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Curas químicas para males galênicos: plantas e minerais notratamento de febres em João Curvo Semedo

Chemical cures for Galenic diseases: plants and minerals in the fever treatment in João Curvo Semedo

Resumo

Ao longo do século XVII, a tradição médica de matriz hipocrático-galênica sofreu crescentes críticas de correntes médicas emergentes, em especial a iatroquímica, em grande parte devedora da herança alquímica de Paracelso (1493-1541). Em Portugal, parte da historiografia tem apontado que a rivalidade observada em outros contextos europeus, como França e Inglaterra, expressou-se de forma mais branda, ou conciliatória. De forma geral, os médicos lusitanos tenderam a abordar ambas as escolas de pensamento como complementares, o que contribuiu para a disseminação dos remédios de origem química no reino, a despeito da hegemonia galênica no ensino médico e do arrepio das autoridades inquisitoriais. Por meio da análise de utilização de plantas e minerais no tratamento das febres, o artigo procura analisar como essas questões se refletiram na obra de João Curvo Semedo, um dos mais destacados médicos portugueses do período e ávido divulgador dos remédios químicos no reino. Ao longo da análise, percebe-se que, apesar de sua forte inclinação pela farmácia química, no âmbito da patologia, seus posicionamentos pareciam mais afeitos à tradição galênica, ponto no qual divergia de outros médicos também simpáticos aos princípios alquímicos de seu tempo.

Palavras-chave
Febres; João Curvo Semedo; Química; Galeno; Plantas

Abstract

Throughout the seventeenth century, the Hippocratic-Galenic medical tradition suffered growing criticism from emerging medical currents, especially iatrochemistry, largely influenced by the alchemical heritage of Paracelsus (1493-1541). In Portugal, part of the historiography has pointed out that the rivalry observed in other European contexts, such as France and England, was expressed in a more lenient or conciliatory way. Portuguese doctors generally tended to approach both schools of thought as complementary, which contributed to the dissemination of chemical medicines in the kingdom despite the Galenic hegemony in medical education and the persecution from inquisitorial authorities. By analyzing the use of plants and minerals in the treatment of fevers, the article seeks to show how these issues were reflected in the works of João Curvo Semedo, one of the most prominent Portuguese doctors of the period and an avid promoter of chemical remedies in the kingdom. Throughout the investigation, it became clear that, despite his strong position in the chemical pharmacy and pathology field, his positions seemed more accustomed to the Galenic tradition. At that point, he diverged from several doctors who were also sympathetic to the alchemical principles of his time.

Keywords
Fevers; João Curvo Semedo; Chemistry; Galen; Plants

Naõ sou taõ obstinado sequaz da Escola Hermetica, que me naõ preze muito de ser discípulo da Hippocratica: nem quando louvo os remedios Chymicos, deixo de conhecer se devem grandes aplausos aos Galenicos. Prova seja desta verdade a seguinte cura que fiz, valendo-me dos remedios, & conselhos de huma, & outra Escola

(Semedo, 1707Semedo, J. C. (1707). Observaçoens medicas doutrinaes. Antonio Pedrozo Galram., p. 20).

Neste trecho, já bem conhecido pela historiografia, João Curvo Semedo, um dos mais destacados médicos portugueses no início do século XVIII, justificava sua opção terapêutica para o caso de D. Cecilia Maria de Meneses. Segundo afirma, a paciente, “dotada de perfeita saúde” (Semedo, 1707Semedo, J. C. (1707). Observaçoens medicas doutrinaes. Antonio Pedrozo Galram., p. 20) na juventude, apresentou progressiva degradação de seu estado, ocasionada pelas diversas enfermidades de que sofreu e pelo hábito de “comer grande quantidade de barro” e beber água “sem medida” (Semedo, 1707Semedo, J. C. (1707). Observaçoens medicas doutrinaes. Antonio Pedrozo Galram., p. 21). O prestigioso médico foi chamado a tratar o caso após tentativas frustradas de outros profissionais de cura que, ao contrário, a teriam debilitado ainda mais pelo excesso de sangrias. Encontrou a paciente pálida, descorada, pele avermelhada na face, febre lenta1 1 Trata-se de um tipo de febre baixa, porém persistente e altamente debilitante ao organismo. Ao longo do século XVIII, passou a ser denominada febre lenta nervosa e, no XIX, sua definição aproximou-se da de febre tifoide (Hamlin, 2014, pp. 32, 319). , magreza, tosse e suores noturnos, entre outros sintomas. Após alguma hesitação, concluiu por diagnóstico fincado na tradição galênica: tratava-se de uma febre héctica ou podre2 2 Trataremos dessas categorias de febres mais adiante. . Contudo, para conduzir o tratamento, os remédios galênicos não seriam os mais indicados pois

naõ obraõ taõ eficazmente; porque como saõ feitos de ervas, raízes, folhas, flores, fruitas, ou sementes, que saõ cousas mais proporcionadas com o calor do nosso estomago, de tal sorte os póde este vencer, & transmutar, que quando sahem dle para aproveitar a outras partes, jà naõ levaõ a virtude, que dantes tinhaõ. . .

(Semedo, 1707Semedo, J. C. (1707). Observaçoens medicas doutrinaes. Antonio Pedrozo Galram., p. 25).

A solução seria utilizar remédios de natureza metálica, “. . . que alteraõ, & fazem os seus effeitos, & naõ saõ alterados, nem destruídos” (Semedo, 1707Semedo, J. C. (1707). Observaçoens medicas doutrinaes. Antonio Pedrozo Galram., p. 25).Preferiu utilizar sua água antifebril para o combate à febre podre. Já contra a héctica, ministrou o antihectico de Poterio, sobre o qual anunciou: “Os que estudaraõ a Chymica, sabem preparar tal remedio; mas aquelles, a quem não amanheceo ainda a luz, & o conhecimento desta Arte, saibão que eu tenho feito para os que quizerem usar dele. . . ” (Semedo, 1707Semedo, J. C. (1707). Observaçoens medicas doutrinaes. Antonio Pedrozo Galram., p. 24). Em outro caso, no entanto, as plantas poderiam surtir efeitos mais promissores, sobretudo se utilizadas em preparados químicos. Para purgar Maria Manoel, que padecia de dores no ventre e estômago, acompanhadas de febre, tremores convulsivos e “afflicções no coração”, utilizou três onças de água de erva cidreira para desatar meia oitava de vitriolo branco, resultando no que dizia ser remédio “fiel & seguro” (Semedo, 1707Semedo, J. C. (1707). Observaçoens medicas doutrinaes. Antonio Pedrozo Galram., p. 97). Da mesma forma, para tratar as inflamações do trato respiratório de Maria da Silva, moradora dos Poiais de São Bento, recomendou macerar e cozer em fogo brando, numa panela de barro, uma onça de cascas de raiz de bardana, com três quartilhos de água da fonte. Ao líquido avermelhado resultante do processo deveria ser ajuntada uma “mão cheia de flores de papoulas”. Após coar a água “com forte expressão”, recomendava diluir duas oitavas de coral preparado, uma onça de lambedor de flores de papoulas vermelhas e “duas oitavas do meu Benzoártico” (Semedo, 1707Semedo, J. C. (1707). Observaçoens medicas doutrinaes. Antonio Pedrozo Galram., p. 104).A receita consistiria num dos renomados remédios de segredo de Semedo, cuja receita agora era revelada ‘em serviço do bem comum’.

A naturalidade com que Semedo navega entre diagnósticos galênicos, preparados à base de ervas, remédios metálicos, sais e águas, quase não nos deixa perceber que, ao fazê-lo, o médico transpassava universos epistemológicos distintos, que disputavam a primazia da prática médica entre os séculos XVII e a primeira metade do XVIII. De fato, sua postura eclética era partilhada por outros médicos portugueses, de forma que os intensos debates que opuseram a tradição médica galênica à iatroquímica, em lugares como a França e a Inglaterra, tenderam a ter feições bem mais conciliadoras em Portugal (Dias, 2007Dias, J. P. S. (2007). Droguistas, boticários e segredistas. Ciência e sociedade na produção de Medicamentos na Lisboa de Setecentos. Fundação Calouste Gulbenkian., 2010Dias, J. P. S. (2010). Até que as Luzes os separem: Hipócrates e Galeno na literatura médico-farmacêutica portuguesa dos séculos XVII & XVIII. In I. Ornellas e Castro & V. Anastácio (Coords.), Revisitar os saberes: Referências clássicas na cultura portuguesa do Renascimento à época moderna (pp.77-88). Universidade Nova de Lisboa.). A proposta deste artigo é mostrar como esses universos se conjugaram especificamente na obra de Semedo no que se refere ao tratamento dispensado às febres, uma questão recorrente nos debates médicos desde a antiguidade, e que apesar de serem enfermidades de presença quase incontornável no cotidiano dos indivíduos do século XVII, ainda foi pouco abordada pela historiografia da medicina luso-brasileira. O percurso se dará em quatro partes. Na primeira, faremos uma incursão pela medicina em Portugal entre os séculos XVII e início do XVIII. O objetivo é mostrar o ambiente de ideias médicas que norteava as práticas curativas no reino e refletir sobre suas particularidades na apropriação da medicina química. Na segunda, abordaremos, em linhas gerais, os princípios da tradição alquímica na Europa do Seiscentos e como os médicos seguidores de Paracelso se contrapuseram à tradição galênica no período, para, em seguida, explorar algumas das particularidades do caso português. Na terceira parte, nos concentraremos mais especificamente nas concepções vigentes sobre as febres na época de Semedo, especialmente entre os praticantes partidários da farmácia química. Por fim, na quarta e última parte, analisaremos as práticas terapêuticas do célebre médico e a de alguns de seus contemporâneos, dando ênfase às hierarquias entre vegetais e minerais na aplicação de febrífugos.

