Acessibilidade / Reportar erro

Política do agronegócio em um estudo antropológico

Agrobusiness politics in an anthropological study

Pompeia, C.. 2021. Formação política do agronegócio. Elefante,

Entre os praticantes das ciências sociais, é comumente defendida a atenção às categorias de pensamento e ação mobilizadas por interlocutores de pesquisa em diversos ambientes interacionais. A questão sempre esteve no centro de preocupações de antropólogas/os brasileiras/os e ganhou renovado interesse quando categorias da própria disciplina, como ‘cultura’, passaram a circular mais fortemente na esfera pública, após a redemocratização, entre atores da mobilização social em defesa dos direitos de povos e comunidades tradicionais e indígenas. Com isso, ganharam em importância programas de pesquisa que não apenas investigassem categorias políticas, mas as políticas das categorias. No entanto, e com notáveis exceções, mais rara foi a atenção concedida à produção categorial e sua publicização em outros coletivos de mobilização, como os das elites agrárias e industriais.

Tal objeto de pesquisa se tornou ainda mais necessário com a emergência do ‘agronegócio’ como fenômeno político e o destaque midiático que recebeu nos últimos anos, a ponto de se tornar a sinédoque preferencial quando se fala em relações de produção e poder no campo, em substituição ao ‘latifúndio’. Com o objetivo de tratar desse assunto, foi lançado, em 2021, pela editora Elefante, o livro de Caio Pompeia, “Formação política do agronegócio”, propondo uma análise da constituição histórica da noção de ‘agronegócio’, dos processos materiais que ela descreve e do seu agenciamento político.

O livro é resultado de duas pesquisas: a empreendida para a tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de Campinas (UNICAMP), em 2018, e a realizada durante o pós-doutorado no PPGAS da Universidade de São Paulo (USP), desde 2019. A principal metodologia utilizada ao longo dos nove capítulos é a análise de documentos e entrevistas, à qual se acrescenta, sobretudo mais ao final, o trabalho de campo realizado no Instituto Pensar Agropecuária (IPA), no Congresso Nacional, na Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e na Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura.

Na tese, o autor já havia sublinhado que o termo agronegócio tem três dimensões (conceitual, econômica e política), que aparecem indistintas ao circular na esfera pública. Para Pompeia (2018, p. 38)Pompeia, C. (2018). Formação política do agronegócio [Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas]., “essa indeterminação é elemento central do avanço de um plano político-econômico manipulado por um grupo específico de agentes que o sustenta em benefício próprio e, frequentemente, em detrimento de outros setores”. Por ‘outros setores’, entenda-se: indígenas, populações tradicionais, ambientalistas, trabalhadores rurais sem-terra reivindicando reforma agrária. Em razão disso, o antropólogo defende que é preciso esmiuçar cada uma dessas dimensões, para não se submeter ao efeito de poder produzido por aqueles que empreendem a categoria. De fato, uma das pretensões dessa noção é de representar todos os atores implicados em cadeias produtivas definidas como modernas, a montante (‘antes da porteira’) e a jusante (‘depois da porteira’) da agropecuária (‘dentro da porteira’). Aliás, isso é o que um de seus lemas publicitários mais difundidos busca afirmar: ‘agro é tudo’.

No entanto, essa projeção não se verifica materialmente. Há os que incluem os pequenos e médios produtores rurais como participantes do ‘agronegócio’, quando os próprios concernidos não necessariamente se reconhecem no conjunto, para não falar dos conflitos entre grandes produtores entre si, segundo o setor a que pertencem, com as recorrentes disputas de interesses entre a pecuária e a lavoura, assim como, dentro da lavoura, entre os setores sucro-alcooleiro, sojeiro, de floresta plantada, entre outros; fora a difícil equação entre exigências da indústria alimentícia e tradings com os interesses imediatos dos ruralistas. A articulação política intersetorial abrangente pretendida pelo coletivo ‘agronegócio’ não tem nada de evidente, portanto. Seu processo de composição se defronta a muitos obstáculos, e o trabalho de Pompeia busca restituir as forças centrípetas e centrífugas em ação. Um indicador disso é a multiplicação de entidades associativas que se colocaram esse objetivo de concertação – termo caro ao autor, central em diversos trabalhos (Pompeia, 2018Pompeia, C. (2018). Formação política do agronegócio [Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas]., 2020aPompeia, C. (2020a). “Agro é tudo”: simulações no aparato de legitimação do agronegócio. Horizontes Antropológicos, 26(56), 195-224. https://doi.org/10.1590/S0104-71832020000100009
https://doi.org/10.1590/S0104-7183202000...
, 2020bPompeia, C. (2020b). Concertação e poder: o agronegócio como fenômeno político no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 35(104): e3510410. https://doi.org/10.1590/3510410/2020
https://doi.org/10.1590/3510410/2020...
) –, com mais ou menos sucesso ao longo do tempo.

