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O simbolismo marajoara nos cuidados com o corpo

Marajoara symbolism in body care

Resumo

O simbolismo da cerâmica arqueológica marajoara foi escolhido como emblema de identidade nacional brasileira em fins do século XIX tendo em vista os projetos políticos de Estado. Para isso, o Estado se utilizou dos primeiros estudos arqueológicos que foram feitos no Museu Nacional do Rio de Janeiro, a fim de consolidar sua escolha por esses objetos como emblema dessa alentada identidade. Destarte, da ciência de fins do Oitocentos, esse simbolismo foi para a arte, a arquitetura, a moda, as cédulas, o carnaval, os espaços público e privado, sendo usado até a contemporaneidade. Entretanto, chama atenção o uso desse simbolismo com os cuidados do corpo, tendo em vista roupas, perfumes, acessórios, entre outros, com a ‘marca marajoara’. É sobre essa ressignificação para os cuidados com o corpo a partir do uso de objetos ‘marajoara’ que se propõe este artigo.

Palavras-chave
Índios marajoara; Cerâmica arqueológica; Identidade nacional; Museu Nacional

Abstract

The symbolism of Marajoara archaeological ceramics was chosen as emblem of Brazilian national identity in the late nineteenth century in view of the Brazilian state’s political projects. Accordingly, the state used the first archaeological studies that were carried out at the National Museum of Rio de Janeiro to consolidate its choice for these objects as an emblem of this bold identity. Thus, since the science of the late 1800s, this symbolism was applied to art, architecture, fashion, banknotes, carnival, public and private space, until contemporary times. However, the use of this symbolism in body care is noteworthy, as in clothes, perfumes, accessories, among others, with the ‘Marajoara brand’. This article is about this process of re-signifying body care based on the use of ‘Marajoara’ objects.

Keywords
Marajoara Indians; Archaeological ceramics; National identity; National Museum

INTRODUÇÃO

A intenção da investigação ora apresentada foi a de desnaturalizar o nosso olhar para o simbolismo marajoara, tão contundente no cotidiano do paraense. Em cidades da ilha do Marajó, local de desenvolvimento da cultura indígena Marajoara antes da chegada dos europeus, pode-se observar esse simbolismo ‘espalhado’ por vários pontos dessas localidades, seja através de pinturas distribuídas ao longo de vias públicas ou através de cópias e réplicas feitas por artistas locais, as quais são vendidas e usadas como atrativo ao turismo.

Segundo os estudos arqueológicos, a cultura dos Marajoara se desenvolveu na referida ilha que fica no Pará por volta de aproximadamente 400 a 1.300 AD. Esses indígenas ficaram conhecidos pela produção de numerosos objetos com funções utilitárias e rituais encontrados nos sítios arqueológicos (Schaan, 1997Schaan, D. P. (1997). A linguagem iconográfica da cerâmica marajoara: um estudo da arte pré-histórica da Ilha de Marajó, Brasil (400-1300 AD). Porto Alegre: Edipuc.). Descobertos, tais objetos chamaram a atenção de cientistas, artistas e do público em geral, em razão da riqueza de sua técnica e pela sua decoração.

Entretanto, não apenas na ilha do Marajó é possível observar a presença desse simbolismo marajoara. Em Belém, capital do Pará, ele ocorre sob formas muito variadas: há, pela cidade, grandes cópias de urnas funerárias marajoara em formato de telefones públicos, os antigos ‘orelhões’; na entrada de movimentado shopping da cidade, há também grandes réplicas de vasos marajoara em cima de caixas eletrônicos; além disso, é possível observar pinturas que fazem alusão às cerâmicas marajoara grafadas em linhas do transporte público, em folders de propagandas publicitárias, bordados em roupas para o turista adquirir, em joias, entre muitos outros usos.

Além disso, há propriamente a cerâmica dita ‘marajoara’ à venda em lojas de artesanato. É possível encontrá-la em muitas lojas de Belém, no mercado do Ver-o-Peso, havendo também um bairro no distrito de Icoaraci, pertencente a Belém, chamado Paracuri, todo voltado para a produção de objetos de argila intitulados de marajoara. A grande maioria desses objetos vendidos em Belém sai de Icoaraci, que se tornou o polo produtivo dessas peças.

Segundo Schaan (2006)Schaan, D. P. (2006). Arqueologia, público e comodificação da herança cultural: o caso da cultura Marajoara. Revista Arqueologia Pública, 1(1), 19-30. doi: https://doi.org/10.20396/rap.v1i1.8635819
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, os entendimentos populares do significado do que seria ‘cultura marajoara’ foram atrelados aos contextos de produção, venda e circulação de mercadorias artesanais cujos estilos estéticos passaram a ser reconhecidos como ‘marajoara’, independente da diferença destes com os objetos arqueológicos. Ou seja, “. . . os conteúdos são decodificados dentro de uma lógica particular” (Schaan, 2006Schaan, D. P. (2006). Arqueologia, público e comodificação da herança cultural: o caso da cultura Marajoara. Revista Arqueologia Pública, 1(1), 19-30. doi: https://doi.org/10.20396/rap.v1i1.8635819
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, p. 23).

O estilo marajoara tornou-se uma marca, pois, mesmo que a peça não tenha absolutamente nada que faça referência a qualquer símbolo de um objeto arqueológico, ela é intitulada de ‘marajoara’. Observando catálogos de estúdios de tatuagens de Belém, por exemplo, é possível perceber que alguns tatuadores ganharam destaque por terem a fama de tatuar símbolos marajoara nos corpos de seus clientes.

Assim como foi feita a observação de catálogos de tatuagens em estúdios de Belém em outras ocasiões, as imagens usadas ao longo deste artigo foram analisadas em diálogo com as referências bibliográficas que tratam da ressignificação do uso do simbolismo marajoara desde o século XIX, as quais constam no acervo da Hemeroteca Digital ou foram produzidas pela própria autora em pesquisa de campo.

O diálogo entre as imagens e a bibliografia sobre a ressignificação desse simbolismo fez com que eu percebesse os seus vários usos nos mais diversos campos da vida social e chegasse à conclusão de que, a partir de um projeto de Estado, o marajoara se tornou símbolo de identidade nacional.

Quando evoco os ‘cuidados com o corpo’, quero dizer que esse cuidado diz respeito à estética, à forma com que usamos nosso corpo como suporte de objetos que possam nos deixar mais ‘belos’, a partir de nossos parâmetros de beleza. O uso de tatuagem é um tipo de cuidado com o corpo, haja vista que a pessoa tatua em si algo que tem valor simbólico e que deixará seu corpo ‘mais bonito’, a partir de sua percepção de beleza.

Segundo um tatuador, muitas pessoas procuram o estúdio para tatuar algo ‘indígena’, que é designado como ‘tatuagem tribal’ ou ‘marajoara’. Se o cliente deseja uma tatuagem indígena, ele escolhe algo que considera ‘tribal’, haja vista que a imagem dos indígenas foi construída a partir da ideia de selvageria e tribalização desde o século XIX, tendo em vista os preceitos do evolucionismo. É como se ocorresse uma distinção entre uma tatuagem indígena tribal e uma tatuagem indígena marajoara. Em suma, a tribal diria respeito a qualquer grupo indígena e a marajoara, a um grupo diferenciado ou especial, em razão de sua popularidade.

Por fim, em qualquer repartição pública na cidade, é comum nos depararmos com ‘vasos marajoara’ ou qualquer outro objeto que faça referência aos índios. Em casas particulares, não é difícil encontrar objetos que fazem alusão a achados arqueológicos, como cinzeiros, porta-revistas, urnas, entre outros. Mesmo que a arqueologia já tenha revelado que a cultura marajoara desapareceu antes da chegada dos europeus na ilha do Marajó, estes objetos seguem sendo considerados como ‘marajoara’, estando presentes no cotidiano através dos seus símbolos, tornando-se uma marca.

Como investigadora da cultura material, passei a questionar o motivo de um país com centenas de povos indígenas ter o simbolismo marajoara tão presente no cotidiano, e não o de outros povos indígenas.

Para entender esse processo de espetacularização1 1 Sobre a espetacularização ora debatida, ver Henrique e Linhares (2019). , foi fundamental estabelecer um diálogo com a História. Acontece que objetos arqueológicos, sem a função utilitária inicial, isto é, aquela atribuída pela sociedade que os produziu, passam a ser expostos no cotidiano, conformando uma situação em que “. . . tudo que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto., p. 13). De acordo com Debord (1997)Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto., essa espetacularização seria uma espécie de inversão concreta da vida social, que se transfigura num movimento autônomo do não vivo.

Debord (1997)Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto. quer dizer, em outras palavras, que esse tipo de espetáculo ressignifica o sentido inicial de determinado movimento social, dando a ele outros significados. No caso do que se apresenta no presente artigo, modifica-se o significado de determinado bem material. Por exemplo, uma peça que tinha função funerária para os índios Marajoara, na contemporaneidade, pode tornar-se um objeto de arte e fazer parte de exposição em museus europeus, sem que o público que a contemple saiba ao menos que se trata de um artefato com função de enterrar os mortos daquela sociedade.

