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Curas, rituais e amansamentos com plantas entre escravizados e libertos no Rio de Janeiro, entre as décadas de 1810 a 1850

Cures, rituals and taming with plants among the enslaved and freed in Rio de Janeiro between 1810s to 1850s

Resumo

A historiografia menciona de modo recorrente a utilização das plantas por escravizados e libertos, o que suscita o interesse por uma análise sobre o tema. Neste artigo, aborda-se diferentes utilizações das plantas por esse grupo. Eram usadas para tratar de doenças, causadas por condições físicas ou por malefícios e desequilíbrios espirituais, assim como para amenizar ou resolver a exploração por parte dos senhores através de envenenamento. Ao longo do século XIX, observa-se a valorização do conhecimento de recursos vegetais nativos para o tratamento de enfermidades, mas também a repressão ao uso em rituais religiosos e ao envenenamento de senhores e suas famílias. Para o desenvolvimento do estudo, recorreu-se à bibliografia que aborda o tema, ainda que de forma lateral, e a fontes primárias. A pesquisa foi realizada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, por meio de palavras-chave, entre as décadas de 1820 e 1850, e também por meio de uma revisita aos processos da Fisicatura-mor, relativos ao período de 1808 a 1828, além da consulta à legislação pertinente. A análise do uso de plantas no cotidiano de africanos e seus descendentes contribui para ampliar a compreensão sobre as condições de vida e sobre a agência dessas pessoas.

Palavras-chave
Escravidão; Plantas; Artes de curar; Rio de Janeiro; Século XIX

Abstract

Historiography recurrently mentions the use of plants by enslaved and freed peoples, which raises interest in an analysis on the subject. In this article, different uses of plants by this group are addressed. They were used to treat illnesses caused by physical conditions or by maladies and spiritual imbalances, as well as to alleviate or resolve the exploitation suffered at the hands of their masters through poisoning. Throughout the nineteenth century, there was an appreciation of knowledge for native plant resources for the treatment of illnesses, but also the repression of their use in religious rituals and the poisoning of slave owners and their families. For the development of the study, the bibliography that addresses the theme, albeit laterally, and primary sources were used. The research was carried out in digital periodical library of the Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional through keywords between the 1820s and 1850s and revisiting the processes of Fisicatura-mor, relating to the period from 1808 to 1828, in addition to consulting the relevant legislation. The analysis of the use of plants in the daily lives of Afro-Brazilians and their descendants helps to broaden the understanding of these people’s living conditions and their agency.

Keywords
Slavery; Plants; Healing Arts; Rio de Janeiro; 19th century

Nas décadas de 1980 e 1990, historiadores voltados para o estudo da escravidão no Brasil propuseram uma nova agenda analítica, com temas como organização do trabalho e da vida escrava, constituição e manutenção das famílias cativas, o liberto no mundo escravista e a mão de obra negra no pós-abolição. Muitas pesquisas que revisitaram fontes e analisaram outras, sob essa nova perspectiva, contribuíram para o aprofundamento do conhecimento dos escravizados enquanto agentes históricos (Machado, 1988Machado, M. H. P. T. (1988). Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social da escravidão. Revista Brasileira de História, 8(16), 143-160., pp. 144-147). A principal contribuição desses estudos foi abrir espaço para análises sobre o cotidiano dos escravizados e os significados de suas experiências (Pimenta et al., 2018Pimenta, T. S., Gomes, F., & Kodama, K. (2018). Das enfermidades cativas: Para uma história da saúde e das doenças do Brasil escravista. In L. A. Teixeira, T. S. Pimenta & G. Hochman (Orgs.), História da saúde no Brasil (pp. 67-100). Hucitec., p. 67).

Entre as pesquisas desenvolvidas a partir dessa abordagem historiográfica, várias se referem ao uso de plantas por escravizados e libertos. A recorrente menção à utilização desse recurso por esses grupos suscita o interesse por uma análise sobre o tema, atentando para saberes e práticas e para a possibilidade de terem sido um importante elemento de ajuda em suas táticas, escolhas e ações para sobreviver e também para melhorar suas condições de vida. Este artigo aborda diferentes utilizações das plantas por esse grupo, frequentemente relacionadas à cura, a rituais religiosos e, por vezes, direcionadas ao envenenamento e ao amansamento de senhores. Para isso, recorre-se à bibliografia que aborda o tema, ainda que de forma lateral, e a fontes primárias, como periódicos e documentação oficial. Trata-se de uma pesquisa realizada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional por meio de palavras-chave como ‘plantas’, ‘ervas’, ‘raízes’, ‘curandeiro’, ‘feiticeiro’, ‘dar fortuna’, entre as décadas de 1820 e 1850, cujos resultados concentraram-se no Jornal do Commercio1 1 Neste artigo, o Jornal do Commercio é priorizado, pois o levantamento inicial apontou mais resultados nesse periódico. A análise dos resultados, contudo, mostrou que, dos 658 registros de ‘raízes’, por exemplo, um número bem pequeno referia-se às plantas. A maior parte guardava outros significados, como origens de determinada questão. . Ainda, foi realizada uma revisita aos processos da Fisicatura-mor, relativos ao período de 1808 a 1828, além de consulta à legislação pertinente. Ressalta-se, contudo, que, em geral, as plantas não eram identificadas, uma vez que não constituíam o objeto principal abordado nesses documentos.