O livro busca também dar conta deste fenômeno: a representação política da agropecuária empresarial passa menos pelo sindicalismo patronal, e mais por nucleações – outro termo do autor – aptas a tratarem de questões transversais amplas, tais como: (i) assegurar a produtores e empresas um estoque fundiário em meio à acelerada corrida por terras, com o ‘boom das commodities’ dos anos 2000 e 2010; (ii) obter investimentos estatais em infraestrutura, sobretudo em energia e logística; (iii) obter do Estado mais subsídios e menos impostos; (iv) fortalecer o comércio internacional para exportação de produtos agropecuários, mais ou menos industrializados, dentre outros.

Assim, Pompeia demonstra como a concertação se faz em três níveis de interação: (i) entre as entidades associativas e corporações entre si, que, por vezes, integram nucleações; (ii) entre essas nucleações amplas; (iii) entre esses agentes e o Estado. Afinal, um dos principais objetivos dos coletivos políticos do ‘agronegócio’, uma vez formados, é influenciar agências estatais para produzir leis e políticas favoráveis a seus interesses, e garantir sua aplicação, o que Fraser (2014Fraser, N. (2014). Transnationalizing the public sphere: on the legitimacy and efficacy of public opinion in a Post-Westphalian World. In K. Nash (Ed.), Transnationalizing the public sphere (pp. 8-42). Polity. citado em Pompeia, 2020bPompeia, C. (2020b). Concertação e poder: o agronegócio como fenômeno político no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 35(104): e3510410. https://doi.org/10.1590/3510410/2020
https://doi.org/10.1590/3510410/2020...
) chama de “capacidade de tradução”, conceito que o autor mobiliza na tese e em artigos, mas não explicitamente no livro, embora mencione ali as inúmeras ‘cartas’ e programas que agentes do ‘agronegócio’ endereçam periodicamente a parlamentares e membros do Executivo federal, inclusive a candidatos à Presidência da República, indicando as pautas que esperam ver atendidas, e em relação às quais exercem lobbying, especialmente por meio da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) ou, simplesmente, bancada ruralista.

Ocorre que a aparição pública do coletivo exige, para se sustentar, um aparato de ‘justificação’, conceito de Bolstanski e Thévenot (2006 citados em Pompeia, 2021Pompeia, C. (2021). Formação política do agronegócio. Elefante., p. 119), a que o autor recorre para se referir aos meios de legitimação empregados pelos agentes do ‘agronegócio’ para conquistarem apoio na opinião pública e se habilitarem como interlocutores privilegiados do Estado. São eles: o argumento macroeconômico da produção de riquezas e a importante participação no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro; o argumento da geração de empregos e o da garantia da segurança alimentar da população. Todos eles estão sujeitos a controvérsias, que adversários trazem a público, (i) contestando a alegada participação no PIB, por serem aí incluídos setores que não necessariamente se reivindicam como pertencentes ao ‘agronegócio’; (ii) mostrando que a mão de obra empregada vem sendo reduzida pela mecanização progressiva e pelos diversos casos de trabalho escravo identificados nas cadeias produtivas, subestimados na contabilidade oficial; (iii) apontando que a maior parte de sua produção, voltada para o exterior, não abastece o mercado interno e, portanto, não garante a segurança alimentar dos brasileiros, função cumprida pela agricultura familiar, que deveria se beneficiar também da reforma agrária.

O autor não estuda propriamente cada uma dessas críticas ao ‘agronegócio’, mas as reações do ‘agronegócio’ a elas. De todas, a que mais afeta o referido ‘aparato de justificação’ é a de caráter ambientalista, em particular a que trata do desmatamento na Amazônia, pelo impacto no comércio internacional. As respostas a essa crítica têm sido desencontradas, especialmente entre os setores ‘depois da porteira’ e ‘dentro da porteira’. Os últimos são mais resistentes do que os primeiros a adotarem compromissos de proteção ambiental. Não por acaso, essa é uma das forças centrífugas que, segundo o autor, será determinante à viabilidade da concertação a longo prazo.