MEDICINA PORTUGUESA NOS TEMPOS DE SEMEDO

Como se sabe, no século XVII, a matriz de pensamento da medicina acadêmica portuguesa era majoritariamente hipocrático-galênica. Embora, outras correntes de pensamento tenham emergido em concorrência ao galenismo ao longo do século, a estrutura pedagógica do reino, sob forte influência da Companhia de Jesus, garantiu a hegemonia dos conhecimentos de base aristotélica no ensino universitário (Bellini, 2001Bellini, L. (2001). Medicina e saber erudito em Portugal no Renascimento. Estudos Íbero-Americanos, 27(1), 43-74. https://doi.org/10.15448/1980-864X.2001.1.24511
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; Lemos, 1991Lemos, M. (1991). História da Medicina em Portugal (Vol. 2). Dom Quixote.). No entanto, é importante mencionar, tal hegemonia se deu menos por um suposto isolamento do reino em relação às inovações filosóficas que ocorriam no além-Pirineus do que pela convicção dos inacianos de que a filosofia aristotélica era a que melhor se adequava à investigação dos fenômenos naturais segundo os princípios teológicos prezados pela Companhia. Na Universidade de Coimbra, a tradição pedagógica latina regida pelos estatutos de 1612 previa uma formação médica calcada no estudo das autoridades antigas, de maneira que a leitura das obras de Galeno, assim como do próprio “Corpus hipocrático”, associava-se às obras de comentadores como Avicena e Dioscórides como parte fundamental da grade curricular (Lemos, 1991Lemos, M. (1991). História da Medicina em Portugal (Vol. 2). Dom Quixote., pp. 24-25; J. Abreu, 2011Abreu, J. L. N. (2011). Nos domínios do corpo: O saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Fiocruz.).

Fora do estrito ambiente universitário, contudo, o universo de ideias e práticas médicas era bem mais amplo. Em primeiro lugar, ao deixar as cadeiras de Coimbra para iniciar a prática clínica, os jovens médicos deparavam-se com uma população pouco afeita à medicina que praticavam. A assistência médica era custosa e de acesso reduzido para a maior parte dos lusitanos, sobretudo aqueles das aldeias distantes de Lisboa. Na prática, os cuidados médicos desses indivíduos ficavam a cargo de uma miríade de praticantes das artes de cura cuja prática estava fortemente fincada nas tradições populares. Desse modo, barbeiros, feiticeiros, sangradores, curandeiros, entre outros, que gozavam de uma capilaridade bem mais alargada, sobretudo entre os extratos mais baixos da população, curavam a partir de tradições de conhecimentos alternativas, representando, aos olhos dos acadêmicos, verdadeiras ameaças à sua hegemonia no mercado da cura. Apesar de seus esforços junto às instâncias de poder, esse cenário pouco mudou entre os séculos XVI e XIX (L. Abreu, 2010Abreu, L. (2010). A organização e regulação das profissões médicas no Portugal Moderno. In A. Cardoso, A. B. Oliveira & M. S. Marques (Orgs.), Arte médica e imagem do corpo: De Hipócrates ao final do século XVIII (pp. 97-122). Biblioteca Nacional de Portugal.; Walker, 2013Walker, T. (2013). Médicos, medicina popular e inquisição: A repressão das curas mágicas em Portugal durante o iluminismo. Fiocruz.).

Também não se deve esquecer da marcante presença dos saberes astrológicos nesse complexo mosaico curativo. Segundo a tradição aristotélica, os astros eram entendidos como entidades perfeitas e eternas cuja natureza contrastava com a vida perecível e fugaz dos homens da terra firme. Seu movimento e suas qualidades teriam papel decisivo sobre a vida desses, ajudando a definir temperamentos, destinos e também a saúde (Thomas, 1991Thomas, K. (1991). Religião e o declínio da magia: Crenças populares na Inglaterra. Séculos XVI e XVII. Cia. das Letras.). Essas relações, apesar de complexas, eram previsíveis para aqueles que se dedicavam a compreender os meandros do sistema astronômico ptolomaico, dando origem a uma variada cultura astrológica oral e escrita. Amalgamados com a medicina hipocrática, os saberes astronômicos atribuíam aos astros as mesmas qualidades humorais encontradas nos homens, indicando o tipo de influência que seu movimento exerceria sobre os corpos humanos, ajudando a prevenir a tratar doenças3 3 Na tradição hipocrática, os corpos eram constituídos por quatro humores (bile negra, bile amarela, fleuma e sangue) que, por sua vez, derivavam da interação entre quatro qualidades fundamentais (quente, úmido, frio e seco). Na tradição astrológica ptolomaica, essas qualidades foram atribuídas aos planetas, de forma que Júpiter, por exemplo, exercia um influxo quente e úmido sobre os homens, o que, em excesso, poderia causar problemas pulmonares (Carolino, 2002, p. 27). . Em Portugal, como em outras partes da Europa, os saberes astronômicos tiveram grande apelo popular, como denota o sucesso editorial dos almanaques astrológicos (Carolino, 2002Carolino, L. M. (2002). A escrita celeste: Almanaques astrológicos em Portugal nos Séculos XVII e XVIII. Access.). Contudo, também constituiu parte importante da epistemologia médica acadêmica lusitana até a primeira metade do século XVIII, como veremos mais à frente.

No plano terapêutico, a pluralidade de ideias e práticas também não era menor. Para além do alargado uso das sangrias, utilizadas tanto por acadêmicos quanto por práticos tradicionais (Santos, 2005Santos, G. S. (2005). A arte de sangrar na Lisboa do antigo regime. Tempo, 10(19), 43-60. https://doi.org/10.1590/S1413-77042005000200004
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), o repertório curativo da medicina portuguesa era composto por grande variedade de produtos de origem animal, mineral, e acima de tudo, vegetal. As plantas eram parte fundamental da farmacologia de matriz hipocrático-galênica tanto quanto dos saberes curativos tradicionais. No reino, os conhecimentos sobre suas propriedades circulavam por meio da tradição oral, pelas trocas culturais e pela observação e prática de curadores de toda sorte. A exploração colonial, contudo, desempenhou papel decisivo no processo. A partir do século XV, a rica flora medicinal dos domínios ultramarinos portugueses tornou-se objeto do escrutínio de viajantes, boticários, naturalistas, médicos e membros da administração colonial que se esforçaram para nomeá-las, catalogá-las e introduzi-las em práticas curativas. Como parte importante da historiografia tem registrado, tais esforços resultaram na constituição de longas e complexas redes de trocas de conhecimentos sobre a flora colonial que movimentou redes mercantis, academias científicas, viagens exploratórias e intensa produção literária responsável pela introdução de plantas asiáticas, sul-americanas e africanas ao repertório curativo não apenas lusitano, mas europeu como um todo (Almeida, 2017Almeida, D. S. (2017). O trato das plantas: Os intermediários da cura e do comércio de drogas na América portuguesa, 1750-1808 [Tese de doutorado, Fiocruz].; Edler, 2013Edler, F. C. (2013). Plantas nativas do Brasil nas farmacopeias portuguesas e europeias: Séculos XVII-XVIII. In L. Kury (Org.), Usos e circulação de plantas no Brasil: Séculos XVI-XIX (pp. 96-137). Andrea Jakobsson.; Gesteira, 2008Gesteira, H. (2008). As virtudes das plantas: Circulação de ideias e práticas médicas na América, séculos XVI-XVIII. In M. Almeida & M. R. Vergara (Eds.), Ciência, história e historiografia (pp. 377-388). Via Lettera.; Schiebinger, 2017Schiebinger, L. (2017). Secret cures of slaves: People, plants, and medicine in the eighteenth century Atlantic world. Stanford University Press.; Cagle, 2018Cagle, H. (2018). Assembling the tropics: Science and medicine in Portugal’s Empire, 1450-1700. Cambridge University Press.). No final do século XVII, esses conhecimentos passaram a fazer parte de farmacopeias, nas quais as plantas medicinais eram dispostas por suas propriedades morfológicas, origem e seus empregos medicinais. Se inicialmente sua produção dependeu de iniciativas particulares, seu enorme sucesso fez com que fossem progressivamente adotadas pelo poder régio, embora a primeira farmacopeia oficial só tenha sido publicada em 1794. Tais publicações tornaram-se referência fundamental para droguistas e boticários e ajudaram a padronizar práticas de produção de medicamentos, além de ampliar o acervo curativo lusitano. Mesmo que de maneira por vezes velada, incluíam saberes médicos adquiridos com nativos da América Portuguesa, povos africanos e asiáticos (Marques, 1999Marques, V. R. B. (1999). Natureza em boiões: Medicinas e boticários no Brasil setecentista. Unicamp., pp. 60-82).