Isso significa que essa espetacularização invisibiliza o sentido primário de determinado objeto, para transformá-lo em consumo estético de imagens em movimento. Barreto (2013)Barreto, C. (2013). Corpo, comunicação e conhecimento: reflexões para a socialização da herança arqueológica na Amazônia. Revista de Arqueologia, 26(1), 112-128. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v26i1.372
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trata da invisibilidade e espetacularização do objeto arqueológico marajoara, principalmente através do turismo, com a indústria de suvenires, que transforma uma peça em mercadoria. A autora afirma que a ressignificação é tão brusca em algumas situações que “. . . fica evidente a perda de interesse pelas culturas tradicionais do passado em detrimento de objetivos puramente mercadológicos” (Barreto, 2013Barreto, C. (2013). Corpo, comunicação e conhecimento: reflexões para a socialização da herança arqueológica na Amazônia. Revista de Arqueologia, 26(1), 112-128. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v26i1.372
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, p. 115).

Nesse sentido, este artigo procura responder à problemática da espetacularização marajoara, buscando apresentar o motivo de se usar frequentemente esse simbolismo, e não o de outros povos indígenas, bem como debater que esse uso ficou marcado na história e permanece na memória contemporânea. Penso que se ‘inventou uma tradição’2 2 Schaan (2006) reflete sobre essa ‘tradição inventada’ a partir do uso dos objetos arqueológicos marajoara, dando exemplos de observações feitas por ela ao longo de sua vida profissional como arqueóloga, o que as pessoas lhe perguntavam sobre esses objetos, o que ouvia durante os eventos de que participou e o que observava em olarias de objetos artesanais. (Hobsbawm, 2002Hobsbawm, E., & Terence, R. (Orgs.). (2002). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra.).

Com relação ao uso do simbolismo marajoara, as mais diversas fontes, sejam jornais, fotografias, documentos oficiais, artigos científicos, entre outras, evidenciam que essa tradição inventada teve origem no Brasil do Oitocentos, com o início dos estudos arqueológicos, mas, nesse caso, vou me ater à forma com que ele fora espetacularizado em objetos a serem utilizados nos cuidados com o corpo, ao enfeitar-se, vestir-se, perfumar-se: o sentir-se como belo marajoara.

O CIVILIZADO MARAJOARA: HOUVE UM TEMPO EM QUE SER BRASILEIRO ERA SER MARAJOARA

O Brasil do século XIX viveu um período de construção de identidade nacional, e o uso do simbolismo indígena era convocado para fazer parte da identidade que se construía naquele momento, entretanto, não foi ‘qualquer’ grupo indígena o escolhido para nos representar enquanto nação.

A cerâmica arqueológica marajoara se fez descoberta por cientistas naturalistas viajantes quando as primeiras instituições de pesquisa surgiram no país, período que Schwarcz (1993)Schwarcz, L. M. (1993). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras. chama de a ‘era dos museus’, entre 1870 e 1930.

Nesse período, o Museu Paulista, o Museu Paraense, o Museu Nacional, o Museu Botânico do Amazonas e o Museu Paranaense foram importantes centros de saber para os estudos etnográficos e para as conhecidas ciências da natureza (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.). Digamos que foram os iniciantes das pesquisas no país, por isso são tão importantes, pois contam parte da nossa história. E foram as pesquisas feitas no primeiro museu de história natural, o Museu Nacional, que me fizeram entender os motivos da presença tão constante do marajoara na contemporaneidade.

O Museu Nacional estava em diálogo com o Estado, haja vista que a sua própria formação esteve atrelada ao projeto perpetrado pela família real. Essa família, em nome de Dom Pedro II, tinha o dever de criar uma história para a nação, com o objetivo de separar a história do país da história da antiga metrópole (Schwarcz, 1993Schwarcz, L. M. (1993). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras.), e assim foi feito.

Todos os estudos atrelados às instituições de ciência deste período estavam em diálogo com esse ‘novo’ Brasil, um Brasil indígena, mas romantizado, bem aos moldes do evolucionismo do período, sendo exaltado principalmente na literatura.

Os intelectuais desse Brasil do Oitocentos, apoiados na ideologia evolucionista3 3 O pensamento evolucionista utilizado pelos cientistas no Brasil do século XIX não foi sequencial e tampouco contínuo, haja vista ter sido consubstanciado a outros evolucionismos, como o haeckeliano e o spenceriano (Gualtieri, 2008). Entretanto, mesmo diante de várias ideias em torno do pensamento evolucionista, foi a teoria de Charles Darwin a que teve maior uso entre os pensadores que comungavam dessa perspectiva no período, tendo em vista um pensamento conservador, em que se tentava evidenciar certa superioridade de alguns povos em detrimento de outras culturas, atribuindo-se mais eficácia, força e adaptabilidade para as sociedades que eram consideradas mais evoluídas, em uma escala de evolução cultural (Darwin, 1859), provocando uma série de violências contra aqueles vistos como menos capazes de acordo com essa linha evolucionista. em que se acreditava em escalas de civilização, raça e degenerescência de povos, pensavam que os indígenas ‘não tinham mesmo jeito’ (Monteiro, 2001Monteiro, J. M. (2001). Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo (Tese de livre docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.). Pensava-se que os povos indígenas e negros faziam parte de uma escala inferior na evolução humana. Por causa dessa suposta evolução, a ideia que tinham é de que se esses povos não desaparecessem via chacinas e epidemias, que matavam as populações indígenas na época, ‘naturalmente’ iriam render-se à marcha da civilização.

Nas obras de José de Alencar, a saber, “O Guarani” (Alencar, 2000aAlencar, J. (2000a). O Guarani. São Paulo: Ática.), “Iracema” (Alencar, 2000bAlencar, J. (2000b). Iracema. São Paulo: Ática.) e “Ubirajara” (Alencar, 1984Alencar, J. (1984). Ubirajara. São Paulo: Ática.), fica evidente o objetivo de se construir uma literatura utilizando a imagem do indígena para consolidar a identidade pretendida. Na obra “Ubirajara”, o índio foi pensado como corajoso, forte e honrado, como se fosse um herói romântico. O índio fora retratado dessa forma porque a literatura precisava afirmar essa ‘essência’ brasileira. Isso foi pensado para que a figura do índio na arte se configurasse como a expressão do desejo de afirmar a identidade do Brasil em relação ao colonizador (Cândido, 2004Cândido, A. (2004). O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas.).

Mas que ‘essência’ seria essa? O Brasil sempre foi um país indígena, de centenas de povos, que, aliás, foram alijados de seu direito à terra, muitos dizimados quando aqui os europeus chegaram, sendo o próprio nome Brasil uma invenção de português. O Estado, entretanto, gostaria que a sua imagem estivesse vinculada à alentada modernidade europeia que se firmava. Contudo, se os indígenas sempre foram vistos como incivilizados, como usar o simbolismo desses povos sem parecer ‘atrasado’, tendo em conta que sempre foram empecilhos aos projetos de Estado?

Os cientistas que pesquisaram para o Museu Nacional passaram a construir, através de suas investigações, uma série de escritos que apresentavam os Marajoara como mais civilizados do que outros povos indígenas e, por isso, poderiam ser dignos de fazer parte da moderna identidade nacional que se construía no período, visto o diálogo entre as instituições de pesquisa e o Estado nacional. Ou seja, as instituições corroboraram o projeto de ‘modernidade’ e ‘civilização’ (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.). De acordo com Netto (1885, p. 356)Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6, pp. 261-339). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., cientista do Museu Nacional:

[o]s menores destes graciosos artefatos destinados à conservação de tintas, essências, óleos e pequenos adornos de osso e de pedra, são geralmente gravados com tamanha delicadeza, que lembram sem esforço as cinzeladuras em metal e outros idênticos lavores em que são eméritos os artistas persas, malaios e japoneses. Dos alguidares, de que tão belos espécimes. . . . e de que não é menos gracioso exemplar o que nos dá uma das figuras próximas, de forma belíssima, ainda que assimétrica, destes alguidares, digo, encontram-se não raros no interior das urnas funerárias, alguns inteiros e já quebrados . . .

Nessa citação sobre objetos marajoara investigados por Netto (1885)Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6, pp. 261-339). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., fica clara a sua admiração pela beleza e técnica das peças, atribuindo-lhes simetria, proporcionalidade, labor técnico e delicadeza. A sua admiração pelas peças faz com que ele as compare com objetos de outras culturas, consideradas ‘grandes civilizações’, a saber, de persas, malaios e japoneses.

Aliás, esse tipo de comparação muito foi feito pelos cientistas. O mesmo Netto (1885)Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6, pp. 261-339). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. fez uma série de quadros comparativos em que apresenta em cada um deles inúmeros desenhos observados em objetos arqueológicos marajoara, em comparação com desenhos de objetos de outras civilizações consideradas superiores, de acordo com os preceitos do evolucionismo supracitado. As comparações gráficas foram elaboradas com desenhos observados em peças feitas no México, na China, no Egito e na Índia (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.).

