagem, que não visou um panorama mais amplo, mas sim uma avaliação sobre o potencial de ativarmos teorias nativas na explicação do passado indígena antigo na região.

Ao observar com cuidado o Poço 4, uma estrutura funerária dentro de um sítio megalítico, a partir de um enfoque atento às relações expressas materialmente, foi possível seguir a materialização de um conjunto de relações entre pessoas e lugares. Como já sugerido em outro local, o “. . . espaço funerário é ativado pelas pessoas e pelas cerâmicas lá colocadas, mas também age sobre elas, não apenas por meio de restrições físicas, mas também na percepção do lugar e em sua própria constituição” (Saldanha & Cabral, 2014Saldanha, J. D. M., & Cabral, M. P. (2014). A longa história indígena na costa norte do Amapá. Anuário Antropológico, 39(2), 99-114., p. 108). Neste contexto, considerando a afirmação dos Wajãpi de que “tudo tem dono”, uma ideia com ampla reverberação no mundo indígena (Fausto, 2008aFausto, C. (2008a). Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, 14(2), 329-366. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93132008000200003
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), estas relações materializadas se amplificam, conectando outros seres que participam da composição. De certo modo, a própria estrutura constitui um ‘grupo de substância’, retendo as potências de pessoas, lugares e materiais e colocando-as em relação. Nessa constituição, há uma economia de substâncias que rege suas interações, constituindo uma socialidade7 7 A proposição de que espaços funerários com urnas antropomorfas na Amazônia sejam um local de socialidade já foi apontada por outras pessoas – para o caso Aristé, ver Rostain (2013); para outros contextos no Amapá, ver Guapindaia (2001) e Polo (2019). No entanto, ampliando em parte esta ideia, o que proponho aqui é pensar esta socialidade envolvendo não apenas as pessoas mortas e suas urnas, mas todo o conjunto de materialidade que compõe o espaço, além de apontar para a presença de outros seres (donos, mestres, invisíveis) neste arranjo social. .

Esta socialidade, é importante marcar, não se restringe de modo algum às pessoas humanas, ainda que as englobe. A provocação aqui é sobre quais “. . . entes sociais são reconhecidos como existentes . . .” (Almeida, 2013Almeida, M. W. B. (2013). Caipora e outros conflitos ontológicos. Revista de Antropologia da UFSCar, 5(1), 7-28., p. 22), ou seja, aquilo a que se dá a existir no mundo social, seguindo uma perspectiva ontológica em que estes entes sociais abarcam, de fato, a materialidade nas suas diversas formas. Há que se lembrar que, no mundo indígena, rios são ancestrais (Hugh-Jones, 2012Hugh-Jones, S. (2012). Escrever na pedra, escrever no papel. In G. Andrello (Org.), Rotas de criação e transformação: narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro (pp. 138-167). São Paulo: Instituto Socioambiental.), pedras têm vida (Fausto, 2008bFausto, C. (2008b). O caso dos ossos: a longa duração na prática. Paper apresentado no Catálogo do Festival do Filme Documentário e Etnográfico/ Fórum de Antropologia, Cinema e Vídeo, Belo Horizonte.), árvores usam miçangas (Cabral, 2014Cabral, M. P. (2014). “E se todos fossem arqueólogos?”: experiências na Terra Indígena Wajãpi. Anuário Antropológico, 39(2), 115-132. doi: https://doi.org/10.4000/aa.1269
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). De modo similar, as coisas também são sujeitos (Santos-Granero, 2009bSantos-Granero, F. (2009b). Introduction: Amerindian constructional views of the world. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things: native amazonian theories of materiality and personhood (pp. 1-29). Tucson: University of Arizona Press.), e sua fabricação pode ser entendida como paralela à fabricação das pessoas (van Velthem, 2003Van Velthem, L. H. (2003). O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio & Alvim.). Pensar o Poço 4, portanto, como um espaço de socialidade é justamente ativar estas concepções indígenas na compreensão da materialidade arqueológica.

De certo modo, parece-me que a própria ideia de uma pessoa compósita pode ser desdobrada na decomposição associada à morte, não apenas na decomposição física, do corpo biológico, mas também das inúmeras coisas que compõem o evento funerário. No Poço 3, por exemplo, os registros de escavação em laboratório produzidos pela equipe do IEPA indicam que partes diferentes da pessoa morta foram dispostas em urnas separadas, decompondo fisicamente um corpo em vários conjuntos. Reforçando a diversidade de práticas expressas neste material, lembro que Py-Daniel (2014)Py-Daniel, A. R. (2014). Os contextos funerários na arqueologia da Calha do Rio Amazonas (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. identificou também, para este mesmo sítio, a presença de mais de uma pessoa em uma única urna.