Por outro lado, é importante perceber que as farmacopeias não eram apenas catálogos de plantas e remédios. Sua estruturação e as receitas curativas que continham eram também uma indicação do ambiente de ideias médicas que circulavam nos diversos ambientes da medicina lusitana e colonial. Nesse sentido, para além das tradições indígenas e africanas que mencionamos, um dos aspectos mais evidentes é a presença de remédios químicos (Dias, 2007Dias, J. P. S. (2007). Droguistas, boticários e segredistas. Ciência e sociedade na produção de Medicamentos na Lisboa de Setecentos. Fundação Calouste Gulbenkian.; Gomes, 2012Gomes, L. G. (2012). A Farmacopeia Tubalense de 1735 e a construção de um modelo para a farmácia portuguesa setecentista [Dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro].; Silva Filho, 2017Silva Filho, W. B. (2017). Entre as mezinhas lusitanas e plantas brasileiras: Iatroquímica, galenismo e flora medicinal da América portuguesa do século XVIII nas farmacopeias do frei João de Jesus Maria [Tese de doutorado, Universidade de Lisboa].). Estes dividiam espaço com a farmácia galênica em algumas das publicações que mais circularam no Império, principalmente na primeira metade do século XVIII. Na “Farmacopeia lusitana reformada” (Santo António, 1711Santo António, D. C. (1711). Farmacopéia Lusitana reformada. Método prático de preparar os medicamentos na forma galênica e química. Mosteiro de São Vicente de Fora.), D. Caetano apresentava receitas de preparados químicos, em meio a plantas de origem brasílica, como a salsaparrilha4 4 Trata-se aqui da segunda edição da obra, visto que a primeira, publicada em 1704, abordava apenas os medicamentos galênicos. (Marques, 1999Marques, V. R. B. (1999). Natureza em boiões: Medicinas e boticários no Brasil setecentista. Unicamp.). O mesmo acontecia na “Pharmacopea Ulyssiponense, galenica, e chymica” (1716), do droguista francês Jean Vigier; outra publicação importante do período também foi a “Pharmacopea tubalense chimico-galenica, parte primeira” (1735), de Manuel Rodrigues Coelho. Como já apontamos no início, tais publicações indicavam a convivência relativamente pacífica da tradição galênica com a tradição alquímica na medicina lusitana.

Nesse sentido, João Curvo Semedo foi personagem de destaque. Médico de prestígio formado em Coimbra por volta de 1661, cavaleiro da Ordem de Cristo e médico da Real Câmara (Lourenço, 2016Lourenço, T. S. (2016). O médico entre a tradição e a inovação: João Curvo Semedo [Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense].), Semedo foi um dos principais divulgadores da farmácia química, sempre conjugada com a tradição hipocrático-galênica nas suas principais obras, como a “Poliantéia medicinal” (1716) e as “Observaçoens medicas doutrinaes” (1707), ambas voltadas para instrução de praticantes das artes de cura segundo os preceitos da sua longa experiência clínica no reino. O célebre médico também se notabilizou pelos seus remédios de segredo, sempre mencionados em suas obras como solução milagrosa para cura de casos graves em que o paciente já se encontrava desacreditado por outros médicos.

Os remédios de segredo eram aspecto não menos importante do universo curativo português. Parte de seu sucesso entre a população devia-se à sua forte conexão com a cultura popular, a herança pagã e até mesmo com o catolicismo (Marques, 1999Marques, V. R. B. (1999). Natureza em boiões: Medicinas e boticários no Brasil setecentista. Unicamp., p. 262). Em geral, tinham caráter empírico e faziam referências a propriedades sobrenaturais de seus ingredientes, capazes de operar curas milagrosas. Assim como os remédios galênicos, também tiveram seu repertório e disseminação alargados pelos fluxos de circulação coloniais, embora o sigilo de suas formulações tenha se tornado objeto da crítica de reformadores da medicina lusitana ainda na primeira metade do Setecentos (Edler, 2013Edler, F. C. (2013). Plantas nativas do Brasil nas farmacopeias portuguesas e europeias: Séculos XVII-XVIII. In L. Kury (Org.), Usos e circulação de plantas no Brasil: Séculos XVI-XIX (pp. 96-137). Andrea Jakobsson.).

Como é possível perceber, o ambiente de ideias e práticas da medicina lusitana era muito mais amplo e rico do que se pode depreender da leitura dos programas do curso médico de Coimbra. Na prática, a matriz de pensamento hipocrático-galênica fundia-se com concepções variadas a respeito do corpo e da doença que permeavam o ambiente cultural do reino e dos domínios ultramarinos (J. Abreu, 2011Abreu, J. L. N. (2011). Nos domínios do corpo: O saber médico luso-brasileiro no século XVIII. Fiocruz.). Sem dúvida, tal característica estava longe de ser exclusividade da terra de Camões e tendeu a se repetir também em outros contextos europeus. No entanto, cabe-nos perguntar quais as especificidades do caso lusitano. Assim, na próxima seção, trataremos das relações entre a tradição hipocrático-galênica, sobretudo as contribuições galênicas, e a escola química, devedora da tradição hermética paracelsista, e as possíveis razões apontadas pela historiografia para explicar sua convivência relativamente pacífica em Portugal.

QUÍMICA E GALENISMO: MAGIA, CORPO, DOENÇA E MEDICINA

Nas últimas décadas, a renovação de ares na historiografia das ciências tendeu a reabilitar correntes de pensamento tradicionalmente consideradas pseudocientíficas pelas tradicionais abordagens positivistas. Nesse processo, a suposta existência de uma racionalidade científica, baseada em um método inequívoco capaz de desvendar a verdade sobre os fenômenos naturais e, assim, promover o progresso humano, tornou-se alvo de severas críticas. No que diz respeito especificamente ao intenso período de renovação da filosofia natural na Europa do século XVII, as novas abordagens passaram a analisar sob novo olhar a pluralidade de práticas, critérios de validação de conhecimento e métodos em disputa, bem como suas especificidades nos mais diversos contextos europeus (Shapin, 1996Shapin, S. (1996). The scientific revolution. University of Chicago Press.; Rossi, 2001Rossi, P. (2001). O nascimento da ciência moderna na Europa. Edusc.; Henry, 1998Henry, J. (1998). A Revolução científica e as origens da ciência moderna. Jorge Zahar.).

Um aspecto fundamental resultante desses trabalhos foi o olhar renovado para as continuidades da chamada ‘ciência moderna’ em relação às tradições de pensamento medieval e antiga. Supostamente, tais tradições não poderiam adentrar pela porta da frente das narrativas do triunfo da ciência moderna por, supostamente, não atenderem às exigências da racionalidade matemático-indutiva, sua característica definidora. Contudo, os novos ares historiográficos sopraram no sentido de revelar as contribuições significativas dessas tradições para o processo de renovação da filosofia natural no século XVII. Por essa perspectiva, nomes como Newton, Bacon e Boyle não só aparecem como defensores de programas de pesquisa radicalmente distintos e rivais – o que desafiava a suposta unicidade do ‘método científico’ –, como também devedores da tradição mágico-astrológica em algumas de suas formulações mais originais (Shapin, 1996Shapin, S. (1996). The scientific revolution. University of Chicago Press.; Rossi, 1992Rossi, P. (1992). A ciência e a filosofia dos modernos. Unesp.).

Os trabalhos a respeito das tradições alquímicas também tenderam pelo mesmo viés. Não é raro que, entre abordagens tradicionais, o marco inicial da história da química seja colocado no século XVIII, a partir das formulações de Lavoisier, que deram os contornos gerais da química de nossos dias. Contudo, os princípios alquímicos já gozavam de ampla disseminação entre filósofos europeus há longo tempo, especialmente a partir das contribuições de Paracelso (1493-1541) (Filgueiras, 1999Filgueiras, C. A. L. (1999). A influência da química nos saberes médicos acadêmicos e práticos do século XVIII em Portugal e no Brasil. Química Nova, 22(4), 1-24. https://doi.org/10.1590/S0100-40421999000400022
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). No Renascimento, a alquimia paracelsista esteve entre as correntes de pensamento mais críticas ao aristotelismo vigente em grande parte das universidades da Europa. Desconfiava da lógica aristotélica como caminho para chegar à verdade, além de ver pouco valor na teoria humoral da tradição galênica. Em contraposição, buscava seus enunciados sobre a natureza numa interpretação religiosa do cosmos associada à observação e à experimentação dos processos químicos. Deus seria o grande alquimista que criou o céu e a Terra a partir da ‘prima matéria’, composta de sal, mercúrio e enxofre, um modelo alternativo ao aristotélico, que preconizava a terra, o fogo, a água e o ar como os elementos básicos (Debus, 1985Debus, A. G. (1985). El hombre y la naturaleza en el renacimiento. Fonde de Cultura Económica., p. 37).

Para além das contribuições da herança alquímica para o processo de renovação da filosofia natural no século XVII – especialmente no que diz respeito às forças ocultas da matéria e ao indutivismo como método – cabe observar que a medicina foi um de seus ambientes mais profícuos. Ao longo do século XVII, as concepções alquímicas derivadas da herança paracelsista foram apropriadas pelas correntes médicas iatroquímicas que ecoaram parte de suas críticas à tradição galênica. Embora alguns de seus adeptos tenham procurado se distanciar dos elementos herméticos do pensamento de Paracelso, considerados demasiadamente especulativos, como a magia e a busca por quintessências, o caráter indutivo das práticas de laboratório e a observação meticulosa das reações químicas mantiveram-se como tônica (Debus, 1985Debus, A. G. (1985). El hombre y la naturaleza en el renacimiento. Fonde de Cultura Económica., p. 46).