O cientista canadense Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. também fez algumas comparações: “. . . parece, ter sido uma frigideira, é liso e sem ornamentação, no lado interno, mas o lado externo é com muita elegância ornamentado, com linhas gravadas. Outros são ornamentados somente na margem” (Hartt, 1885Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., p. 55).

Segundo Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., esses objetos serviam “. . . para guardar tintas ou talvez perfumes ou outros objetos estimados, porque, pelo capricho com que estas pequenas vasilhas são ornamentadas, é licito presumir que eram objetos de estimação” (Hartt, 1885Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., pp. 56-57).

Comparando um mundo cultural com outro, Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. fez conexão entre os objetos indígenas e os do mundo não indígena, a saber frigideiras, vasilhas ou peças de armazenamento de tintas e perfumes. Para Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., esses objetos eram apreciados pelos índios Marajoara. Entretanto, tratam-se de elementos da cultura material estimados pelos não indígenas como itens de embelezamento – ou seja, próprios aos cuidados com o corpo – e também para produção de alimentos, a exemplo, nesse caso, da frigideira.

Tendo o seu próprio mundo cultural como referência, Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. concede essa estima aos Marajoara simplesmente por ver qualquer semelhança entre os objetos da cultura material de ambos os mundos sociais. O certo é que não existe qualquer pesquisa arqueológica que indique o uso de frigideiras ou de perfumes como usamos na cultura não indígena, conforme comparado pelo cientista. Ao longo das comparações, sempre lhes atribui beleza, elegância e labor.

Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. também foi responsável por uma teoria da evolução, apresentando gráficos e estudos que tentavam comprovar que a observação de desenhos em objetos marajoara dava prazer aos olhos. De acordo com a sua teoria:

[a] linha reta é um elemento da arte estética, porque primeiramente para observá-la é preciso usar com perfeita regularidade dois músculos do olho. O prazer que sentimos pelo efeito regular produzido por este movimento é análogo ao que experimentamos quando passamos a mão sobre uma superfície lisa ou ao que é produzido sobre o ouvido por um som musical. Uma linha reta não tem uma beleza inerente, é bela, porque em primeiro lugar necessita, para sua observação, de movimentos perfeitamente regulares. Podemos facilmente observar somente as linhas perpendiculares e horizontais, porque suas imagens caem entre os pares de músculos necessitando, para a ação, apenas de um par de cada vez. Quando a. . . . linha é inclinada, é difícil de examiná-la, visto ser preciso empregar dois músculos adjacentes e pertencentes a dois pares. A tendência então é de volver a cabeça para que a imagem possa corresponder ao eixo de um outro par. Para examinar uma curva circular usamos de uma vez dois músculos adjacentes, dos quais um contrai mais rapidamente do que o outro. Este movimento é mais difícil do que na observação da linha reta, mas é capaz de causar mais prazer, porque o efeito da linha reta é monótono e cansa logo, enquanto que o do círculo é mais variado, devido a diferença da rapidez da contração dos músculos. A espiral é ainda mais difícil de examinar

(Hartt, 1885Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., p. 99).

Segundo Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., as gregas, que configuravam as linhas retas aplicadas em demasia em objetos de barro arqueológicos marajoara, poderiam ser ressignificadas enquanto artísticas, tendo em conta que, para observá-las, seria preciso usar com regularidade os músculos dos olhos, indicando uma superioridade de estilo. Essa suposta superioridade no desenhar tais linhas retas se apresentava prazerosa ao observador, comparando esse prazer com o de percorrer a mão em alguma superfície lisa e sem irregularidades, pois, para Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., essas linhas retas não possuíam qualquer beleza, e só se tornavam bonitas devido à sensação de regularidade ao serem observadas.

De acordo com essa teoria pensada por Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., o prazer proporcionado ao se observar tais linhas nos objetos teria relação com a evolução desses desenhos. Para ele, mesmo que linhas retas dessem prazer no momento da observação por serem regulares, olhar traçados curvos era ainda mais prazeroso, por isso eles eram considerados mais complexos. Essa complexidade era proporcionada pela necessidade que o observador tinha de utilizar dois músculos dos olhos, que o obrigava a dar voltas na cabeça, com a finalidade de perceber a sinuosidade das curvas. Considerando-se essa teoria, era mais prazerosa a observação de riscos curvos do que de retos, pois estes últimos eram monótonos para a vista humana. Toda essa teoria foi pensada para que se mostrasse que as gregas eram dignas de serem vistas como desenhos que davam prazer à vista humana.

Segundo Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., havia um misto de desenho em evolução e aqueles que já se apresentavam evoluídos incisos nas peças de barro desses indígenas. Por causa dessa diferença no desenhar ornamentos nos objetos em barro, de acordo com o pesquisador, os índios Marajoara teriam passado certo período num estágio inferior na escala humana, mas a evolução dos desenhos demonstrou que eles percorreram um pouco mais dessa escala evolutiva, ao desenharem gregas que davam a sensação de prazer ao observador; e, com o passar da evolução, sua cultura foi se aperfeiçoando.

Toda essa ideia de evolução e progresso é frequente na documentação referente aos Marajoara publicada na revista Arquivos do Museu Nacional. Segundo Netto (1885)Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6, pp. 261-339). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.:

. . . dos diferentes tipos de cabeça dos marajoenses primitivos, há verdadeiros símios que talvez a mais justos títulos se deveriam aqui na convencionalidade em que, ao meu supor, costumavam os mounds-builders de Marajó, representar os seus próprios conterrâneos, dando-lhes, com os caracteres físicos, as afinidades ou analogias homonímicas, pelas quais se prendiam aqueles a certos animais e em particular aos símios que eles supunham seus iguais, senão seus superiores em inteligência

(Netto, 1885Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6, pp. 261-339). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., p. 378).

A partir desse relato, Netto (1885)Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6, pp. 261-339). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. evidencia que os Marajoara se igualam aos símios, até mesmo os considerando inferiores a estes últimos, tendo em vista o evolucionismo vigente. Essa ideia tinha a ver com a sua visão acerca do mundo indígena, ou seja, subscreve-se que ele faz essa associação acreditando em tal ideia, tendo em conta que era impossível ter acesso ao pensamento dos Marajoara, pois eram estudados a partir de sua cultura material, e não de narrativas orais.

O cientificismo do século XIX preocupou-se com a questão da humanidade dos povos indígenas. Questionava-se se, de fato, eles eram humanos ou não, e esse questionamento baseava-se em critérios filosóficos, por mais que se utilizasse a biologia para ratificar uma suposta animalidade (Carneiro da Cunha, 1992Carneiro da Cunha, M. (1992). Política indigenista no século XIX. In M. Carneiro da Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 133-154). São Paulo: FAPESP.).

Essa humanidade indígena se confirmava através de projeto político de Estado, que se utilizava de símbolos indígenas como orgulho nacional para a construção de sua identidade, mas a bestialidade e fereza seguiam sendo associadas aos indígenas pelos mesmos projetos (Carneiro da Cunha, 1992Carneiro da Cunha, M. (1992). Política indigenista no século XIX. In M. Carneiro da Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 133-154). São Paulo: FAPESP.), inclusive na contemporaneidade.

A ideia de civilidade atribuída aos índios Marajoara por meio de seus objetos também foi divulgada em jornais da época, a saber “O Liberal do Pará” (1878), que apresentou, no caderno “Sciencias e Artes”, o artigo intitulado “Os montes artificiaes da ilha do Marajó”, de autoria de Derby (1878)Derby, O. (1878, fevereiro 22). Os montes artificiaes da ilha do Marajó. O Liberal do Pará, Ano 10, Número 44., destacando a beleza dessas peças:

[d]e todos os lugares no Brasil em que têm sido encontrados restos dos indígenas, é a ilha de Marajó, a que apresenta mais interesse ao arqueólogo. Ou porque ali fosse a raça superior. . . . é certo que os habitantes de Marajó. . . . avançaram mais no caminho da civilização tendo excedido na arte os de qualquer outra parte do Brasil até hoje conhecido

(Derby, 1878Derby, O. (1878, fevereiro 22). Os montes artificiaes da ilha do Marajó. O Liberal do Pará, Ano 10, Número 44., p. 1).

Essa nota mostra que a noção de civilidade atribuída aos índios marajoara ultrapassou as pesquisas vinculadas aos estudos feitos no Museu Nacional e publicados na revista Arquivos do Museu Nacional, comprovando que tal noção começou a circular para além da ciência, indo parar em publicações de jornais e também em publicações internacionais (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.).

Os pesquisadores construíram teorias com o objetivo de mostrar que os índios Marajoara poderiam representar a identidade nacional que se construía naquele momento. Netto (1885)Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6, pp. 261-339). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. fez uma série de comparativos dos desenhos marajoara com desenhos de objetos das ditas civilizações do mundo; Hartt (1885)Hartt, C. F. (1885). A origem da arte ou a evolução da ornamentação (Vol. 6, pp. 95-108). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. produziu a teoria dos olhos para mostrar que era prazeroso observar as gregas marajoara e, por isso, certamente, eram objetos feitos por povos que estavam numa escala acima da evolução daqueles mais ‘primitivos’.