Conforme afirma Slenes (1992)Slenes, R. W. (1992). “Malungu, ngoma vem”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, (12), 48-67. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i12p48-67
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, a escravidão no Centro-Sul do Brasil era africana e bantu, no sentido demográfico e também no compartilhamento de suas visões cosmológicas e pressuposições básicas sobre parentesco. Os usos de plantas devem ser compreendidos à luz da crença de que o infortúnio e a doença eram “. . . causados pela ação malévola de espíritos ou de pessoas, frequentemente através da bruxaria ou da feitiçaria. . .” (Slenes, 1992Slenes, R. W. (1992). “Malungu, ngoma vem”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, (12), 48-67. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i12p48-67
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, p. 58). Grupos procedentes da África Central buscavam, assim, manter o equilíbrio, aumentar a sorte e se prevenir da desventura. A religião acabava por se misturar com os rituais de magia e encantamentos, que eram mais voltados para objetivos individuais, como destaca Sampaio (2009, p. 193)Sampaio, G. R. (2009). Juca Rosa: Um pai-de-santo na corte imperial. Arquivo Nacional.. Nesse sentido, as plantas podiam ser usadas de outras maneiras, além de ingestão, banhos e emplastros. A utilização de patuás, constituídos por partes de plantas, era bastante comum entre africanos e seus descendentes no Brasil. Para o sul dos Estados Unidos, Covey (2007, p. 74)Covey, H. C. (2007). African American slave medicine: Herbal and non-herbal treatments. Lexington Books. e Schwartz (2009, pp. 62-63)Schwartz, M. J. (2009). Birthing a slave: Motherhood and medicine in the antebellum South. Harvard University Press. afirmam que os escravizados costumavam usar assafetida ao redor do pescoço, para promover a saúde e evitar doenças como asma, cólica, catapora, sarampo, varíola, coqueluche, caxumba e difteria. Também colocavam folhas de palmito nas portas para remover maldições e azarações.

Ressalte-se que a identificação de africanos utilizada nas documentações do século XIX, como ‘Mina’, ‘Angola’, ‘Moçambique’, ‘Cabinda’ etc., deve ser considerada mais como grupos de procedência do que como referências diretas a grupos étnicos (Soares, 2000Soares, M. C. (2000). Devotos da cor: Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Civilização Brasileira.). A historiografia reconhece, contudo, que a presença de escravizados ocidentais no Centro-Sul do Brasil passou a ser mais percebida nas décadas de 1830 e 1840, devido ao tráfico interno de escravos do Nordeste (Slenes, 1992Slenes, R. W. (1992). “Malungu, ngoma vem”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, (12), 48-67. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i12p48-67
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, p. 56). Karasch (2000, p. 357)Karasch, M. C. (2000). A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. Companhia das Letras. afirma que os orixás do candomblé estavam “. . . indiscutivelmente presentes antes de 1850 graças à minoria iorubá e jeje vivendo então no Rio. . .”. Na década de 1840, Ewbank (1973, p. 390)Ewbank, T. (1973). A vida no Brasil ou diário de uma visita ao país do cacau e das palmeiras. Conquista. relata a prisão de um escravizado mina, ‘um feiticeiro africano’, de quem a polícia confiscou “. . . uma grande jarra, escondida por saias, [que] constituía o corpo do ídolo principal; dois outros menores eram de madeira, com braços articulados, os rostos e as cabeças besuntados de sangue e de penas”. Também foram apreendidos, entre outros objetos, chifres, presas e caveiras de animais, pinças de ferro e facas de pedra para sacrifícios, matracas, uma palmatória, um barrete e uma capa escarlate, além de molhos de ervas, um deles de arruda (Ewbank, 1973Ewbank, T. (1973). A vida no Brasil ou diário de uma visita ao país do cacau e das palmeiras. Conquista., p. 390). As ervas poderiam ser usadas como proteção, curas ou banhos de descarga (Karasch, 2000Karasch, M. C. (2000). A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. Companhia das Letras., pp. 377-378). Os banhos de ervas cheirosas visavam a purificação ritual, sendo encontrados em diversos rituais religiosos da África Central, além de estarem “. . . presente[s] nos ritos de iniciação do candomblé e nas ‘macumbas’ cariocas de origem banto. . .” (Sampaio, 2009Sampaio, G. R. (2009). Juca Rosa: Um pai-de-santo na corte imperial. Arquivo Nacional., p. 201).

É interessante apontar que Sampaio (2009)Sampaio, G. R. (2009). Juca Rosa: Um pai-de-santo na corte imperial. Arquivo Nacional. também identificou um trânsito de africanos ocidentais, a partir da década de 1860, entre Salvador e Rio de Janeiro. Nesse caso, no entanto, esses africanos seriam, sobretudo, libertos e faziam, por sua vontade, a ligação entre as duas cidades para comerciar panos da costa e ‘colas da costa’. Essa planta era muito usada para mascar ou adotada também em bebidas e em cerimônias religiosas (Sampaio, 2016Sampaio, G. R. (2016). Africanos em trânsito entre Salvador e Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX. In E. S. Souza, G. Marques & H. R. Silva (Orgs.), Salvador da Bahia: Retratos de uma cidade atlântica (pp. 313-340). EDUFBA., p. 323). Por parte dos oriundos da África Central, Karasch (2000, p. 357)Karasch, M. C. (2000). A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. Companhia das Letras. argumenta que provavelmente davam continuidade no Rio de Janeiro às suas tradições flexíveis. Ou seja, eles não necessariamente se convertiam ao catolicismo ou adotavam uma religião sincrética. Seus rituais eram “. . . atos simbólicos que se reúnem [reuniam] na forma de um amuleto. . .”, que poderia tomar a forma de estátua de santos católicos.