Voltando à metodologia, na pesquisa com documentos, destaca-se a consulta a: (i) acervos históricos de jornais estadunidenses – The New York Times, Wall Street Journal, Washington Post – e brasileiros – Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo –, quantificando, em séries anuais, o número de páginas em que aparecem os termos ‘agribusiness’, ‘agrobusiness’, ‘agronegócio’ ou ‘agronegócios’ (tabelas 1, 3, 4, 7, 11 do livro); (ii) documentos relativos à produção científica nacional e norte-americana, por meio das bases de dados Dedalus-USP e Hallis, respectivamente, quantificando, por ano, o número de artigos que mobilizam os referidos termos (tabelas 2, 5, 6, 13); (iii) discursos parlamentares na Câmara dos Deputados (tabelas 8 e 12). O autor não detalha as razões de escolher esses jornais ou essas bases de dados da produção acadêmica, muito embora possamos inferir que, para os primeiros, o critério subentendido seja o da amplitude da circulação nacional dos veículos. Como já mencionado, Pompeia também analisa documentos produzidos pelas nucleações do ‘agronegócio’, tais como cartas e programas.

Quanto às entrevistas, o autor buscou fazê-las com os principais atores encarregados da promoção da categoria na esfera pública, da produção do ‘aparato de justificação’, e, portanto, da formação do coletivo ‘agronegócio’, seja por suas atuações acadêmicas (por exemplo: Décio Zylbersztajn, Luís Antonio Pinazza, Ivan Wedekin), empresariais (tais como Alysson Paolinelli, Roberto Rodrigues) ou governamentais (em nível federal, sobretudo, como o ex-presidente do Banco Central, Paulo Yokota, e a ex-presidenta do Brasil, Dilma Rousseff). Em algumas trajetórias, mais de uma das atuações se combinam. Destaca-se a entrevista em 2017 feita com um dos criadores do conceito nos Estados Unidos, Ray Goldberg, que participou, como convidado, de eventos organizados por associações do ‘agronegócio’ no Brasil.

No livro, não há um retorno reflexivo sobre esse método. Ou seja, não se sabe como foi elaborado o rol de entrevistados, quais as facilidades e dificuldades de acesso a eles, como se deu a formulação de questões, dentre outros pontos. Isso pode ser resultado do processo de edição, para tornar a leitura mais direta, sem desvios ou paradas. Talvez por essa razão também o autor: (i) não prolongue a descrição em detalhe das tecnologias – apenas mencionadas – de arbitragem que visam produzir o consenso entre agentes e nucleações do ‘agronegócio’; (ii) nem desenvolva uma análise mais detida dos usos retóricos, incorporando outras/os autoras/es de uma antropologia pragmatista da linguagem, afora Boltanski e ThévenotBoltanski, L., & Thévenot, L. (2006). On justification: economies of worth. Princeton University Press., de forma combinada a (iii) uma reflexão mais robusta sobre produção de números e quantificação ativista, muito presentes no caso que ele pesquisa. Tudo isso pode se beneficiar do trabalho de campo e da observação direta, iniciados em 2019 junto ao IPA, onde, aliás, o ingresso de antropólogos não deve ser óbvio, o que torna ainda mais relevante a produção que se seguirá ao livro, notadamente quanto às tendências em aberto sobre a capacidade de o ‘agronegócio’ enfrentar suas forças centrífugas.

  • Rolemberg, I. (2022). Política do agronegócio em um estudo antropológico. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 17(1), e20210060. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2021-0060

REFERÊNCIAS

  • Boltanski, L., & Thévenot, L. (2006). On justification: economies of worth Princeton University Press.
  • Fraser, N. (2014). Transnationalizing the public sphere: on the legitimacy and efficacy of public opinion in a Post-Westphalian World. In K. Nash (Ed.), Transnationalizing the public sphere (pp. 8-42). Polity.
  • Pompeia, C. (2018). Formação política do agronegócio [Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas].
  • Pompeia, C. (2020a). “Agro é tudo”: simulações no aparato de legitimação do agronegócio. Horizontes Antropológicos, 26(56), 195-224. https://doi.org/10.1590/S0104-71832020000100009
    » https://doi.org/10.1590/S0104-71832020000100009
  • Pompeia, C. (2020b). Concertação e poder: o agronegócio como fenômeno político no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 35(104): e3510410. https://doi.org/10.1590/3510410/2020
    » https://doi.org/10.1590/3510410/2020
  • Pompeia, C. (2021). Formação política do agronegócio Elefante.
Responsabilidade editorial: Richard Pace

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2021
  • Aceito
    02 Out 2021
MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação, Av. Perimetral. 1901 - Terra Firme, 66077-830 - Belém - PA, Tel.: (55 91) 3075-6186 - Belém - PA - Brazil
E-mail: boletim.humanas@museu-goeldi.br