Para além das teorias, sempre que possível, se estabeleciam paralelos entre a produção material marajoara e ocidental que eram divulgados em jornais ou artigos internacionais pelos cientistas citados e outros escritores (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.). Ou seja, se a produção material marajoara tinha certa proximidade com a cultura material do homem não indígena, esses indígenas eram especiais. Da ciência, essa noção passou a se alastrar para outros meios e fontes de comunicação.

Afora a comparação estética, o Brasil do século XIX também classificou seus indígenas entres aqueles que eram os arredios e bárbaros e os não arredios e mansos. Essa classificação foi também essencial na escolha de qual grupo indígena poderia configurar como emblema de identidade nacional.

Em uma ponta, estavam os tupi-guarani, extintos ou supostamente assimilados, e vistos como não arredios e, na outra, os conhecidos Botocudos, tapuias considerados bravios e selvagens. Além dos Botocudos serem índios vivos, eram os que guerreavam nas primeiras décadas do Brasil do Oitocentos contra toda a política de Estado, sendo, por isso, considerados indomáveis e ferozes, de forma pejorativa. Coincidência ou não, eles eram inimigos dos tupis na história do país (Carneiro da Cunha, 1992Carneiro da Cunha, M. (1992). Política indigenista no século XIX. In M. Carneiro da Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 133-154). São Paulo: FAPESP.)4 4 Para saber mais, ver Monteiro (2001). .

O termo ‘botocudo’ é genérico e foi atribuído pelos colonizadores portugueses porque esses índios usavam botoques labiais e auriculares, itens de sua cultura material (Monteiro, 2001Monteiro, J. M. (2001). Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo (Tese de livre docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.). Mas não existiu uma ideia única sobre essa contraposição feita entre tupis e tapuias. De qualquer forma, do ponto de vista administrativo, os indígenas do Brasil foram subdivididos, no século XIX, entre ‘bravos’ e ‘doméstico-mansos’ (Langer, 2001Langer, J. (2001). Ruínas e mitos: a arqueologia no Brasil império (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil.).

Os tapuias estiveram associados a dois outros grupos vistos como inferiores, a saber, os mongóis e os bascos. Já os tupis supostamente seriam descendentes dos caucasianos, como os europeus, pela suposta superioridade. Mas, nesse feito, uma observação era importante: os tupis, mesmo que vistos como superiores aos tapuias, sempre seriam tidos como inferiores aos caucasianos, pois jamais se equiparariam aos ‘evoluídos’ europeus (Paraíso, 1998Paraíso, M. H. B. (1998). O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos Sertões do Leste (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.).

Com essa disposição de uns inferiores e outros superiores, nesse último caso, os tupis acabaram sendo destinados a um passado remoto, sendo associados a índios que contribuíram de forma heroica com a história do país, semelhante com o que fora feito na literatura do século XIX. Desta feita, os tupis foram consagrados por setores das elites imperiais como donos de uma autêntica língua indígena, digna de representação, sendo exaltados duplamente: na literatura e na ciência da época (Monteiro, 2001Monteiro, J. M. (2001). Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo (Tese de livre docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.).

Devido à construção da superioridade tupi em contraposição aos tapuias, vistos como inferiores, de acordo com a escala evolutiva, desenvolveu-se, no século XIX, a ‘tupifilia’, considerando-se as articulações artísticas e ideológicas do Estado nacional brasileiro sobre a história do Brasil, escapando por poros institucionais, políticos, científicos e culturais (Rodrigues, 2010Rodrigues, J. P. (2010). Tupifilia na Amazônia e em São Paulo. Revista Estudos Amazônicos, 5(1), 145-171.).

Na ausência de ruínas ‘espetaculares’ de civilizações do passado e enfrentando forte embate com as populações indígenas do presente vistas como embaraço ao projeto de civilização para o Brasil (os ‘selvagens’ Botocudos), a geração das elites começou a esboçar uma mitografia nacional que colocava os tupis no centro do palco (Monteiro, 2001Monteiro, J. M. (2001). Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo (Tese de livre docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.).

Segundo Couto de Magalhães (1940)Couto de Magalhães, G. (1940). O selvagem. São Paulo: Editora Nacional., o tupi seria uma das maiores línguas da terra, senão a maior, seja em extensão territorial amazônica, seja em superioridade com relação às outras línguas indígenas. O próprio imperador passou a interessar-se pelo tupi, estudando-o. Essa exaltação da língua proporcionou a produção de gramáticas e dicionários sobre a mesma, configurando-a como a mais importante entre as línguas indígenas.

Os ‘inferiores’ Botocudos foram vistos como ‘índios da ciência’, que serviam apenas como objetos de pesquisa, representando aquilo que teria de mais atrasado entre os povos indígenas, em contraposição aos tupis, modelo rousseauniano vivo (Schwarcz, 1993Schwarcz, L. M. (1993). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras.). Ou seja, “. . . o que os Tupi-Guarani [foram] para a nacionalidade, os Botocudos [foram] para a ciência” (Carneiro da Cunha, 1992Carneiro da Cunha, M. (1992). Política indigenista no século XIX. In M. Carneiro da Cunha (Org.), História dos índios no Brasil (pp. 133-154). São Paulo: FAPESP., p. 136).

De acordo com alguns estudos da arqueologia, o Marajoara pertencia ao tronco tupi. Foram as pesquisas feitas no Oitocentos que motivaram a consagração dos grupos vinculados a esse tronco linguístico para que figurassem como símbolos de identidade (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.).

Mesmo que alguns estudos tenham vinculado os indígenas Marajoara à língua tupi, essa vinculação não foi um consenso entre os arqueólogos. De qualquer forma, nesse caso, o importante é identificar que os tupis foram os elencados para figurarem enquanto símbolos e que, em algum momento, esses Marajoara foram vistos como tupi, ou seja, civilizados, seja pela língua, seja pelos desenhos, seja pelos objetos. O importante era apresentar um Brasil ‘civilizado’, a fim de alcançar um lugar ao lado das ‘luminosas civilizações’ do hemisfério norte (Monteiro, 2001Monteiro, J. M. (2001). Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo (Tese de livre docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.).

Afora o exposto, os indígenas do Marajó não estavam mais na ilha e, devido ao desaparecimento de seu povo, atribuído pela arqueologia, não se configuravam como um empecilho aos projetos de civilização, como o eram os indígenas vivos, arredios e que se contrapunham aos projetos políticos de Estado. Os índios Marajoara já tinham sido considerados extintos pela arqueologia5 5 Atualmente, existe um movimento de etnogênese de povos que se intitulam Marajoara e que se contrapõem à ideia de extinção desses indígenas, posta pela arqueologia do século XIX. , tendo sua imagem concebida de forma positiva pela ciência e pelo Estado. Como afirmou Certeau (1995, p. 82)Certeau, M. (1995). A cultura no plural. São Paulo: Papirus., sobre a beleza do morto,

. . . será sempre necessário um morto para que haja fala; mas ela falará de sua ausência ou da sua carência, e explicá-la não se limita a apontar aquilo que a tornou possível em tal ou tal momento. Apoiada no desaparecido cujo vestígio ela carrega, visando ao inexistente que ela promete sem dar, ela permanece o enigma da Esfinge. Entre as ações que simboliza, ela mantém o espaço emblemático de uma interrogação.

Segundo os estudos arqueológicos, os índios Marajoara desapareceram da ilha antes da chegada dos europeus, em 1500. Isso foi essencial também para que aqueles que espetacularizaram sua cultura material lhes dessem alguma ‘voz’, pois, nesse caso, esses índios não contestariam qualquer versão que fizessem de sua história através dos objetos arqueológicos, a julgar pela suposta ausência. Além disso, os cientistas, apoiados num ‘enigma da esfinge’, tendo em vista a não escuta da história cultural desses povos, produziam suas próprias versões acerca desse povo, entre elas a dos mais civilizados entre as mais diversas nações indígenas do Brasil, sendo tupi or not tupi, através de histórias produzidas acerca dos objetos arqueológicos.

Independente de o Marajoara ser tupi ou não tupi, o seu passado manifestou-se em contraste com o presente indígena, que preocupava as políticas de Estado: “. . . se o passado arqueológico, aquilo que hipoteticamente já morreu e não mais existe, pode acender alegrias nacionalistas, o presente antropológico seguramente carbura angústias políticas” (Ferreira, 2010Ferreira, L. M. (2010). Território primitivo: a institucionalização da arqueologia no Brasil (1870-1917). Porto Alegre: EdiPUCRS., p. 18).

Mesmo que muitos cientistas não acreditassem que o tupi fosse a língua dos índios Marajoara, publicava-se uma série de ideias de oposição entre eles e os Botocudos, aqueles que foram vistos como a imagem da contraposição de índios civilizados no Brasil do Oitocentos.

Segundo Netto (1885)Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6, pp. 261-339). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., “. . . o Botocudo, [não] conhece as inúmeras vantagens, por igual desconhece o valor da louça. . . . índios. . . . que julgo serem os mais bravios e ferozes de toda a América do Sul. . . . Estes selvagens, que não usam de louça” (Netto, 1885Netto, L. (1885). Investigações sobre a archeologia brazileira (Vol. 6, pp. 261-339). Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., pp. 414-417).