Para além destas decomposições, no entanto, a organização do poço funerário é também uma (re)composição, em que o universo material está presente de modo marcante. Não é só o corpo, ou os ossos, da pessoa morta que participa da estrutura. Aí, me parece, temos uma vida social que se compõe nas relações múltiplas ativadas no agrupamento de mortos, cerâmicas, rochas, carvões, terras; elementos que se conectam com lugares alheios e diversos, que detêm propriedades substantivas variadas, que são – na materialidade de suas presenças – seres em relação.

Seguindo este caminho, o exercício realizado aqui parece sugerir que a noção compósita de pessoa se desdobra, de fato, em diferentes escalas, e que a materialidade é uma expressão importante deste processo. Entendendo a multiplicidade do mundo material através de uma rede de relações, que ativa conexões físicas entre pessoas, materiais, lugares e outros seres, foi possível observar que há intrincadas ligações amarrando não apenas as pessoas, mas este conjunto bem mais amplo de seres que povoa o universo amazônico. Ao ativar a noção de ‘grupo de substância’ para pensar a estrutura arqueológica, fica evidente que o recinto funerário expressa na materialidade não apenas a decomposição da pessoa (o que é esperado no contexto de morte), mas sim uma (re)composição que amplia, de certo modo, sua existência, além de compor ali outras existências possíveis, através de uma materialidade absolutamente substancializada. Um poço funerário, visto assim, é uma expressão da socialidade, é um arranjo cuidadoso de substâncias e materiais, de modo a conter e compor outras pessoas, mortos decompostos, emaranhados e recompostos nas tralhas enterradas que ocultam suas potências, invisibilizadas, talvez justamente para que continuem a ser vistas.