Embora estudos e documentos possam estabelecer alguma associação entre grupos de procedência e determinadas práticas religiosas e de cura, considera-se importante não perder de vista a circulação de práticas e saberes entre diversos grupos. Por exemplo, no caso da sangria, autores como J. Rodrigues (2020)Rodrigues, J. (2020). Marinheiros minas no Atlântico, séculos XVIII e XIX. In A. Rodrigues, I. Lima & J. Farias (Orgs.), A diáspora Mina: Africanos entre o golfo de Benim e o Brasil. NAU Editora. e Soares (2013)Soares, M. C. (2013). African barbeiros in Brazlian slave ports. In J. Cañizares-Esguera, M. D. Childs & J. Sidbury (Orgs.), The Black Urban Atlantic in the Age of the Slave Trade. University of Pennsylvania Press. observam uma forte ligação com africanos minas no tráfico atlântico, contudo um levantamento sobre as licenças concedidas a sangradores no Rio de Janeiro mostra que esse ofício estava distribuído proporcionalmente entre os grupos de procedência existentes na cidade. Portanto, os africanos centro-ocidentais requeriam mais autorização para exercer esse ofício do que os próprios minas (Pimenta, 1998Pimenta, T. S. (1998). Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-28). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 5(2), 349-374. https://doi.org/10.1590/S0104-59701998000200005
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). Assim, pelo menos na Corte, a prática da sangria era exercida por africanos em geral.

Desse modo, ainda que se possa identificar de modo bastante genérico grupos procedentes da África Central e da África Ocidental e os usos de plantas, deve-se levar em conta também que havia uma intensa circulação de saberes e práticas que envolviam plantas específicas em rituais religiosos, em tratamentos ou envenenamento e que esses usos não estavam restritos a determinados grupos de procedência africana. Além disso, as próprias plantas também circulavam entre continentes e grupos sociais, embora, conforme aponta Carney (2004)Carney, J. (2004). Navegando contra a corrente: o papel dos escravos e da flora africana na botânica do período colonial. África: Revista do Centro de Estudos Africanos, (22-23), 25-47., se perceba uma distorção em narrativas sobre as trocas transatlânticas que, comumente, enfatizam “. . . o papel dos europeus na disseminação de plantas a [em] nível intercontinental. . . . [e valorizam]. . . produtos agrícolas de origem Ameríndia e Asiática em detrimento da contribuição africana. . .” (Carney, 2004Carney, J. (2004). Navegando contra a corrente: o papel dos escravos e da flora africana na botânica do período colonial. África: Revista do Centro de Estudos Africanos, (22-23), 25-47., p. 26). Um aspecto importante a se considerar é que a religião, além de ocupar papel de resistência, foi central na maneira de organizar a vida das pessoas (Sampaio, 2009Sampaio, G. R. (2009). Juca Rosa: Um pai-de-santo na corte imperial. Arquivo Nacional., p. 207). Portanto, as crenças religiosas forneciam os caminhos sobre como lidar com as doenças, assim como indicavam algumas maneiras de procurar estabelecer ou manter limites nas relações cotidianas com os proprietários, amansando ou envenenando senhores e seus familiares. Em várias dessas situações, o conhecimento sobre plantas poderia ser fundamental e, muitas vezes, seus usos eram mediados por líderes religiosos.

Desse modo, analisa-se em separado alguns dos usos de plantas medicinais por escravizados e forros à luz da agência desses indivíduos, considerando-se a construção de redes de sociabilidade. Pretende-se destacar e analisar de forma mais detida o seu emprego, além de atentar para as diferentes fontes primárias e para a historiografia sobre o tema, que apresentam informações sobre a utilização de plantas por cativos e libertos, com o intuito de restaurar, manter ou tirar a saúde de quem as consumia.

O USO DAS PLANTAS PARA CURAR

Ao se analisar a atuação dos curandeiros nas primeiras décadas do século XIX, constata-se que uma das condições que identificavam essa atividade era o uso de plantas medicinais nativas, de acordo com o órgão responsável pela regulamentação e fiscalização das artes de curar, a Fisicatura-mor, que existiu no Brasil entre 1808 e 1828. A Fisicatura-mor foi um dos órgãos transferidos ou criados com a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, continuando com as mesmas funções após a Independência, em 1822. Esse órgão também era responsável pela regulamentação e fiscalização do cumprimento de suas normas. Segundo o seu “Regimento...” (1810)Regimento do Físico-Mor do Reino. (1810, janeiro 26). Impressão Régia., nos lugares onde não houvesse médico, boticário e cirurgião em número suficiente para atender a população, aqueles que tivessem se dedicado ao estudo da medicina e à observação dos medicamentos do país poderiam ser examinados sobre os ‘seus poucos conhecimentos’ por um médico designado pela Fisicatura-mor e, se fossem aprovados, teriam licença de curador com validade de um ano (“Regimento...”, 1810Regimento do Físico-Mor do Reino. (1810, janeiro 26). Impressão Régia.).