Esta reflexão está apoiada na ideia de que os indígenas produtores de barro eram mais civilizados dos que os não produtores, pois os não produtores seriam nômades, e que isso lhes conferia pouca complexidade cultural, por viverem em trânsito, diferente dos produtores, que não poderiam transitar por conta dos objetos produzidos, promovendo uma cultura mais complexa. Essa teoria já foi completamente desconstruída pela antropologia e pela própria arqueologia, ambas afirmando que todas as culturas têm suas complexidades, sejam elas produtos de nômades ou não. Independente disso, os Marajoara foram sempre comparados aos Botocudos, e não a outros não produtores de objetos em barro, ratificando a diferença atribuída aos grupos.

Destarte, a arqueologia que surgia no século XIX serviu como ferramenta colonizadora por alguns motivos: os objetos arqueológicos eram passíveis de determinar certos espaços, balizando fronteiras geopolíticas, modelando as raias do território brasileiro que estava em construção em sua identidade e, além disso, fortalecendo os estereótipos de indígenas degenerados ou sem evolução, desencadeando projetos de colonização típicos da época (Ferreira, 2010Ferreira, L. M. (2010). Território primitivo: a institucionalização da arqueologia no Brasil (1870-1917). Porto Alegre: EdiPUCRS.).

Essa demarcação de espaço ficou conhecida como arqueologia nobiliárquica. Segundo Ferreira (2002, p. 71)Ferreira, L. M. (2002). Vestígios de civilização: a arqueologia no Brasil Imperial (1838-1877) (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil., essa arqueologia:

. . . [d]everia. . . . recompor aqueles pedaços empoeirados, dar-lhes voz, fazê-los falar um relato histórico de origem onde as elites do país pudessem se reconhecer. O passado do indígena, materializado em cacos, deveria modelar-se num espelho da ‘raça branca’, da sociedade de Corte; deveria mostrar que os antepassados indígenas eram de outra natureza que não a das raças contemporâneas – estas ‘ruínas de povos’ foram antes criadores, membros de uma antiga civilização que doravante seria reconstruída pela nobreza do Império, pela elite ilustrada do Brasil.

Tais cacos deveriam recompor uma história em que a ‘raça branca’ pudesse se reconhecer através de uma cultura material produzida por um povo que não fosse considerado tão selvagem e arredio quanto o povo Botocudo, reconhecido como entrave a qualquer civilização, segundo o não indígena.

Desta feita, os objetos arqueológicos marajoara foram espetacularizados com o objetivo de representar os ideais políticos imperiais, tendo em vista que “[o] espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (Debord, 1997Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto., p. 14).

Por falta de ‘ruínas espetaculares’ no Brasil, tão comum em outros lugares do mundo, a arqueologia brasileira chegou a ser posta em xeque no período de consolidação de seus estudos no Oitocentos. Entretanto, peças arqueológicas de cerâmica Marajoara, encontradas em grandes quantidades, acabaram servindo de escopo aos objetivos nobiliárquicos imperiais.

Em relatório escrito por Netto (1882)Netto, L. (1882). Relatório apresentado ao S. Ex. Sr. Conselheiro José Antonio Saraiva, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e interino dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional. para o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, citado em Bittencourt (2001)Bittencourt, J. (2001). Fenícios, sambaquis e Marajó: os primórdios da arqueologia no Brasil e a formação do imaginário Nacional. Tempos Históricos, 3(1), 53-75., há a seguinte afirmação: “. . . se nenhuma outra tribo atingiu tal notável adiantamento em termos tecnológicos, não poderia ser outra etnia a escolhida dentre as do Brasil” (Bittencourt, 2001Bittencourt, J. (2001). Fenícios, sambaquis e Marajó: os primórdios da arqueologia no Brasil e a formação do imaginário Nacional. Tempos Históricos, 3(1), 53-75., p. 59).

Isto posto, o objeto arqueológico marajoara passa a ser reconhecido como a verdadeira representação do povo brasileiro. Para Saliba (2003 p. 63)Saliba, E. T. (2003). As utopias românticas. São Paulo: Estação Liberdade., “. . . tudo no passado parecia dotado de alma: nações, épocas inteiras, reinos, grupos de pessoas”, indicando que, desde esse momento, a cerâmica marajoara, para além de projetar a vida cultural desses índios, delineava também a vida da elite imperial, dos cientistas e dos demais grupos de pessoas que projetaram essa identidade brasileira no século XIX, fazendo com que tais objetos passassem a ter alma como representação dos ‘resquícios de uma civilização’.

Diante do exposto, percebe-se que a história construída não foi aquela do povo e de sua memória social, mas a eleita, selecionada e apurada pelo Estado, em diálogo com as instituições do saber científico, nesse caso, o Museu Nacional do Rio de Janeiro, ou seja, foi uma história tecida, tendo em vista a invenção de uma tradição (Hobsbawm & Terence, 2002Hobsbawm, E., & Terence, R. (Orgs.). (2002). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra.).

Essa atribuição de civilidade ao índio Marajoara foi feita num contexto em que se reservou às instituições científicas a missão de colaborar com o processo de modernização do país, revelando que faziam parte de centros de saber de um Brasil sintonizado com o mundo considerado civilizado, o Europeu (Gualtieri, 2008Gualtieri, R. C. E. (2008). Evolucionismo no Brasil: ciência e educação nos museus - 1870-1915. São Paulo: Editora Livraria da Física.).

A instituição responsável pela construção da pretendida modernidade brasileira foi o Museu Nacional, que, mesmo mediante à tentativa de desfazer a imagem de exotismo tropical do Brasil para o mundo, empreendeu tais projetos de modernização, utilizando-se desse mesmo ‘exotismo’ indígena, sendo que a organização de exposições de objetos da cultura material desses povos foi salutar para esse objetivo.

Segundo Garcia Canclíni (2003, p. 69)Garcia Canclíni, N. (2003). Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP.: “[s]e o patrimônio é interpretado como repertório fixo de tradições condensadas em objetos, ele precisa de um palco-depósito que o contenha e o projete. Um palco-vitrine para exibi-lo”, e assim foi feito com a cultura material desses povos considerados exóticos, sendo apresentados em inúmeras exposições pelo mundo, como forma de falar sobre a história de cada lugar. No caso do Brasil, o objetivo era mostrar que, mesmo vivendo num lugar de povos selvagens, existiam aqueles dignos de serem teatralizados, os Marajoara, mais civilizados do que os Botocudos.

No Brasil, a instituição Museu Nacional foi um dos repositórios de exibição dessa cultura material, partindo da lógica de que os espaços museais são sedes cerimoniais do patrimônio:

[é] o lugar em que é guardado e celebrado, onde se reproduz o regime semiótico com que os grupos hegemônicos o [organizam]. Entrar em um museu não é simplesmente adentrar um edifício e olhar a obra, mas também penetrar em um sistema ritualizado de ação social

(Garcia Canclíni, 2003Garcia Canclíni, N. (2003). Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP., p. 69).

Por isso, afirmo que a exposição antropológica de 1882 do Museu Nacional foi o primeiro evento museal no país a espetacularizar objetos marajoara. Ao longo da preparação da exposição, a sua organização produziu fascículos que apresentavam os objetos expostos, e estes foram enviados para todas as províncias do Brasil no período. Esse mesmo material ratificava tudo que fora dito ao longo deste artigo: que os Marajoara produziram belas peças, com labor técnico e superior à produção de outros povos indígenas e, por isso, eram dignos de representarem a nação (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.).

Foi tão surpreendente o poder em torno da construção de civilidade atribuída à cultura material marajoara que esse simbolismo se alastrou para diversos âmbitos da vida social de fins do século XIX até a contemporaneidade, mas esse uso marajoara ficou evidente ao longo do século XX. Ele foi usado na arte e na arquitetura sob influência do artista Theodoro Braga, em construções de casas e projetos arquitetônicos dos mais diversos6 6 Para aprofundamento da leitura sobre o uso do simbolismo marajoara na arte nesse período e o projeto modernista, alguns trabalhos são essenciais, a saber: Figueiredo (2016), Godoy (2004),Lafuente e Lagnado (2015), Martins (2017), Roiter (2010), Silva Neto e Figueiredo (2012). . Aliás, chego a afirmar que a ‘selva brasileira’ foi domada nos labirintos da cidade porque, ao longo do território brasileiro, existiu grande quantidade de casas e prédios marajoara. E isso se estendeu às casas de bailes destinadas às festas, aos clubes, às associações, aos restaurantes, aos parques públicos, entre outros (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.).