Contudo, sua introdução no ambiente médico europeu esteve longe de ser um processo pacífico. A despeito de algumas posturas conciliadoras, ao longo do século XVII, impôs-se uma crescente polarização entre os adeptos da química e do galenismo na Europa. A rivalidade se dava por conta de divergências conceituais significativas entre as duas matrizes de pensamento. No plano da patologia, os alquímicos enxergavam o corpo humano à semelhança de um laboratório, no qual o adoecimento teria lugar na falha deste em destilar processos químicos maléficos ao organismo, geralmente causados por fatores externos (ar, alimentos ou bebidas) e que atingiriam órgãos específicos, causando a debilidade das forças vitais (Debus, 1985Debus, A. G. (1985). El hombre y la naturaleza en el renacimiento. Fonde de Cultura Económica., p. 41). Na tradição galênica, por sua vez, a doença era geralmente interpretada como um desequilíbrio entre os elementos constituintes do corpo, os quatro humores (bile amarela, bile negra, fleuma e sangue). Tais divergências fizeram da terapêutica um campo de combate privilegiado.

A tradição hipocrático-galênica atribuía ao praticante da arte médica o papel de assistente das forças vitais no processo de restabelecimento do equilíbrio humoral. A terapêutica, altamente individualizada, se dava por meio da dietética e de medicamentos, geralmente preparados a partir de ervas, evitando o uso de métodos invasivos sempre que possível. Mesmo as sangrias, de largo uso na Europa e comumente relacionadas à tradição antiga, eram, na verdade, desaconselhadas em boa parte dos casos, devido à debilidade excessiva que poderiam causar ao paciente (Nutton, 2013Nutton, V. (2013). Ancient medicine (2 ed.). Routledge.). A farmácia estruturava-se pela classificação das substâncias a partir dos efeitos que geravam no organismo, considerando suas qualidades e intensidade. Embora fizesse amplo uso dos remédios compostos (feitos a partir de mais de uma substância), sua teorização refere-se mais aos remédios simples, marcadamente pelo alargado uso de plantas (Vogt, 2008Vogt, S. (2008). Drugs and pharmacology. In R. J. Hankinson (Ed.), The Cambridge companion to Galen (pp. 304-322). Cambridge University Press., pp. 309-311). A experiência prática tinha peso preponderante, pois o médico ideal seria aquele capaz de interpretar a intensidade e a natureza do desequilíbrio observado no paciente e mobilizar o arsenal terapêutico na medida correta, sem interferir mais do que o estritamente necessário no organismo.

A tradição alquímica, por sua vez, voltava sua atenção para a interação de substâncias e seus efeitos sobre a fisiologia humana. Da mesma forma que o sal e o enxofre poderiam se combinar na atmosfera gerando trovões e relâmpagos, também poderiam reagir no corpo humano dando origem a processos patológicos (Debus, 1985Debus, A. G. (1985). El hombre y la naturaleza en el renacimiento. Fonde de Cultura Económica., p. 42).Por meio dessas analogias, procuravam interpretar os sinais do que compreendiam como processos destilatórios próprios ao organismo. Análises da urina, do ar, dos alimentos e bebidas tornaram-se parte fundamental da diagnose iatroquímica. Na farmácia, as experimentações com plantas e minerais deram origem a novas práticas na produção de medicamentos. Reivindicava-se a primazia daqueles preparados a partir do domínio de técnicas específicas, como a destilação e a fermentação, além da busca pelo isolamento de princípios ativos como forma de potencializar o efeito curativo. O potencial farmacológico dos metais e minerais também foi outro ponto de destaque. A produção de águas curativas e preparados salinos e ácidos tiveram uso cada vez mais frequente. Além de suas supostas propriedades curativas superiores, também se atribuía uma maior estabilidade de seus efeitos em relação aos vegetais, mais frágeis e perecíveis (Pita, 1996Pita, J. R. P. (1996). Farmácia, medicina e saúde pública em Portugal (1772-1836). Minerva., p. 17).

Nesse sentido, a farmácia galênica era acusada de estar defasada e ser incapaz de curar as novas enfermidades que acometiam as populações no século XVII, com destaque para as doenças venéreas (Debus, 1985Debus, A. G. (1985). El hombre y la naturaleza en el renacimiento. Fonde de Cultura Económica., p. 45).Os galenistas, por sua vez, acusavam as ligações dos iatroquímicos com a tradição hermética e o neoplatonismo (Debus, 1985Debus, A. G. (1985). El hombre y la naturaleza en el renacimiento. Fonde de Cultura Económica., p. 46), e contestavam o uso de medicamentos de segredo, já amplamente difundidos, por esses não respeitarem as especificidades do temperamento e hábitos dos pacientes. Outro ponto decisivo foi a associação de parte dos paracelsistas ao protestantismo, o que, no contexto da reforma católica, fez com que seus livros fossem indexados pela Inquisição espanhola e portuguesa (Debus, 1998Debus, A. G. (1998). Chemists, physicians, and changing perspectives on the Scientific Revolution. Isis, 89(1), 66-81. https://doi.org/10.1086/383922
https://doi.org/10.1086/383922...
, p. 77; Edler, 2013Edler, F. C. (2013). Plantas nativas do Brasil nas farmacopeias portuguesas e europeias: Séculos XVII-XVIII. In L. Kury (Org.), Usos e circulação de plantas no Brasil: Séculos XVI-XIX (pp. 96-137). Andrea Jakobsson., p. 114). No entanto, apesar das proibições, as receitas de preparados medicamentosos de origem química disseminaram-se de forma progressiva na Península Ibérica. Em Portugal, circulavam obras dos principais alquimistas europeus em conjunto com obras de seus congêneres lusitanos. De acordo com Edler (2013, p. 114)Edler, F. C. (2013). Plantas nativas do Brasil nas farmacopeias portuguesas e europeias: Séculos XVII-XVIII. In L. Kury (Org.), Usos e circulação de plantas no Brasil: Séculos XVI-XIX (pp. 96-137). Andrea Jakobsson. e Dias (2010, p. 79)Dias, J. P. S. (2010). Até que as Luzes os separem: Hipócrates e Galeno na literatura médico-farmacêutica portuguesa dos séculos XVII & XVIII. In I. Ornellas e Castro & V. Anastácio (Coords.), Revisitar os saberes: Referências clássicas na cultura portuguesa do Renascimento à época moderna (pp.77-88). Universidade Nova de Lisboa., publicações como ““De mendendis corporis malis per manualem oprerationem” (1605)Chamiço, J. B. (1605). De medendis corporis malis per manualem operationem: Tomus primus. Typis Emmanuelis de Araujo., de João Bravo Chamisso, e “Tratado dos óleos de enxofre, vitriolo, philosophorum, alecrim, salve e de água ardente” (1648), de “Duarte Madeira ArraesArraes, D. M. (1648). Tratado dos óleos de enxofre, vitriolo, philosophorum, alecrim, salve e de água ardente [manuscrito, m1652]. Universidade de Coimbra. https://digitalis-dsp.uc.pt/bg3/UCBG-Ms-193/UCBG-Ms-193_item1/P13.html
https://digitalis-dsp.uc.pt/bg3/UCBG-Ms-...
, reivindicavam a alquimia como parte da medicina e divulgavam receitas de remédios químicos.

No início do século XVIII, como já apontamos, os escritos de outros autores, como João Vigier e João Curvo Semedo, ajudaram a estabelecer de forma mais duradoura a tradição química no repertório curativo tanto do reino quanto dos domínios ultramarinos. Contudo, os acalorados debates entre galênicos e alquímicos/iatroquímicos não parecem ter tido a mesma intensidade. Como mostrou José Pedro Sousa Dias, predominou entre os médicos lusitanos uma atitude de complementaridade entre as duas tradições de pensamento. Nos manuais de medicina, não era raro que os autores se esforçassem para mostrar domínio tanto da farmácia galênica quanto da química. Mesmo obras já publicadas acabavam por incorporar um número maior de fórmulas químicas em edições subsequentes, como foi o caso da “Farmacopéia Lusitana”, do cônego “D. Caetano de Santo AntónioSanto António, D. C. (1704). Farmacopéia Lusitana (1 ed.).Coimbra. João Antunes., cuja primeira edição, de 1704, era essencialmente galênica, enquanto a segunda, publicada em 1711, incluía o “Método prático de compor os medicamentos na forma galénica e química” (Dias, 2010Dias, J. P. S. (2010). Até que as Luzes os separem: Hipócrates e Galeno na literatura médico-farmacêutica portuguesa dos séculos XVII & XVIII. In I. Ornellas e Castro & V. Anastácio (Coords.), Revisitar os saberes: Referências clássicas na cultura portuguesa do Renascimento à época moderna (pp.77-88). Universidade Nova de Lisboa., p. 81).

Para além do arsenal terapêutico dos médicos lusitanos, a tensão entre química e galenismo também se refletia na patologia. Como veremos adiante, o uso de remédios químicos e galênicos, embora disseminado entre vários médicos lusitanos na virada do século XVII para o XVIII, não subentendia que tivessem a mesma concepção sobre a natureza e a fisiologia das febres.

ENTRE FEBRES GALÊNICAS E QUÍMICAS: NATUREZA E CLASSIFICAÇÃO DAS MANIFESTAÇÕES FEBRIS

As febres foram enfermidades de presença recorrente no cotidiano de grande parte da população portuguesa até o final do século XIX. Seu desaparecimento se deve menos à diminuição de sua incidência do que às transformações conceituais pelas quais a medicina europeia passou ao longo do Oitocentos (Hamlin, 2014Hamlin, C. (2014). More than hot: A short history of fever. Johns Hopkins.). Isso se deve ao fato de que as febres se definiam de forma bastante alternativa ao modelo que conhecemos atualmente. De forma geral, eram tratadas como enfermidades em si, e não apenas como sintoma. O diagnóstico, por sua vez, abarcava uma grande variedade de sintomas, que eram interpretados pelos praticantes da arte médica a partir de uma análise individualizada do paciente. Levavam em conta seus hábitos alimentares, origem, temperamento, sexo, idade, qualidade dos ares domésticos, entre outros aspectos. A partir desses elementos, o diagnóstico de febre, assim como da maior parte das doenças tratadas pela medicina na época, era relacional. A temperatura do corpo, por exemplo, aspecto definidor da febre em nossos dias, poderia variar entre os indivíduos, de forma que o calor considerado febril em um paciente poderia não ser considerado nocivo em outro.