Oficialmente, o uso de plantas medicinais nativas era uma das características que delimitavam o ofício de curandeiro, junto com o tratamento apenas de doenças consideradas leves e a restrição à região onde morava, e desde que não houvesse médicos formados. Esses limites relacionavam-se à posição que curandeiros, ao lado de sangradores e parteiras, ocupavam na hierarquia das artes de curar. Esse grupo situava-se nas posições mais baixas, enquanto médicos, cirurgiões e boticários estavam nos lugares mais prestigiados, destacando-se os médicos, que tinham todas as prerrogativas sobre os demais. Essa hierarquia acompanhava a hierarquia social e, dessa forma, as artes de curar menos valorizadas eram exercidas por escravizados, alforriados e livres pobres.

A hierarquia da Fisicatura-mor não era, necessariamente, a mesma de parte da população e dos terapeutas populares2 2 A categoria terapeutas populares abarca uma grande diversidade de ofícios, abrangendo “. . . os que prestavam assistência à saúde de quem precisasse, utilizando saberes que não foram adquiridos academicamente. Em geral, pertenciam a camadas sociais mais baixas” e eram aceitos e requisitados pela população. Ver nota 3 em Pimenta (2004, p. 90). , uma vez que, em diversas situações, confiava-se mais em curandeiros, parteiras e sangradores do que em médicos e cirurgiões formados academicamente. Também se ressalta que, apesar de as licenças serem restritas a determinada atividade, no dia a dia, não havia uma delimitação rígida, pois um mesmo terapeuta poderia sangrar, partejar e curar. Além disso, é preciso explicar que apenas 3% dos cerca de 1.300 processos que procediam do Brasil referiam-se a curandeiros3 3 As licenças localizadas no fundo Fisicatura-mor do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, referem-se à província do Rio de Janeiro. Provavelmente, como as licenças podiam ser assinadas pelos representantes do físico-mor, os trâmites se restringiam às províncias onde o curandeiro atuava, não havendo necessidade de que o processo fosse enviado para a Corte. , provavelmente, porque a atuação da Fisicatura-mor concentrava-se mais nos núcleos urbanos maiores, em função da restrição de funcionários. Talvez os próprios curandeiros nem tomassem conhecimento sobre a existência da Fisicatura-mor ou mesmo não consideravam vantajoso pagar as taxas para oficializar as suas atividades. Oficializavam mais quando estavam sujeitos à fiscalização ou à denúncia por parte de algum concorrente ou desafeto. Na maior parte dos casos, exerciam suas atividades curativas protegidos por seus laços comunitários. Dessa forma, a maioria daqueles que exerciam artes de curar sem formação acadêmica e, possivelmente, baseados em saberes de origens indígena e africana, continuaram atuando ao largo do órgão que deveria fiscalizar suas atividades (Pimenta, 1998Pimenta, T. S. (1998). Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-28). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 5(2), 349-374. https://doi.org/10.1590/S0104-59701998000200005
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).

Assim, as poucas solicitações de licença, em geral, não apresentam muitas informações sobre os saberes e as práticas dos curandeiros. A justificativa de João Martins Lopes, ‘crioulo forro’, por exemplo, para pedir, em 6 de dezembro de 1822, para ser examinado, era a de que ele havia “. . . alcançado os precisos conhecimentos das ervas medicinais do país. . .” (Lopes, 1822Lopes, J. M. (1822). Processo de obtenção de licença de curandeiro. (Fisicatura-mor, Caixa 471-2). Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.). O exame foi marcado para três dias depois, durante o qual João foi perguntado

. . . sobre o conhecimento das ervas do País, e o método de as aplicar, e o conhecimento das diferentes moléstias da terra e, respondendo conforme, o deram por examinado e com conhecimentos para exercer os ofícios de curandeiro nos lugares onde não houver Médico ou Cirurgião Aprovado conforme determina o Regimento

(Lopes, 1822Lopes, J. M. (1822). Processo de obtenção de licença de curandeiro. (Fisicatura-mor, Caixa 471-2). Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.).

Por ter sido aprovado, o físico-mor Francisco Manoel de Paula declarava que João, ‘preto forro’, recebia a

. . . licença pelo tempo de um ano para que no lugar de sua residência, não havendo Médico, ou Cirurgião Aprovado em Medicina, possa curar com ervas do País aquelas enfermidades que são vulgares, sendo obrigado a consultá-los no caso de dúvida e vir a este Juízo no fim de seis meses dar conta do que tiver praticado, e dos casos dignos de comunicação, e obrando em contrário incorrerá nas penas de desobediência

(Lopes, 1822Lopes, J. M. (1822). Processo de obtenção de licença de curandeiro. (Fisicatura-mor, Caixa 471-2). Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.).

Consta pelo menos um pedido de renovação da licença em 1823.