Afora a arquitetura, o ambiente doméstico foi tomado pela representação desses indígenas. Se alguém quisesse ter um ‘ambiente marajoara’, era possível tê-lo. Encontrei em jornais das décadas de 1930 a 1960 imagens de venda de rádio marajoara, cama marajoara, móveis marajoara, talher e faqueiros marajoara, cobertor marajoara, conjuntos de xícaras marajoara, toalha de mesa marajoara, entre muitos outros objetos para o lar (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.). Segundo o “Diário de Notícias”, de 1933, isso ilustrava:

Uma singular tentativa, ao mesmo tempo arrojada e paciente, de adaptação de motivos essencialmente brasileiros à arte decorativa. Inspirando-se nas linhas mestras dos temas ornamentais do estilo marajoara onde se exprimem toda a força e a graça criadora dos nossos indígenas, [criava-se] mobiliário tão original e tão rico de expressão

(“Móveis brasileiros”, 1933Móveis brasileiros. (1933, agosto 6). Diário de Notícias., p. 20).

Ou seja, era possível ter uma casa marajoara que exprimisse ‘a força e a graça dos nossos indígenas’, mas não qualquer indígena, e sim o Marajoara. Saindo de casa e indo para o espaço público, para além do que já foi dito anteriormente, esse simbolismo foi bastante utilizado pelas escolas de carnaval, em seus mais variados enredos, roupas, fantasias e músicas (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.). Assim, em determinado período de nossa história, ser brasileiro era ser marajoara. E os cuidados com o corpo também foram adaptados ao ser indígena especial, aqueles da ilha do Marajó.

O CUIDAR-SE MARAJOARA

Somos seres estéticos preocupados com nosso embelezamento diário, e isso começa desde o momento que acordamos e vai até a hora de dormir, já que há uma série de rituais que se iniciam na escovação dos dentes e se estendem com atos como tomar banho, pentear-se, usar cremes rejuvenescedores para todas as áreas do corpo, além dos cremes com cheiros dos mais diversos, maquiagens, penteados, perfumes, roupas e acessórios de vários tipos, ou seja, utilizamos uma série de coisas para nos enfeitar e nos cuidar, tendo em vista a moda vigente.

O enfeitar-se e o cuidar-se diário seguem padrões e regras para cada pessoa, que variam de cultura para cultura. No Brasil do século XX, o uso do simbolismo marajoara fez parte desse cuidar de si, pois isso ‘estava na moda’ em decorrência de toda a construção de civilidade em torno desses povos indígenas. Ao tomar banho, naquele momento no nosso país, a cidadã ou o cidadão poderia usar sabonete marajoara feito na Phebo7 7 A perfumaria Phebo foi inaugurada em 1936 em Belém. A empresa foi fundada pela família Santiago, de portugueses. Atualmente, a Casa Granado é a detentora da marca e responsável pela fabricação dos produtos Phebo. Apesar de ser uma indústria do Pará, abriu filial em vários lugares do país. Para saber mais, ver Chiacchio (2010). , bastante divulgado em anúncios (Figura 1).

Figura 1
Folder de propaganda dos sabonetes Phebo com urnamarajoara.

A imagem da Figura 1 apresenta uma rosa saindo da urna funerária marajoara como representação de seu cheiro, um sabonete de rosas ao sair da peça arqueológica. Abaixo do folder, ao lado direito, o anúncio apresenta que essa é uma peça original, a saber, uma urna marajoara Joanes Pintado, pertencente ao acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi. Aliás, essa mesma indústria fabricou uma série de porta-sabonetes com motivos arqueológicos Marajoara (Figura 2).

Figura 2
Caixa de sabonete Phebo marajoara.

Na Figura 2, é possível ver uma caixa de madeira de sabonetes Phebo com a representação de uma série de motivos copiados de objetos arqueológicos Marajoara, feitos com desenhos aplicados em incisão, modelados com objeto pontiagudo. Após modelados, esses desenhos recebem pintura, quando são pintados. Nessa imagem, visualiza-se um símbolo zoomorfo na tampa da caixa, pintado nas cores branca, preta e vermelha.

Banhar-se com os sabonetes marajoara era uma questão de bom gosto e requinte, pois, de acordo com Chiacchio (2010)Chiacchio, M. A. (2010). Indústria e desenvolvimento regional: a trajetória das perfumarias Phebo em Belém (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil., os sabonetes produzidos por essa empresa eram direcionados a uma classe mais abastada, tendo um valor muito mais alto do que os produtos mais populares. De acordo com sua pesquisa, a elite local paraense via nos sabonetes Phebo uma maneira de substituir o sabonete inglês Pears Soap, tendo em vista que as importações do produto inglês ficaram mais restritas, provocando maior procura pelos fabricados pela Phebo, tanto no mercado local quanto no nacional.

Após o banho, a pessoa poderia vestir-se ‘a la marajoara’. Era comum, por exemplo, encontrar modelos de vestimentas para mulheres com essa marca. O jornal “O Cruzeiro”, em 1971, apresentou um tecido específico para produção de roupas femininas, destinado a mulheres que desejavam ter vestido com desenhos marajoara. De acordo com o referido jornal:

Batik-Indonesian International é a marca destes tecidos que foram a maior novidade da Fenit. Em sua maioria são de seda pura com desenhos feitos à mão pela artista Tita Carvalho. Ela utilizou-se de um processo denominado “batik”, originário da Indonésia. Os desenhos são exclusivos de cada corte da fazenda, sendo impossível, dada a variedade de cores e caracteres, uma imitação até pela própria autora, que se inspirou em motivos da arte marajoara (“Um show...”, 1971Um show de estampados e de côres ficou por conta das tecelagens brasileiras. (1971, julho 7). O Cruzeiro. Recuperado de http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=003581&pasta=ano%2019&pagfis=181639
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader...
, p. 70).

O modelo do tecido com desenhos feitos pela artista Tita Carvalho refere-se à Figura 3.

Figura 3
Modelo com vestido marajoara.

A moça que serviu de modelo para a imagem publicada no jornal usa o vestido com desenhos inspirados no simbolismo marajoara, e na parede onde está encostada existe uma série de desenhos arqueológicos antropomórficos, para ratificar ainda mais a inspiração indígena. De acordo com a mesma notícia veiculada no jornal (“Um show...”, 1971Um show de estampados e de côres ficou por conta das tecelagens brasileiras. (1971, julho 7). O Cruzeiro. Recuperado de http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=003581&pasta=ano%2019&pagfis=181639
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader...
, p. 70), a artista Tita Carvalho mescla desenhos em estilo indonésio com marajoara, a partir de uma técnica específica, o batik. Essa mescla de estilo quer apresentar às mulheres desejosas de uma roupa com essa marca algo considerado exótico, bem aos moldes da percepção construída sobre os povos indígenas.

Entretanto, a notícia faz questão de apresentar que não se tratava de qualquer tecido, pois, além de ser pintado por uma artista, era de seda com “. . . desenhos . . . . exclusivos de cada corte da fazenda, sendo impossível. . . . uma imitação até pela própria autora. . . .” (“Um show...”, 1971Um show de estampados e de côres ficou por conta das tecelagens brasileiras. (1971, julho 7). O Cruzeiro. Recuperado de http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=003581&pasta=ano%2019&pagfis=181639
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader...
, p. 70). Ou seja, não era feito com qualquer material, com desenhos feitos por qualquer pessoa, com qualquer inspiração, mas um tecido de seda, feito com desenhos de uma renomada artista e com exclusividade, pois era impossível a imitação, sendo inspirado nos ‘nobres’ marajoaras.

Nesse mesmo Brasil do século XX, os homens também poderiam se vestir ‘a la marajoara’, pois a moda inspirada nesses motivos indígenas não era pensada apenas para as mulheres. O jornal “A Província do Pará”, na década de 1960, estampa o anúncio da loja Original Amazon, mostrando ser possível encontrar modelos dedicados exclusivamente a homens afeitos à moda marajoara8 8 Giovanni Gallo, nome responsável pela formação do Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, na ilha do Marajó, organizou, em 2005, um livro próprio para bordadeiras para que servisse de modelo nas suas confecções de roupas. Ele fotografou uma série de cacos arqueológicos, os desenhou e publicou especificamente com essa finalidade para esse público (cf. Gallo, 2005). , conforme a Figura 4.

Figura 4
Propaganda de roupas marajoara para homens.

O homem, bem apresentado porque veste marajoara, surge na propaganda com camisa permeada de desenhos arqueológicos, apoiando-se em um vaso marajoara. Além desse vaso, que serve de apoio ao homem da propaganda de camisas, é possível ver uma grande urna funerária marajoara atrás do rapaz. Ainda, é possível observarmos uma faixa de desenhos Marajoara logo abaixo do nome da loja.

O que chama atenção nessa imagem de propaganda é que os índios Marajoara aparecem com notoriedade em clara oposição aos ‘indígenas’, visto como os ‘outros’. Isso mostra a relevância dos povos da ilha do Marajó, em contraste claro com os genéricos, os ‘outros’ ou aqueles que não tem tanta importância quanto os que mais chamam atenção na propaganda, sendo apresentados de forma generalizante ou tampouco mencionados por suas etnias.