Uma diagnose tão subjetiva gerou uma vertiginosa quantidade de variedades febris que, a despeito dos variados esforços de classificação, geraram pouco consenso entre os médicos (Bynum & Nutton, 1981Bynum, W., & Nutton, V. (1981). Theories of fever from Antiquity to the Enlightenment [Suplemento, No. 1]. Medical History, 21.). Isso não impediu, no entanto, que o tema fosse intensamente visitado. A quase onipresença das febres nos manuais médicos entre os séculos XVII e XVIII é reflexo de sua presença generalizada na vida social europeia.

Em Portugal, algumas das obras contemporâneas às publicações de João Curvo Semedo, e que tiveram considerável circulação no reino, dedicaram várias de suas páginas ao tema. A reedição de 1753 de “Luz da medicina pratica, racional e methodica, guia de enfermeiros, directorio de principiantes” (1664), de “Francisco Morato RomaRoma, F. M. (1664). Luz da medicina pratica, racional e methodica, guia de enfermeiros, directorio de principiantes. Henrique Valente de Oliveira., médico da câmara real e do Santo Ofício, veio acrescentada de um “Tratado das febres simples, podres, pestilentes e malignas”, de autoria de Cabreira (1726)Cabreira, G. R. (1726). Tratado das febres simples, podres, pestilentes e malignas. In F. M. Roma, Luz da medicina pratica, racional e methodica (pp. 318-356). Francisco de Oliveira.. Dividido em três partes, dedicava a primeira às febres simples; a segunda às podres e a terceira às febres pestilentas e malignas. Cada uma delas desdobrava-se em sub-variedades febris: hécticas, malignas, contínuas, intermitentes, dentre outras: “Como a febre seja a doença principal, e mais universal, que padece o corpo humano, tratarei della, no que toca ao Methodo, e Practica racional que he o que serve para os pobres enfermos” (Cabreira, 1753Cabreira, G. R. (1753). Luz da medicina pratica, racional e methodica, guia de enfermeyros. Directorio de principiantes, e summario de remedios para poder acodir, e remediar os achaques do corpo humano, começando do mais alto da Cabeça, e descendo athé o mais baixo das plantas dos pés. Officina de Francisco de Oliveyra., p. 318). Já na “Medicina lusitana e soccorro delfhico: a os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males” (1710aHenriquez, F. F. (1710a). Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males. Miguel Diaz.), de Francisco da Fonseca Henriquez, médico de D. João V, as febres são assunto do terceiro livro:

A febre hé doença com que perece a mayor parte da gente, naõ perdoando a fua tirania nem á ternura dos meninos, nem á debilidade dos velhos, nem á robuftes dos mancebos, porque em toda a idade, em toda a natureza febricitam os viventes, e chegam a perder a vida entre as encendidas eftuaçoens de huma febre ardente, e entre os perniciofos fympthomas de hum fynocho podre, e de huma exicial maligna; e por isto a credula ignorancia dos Romanos antigos teve a febre por Deofa, á qual erigiraõ templos, e confagraraõ adoraçoens, a fim de que venerada com estes cultos, naõ offendeffe a gente de Roma com os feus danos

(Henriquez, 1710aHenriquez, F. F. (1710a). Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males. Miguel Diaz., p. 730).

Um dos tratados químicos que mais circularam no Portugal do início do século XVIII, o “Thesouro apolineo, galenico, chimico, chirurgico, pharmacceutico, ou compendio de remedios para ricos e pobres” (1714), do boticário João Vigier, também confirmava a alargada presença das febres e as dificuldades para tratá-las de forma efetiva:

Assim como naõ ha doença mais commua do que as febres, tambem naõ ha nenhuma para quem se tenhaõ inventado tantos remedios; mas saõ taõ pouco seguros, que sobre elles se naõ pode edificar um prognostico certo. Há remedios, que obraõ em certas pessoas, & naõ obraõ em outras, tal reputação terà hum febrífugo este anno, que o que vem jà se naõ faça caso delle: porque naõ he a mesma febre, que corria, ou naõ he a mesma disposição

(Vigier, 1714Vigier, J. (1714). Thesouro apolineo, galenico, chimico, chirurgico, pharmacceutico, ou compendio de remedios para ricos e póbres. Deslandesiana., p. 137).

Como veremos adiante, as febres também ocupam espaço nada desprezível na produção intelectual de João Curvo Semedo. Nas “Observaçoens medicas doutrinaes” (1707), vinte e dois dos cem casos descritos pelo médico apresentam algum tipo de febre, seja como sintoma ou enfermidade em si. Já na “Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas” (1716), sua obra mais conhecida, as febres são o tema principal de treze dos cento e vinte e dois capítulos do segundo tratado.

No entanto, é importante notar que, se as febres eram assunto disseminado entre os médicos lusitanos do século XVII e início do XVIII, as concepções e abordagens terapêuticas costumavam variar de forma significativa. O avanço das concepções químicas não significou um eclipsamento total dos galenistas mais aguerridos e nem de correntes de pensamento mágico-astrológico que, nem sempre, se vincularam aos saberes químicos. No conhecido “Trattado unico da constituiçam pestilencial de Penambuco” (1694), de João Ferreira da Rosa, os ‘seminários putridinosos’ e a ‘pestilencial qualidade’ das igrejas da cidade de Recife – supostamente abarrotadas de corpos enterrados em covas rasas que exalavam vapores que corrompiam o ar – não seriam mais do que causas auxiliares da violenta epidemia de febre pestilencial que havia assolado a capitania alguns anos antes. Para o médico, a intensidade da enfermidade teria sido potencializada pela conduta pecaminosa de seus habitantes, associada aos efeitos de eclipses, alinhando, assim, matrizes de pensamento hipocrático, astrológico e cristão:

A vista de taõ fataes eclipses antecedentes do Sol pela nevoa, ou aranha (como lhe querem chamar) & da Lua em dez de Dezembro, & dos vapores podres das barricas de S. Thomé, & de tantos peccados, todas estas causas se podiaõ nomear singularmente cada huã por causa deste contagio em seus princípios; quando não queiramos que todas juntas concorressem parcialmente para o vicio do ar: porém que todas concorressem me persuado

(Rosa, 1694Rosa, J. F. (1694). Trattado unico da constituiçam pestilencial de Penambuco. Miguel Manescal., p. 14).

Outras obras publicadas no período apresentaram relativa estabilidade das concepções médicas que basearam suas primeiras edições, a despeito das renovações de ideias no ambiente médico lusitano. A obra de Francisco Morato Roma, citada acima, é um bom exemplo. A primeira edição, publicada em 1664, apresenta uma abordagem essencialmente galênica das doenças, porém, ao contrário de outras obras que incorporaram conhecimentos químicos em edições subsequentes – como a “Farmacopéia Lusitana”, de D. Caetano de Santo António, também citada – seu perfil se manteve estável até a edição de 1753, quase um século depois. O tratado de Gonçalo Cabreira contido nessa edição mantém-se firme à diagnose e à terapêutica do afamado médico romano (Cabreira, 1753Cabreira, G. R. (1753). Luz da medicina pratica, racional e methodica, guia de enfermeyros. Directorio de principiantes, e summario de remedios para poder acodir, e remediar os achaques do corpo humano, começando do mais alto da Cabeça, e descendo athé o mais baixo das plantas dos pés. Officina de Francisco de Oliveyra.), apesar da emergência das concepções químicas e, sobretudo, dos ares reformistas que se anunciavam na medicina portuguesa em meados do Setecentos.

Mesmo entre aqueles que partilhavam de uma postura eclética entre o galenismo e a química, as concepções sobre as febres variavam de maneira considerável. Já sinalizamos que essa atitude supostamente conciliatória esconde uma conjugação entre sistemas de pensamento bastante distintos. Na prática, o que se observa é que os autores mesclavam ambos os sistemas de forma bastante particular, dando origem a conceituações originais sobre a natureza das febres e os medicamentos usados em seu tratamento. Mais uma vez, nosso Curvo Semedo emerge como exemplo paradigmático. Ao dissertar sobre a variedade das manifestações febris e suas caraterísticas, o autor escreve:

Supposto que haja muytas diversidades de febres, com tudo todas se reduzem a tres espécies, convem a saber, Diaria, Podres, ou Hecticas. As Diarias saõ aquellas que se acendem nos espíritos. As Podres saõ as que se accendem nos humores. As Hecticas saõ as que se accendem nas partes solidas. Não trato aqui das Diarias, nem da Hecticas; porque como a empresa desta obra he mostrar as virtudes que o Estibio preparado tem para muytas doenças, trato só de capitular aquellas a que elle póde ser remedio; & como nem para as febres Diarias, nem para as Hecticas serve o Quintilio, só tratarey das Podres, a quem pòde servir

(Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 546).