O ‘preto forro’ Adão dos Santos Chagas também apresentou uma solicitação, em 1815, na qual afirmava conhecer várias mezinhas para certas enfermidades e pedia para ser examinado e poder, então, ‘fazer as curas que soubesse’ por não haver nos sertões de Cantagalo e nas Cachoeiras de Macacu médico aprovado ou pessoas que pudessem socorrer os pobres habitantes daquele distrito. Para reforçar seus argumentos, Adão anexou um abaixo-assinado com quarenta e quatro assinaturas de moradores nos sertões de Macacu, dizendo que residia entre eles “. . . um crioulo chamado Adão o qual aprendeu a barbeiro [sic] e a sangrar na cidade e, também, teve prática algum tempo no hospital da Santa Casa e tem conhecimento das várias ervas medicinais que entre nós há com abundância. . .” (Chagas, 1815Chagas, A. S. (1815). Processo de obtenção de licença de curandeiro (Fisicatura-mor, Caixa 468-2). Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.).

Romana de Oliveira, por sua vez, dirigiu-se à Fisicatura-mor, em 1813, para apresentar sua defesa, pois havia sido denunciada, por um cirurgião, por curar sem autorização na freguesia de São Gonçalo. Condenada a pagar multa, Romana, identificada como parda forra, argumentava que

. . . se tem assistido a alguns partos é a pessoas da sua família e outras da sua amizade, e nunca por estipêndio e paga, e por serem estes uns atos, que de sua natureza requerem assistência de mulher, e não de homem, e para que o mesmo cirurgião só deve ser chamado depois de se presumir perigo

(Oliveira, 1813Oliveira, R. (1813). Processo de obtenção de licença de parteira e curandeira (Fisicatura-mor, Caixa 747-3). Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.).

Em seu argumento, portanto, para tentar ser inocentada, Romana diminuiu a sua provável importância para aquela comunidade4 4 Estudos sobre regiões mais urbanas mostram que muitas parteiras tinham outras atividades relacionadas, como “. . . aluguel de amas de leite, a criação de crianças de leite, aluguel de quartos para senhoras, aulas de partos, sangrias e aplicação de ventosas, cura de chagas no útero e de enfermidades em geral. . .” (Barbosa & Pimenta, 2016, p. 492). .

Para confirmar isso, Romana apresentou um documento assinado por algumas pessoas do local e que possuíam cargos respeitáveis, atestando que as grávidas a escolhiam para assisti-las no parto porque ela tinha experiência e não havia parteira examinada naquela freguesia. É interessante pontuar que, tanto no caso de Adão quanto no de Romana, podemos observar a rede de sociabilidade na qual esses curandeiros estavam inseridos. Eles se valeram de assinaturas de pessoas com posições sociais mais privilegiadas, que defendiam suas práticas curativas e reconheciam a legitimidade do conhecimento de crioulos e pardos forros.

No atestado a favor de Romana, acrescentavam ainda que, em relação aos remédios, ela

. . . pratica aqueles que de comum e ordinário todos fazem, que vem a ser suadores, cordiais5 5 Bebida ou medicamento que reanima, fortalece. , ou chás de ervas ou raízes, como de fedegoso, erva colejo, crapiã, casquinha de limão, marcela, galega, para aquelas enfermidades que qualquer conhece, como constipações, defluxos, indigestões

(Oliveira, 1813Oliveira, R. (1813). Processo de obtenção de licença de parteira e curandeira (Fisicatura-mor, Caixa 747-3). Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.).

Geralmente, essas mulheres possuíam conhecimentos sobre remédios que auxiliassem a contracepção, o aborto, assim como sobre os cuidados antes e depois do parto, conforme muitos estudos apontam, como os de Mott (2002)Mott, M. L. (2002). Assistência ao parto: Do domicílio ao hospital (1830-1960). Projeto História, 25, 197-219. e Witter (2001)Witter, N. A. (2001). Dizem que foi feitiço: As práticas da cura no sul do Brasil (1845 a 1880). EDIPUCRS.. Em sua pesquisa sobre maternidade e escravidão no Rio de Janeiro oitocentista, Telles (2018, pp. 163-164)Telles, L. F. S. (2018). Teresa Benguela e Felipa Crioula estavam grávidas: Maternidade e escravidão no Rio de Janeiro (século XIX) [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo. mostra que parteiras africanas, crioulas e portuguesas empobrecidas amparavam os nascimentos, procurando proteger parturientes e bebês através de rituais que envolviam amuletos, rezas, encantamentos e ervas. O conhecimento sobre determinadas plantas era importante também por elas ajudarem a acelerar o trabalho de parto, bem como por induzirem o aborto. Segundo Schwartz (2009, p. 96)Schwartz, M. J. (2009). Birthing a slave: Motherhood and medicine in the antebellum South. Harvard University Press., a raiz do algodoeiro era usada por escravizadas no sul dos Estados Unidos para restaurar a menstruação6 6 Schwartz (2009, p. 96) chama atenção para o interessante ponto acerca da intencionalidade do aborto, destacando que a ambiguidade sobre suspensão da menstruação e o início da vida concedia às mulheres algum grau de flexibilidade no controle da fertilidade, sem enfrentarem resistência por parte da comunidade escrava. Ver também Fett (2002). . Em sua análise sobre a rebelião dos malês, de 1835, em Salvador, Reis (1986, p. 228)Reis, J. J. (1986). Rebelião escrava no Brasil: A história do levante dos malês, 1835. Editora Brasiliense. observa que as mulheres africanas possuíam poucos filhos, o que atribui, provavelmente, ao conhecimento de ervas, e de outros métodos, que ajudavam no controle da natalidade.