Outro aspecto que chama atenção nessa imagem da Figura 4 é o poderio do homem sob os objetos, pois está praticamente sentado em cima de uma urna marajoara e com os pés apoiados em um vaso da mesma cultura arqueológica, mostrando que dominou esse universo cultural, tendo em vista a ‘beleza do morto’, conforme citado anteriormente. Agora que esses índios estão mortos e não mais existem, segundo a arqueologia, seu simbolismo pode ser manipulado pelos não indígenas da forma que convém, como fizeram e ainda se faz. Outrossim, agora eles podem fazer o que bem entendem com esse simbolismo, inclusive usar seus desenhos na composição de roupas masculinas.

Figura 5
Sugestão de presente marajoara.

Após vestir-se marajoara, a pessoa que tivesse interesse e pudesse adquirir ou ganhar de Natal, como apresenta a Figura 5, poderia adornar-se com objetos da mesma marca, conforme o jornal “A noite”, de 1946.

O anúncio oferece sugestões de presentes para o Natal de 1946. Presentear alguém com algo em estilo marajoara demonstrava ‘bom gosto’, pois, além dos “famosos charutos Havana. . . . isqueiros de Lektrolite” [ênfase adicionada] (“Sugestões...”, 1946Sugestões para o Natal de 1946. (1946, dezembro 5). A Noite. Recuperado de http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=348970_04&pasta=ano%20194&pesq=&pagfis=43607
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, p. 4) e o “. . . lindo estojo em couro das famosas canetas e lapiseiras Secretary” [ênfase adicionada] (“Sugestões...”, 1946Sugestões para o Natal de 1946. (1946, dezembro 5). A Noite. Recuperado de http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=348970_04&pasta=ano%20194&pesq=&pagfis=43607
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, p. 4), exibia-se o anúncio das bijuterias de prata em estilo marajoara, que, segundo a propaganda, eram talhadas à mão, sendo definidas como originais, a saber, brincos, pulseiras, anéis ou broches, entre outros.

Finalizando a composição marajoara, quem estivesse vestido e adornado com acessórios que faziam referências a esses povos indígenas ainda poderia se perfumar conforme pedia o estilo. Ao longo da pesquisa, foi comum encontrar anúncios de vendas de perfumes Marajoara, como o da Figura 6.

Figura 6
Perfume marajoara.

De acordo com “O Cruzeiro”, de 21 de outubro de 1943, o perfume Marajoara com ‘Ritmos Selvagens’ em sua essência apresentava-se como um produto ‘exótico’ porque fazia referência a um povo indígena. Segundo o anúncio, “como a arte que a inspira, Marajoara é um perfume singular e marcante” (“Ritmos selvagens...”, 1943Ritmos selvagens... no exotismo de um perfume! (1943, outubro 21). O Cruzeiro.), com mulheres nuas em seu anúncio, sendo que uma das representações dessa mulher encontra-se bem na frente do cartaz, segurando uma peça, que também faz referência a um objeto arqueológico, dançando de forma sensual.

Esse anúncio traz toda a imagem estereotipada construída acerca dos índios desde o século XIX a partir do evolucionismo vigente. Quem lesse a mensagem anunciada nessa publicidade, automaticamente, faria a associação do uso desse perfume com comportamentos sensuais, exóticos e ‘primitivos’, igualando a conduta indígena à selvageria. De qualquer forma, toda essa publicidade foi pensada para atrair os possíveis compradores. Certamente, quem comprasse se sentiria mais ‘selvagem’ ou pronto para uma noite sensual após o seu uso.

Há muito tempo o comportamento de mulheres indígenas foi relacionado a uma postura sexual desregrada, despudorada. Os viajantes Spix e Martius (1981)Spix, J. B., & Martius, S. E. (1981). Viagem pelo Brasil: 1817-1820/ Spix e Martius. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. e Veríssimo (1970)Veríssimo, J. (1970). Estudos amazônicos (Coleção Amazônica: Série José Veríssimo). Belém: UFPA. já enunciaram esse pensamento quando refletiram sobre a ‘falta’ de vestimenta dessas mulheres. Veríssimo afirmou que “. . . faltava-lhes, por assim dizer, o sentimento delicado do pudor, como o respeito mútuo, e a família não tem base. . . . As mulheres banham-se nuas em lugares públicos . . .” (Veríssimo, 1970Veríssimo, J. (1970). Estudos amazônicos (Coleção Amazônica: Série José Veríssimo). Belém: UFPA., p. 72). Para Spix e Martius (1981, p. 76)Spix, J. B., & Martius, S. E. (1981). Viagem pelo Brasil: 1817-1820/ Spix e Martius. Belo Horizonte: Editora Itatiaia.,

[u]m olhar para o interior dessas moradas abertas, deixa ver as exuberantes formas das mulheres e raparigas, quase completamente nuas, porém no ingênuo pudor do estado natural que, comparado com a “pruderie” da nossa civilização, parece duplamente moral.

Para Veríssimo, essa nudez indígena referia-se à falta de pudor, julgando considerar que essa família, de forma generalizante ainda por cima, não teria base alguma, de acordo com sua ideia de família não indígena, pondo às claras uma compreensão etnocêntrica sobre o ‘outro’. Diferentemente, Spix e Martius (1981)Spix, J. B., & Martius, S. E. (1981). Viagem pelo Brasil: 1817-1820/ Spix e Martius. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. descrevem essa nudez como exótica, atribuindo certa ingenuidade aos indígenas por conta disso, reflexão não menos etnocêntrica.

Segundo Barreto (2013)Barreto, C. (2013). Corpo, comunicação e conhecimento: reflexões para a socialização da herança arqueológica na Amazônia. Revista de Arqueologia, 26(1), 112-128. doi: https://doi.org/10.24885/sab.v26i1.372
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, não raro se observa na ressignificação desses objetos na contemporaneidade uma erotização exagerada nas representações antropomorfas femininas marajoara, em que os órgãos sexuais são quase sempre exibidos de forma exacerbada, com cores fortes, como forma de chamar atenção dos observadores ou supostos compradores.

Moralistas e etnocêntricos, os pensadores, ou mesmo quem ressignifica as peças visando dar ênfase aos órgãos sexuais, faziam, e muitas vezes ainda fazem, uma interpretação dessa nudez indígena bastante distanciada daquela realidade, atribuindo a esse povo exotismo, estranhamento e até certa selvageria, enquanto para os indígenas a sua nudez estava em anuência com suas próprias regras culturais. Os seus significados originais são esvaziados. O certo é que a associação dessa imagem de exotismo e a nudez da indígena na embalagem do perfume marajoara era uma forma de estimular a venda do produto aos afeitos à moda marajoara do período.

Destarte, do banho ao perfumar-se, tendo em vista todo um ritual do cuidado de si diário ou até mesmo ordinário, como o arrumar-se para um evento específico fora do cotidiano, no Brasil do século XX, seria possível cuidar do corpo usando o simbolismo de povos indígenas pré-coloniais, nesse caso, dos índios Marajoara, considerando-se terem sido os escolhidos como emblemas da alentada identidade nacional que se construiu no Brasil do Oitocentos. Dessa forma, em determinado período de nosso país, sem titubear, ser brasileiro era ser Marajoara.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Segundo a memória social do paraense, o simbolismo marajoara que se encontra representado em vias públicas e privadas, das mais variadas formas, seria consequência de influência da produção de réplicas e cópias feitas por artistas e artesãos de Icoaraci, distrito de Belém. Entretanto, o que apresentei neste artigo é que, antagônico a isso, o valor dado ao simbolismo marajoara, resultando em toda essa espetacularização, nesse caso com os cuidados com o corpo, seria oriundo de um processo anterior à década de 1970, quando surge essa produção em Icoaraci. Essa espetacularização em fins do século XIX inicia quando a cultura material Marajoara é descoberta pelos primeiros arqueólogos do período e se faz toda uma interpretação sobre a mesma pelos cientistas, conforme apresentado ao longo deste artigo.

Depois de retirados dos sítios arqueológicos esses objetos foram acondicionados em museus, sendo frutos de pesquisas e reflexões que permitiram uma série de especulações, entre elas uma suposta origem estrangeira ou indicando desenvolvimento local, regional. Seja por meio daqueles que defendiam uma suposta origem estrangeira ou dos que defendiam um desenvolvimento local, essa cerâmica foi posta no rol das mais altas produções artísticas, sendo ressignificada das mais variadas formas. Por isso, os Marajoara chegaram a ser comparados com os artistas das consideradas maiores civilizações do mundo, o que levou Ferreira (2002)Ferreira, L. M. (2002). Vestígios de civilização: a arqueologia no Brasil Imperial (1838-1877) (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. a definir o índio Marajoara como ‘um grego, agora nu’.