Se os medicamentos indicados para tratamento das febres eram de origem química, como o estíbio (antimônio) e o quintílio (preparação de antimônio em pó), as categorias diagnósticas que utilizava para classificar as manifestações febris fincavam-se na tradição galênica, como é o caso das febres hécticas e podres, relacionadas tanto a lesões em tecidos ou ‘partes sólidas’ quanto à podridão dos humores. Sobre as últimas, afirmou:

Digo pois que da podridão dos humores he que procedem as febre Podres, & fazem diversas especies de febres, conforme o humor que apodrece, ou o lugar em que apodrece; porque ou apodrece dentre nas veas mayores, ou fóra dellas: se apodrece dentro, & he só o sangue, faz febre Sinoco; se apodrece dentro, & he cólera, faz terçã continua ardente, que se chama Exquisita, ou Legitima, por ser de cólera pura; se apodrece dentro, & he só fleyma, faz quotidiana continua; se apodrece dentre, & he só melancolia, faz quartã continua; porèm se apodrece fóra (quero dizer, nas veas menores) chamadas Capillares, ou no estomago, ou no âmbito do corpo, fazem tambem diverso genero de febre, conforme a diversidade do humor, se he cólera, faz terçã intermitente, que se chama Exquisita, porque he só de colera; se he só fleyma, faz quotidiana intermintente; se he só melancholia, faz quartã intermitente

(Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 546).

Embora a tradição hipocrática preconizasse o desbalanço humoral como causalidade da maior parte das enfermidades, a patologia galênica introduziu a noção de putrefação dos humores como causalidade de patologias. Além disso, as investidas anatômicas do médico romano também vislumbravam a possibilidade de as doenças terem assento em tecidos orgânicos, algo impensável para os hipocráticos, daí a noção de febre héctica, também utilizada pelo médico, como mostramos (Hamlin, 2014Hamlin, C. (2014). More than hot: A short history of fever. Johns Hopkins.).

Contudo, em outros momentos, Semedo também poderia atribuir a causalidade das febres a processos químicos:

Pela Chymica vieraõ a saber os homés, que o calor só naõ hé a causa das febres. Mas he o calor junto com os succos acidos, ou com os amargos, ou có os acerbos; porque vem com seus olhos, que quando os espiritos azedos do oleo de vitriolo, ou de enxofre, se misturaõ com o sal de Tartaro, fervem, & cobraõ tal quentura, como se estivessem postos ao fogo; donde se deyxa ver, que o calor naõ foy alli causa daquella quentura, mas foy effeyto, que resultou da mistura dos diversos acidos, que em quanto estiveraõ separados, nem aquentaraõ , nem ferveraõ; mas depois de juntos produziraõ a grande quentura, & fervor da febre, que os doentes experimentaõ

(Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 695).

Outros médicos ilustres do período também investiram em explicações químicas para a natureza das febres. O boticário João Vigier, por exemplo, atribuía sua natureza a um processo de fermentação:

As febres não sendo mais que huma fermentaçaõ de sangue adaucta, ou immodica, seguese, que todos que a podem fixar saõ febrífugos: mas muytas vezes estas fermentaçoens naõ saõ mais do que movimentos da natureza para deitar fóra hum inimigo, que a destroe

(Vigier, 1714Vigier, J. (1714). Thesouro apolineo, galenico, chimico, chirurgico, pharmacceutico, ou compendio de remedios para ricos e póbres. Deslandesiana., p. 137).

O médico de D. João V, Francisco da Fonseca Henriquez, por sua vez, apresenta um posicionamento mais radical. A concepção galênica de febre não seria mais do que um equívoco dos antigos, devidamente corrigido pelos autores modernos ligados à tradição alquímica:

Os Antigos definiram a febre pelo calor preternatural, e estranho, aceso no coração, e communicado ao corpo todo mediante os espíritos, e o sangue; doutrina com que rezam reprovada dos Escritores modernos, porque o calor naõ hé febre, hé sympthoma da febre; primeiro há febre, despoys calor, como diremos abaixo. E reprovando com grande fausto de rezoens esta doutrina de Avicenna, de Galeno, e de toda a Antiguidade, deram os Modernos varias definiçoens a esta enfermidade: como se pode ver em Helmonte, Paracelso, Cartesio, Sylvio, Doleu, Kergero, Cezar Majaro, Zieglero, Waleo, Deusingio, Eschokio, Piens, Ettumillero, e outros, entre os quays Thomas Willis define a febre dizendo: q hé huma depravada fermentação ou effervescencia do sangue, e dos humores. Esta definição hé a que melhor exprime a essencia, e natureza da febre

(Henriquez, 1710aHenriquez, F. F. (1710a). Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males. Miguel Diaz., p. 731).

Para Henriquez (1710a)Henriquez, F. F. (1710a). Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males. Miguel Diaz., o sangue em estado normal fermentaria de forma branda para, então, se volatilizar em ‘espíritos’ e depurar-se das ‘escórias excrementícias’ no processo. A febre se caracterizaria pela depravação ou vício do processo, ocasionando um movimento mais intenso dos espíritos nas veias, daí a alteração no calor e no pulso observada nos indivíduos febris. Ao contrário de Semedo, Henriquez também subverte parte da diagnose galênica em relação às febres. Recusa a noção de febres podres, às quais prefere chamar de ‘synocho fermentativo’, por acreditar serem causadas por um processo fermentativo no sangue, e não de apodrecimento dos humores, como havia descrito o médico romano. Quanto às hécticas, recusa a ideia de que seu calor derivaria das partes sólidas do corpo, sendo, mais uma vez, atribuído a um processo de lenta fermentação da “. . . massa saguinarea, por haver nella muytas partes acido salinas, acres, e glutinosas” (Henriquez, 1710aHenriquez, F. F. (1710a). Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males. Miguel Diaz., p. 753).

Se na definição e classificação das febres os praticantes da medicina químico-galênica já divergiam entre si, no plano terapêutico não era diferente. Como veremos nas próximas páginas, a utilização do arsenal medicamentoso das duas escolas estava longe de ser aleatória, pautando-se, antes, por uma hierarquização entre os vegetais galênicos e os metais químicos. Novamente, Semedo será nosso ponto de partida.

ENTRE METAIS E VEGETAIS: A UTILIZAÇÃO DO ARSENAL TERAPÊUTICO FEBRÍFUGO POR SEMEDO E ALGUNS DE SEUS CONTEMPORÂNEOS

Já vimos que Semedo não escondia sua preferência pelos medicamentos químicos em sua prática terapêutica. Na “Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas” (1716), sua obra mais conhecida, dedica o segundo e o terceiro tratados às preparações químicas: um sobre os benefícios dos preparados à base de antimônio e outro sobre as virtudes da farmácia química. Mesmo no primeiro tratado, dedicado aos vomitórios, reivindica as qualidades daqueles baseados nos princípios químicos, especialmente a partir do antimônio. Contudo, isso não significa uma rejeição à tradição galênica. Na verdade, o autor insiste numa hierarquização entre as duas tradições. Esse aspecto pode ser verificado pelo lugar que relega às plantas no tratamento das febres. Como aspecto central na farmácia galênica, as ervas tornam-se aqui elemento acessório das curas feitas com remédios químicos, embora Semedo não perca de vista seu valor para a prática médica:

. . . se a qualquer homem he licito saber diversas Artes, será muyto mais licito, & louvavel em hum Medico sabre a Chymica, saber a Anatomia, conhecer as hervas, & as plantas, & tudo o mais que conduzir para a saude dos enfermos, & verdadeiramente não sey eu a quem taõ propriamente pertença o conhecimento destas cousas como aos Medicos, porque como elles saõ os que mandaõ fazer os cordeaes, as tizanias, os foros, as purgas, as apozemas, & outras muytas medicinas, he preciso saber em que tempo do cozimento se haõ de deytar as raízes, quando as sementes, quando as flores; quando haõ de cozer muyto, quando pouco, que hervas sofrem mais cozimento, & quaes menos

(Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 694).

Na “Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas”, Semedo (1716)Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram. faz intensa apologia do uso do quintílio e de seus benzoárticos para o tratamento de manifestações febris, embora tais medicamentos também tenham uso amplo no tratamento de outras moléstias (Lourenço, 2016Lourenço, T. S. (2016). O médico entre a tradição e a inovação: João Curvo Semedo [Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense].). É claro que as ervas poderiam ser usadas no preparo de alguns de seus remédios químicos conjugados com minerais e sais, como no caso dos benzoárticos, mas são os metais que parecem estar na linha de frente de sua farmacologia. Ao discorrer sobre o combate às febres hécticas, o médico justifica sua preferência com os seguintes termos:

. . . o dito Antihectico conserva as suas virtudes, & chega com ellas inteiras até a terceira região; porque como he medicamento metallico, naõ o vence o calor natural, nem padece taes alterações no estomago; fígado, & mais partes, que se enfraqueça, ainda que fique duzentos annos dentro no corpo. . .

(Semedo, 1707Semedo, J. C. (1707). Observaçoens medicas doutrinaes. Antonio Pedrozo Galram., p. 25).