A comparação entre a lista de plantas citadas no processo de Romana e os vegetais usados por boticários e médicos, indicados em outros documentos da Fisicatura-mor, mostra que não havia diferenças substanciais. Plantas medicinais de uso popular como alfazema, alecrim, canela, quina, erva cidreira, além de fedegoso e macela, faziam parte dos tratamentos prescritos tanto por terapeutas populares, quanto por médicos de formação acadêmica e da provisão de uma boa botica ou de uma loja com licença para vender drogas medicinais. É interessante perceber a circulação de conhecimentos e de plantas entre Brasil e Europa, assim como atentar para tais trocas entre Brasil e África, de onde se importava, no século XIX, azeite de dendê e nozes de cola (obi e orobô). Esse comércio também se verificava internamente, pois muitos produtos eram levados da Bahia para o Rio de Janeiro, sobretudo as ‘colas da Costa’ (Sampaio, 2016Sampaio, G. R. (2016). Africanos em trânsito entre Salvador e Rio de Janeiro nas últimas décadas do século XIX. In E. S. Souza, G. Marques & H. R. Silva (Orgs.), Salvador da Bahia: Retratos de uma cidade atlântica (pp. 313-340). EDUFBA.).

João, Adão e Romana eram alforriados, condição que permitiria mais recursos e mobilidade para obtenção de plantas e outras substâncias medicinais. Eram africanos ou descendentes de africanos, cujas vidas foram atravessadas pela experiência da escravidão e, provavelmente, tiveram suas concepções de saúde e doença, seus saberes sobre o corpo e a cura, formados a partir de visões cosmológicas centro-africanas, conforme Slenes (1992, p. 58)Slenes, R. W. (1992). “Malungu, ngoma vem”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, (12), 48-67. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i12p48-67
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, de acordo com as quais a doença, assim como o desequilíbrio e o infortúnio seriam causados por bruxaria ou feitiçaria (Pimenta, 1998Pimenta, T. S. (1998). Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-28). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 5(2), 349-374. https://doi.org/10.1590/S0104-59701998000200005
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, p. 362). Um processo da Fisicatura-mor reforça essa hipótese, embora também seja necessário considerar as interações com concepções sobre saúde de outras etnias africanas, povos indígenas e grupos europeus7 7 Curandeiros de origem africana, no sul dos Estados Unidos, também tiveram suas práticas influenciadas por artes de curar europeia, nativa, africana, incorporadas de acordo com as questões médicas colocadas no contexto em que atuavam (Covey, 2007). .

Em 1816, Bento Joaquim, morador em Inhaúma, pedia licença para atuar como curandeiro e apresentava alguns atestados junto com sua solicitação. Um deles era do cirurgião aprovado Manoel Ricardo da Silveira, que dizia ser o curativo de Bento

não foi mais senão com cozimentos de raízes dados internamente, externamente banhos de ervas, clisteres das mesmas, vindo eu no conhecimento que o seu curativo era ficá [sic] por presenciar entre o gentio da Costa de Leste onde tenho feito sete viagens, [para o Reino de Angola, Cabinda, Capitania de Benguela] onde presentemente navego – que o curativo entre eles não é mais senão com cozimentos de raízes, e ervas, e como os meus escravos ficaram bons com os medicamentos do curador na forma do gentio da Costa de Leste, e eu satisfeito com a saúde deles, passei esta por ser verdade. . .

(Joaquim, 1816Joaquim, B. (1816). Processo de obtenção de licença de curandeiro. (Fisicatura-mor, Caixa 466-1). Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.)8 8 Documento citado em Pimenta (1998, p. 369). .

O cirurgião apontava que nem ele, nem outro médico haviam conseguido curar os seus escravizados. Esse argumento, que valorizaria a habilidade de Bento, foi repetido em outros dois testemunhos: Thereza Joanna do Espírito Santo e Quitéria Maria de Santa Anna afirmavam que padeceram de moléstias por muitos anos, as quais os professores da Corte não haviam conseguido curar. De acordo com elas, foi Bento Joaquim que as curou com “raízes de pau e folhas do mato” (Joaquim, 1816Joaquim, B. (1816). Processo de obtenção de licença de curandeiro. (Fisicatura-mor, Caixa 466-1). Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.). Por fim, Bento explicava que algumas moléstias eram causadas “quase por artes diabólicas que por muita experiência e conhecimento que tem o Suplicante da dita moléstia, cura e ficam sãos” (Joaquim, 1816Joaquim, B. (1816). Processo de obtenção de licença de curandeiro. (Fisicatura-mor, Caixa 466-1). Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.).