  • 1
    A produção de urnas antropomorfas na Amazônia pré-colonial foi bastante vasta e diversificada. Para a Fase Aristé, as especificidades das urnas antropomorfas, descrições e discussões podem ser consultadas em Meggers e Evans (1957)Meggers, B. J., & Evans, C. (1957). Archaeological investigations at the mouth of the Amazon (No. 167). Washington: Government Publishing Office, Smithsonian Institution, Bureau of American Ethnology., Rostain (1994Rostain, S. (1994). L’Occupation Amérindienne Ancienne du littoral de Guyane. Paris: Université de Paris I., 2011Rostain, S. (2011). Que hay de nuevo al norte: apuntes sobre el Aristé. Revista de Arqueologia SAB, 24(1), 10-31., 2013)Rostain, S. (2013). Islands in the rainforest: landscape management in pre-Columbian Amazonia. Walnut Creek: Left Coast Press. e Cabral e Saldanha (2012Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2012). Du corps à la ceramique: un regard sur les objects funéraires Aristé. In M. Thys (Ed.), Índios no Brasil (pp. 135-136). Bruxelles, Anvers: Europalia International., 2017)Cabral, M. P., & Saldanha, J. D. M. (2017). Sitios megalíticos en Guayana oriental. In S. Rostain & C. J. Betancourt (Eds.), Las Siete Maravillas de la Amazonía precolombina (pp. 137-151). Bonn: Bonner Altamerrika-Sammlung un Studien..
  • 2
    Ainda que utilize os dados produzidos por Hiriart (2012)Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris., as reflexões apresentadas neste artigo são oriundas de um esforço analítico mais amplo, articulando não apenas os dados produzidos por Hiriart (2012)Hiriart, M. (2012). La culture Aristé, les sites mégalithiques et les puits funéraires en Amazonie brésilienne (Amapá) (Monografia master 2). Universidade de Paris, Paris., mas também um conjunto mais extenso de informações disponíveis no acervo arqueológico do IEPA. Vale lembrar, ainda, que as escavações arqueológicas do sítio AP-CA-18 foram por mim coordenadas, em conjunto com o arqueólogo João D. de Moura Saldanha. As escavações do Poço 4, em especial, realizadas em fevereiro de 2010, foram particularmente importantes para gerar em mim inquietações, que busco, neste artigo, finalmente expor e discutir.
  • 3
    Dados não publicados, disponíveis em documento do acervo do IEPA, Ficha de Campo 2395, Área 1, nível 100-110 cm/110-120 cm.
  • 4
    Para ilustrações sobre esta composição, ver Rostain (1994Rostain, S. (1994). L’Occupation Amérindienne Ancienne du littoral de Guyane. Paris: Université de Paris I., 2011)Rostain, S. (2011). Que hay de nuevo al norte: apuntes sobre el Aristé. Revista de Arqueologia SAB, 24(1), 10-31..
  • 5
    Ver também Descola (2013)Descola, P. (2013). Beyond nature and culture. Chigago: The University of Chicago Press., Rostain (2013)Rostain, S. (2013). Islands in the rainforest: landscape management in pre-Columbian Amazonia. Walnut Creek: Left Coast Press., Bowser & Zedeño (2009)Bowser, B. J., & Zedeño, M. N. (Eds.). (2009). The Archaeology of meaningful places. Salt Lake City: University of Utah Pr. e Bradley (2000)Bradley, R. (2000). An Archaeology of Natural Places. Londres/Nova Iorque: Routledge..
  • 6
    Na Guiana Francesa, outros recintos naturais em rochas não graníticas também foram utilizados com uso similar para deposição de urnas da Fase Aristé (Rostain, 1994Rostain, S. (1994). L’Occupation Amérindienne Ancienne du littoral de Guyane. Paris: Université de Paris I.).
  • 7
    A proposição de que espaços funerários com urnas antropomorfas na Amazônia sejam um local de socialidade já foi apontada por outras pessoas – para o caso Aristé, ver Rostain (2013)Rostain, S. (2013). Islands in the rainforest: landscape management in pre-Columbian Amazonia. Walnut Creek: Left Coast Press.; para outros contextos no Amapá, ver Guapindaia (2001)Guapindaia, V. (2001). Encountering the ancestors: the Maraca urns. In C. McEwan, C. Barreto & E. G. Neves (Eds.), Unknown Amazon (pp. 156-175). London: British Museum Press. e Polo (2019)Polo, M. J. A. (2019). Corpo e figuração na arqueologia da Foz do Amazonas: uma abordagem pós-representacional aos conjuntos Maracá, Caviana e Cupixi (Tese de doutorado). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.. No entanto, ampliando em parte esta ideia, o que proponho aqui é pensar esta socialidade envolvendo não apenas as pessoas mortas e suas urnas, mas todo o conjunto de materialidade que compõe o espaço, além de apontar para a presença de outros seres (donos, mestres, invisíveis) neste arranjo social.

AGRADECIMENTOS

Ao IEPA, que foi minha casa por muitos anos e onde sempre encontro abrigo, ali agradeço – para além de toda equipe – ao querido Lúcio Flávio Siqueira Costa Leite, que gentilmente me disponibilizou o acesso ao acervo documental das escavações no sítio AP-CA-18 e das análises desenvolvidas no Núcleo de Pesquisa Arqueológica do IEPA. As escavações no sítio AP-CA-18, nas suas diferentesetapas, contaram sempre com o apoio do Governo do Estado do Amapá e da Prefeitura Municipal de Calçoene,agradeço, portanto, pelo incentivo que forneceram ao desenvolvimento da pesquisa arqueológica no Amapá. Este artigo é resultante de conversas e trocas com muitas pessoas ao longo de muitos anos, e não haveria como agradecer a cada uma delas, mas expresso minha gratidão pelo privilégio de ter pessoas tão incríveis no meu entorno. Agradeço, ainda, a Cristiana Barreto, Erêndira Oliveira e Emerson Nobre, pelo convite para participar deste dossiê, à editoria do Boletim do MPEG, pela disponibilidade e ajuda na tramitação, e às duas pessoas que elaboraram pareceres anônimos sobre este artigo, pelas pertinentes sugestões. Por fim, agradeço às conversas com os queridos Flávio Leonel Abreu da Silveira e Andrei Isnardis Horta, que gentilmente leram uma versão prévia desde texto e fizeram sugestões generosas para sua melhoria, ainda que eu nãotenha conseguido seguir todas elas. Parte das reflexões que compõem este artigo derivam do projeto “Sobre as marcas do passado: Arqueologia e conhecimento indígena na Amazônia”, que tem financiamento do ConselhoNacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processo 436984/2018-0).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2019
  • Aceito
    16 Mar 2020
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