Mas essa espetacularização fez com que a representação do simbolismo Marajoara se tornasse mera ornamentação. O povo, em geral, quase nada sabe sobre o significado desses objetos, pouco sabe de sua história e da importância do índio Marajoara, não apenas para a história do Pará, mas para a do Brasil, inclusive invisibilizando outros povos indígenas9 9 Em sua grande maioria, o comprador desses objetos busca a peça pela ‘marca’ marajoara e não está preocupado com qualquer informação sobre o significado do objeto. A ‘verdade’ sobre qualquer objeto pode fazer com o que o comprador nem queira adquirir a peça, como um turista que, quando soube que o belo objeto que queria adquirir era a representação de uma urna funerária, achou pertinente não levar algo fúnebre para enfeitar sua sala de estar. Destarte, compradores e comerciantes reatualizam e ressignificam a história desses objetos, tendo em vista o mercado. Para saber mais, ler Linhares (2007). . Por causa de toda essa construção em fins do século XIX, esses objetos tornaram-se valiosos no mercado. Mesmo com uma lei própria que proíbe qualquer tipo de comercialização de bens arqueológicos10 10 Para saber mais, ver artigo 3° da Lei 3.924, de 26 de julho de 1961. , a venda desse tipo de material segue sendo feita na ilegalidade (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.).

Segundo os dados da Interpol, a organização internacional de polícia criminal, os bens da cultura material Marajoara são considerados os mais cobiçados no mercado de objetos antigos. No Brasil, os objetos arqueológicos perdem apenas para os de arte sacra. O apreço por esses bens os transformou em semióforos da riqueza, ou seja, em bens de interesse privado (Bezerra & Najjar, 2009Bezerra, M., & Najjar, R. (2009). ‘Semióforos da riqueza’: um ensaio sobre o tráfico de objetos arqueológicos. Habitus, 7(1/2), 289-307.).

Ao contrário da espetacularização feita dessas peças, por meio do seu simbolismo, a posse desses objetos não requer a busca de um símbolo de identidade, mas somente fins mercadológicos. Em suma, o bem arqueológico é espoliado (Bezerra & Najjar, 2009Bezerra, M., & Najjar, R. (2009). ‘Semióforos da riqueza’: um ensaio sobre o tráfico de objetos arqueológicos. Habitus, 7(1/2), 289-307.).

Esse mercado só demonstra o preciosismo atribuído a esses objetos a partir dessa escolha enquanto representação identitária, ultrapassando as barreiras nacionais. Esses objetos passaram a ser espetacularizados em exposições de inúmeros museus europeus e não europeus (Linhares, 2017Linhares, A. M. A. (2017). Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira. Curitiba: Editora CRV.). Nesse ínterim, os museus científicos brasileiros perderam, e seguem perdendo, parte de sua memória e história pela falta desse patrimônio, espalhado em museus da Europa, atrelado à história indígena do Brasil. Civilizados, condecorados como os evoluídos e dignos de representarem uma nação inteira, os indígenas da ilha do Marajó passaram a ser vistos como símbolo maior da identidade brasileira. Removido simbolicamente de sua geografia, o simbolismo Marajoara passou a representar todo um país.

Esse indígena que sai da ilha do Marajó em fins do Oitocentos não é mais o mesmo que retorna para a Amazônia na década de 1970, mais especificamente para Icoaraci, haja vista que, na imaginação popular, essa apropriação contemporânea se deu sob influência da produção do lugar. Quando se acomoda no Paracuri, esse simbolismo já vem sendo reproduzido enquanto imagem desde o século XIX, quando pesquisadores dão ao marajoara status de nobreza, sendo replicado simbolicamente das mais variadas formas na arte, na arquitetura, no artesanato e em peças voltadas para os cuidados com o corpo, como apresentei no presente artigo, a saber, roupas, acessórios, perfumes, entre outros, passando a dialogar com o mundo todo.

  • 1
    Sobre a espetacularização ora debatida, ver Henrique e Linhares (2019)Henrique, M. C., & Linhares, A. M. A. (2019). Cerâmica marajoara e Círio de Nazaré: significação e sacralização do patrimônio cultural brasileiro. Topoi, 20(41), 394-420. doi: https://doi.org/10.1590/2237-101x02004106
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    .
  • 2
    Schaan (2006)Schaan, D. P. (2006). Arqueologia, público e comodificação da herança cultural: o caso da cultura Marajoara. Revista Arqueologia Pública, 1(1), 19-30. doi: https://doi.org/10.20396/rap.v1i1.8635819
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    reflete sobre essa ‘tradição inventada’ a partir do uso dos objetos arqueológicos marajoara, dando exemplos de observações feitas por ela ao longo de sua vida profissional como arqueóloga, o que as pessoas lhe perguntavam sobre esses objetos, o que ouvia durante os eventos de que participou e o que observava em olarias de objetos artesanais.
  • 3
    O pensamento evolucionista utilizado pelos cientistas no Brasil do século XIX não foi sequencial e tampouco contínuo, haja vista ter sido consubstanciado a outros evolucionismos, como o haeckeliano e o spenceriano (Gualtieri, 2008Gualtieri, R. C. E. (2008). Evolucionismo no Brasil: ciência e educação nos museus - 1870-1915. São Paulo: Editora Livraria da Física.). Entretanto, mesmo diante de várias ideias em torno do pensamento evolucionista, foi a teoria de Charles Darwin a que teve maior uso entre os pensadores que comungavam dessa perspectiva no período, tendo em vista um pensamento conservador, em que se tentava evidenciar certa superioridade de alguns povos em detrimento de outras culturas, atribuindo-se mais eficácia, força e adaptabilidade para as sociedades que eram consideradas mais evoluídas, em uma escala de evolução cultural (Darwin, 1859Darwin, C. (1859). A origem das espécies e a seleção natural. Porto: Lello & Irmãos Editora.), provocando uma série de violências contra aqueles vistos como menos capazes de acordo com essa linha evolucionista.
  • 4
    Para saber mais, ver Monteiro (2001)Monteiro, J. M. (2001). Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo (Tese de livre docência). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil..
  • 5
    Atualmente, existe um movimento de etnogênese de povos que se intitulam Marajoara e que se contrapõem à ideia de extinção desses indígenas, posta pela arqueologia do século XIX.
  • 6
    Para aprofundamento da leitura sobre o uso do simbolismo marajoara na arte nesse período e o projeto modernista, alguns trabalhos são essenciais, a saber: Figueiredo (2016)Figueiredo, A. M. (2016). Batismo visual: a Belém mítica de Theodoro Braga. Revista PZZ: Arte, Política e Cultura, (23), 58-63., Godoy (2004)Godoy, P. B. (2004). Carlos Hadler: apóstolo de uma arte nacionalista (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.,Lafuente e Lagnado (2015)Lafuente, P., & Lagnado, L. (2015). Cultural Anthropophagy: the 24th Bienal de São Paulo 1998. London: Afterall., Martins (2017)Martins, R. M. A. (2017). Cuias, cachimbos, muiraquitãs: a arqueologia amazônica e as artes do período colonial ao modernismo.Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 12(2), 403-426. doi: https://doi.org/10.1590/1981.81222017000200009
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    , Roiter (2010)Roiter, M. A. (2010). A influência marajoara no art déco brasileiro. Revista UFG, (8), 19-27., Silva Neto e Figueiredo (2012)Silva Neto, J. A., & Figueiredo, A. M. (2012). Uma imagem, duas narrativas: as representações de uma lenda amazônica em Manoel Santiago. 19&20, 7(1), 1-20..
  • 7
    A perfumaria Phebo foi inaugurada em 1936 em Belém. A empresa foi fundada pela família Santiago, de portugueses. Atualmente, a Casa Granado é a detentora da marca e responsável pela fabricação dos produtos Phebo. Apesar de ser uma indústria do Pará, abriu filial em vários lugares do país. Para saber mais, ver Chiacchio (2010)Chiacchio, M. A. (2010). Indústria e desenvolvimento regional: a trajetória das perfumarias Phebo em Belém (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil..
  • 8
    Giovanni Gallo, nome responsável pela formação do Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, na ilha do Marajó, organizou, em 2005, um livro próprio para bordadeiras para que servisse de modelo nas suas confecções de roupas. Ele fotografou uma série de cacos arqueológicos, os desenhou e publicou especificamente com essa finalidade para esse público (cf. Gallo, 2005Gallo, G. (2005). Motivos ornamentais da cerâmica marajoara: modelos para artesanato de hoje. Cachoeira do Arari: Museu do Marajó.).
  • 9
    Em sua grande maioria, o comprador desses objetos busca a peça pela ‘marca’ marajoara e não está preocupado com qualquer informação sobre o significado do objeto. A ‘verdade’ sobre qualquer objeto pode fazer com o que o comprador nem queira adquirir a peça, como um turista que, quando soube que o belo objeto que queria adquirir era a representação de uma urna funerária, achou pertinente não levar algo fúnebre para enfeitar sua sala de estar. Destarte, compradores e comerciantes reatualizam e ressignificam a história desses objetos, tendo em vista o mercado. Para saber mais, ler Linhares (2007)Linhares, A. M. A. (2007). De caco a espetáculo: a produção cerâmica de Cachoeira do Arari (ilha do Marajó, PA) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil..
  • 10
    Para saber mais, ver artigo 3° da Lei 3.924, de 26 de julho de 1961Lei n. 3.924, de 26 de julho de 1961. Dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l3924.htm
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
    .
  • Linhares, A. M. A. (2020). O simbolismo marajoara nos cuidados com o corpo. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 15(3), e20190127. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0127

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2019
  • Aceito
    17 Fev 2020
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