Assim como outros simpatizantes dos remédios químicos de seu tempo, Semedo (1707)Semedo, J. C. (1707). Observaçoens medicas doutrinaes. Antonio Pedrozo Galram. defende que os remédios galênicos, por serem feitos de ‘ervas, folhas, flores, fruitas, ou sementes’ poderiam ter suas propriedades modificadas ou até mesmo anuladas pelo calor do estômago, de forma que, ao se disseminarem pelo restante do corpo, já poderiam ter perdido suas capacidades curativas. Além disso, a alta eficácia dos remédios químicos os investiria de certa universalidade, de forma que sua aplicação prescindiria das teorizações da terapêutica galênica, altamente individualizada:

. . . porque as doenças curaõ-se com medicamentos eficazes, & naõ com argumentos delicados, & senaõ digaõ-me: quem argumentaria melhor sobre o modo com que se fazem as quartãs, Galeno, ou hum Çapateyro? He certo que Galeno: mas se o Çapateyro tiver agua de Inglaterra, ou a Quinaquina, ou o febrifugio de Riverio, ou o meu febrifugio, ha curar as quartanssem embargo de que naõ se sabem como se fazem; & Galeno com todas as suas letras, & Philosophias, há de ficar envergonhado, ainda que sabe muyto bem como se fazem as quartans

(Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 703).

Uma das entradas que as plantas têm no repertório farmacêutico de Semedo (1716)Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram. contra as febres se dá pelas suas supostas qualidades ocultas. Como partidário da tradição hermética, o médico acreditava que os corpos pudessem exercer influências entre si à distância, por meio de “. . . effeytos que vemos, & experimentamos com os sentidos, mas naõ as alcançamos com o entendimento. . .” (Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 531). O processo se daria por meio de relações de antipatia e simpatia que regeriam as relações entre as coisas na medicina moderna5 5 Sobre esse aspecto, ver a importante contribuição clássica de Foucault (2016) e também as críticas de Maclean (2006). . Assim, exalta o conhecimento das forças ocultas como elemento indispensável à boa prática médica.

Na cura das febres, a quina-quina “. . . encerra huma virtude occulta taõ admiravel, & efficaz para curar todas as febres intermitentes, como saõ as quartans, terçans. . .” (Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 538). Afirma ainda que poderia citar mais de seiscentos casos em que febres intermitentes foram curadas pela substância, assim como pela água de Inglaterra, também dotada de propriedades ocultas. Semedo reagia aos céticos, que não admitiam mais do que as propriedades manifestas das substâncias, sustentando que as propriedades da quina-quina seriam tão evidentes que dispensariam maiores discussões, “. . . como he escusado provar que o Sol tem luz. . .” (Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 538). Da mesma forma, as folhas de aipo, “. . . pizadas com huã duzia de teas de aranha, huma colher de vinagre forte. . . ”, ao serem postas sobre os pulsos do paciente em jejum durante um dia inteiro, seriam remédio eficaz contra febres terçãs (Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 534).

Contudo, apesar de ocuparem um lugar subalterno na farmácia de Semedo, em casos específicos, os vegetais, não raro associados a substâncias de origem animal, poderiam ser usados como alternativa na prática terapêutica, especialmente diante da falha dos medicamentos químicos. No combate à fraqueza resultante das febres malignas, Semedo era enfático ao indicar os vomitórios de quintílio, vinho emético, água Benedita de Rulando ou sal de vitriolo, dentre outros preparados químicos. Contudo, afirma que alguns de seus pacientes não responderam a nenhuma dessas prescrições. Nesses casos, recomendava um emplastro composto de lombo de vaca, marmelada, perada, aos quais deveriam ser adicionados “. . . pò de cascas de mirabolanos citrinos, de folhas de murta, & dos carocinhos de uvas. . . ”; por fim, recomendava acrescentar clara de ovos, água rosada, vinho tinto e sumo de tanchagem (Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 621).Para combater as parótidas6 6 Semedo (1716, p. 634) define as parótidas da seguinte forma: “São huns tumores, ou abcessos, que nascem detraz das orelhas nas partes adenosas, & costumaõ sobrevir às febres, ou doenças malignas, ainda que algumas vezes sobrevem às doenças agudas, em que houve muytos dias modorra, ou dores de cabeça grandes, ou frenesi”. resultantes das febres malignas, sintomas graves geralmente manifestados ao fim da doença, aconselhava uma mistura à base de gema de ovo, óleo de linhaça, óleo de macela, açafrão. No caso de falha do preparado, indicava, então, “. . . meya onça de alforvas, & duas raízes de malvaísco. . .” (Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 635). Após o cozimento, os ingredientes deveriam ser amassados e peneirados para, então, serem adicionados “. . . meyo quartilho de leite de vacca, hum vintém de açafraõ polvorizado, duas gemas de ovos cruas, & a metade de um miolo de hum paõ de dez dias. . .” (Semendo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 635). O emplastro deveria ser aplicado sobre as ditas parótidas, com efeitos satisfatórios esperados em apenas três dias (Semedo, 1716Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram., p. 635).

Francisco da Fonseca Henriquez, outro ávido partidário da farmácia química, atribui lugar semelhante aos medicamentos galênicos. Embora seu uso estivesse longe de ser raro, eram geralmente ministrados em associação com remédios químicos ou como alternativa em caso de persistência de sintomas após o tratamento inicial. A quina-quina, por exemplo, só deveria ser utilizada no combate às febres intermitentes caso os vomitórios de origem química não surtissem o efeito desejado. O médico orgulha-se dos resultados alcançados com seu ‘vinho cathartico’, um vomitivo de calcinação de antimônio, entre os habitantes de Trás-os-Montes, seu local de atuação, onde “. . . nunca foy necessario recorrer á quina quina para curar as sezoens. . .” (Henriquez, 1710aHenriquez, F. F. (1710a). Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males. Miguel Diaz., p. 763). No capítulo “Das febres de difficil eradicaçam”, contudo, o médico dedicou-se a explorar os casos de falha dos medicamentos de sua preferência, mostrando-se mais aberto a experimentações:

. . . na contumácia das febres chronicas devemos usar quantos remedios nos propuzerem os Praticos, e nos inclulcarem as pessoas do vulgo, como naõ sejam remedios que destruam as forças, que por ventura que com algum delles se possa superar a rebeldia destas febres

(Henriquez, 1710bHenriquez, F. F. (1710b). Das febres de difficil eradicaçam. In Autor, Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males (pp. 771-777). Miguel Diaz., p. 773).

Henriquez (1710b)Henriquez, F. F. (1710b). Das febres de difficil eradicaçam. In Autor, Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males (pp. 771-777). Miguel Diaz. põe-se, então, a citar experiências bem-sucedidas de tratamento de febres por meio de terapêuticas menos conhecidas, descritas por colegas de profissão e até mesmo por autoridades médicas antigas. As propriedades das flores de macela, segundo descreve, não teriam passado despercebidas por Galeno “. . . quando disse que na macella havia virtudes para todas as febres, ainda que procedessem de inflammaçam; e tal vez que por isto a sabidura dos Egypcios consagrasse a o Sol esta planta. . .” (Henriquez, 1710bHenriquez, F. F. (1710b). Das febres de difficil eradicaçam. In Autor, Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males (pp. 771-777). Miguel Diaz., pp. 773-774). Raiz de genciana, raiz de cardo benedito, erva doce de pó de raiz de manica, pimenta, flor de pessegueiro e açafrão são alguns dos outros vegetais indicados. Como se observa, nesse contexto, as plantas parecem ganhar mais destaque, embora também dividam espaço com remédios-amuleto, como teias de aranha e coração de lebre, dentre outras estratégias curativas (Henriquez, 1710bHenriquez, F. F. (1710b). Das febres de difficil eradicaçam. In Autor, Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males (pp. 771-777). Miguel Diaz., p. 776).

A afinidade dos posicionamentos de Henriquez com os de Semedo em relação aos medicamentos de origem vegetal não era fortuita. O médico de D. João V mostra-se um entusiasta dos medicamentos químicos do célebre médico lusitano, receitando-os também no tratamento de algumas febres7 7 Há inúmeras citações de Curvo Semedo ao longo da obra. No que diz respeito ao tratamento das febres, recomenda o cordeal purgativo de Curvo para alguns casos de febres simples, fermentativa e ardente. Para esta última, também recomenda o uso de seu famoso benzoártico (Henriquez, 1710a, p. 746). . Na terceira edição da “Polyanthea medicinal, noticias galênicas e chymicas”, Henriquez publicou uma elogiosa carta louvando as contribuições de Semedo para a farmácia lusitana e reivindicava a complementaridade entre químicos e galênicos (Henriquez, 1716Henriquez, F. F. (1716). Carta que o doutor Francisco da Fonseca Henriques, medico do Serenissimo Senhor Rey Dom João V mandou ao Doutor João Curvo Semmedo dando lhe os parabens da Polyanthea que compoz. In J. C. Semmedo, Polyanthea medicinal, noticias galênicas e chymicas (3 ed., pp. 3-5). Antonio Pedrozo Galram., pp. 3-5).

Contudo, a hierarquia entre metais e vegetais estabelecida pelos dois práticos lusitanos não era partilhada por todos. Apesar de Vigier (1716)Vigier, J. (1716). Pharmacopea Ulyssiponense, galenica, e chymica. Pascoal da Silva. apresentar uma concepção química das febres, como vimos, sua terapêutica alterna remédios vegetais e metálicos sem estabelecer ordem de preferência clara entre eles. No “Thesouro apolineo, galenico, chimico, chirurgico, pharmacceutico, ou compendio de remedios para ricos e póbres” (1714), tanto o antimônio diaforético e o antihectico de Poterio, conhecidos remédios químicos, quanto plantas como macela genciana, imperatória, pessegueiro e a quina-quina são indicados para combater os “. . . fermentos que fazem fermentar o sangue. . .” nas febres (Vigier, 1714Vigier, J. (1714). Thesouro apolineo, galenico, chimico, chirurgico, pharmacceutico, ou compendio de remedios para ricos e póbres. Deslandesiana., pp. 138-139). Na introdução da “Pharmacopea Ulyssiponense, galenica, e chymica” (1716), o boticário deixa sua perspectiva um pouco mais clara ao definir as farmácias química e galênica como as duas partes igualmente constituintes da arte da Farmácia:

A Galenica he aquella que se contenta da simplez mistura, sem especulação das substancias de que cada huma das drogas naturalmente comporta: a Pharmacia Chimica he aquella que faz a analyse dos corpor naturaes, para deles fazer separação das substancias inúteis, & fazer remedios mais exaltados, & mais essenciaes

(Vigier, 1716Vigier, J. (1716). Pharmacopea Ulyssiponense, galenica, e chymica. Pascoal da Silva., pp. 1-2).