Bento conseguiu a licença almejada, apesar de não seguir estritamente o discurso oficial ao indicar que curava pessoas a quem médicos e cirurgiões não puderam curar e ao se referir a doenças com causas espirituais. De modo semelhante, escravizados na Virgínia, EUA, consideravam que médicos brancos não poderiam ajudar em doenças causadas por feitiços. Muitas vezes, escondiam a doença ou a sua gravidade para que pudessem se tratar sozinhos ou com ajuda de terapeutas considerados mais apropriados (Savitt, 2002Savitt, T. L. (2002). Medicine and slavery: diseases and health care of blacks in Antebellum Virginia. University of Illinois Press.; Schwartz, 2009Schwartz, M. J. (2009). Birthing a slave: Motherhood and medicine in the antebellum South. Harvard University Press., pp. 50-52).

Entre os que solicitavam autorização para exercer alguma arte de curar à Fisicatura-mor, contudo, a maior parte seguia as regras e os discursos oficiais, encontrados em atestados, certidões, licenças e requerimentos. Para a instituição, o que definia um curandeiro era o conhecimento sobre ervas medicinais do país, o que era repetido nos pedidos para serem examinados, nos autos de exame e nas próprias licenças. O caso de Bento Joaquim, porém, permite que se perceba que, por trás do discurso de quem se dirigia à Fisicatura-mor solicitando a oficialização de suas atividades terapêuticas, haveria práticas e saberes que lidavam com o sobrenatural. Estudos sobre doenças e terapêuticas entre afro-americanos do sul dos EUA mostram, igualmente, que aspectos espirituais de cura e de tratamento desempenhavam um papel muito importante, junto com o emprego de plantas medicinais, entre as artes de curar exercidas por escravizados (Covey, 2007Covey, H. C. (2007). African American slave medicine: Herbal and non-herbal treatments. Lexington Books., pp. 47-75; Schwartz, 2009Schwartz, M. J. (2009). Birthing a slave: Motherhood and medicine in the antebellum South. Harvard University Press., p. 61).

AMANSAMENTO DE SENHORES

Outro modo de empregar as plantas para proteção era usá-las nos senhores, procurando amansá-los. Diversas acusações contra escravizados por tentativa de homicídio ou por homicídio estavam relacionadas ao uso de substâncias venenosas. Em sua defesa, muitos acusados argumentavam que não pretendiam matar ninguém da família senhorial, explicando que havia ocorrido algum engano na dosagem ou, ainda, que haviam sido enganados por terceiros que teriam fornecido o veneno (R. Silva, 2001Silva, R. C. (2001). Muzungas: Consumo e manuseio de químicas por escravos e libertos no Rio Grande do Sul (1828-1888). EDUCAT.; Moreira & Al-Alam, 2013Moreira, P. R. S., & Al-Alam, C. C. (2013). “Já que a desgraça assim queria” um feiticeiro foi sacrificado: Curandeirismo, etnicidade e hierarquias sociais (Pelotas - RS, 1879). Afro-Ásia, 47, 119-159.). Nesses casos, tornam-se evidentes as redes em que estavam inseridos, externas à casa do senhor, que permitiam a aquisição de plantas ou substâncias tóxicas, em geral, envolvendo africanos ou descendentes libertos ou livres, que teriam mais mobilidade para tanto.

Havia proibições para que escravizados comprassem substâncias venenosas em lojas e boticas. Uma postura da cidade do Rio de Janeiro publicada em 1838, por exemplo, deixava claro que os boticários não poderiam as vender em grandes porções “. . . a escravos e pessoas desconhecidas, suspeitas, e que não precis[ass]em delas no exercício de sua profissão. . .” (Moraes Filho, 1894Moraes Filho, M. (1894). Código de Posturas: Leis, decretos, editais e resoluções da Intendência Municipal do Distrito Federal. Papelaria e Typographia Mont’Alverne., p. 3)9 9 Ver Título 2, parágrafo 4º, Postura de 11 de setembro de 1838 (Moraes Filho, 1894, p. 3). . O medo de que senhores e suas famílias fossem envenenados por seus cativos era generalizado. Como aponta João Reis, na Bahia, em 1847, uma postura de Cachoeira proibia a venda de ‘droga venenosa’ a escravos e, em 1859, uma postura de Salvador também tornava proibida a venda de “. . . substâncias venenosas, e suspeitas. . .” se não se apresentasse detalhes como quem receitou, a qualidade e a quantidade, o nome do comprador e a finalidade (Reis, 2008Reis, J. J. (2008). Domingos Sodré: Um sacerdote africano escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. Companhia das Letras., p. 151). O medo, que denotava o reconhecimento da eficácia, de que escravizados pudessem usar seus conhecimentos sobre raízes, ervas e substâncias químicas, como arsênico, contra a saúde de senhores e suas famílias podia ser observado no sul dos Estados Unidos igualmente (Schwartz, 2009Schwartz, M. J. (2009). Birthing a slave: Motherhood and medicine in the antebellum South. Harvard University Press., p. 58; Hogarth, 2017Hogarth, R. (2017). Medicalizing Blackness: making racial difference in the Atlantic world, 1780-1840. University of North Carolina Press., p. 123).

O uso de plantas medicinais e/ou venenosas era mais difícil de ser controlado do que o das substâncias vendidas em boticas. A farmacopeia nagô-iorubá era constituída por folhas que serviam para ataque e proteção, para beneficiar e para prejudicar, e deveria vir acompanhada de palavras e rituais. A erva da guiné (Petiveria alliacea) era conhecida como ‘amansa senhor’. Tinha propriedades antiespasmódicas e, se usada por longo tempo, dependendo da dose, podia causar letargia e até a morte. Outras plantas também conquistaram esse apelido, como o mulungu (Erythrina speciosa), que possuiria propriedades soníferas (Reis, 2008Reis, J. J. (2008). Domingos Sodré: Um sacerdote africano escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. Companhia das Letras., p. 152).