A postura de Vigier (1716)Vigier, J. (1716). Pharmacopea Ulyssiponense, galenica, e chymica. Pascoal da Silva. parece ser partilhada por algumas das principais farmacopeias publicadas no período. Na conhecida “Pharmacopea tubalense chimico-galenica, parte primeira” (1735), Manoel Rodrigues Coelho também simetriza as tradições química e galênica como as ‘duas, partes ou espécies’ da Farmácia (Coelho, 1735Coelho, M. R. (1735). Pharmacopea tubalense chimico-galenica, parte primeira. Officina de Antonio de Souza da Sylva., p. 3). Contudo, percebe-se que a perspectiva do boticário sobre os fenômenos da matéria se aproxima mais da tradição química, à qual dedica a quase totalidade do primeiro capítulo, “. . . reflexaõ fyisica sobre os principios dos mixtos. . .” (Coelho, 1735Coelho, M. R. (1735). Pharmacopea tubalense chimico-galenica, parte primeira. Officina de Antonio de Souza da Sylva., p. 1), enquanto relega parcas linhas para a perspectiva aristotélica (uma das matrizes do pensamento galênico)8 8 Sobre esses últimos, limita-se a dizer que: “. . . he a [opinião] dos Peripateticos, seu Príncipe Aristoteles, os quaes estabelecêraõ por primeira matéria, e princípios constituintes de todos os naturaes mixtos, aos quatro elementos, Fogo, Ar, Terra, e Agua, de cuja varia mixtura dizem resulta a producçaõ dos mixtos, e de sua desuniaõ, a destruição geral, ou particular delles. . .” (Coelho, 1735, p. 1). . Assim como na obra de Vigier, as receitas contidas na publicação alternam remédios metálicos, vegetais e animais de forma praticamente indistinta. No combate às febres terçãs e quartãs, para citar um exemplo, recomendava receitas à base de vegetais como chicória, flores de macela e centaurea menor, gengibre e raiz de genciana, por vezes associados a partes de animais, como testículos de galo, olhos de caranguejo ou chifres de veado, e, claro, medicamentos químicos, como o espírito de vitriolo e antimônio (Coelho, 1751Coelho, M. R. (1751). Pharmacopea tubalense chimico-galenica, parte terceira Officina de Joze da Sylva da Natividade., pp. 284-286).

A semelhança também se repete no tratamento dado à quina-quina. As virtudes do febrífugo foram objeto de um “Discurso physico-medico” ao final da terceira parte da farmacopeia, no qual, dentre outras coisas, reivindica uma concepção química da atuação da planta no corpo febril, supostamente responsável por suprimir as fermentações do sangue pela ação de seus sais amargos (Coelho, 1751Coelho, M. R. (1751). Pharmacopea tubalense chimico-galenica, parte terceira Officina de Joze da Sylva da Natividade., pp. 15-17). Diante disso, também é enfático ao rejeitar que as virtudes da quina-quina seriam devidas às suas qualidades ocultas (Coelho, 1751Coelho, M. R. (1751). Pharmacopea tubalense chimico-galenica, parte terceira Officina de Joze da Sylva da Natividade., pp. 11-12), uma crença difundida na época e propagada pelo próprio Curvo Semedo, como mostramos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As convergências entre Vigier e Coelho apontam uma outra possibilidade interpretativa a respeito da forma como os autores portugueses articulavam as duas tradições farmacêuticas. Ao que parece, mesmo que prezassem por uma simetria entre a tradição química e galênica, em termos farmacêuticos, ou seja, no que diz respeito ao preparo e à natureza dos medicamentos, sua concepção farmacológica parece ser essencialmente química. Em outras palavras, mesmo que utilizassem remédios preparados segundo a tradição galênica, sua compreensão da atuação desses mesmos medicamentos sobre o organismo era química, como no caso da quina-quina. Se assim for, o que se apresenta aos olhos contemporâneos como uma mescla indiscriminada entre dois mundos seria, na verdade, um predomínio de uma concepção química dos fenômenos patológicos que absorveu para si a tradição galênica e ressignificou sua farmacologia em novos termos. Um argumento que também poderia ser estendido a Henriquez, dada a sua radical adesão à química. Quanto a Semedo, pelo menos no que diz respeito ao tratamento das febres, sua postura parece ser um pouco mais hesitante, visto que a patologia galênica ainda se mostrava relevante em alguns de seus diagnósticos.

Essas questões mostram que, embora a apropriação relativamente pacífica de remédios químicos pela farmácia portuguesa seja assunto assentado na historiografia, cumpre observar que os usos e sentidos atribuídos a ela pelos praticantes lusitanos estavam longe de ser uniformes. Se a alternância entre a tradição médica galênica e a química representava uma transição entre universos epistemológicos distintos, essa operação era feita de forma original por cada um dos médicos que a praticou, tornando o mosaico curativo lusitano ainda mais rico e desafiador. Sobre Semedo, não podemos deixar de ressaltar que seus posicionamentos mais originais parecem ter ligação direta com sua prática clínica, perfil também compartilhado com Henriquez. Isso não é pouca coisa e indica que aquilo pode nos parecer uma contradição em termos epistemológicos – como enxergar as febres à galênica, mas tratá-las com a química –, remete, na verdade, a uma primazia da observação e da experiência sobre a teoria. Em outras palavras, os sentidos de sua prática não eram construídos somente pelo recurso a livros e autoridades médicas, mas, sobretudo, pelo trato diário com toda sorte de pacientes e enfermidades.

AGRADECIMENTOS

Esta pesquisa foi financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.

  • 1
    Trata-se de um tipo de febre baixa, porém persistente e altamente debilitante ao organismo. Ao longo do século XVIII, passou a ser denominada febre lenta nervosa e, no XIX, sua definição aproximou-se da de febre tifoide (Hamlin, 2014Hamlin, C. (2014). More than hot: A short history of fever. Johns Hopkins., pp. 32, 319).
  • 2
    Trataremos dessas categorias de febres mais adiante.
  • 3
    Na tradição hipocrática, os corpos eram constituídos por quatro humores (bile negra, bile amarela, fleuma e sangue) que, por sua vez, derivavam da interação entre quatro qualidades fundamentais (quente, úmido, frio e seco). Na tradição astrológica ptolomaica, essas qualidades foram atribuídas aos planetas, de forma que Júpiter, por exemplo, exercia um influxo quente e úmido sobre os homens, o que, em excesso, poderia causar problemas pulmonares (Carolino, 2002Carolino, L. M. (2002). A escrita celeste: Almanaques astrológicos em Portugal nos Séculos XVII e XVIII. Access., p. 27).
  • 4
    Trata-se aqui da segunda edição da obra, visto que a primeira, publicada em 1704, abordava apenas os medicamentos galênicos.
  • 5
    Sobre esse aspecto, ver a importante contribuição clássica de Foucault (2016)Foucault, M. (2016). As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Martins Fontes. e também as críticas de Maclean (2006)Maclean, I. (2006). Le monde et les hommes selon les médecins de la Renaissance. CNRS..
  • 6
    Semedo (1716, p. 634)Semedo, J. C. (1716). Polyanthea medicinal, noticias galenicas e chymicas. Antonio Pedrozo Galram. define as parótidas da seguinte forma: “São huns tumores, ou abcessos, que nascem detraz das orelhas nas partes adenosas, & costumaõ sobrevir às febres, ou doenças malignas, ainda que algumas vezes sobrevem às doenças agudas, em que houve muytos dias modorra, ou dores de cabeça grandes, ou frenesi”.
  • 7
    Há inúmeras citações de Curvo Semedo ao longo da obra. No que diz respeito ao tratamento das febres, recomenda o cordeal purgativo de Curvo para alguns casos de febres simples, fermentativa e ardente. Para esta última, também recomenda o uso de seu famoso benzoártico (Henriquez, 1710aHenriquez, F. F. (1710a). Medicina lusitana e soccorro delfhico: A os clamores da natureza humana, para total profligaçaõ de feus males. Miguel Diaz., p. 746).
  • 8
    Sobre esses últimos, limita-se a dizer que: “. . . he a [opinião] dos Peripateticos, seu Príncipe Aristoteles, os quaes estabelecêraõ por primeira matéria, e princípios constituintes de todos os naturaes mixtos, aos quatro elementos, Fogo, Ar, Terra, e Agua, de cuja varia mixtura dizem resulta a producçaõ dos mixtos, e de sua desuniaõ, a destruição geral, ou particular delles. . .” (Coelho, 1735Coelho, M. R. (1735). Pharmacopea tubalense chimico-galenica, parte primeira. Officina de Antonio de Souza da Sylva., p. 1).
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Editado por

Responsabilidade editorial: Márcio Couto Henrique

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2020
  • Aceito
    26 Ago 2021
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