Estudos sobre escravidão têm apontado, sobretudo, para a utilização de ervas que pudessem amansar os senhores e que faziam parte do sistema medicinal-religioso de grupos étnicos africanos, em que o sobrenatural poderia interferir no natural. No caso da cultura iorubá, podemos citar uma canção religiosa na qual se afirmava, no final do Oitocentos, que “. . . todas as folhas são de orixá. . .” (Reis, 2008Reis, J. J. (2008). Domingos Sodré: Um sacerdote africano escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. Companhia das Letras., p. 152)10 10 Reis (2008, p. 152) chama atenção para essa canção colhida por R. Rodrigues (2010) na Bahia, no final do século XIX. . Assim, muitos escravizados podem ter recorrido a rituais e a orientações de seus líderes religiosos na busca pela liberdade e, segundo seus depoimentos, na tentativa de tornar os senhores menos violentos (R. Silva, 2001Silva, R. C. (2001). Muzungas: Consumo e manuseio de químicas por escravos e libertos no Rio Grande do Sul (1828-1888). EDUCAT.; Moreira & Al-Alan, 2013Moreira, P. R. S., & Al-Alam, C. C. (2013). “Já que a desgraça assim queria” um feiticeiro foi sacrificado: Curandeirismo, etnicidade e hierarquias sociais (Pelotas - RS, 1879). Afro-Ásia, 47, 119-159.). Ao analisar a trajetória do sacerdote africano Domingos Sodré, que viveu durante boa parte do século XIX, Reis (2008, pp. 223-224)Reis, J. J. (2008). Domingos Sodré: Um sacerdote africano escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. Companhia das Letras. aponta para a ligação entre alforria e feitiço, especificamente para o poder de comunicação com os deuses e o conhecimento de ervas, que poderiam amolecer o senhor durante a negociação sobre a compra da liberdade. As plantas, portanto, não serviam apenas para tratar de problemas físicos e espirituais. Serviam para ajudar escravizados a negociarem com seus senhores e para que africanos e seus descendentes, em geral, melhorassem suas condições de vida.

PLANTAS QUE AJUDAM A INCRIMINAR

Além de casos registrados como homicídio ou tentativa de homicídio analisados em processos-crime, identifica-se o indiciamento de muitos acusados de estelionato e de exploração da fé de pessoas tidas como ignorantes. Como bem apontou Reis (1986)Reis, J. J. (1986). Rebelião escrava no Brasil: A história do levante dos malês, 1835. Editora Brasiliense., conhecemos partes das trajetórias de curandeiros e feiticeiros porque a repressão atuou e registrou, de modo enviesado, as suas atividades11 11 Em seu estudo sobre a rebelião dos Malês, de 1835, Reis (1986, p. 210) aponta casos de feiticeiros que curavam com ervas a partir da tradição dos orixás. . E, dessa forma, existem informações sobre algumas plantas utilizadas por eles. O Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (1890)Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. (1890). https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html
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estabelecia artigos que previam punição para práticas de magia, curandeirismo e prática ilegal de medicina, o que estimulou o desenvolvimento de muitas pesquisas sobre o tema situadas nas primeiras décadas do período republicano12 12 Ver, por exemplo, Maggie (1992), C. Silva (2017), Rocha (2020), G. Silva (2019) e Albino (2021). . De fato, o Código Criminal do Império, publicado em 1830, advertia apenas que, se alguma pessoa ajudasse a cometer aborto e fosse “. . . médico, boticário, cirurgião, ou praticante de tais artes. . .”, receberia penas dobradas em relação a quem não fosse (Código Criminal do Império do Brasil, 1830Código Criminal do Império do Brasil. (1830). In Coleção das Leis do Império do Brasil (Part. 1, pp. 142-193). Tipographia Nacional. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis/copy_of_colecao2.html
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, p. 181)13 13 Artigos 199 e 200 do Código Criminal do Império do Brasil, de dezembro de 1830. .As autoridades poderiam recorrer ao artigo que condenava os que faziam uso de títulos sem os ter, porém, isso enquadrava apenas uma pequena parcela, já que a maior parte dos terapeutas populares não anunciava que tinha título de médico ou cirurgião14 14 Artigo 300 do Código Criminal do Império do Brasil, de dezembro de 1830. . Apesar disso, “. . . o Império tinha suas próprias formas de punir, e reprimia com vigor cultos e práticas de curandeiros. . .”, como destaca Sampaio (2009, p. 232)Sampaio, G. R. (2009). Juca Rosa: Um pai-de-santo na corte imperial. Arquivo Nacional..

Mesmo durante o período de atuação da Fisicatura-mor, de 1808 a 1828, quando havia espaço para a oficialização de curandeiros, a maioria não era licenciada e estava sujeita à repressão (Pimenta, 1998Pimenta, T. S. (1998). Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-28). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 5(2), 349-374. https://doi.org/10.1590/S0104-59701998000200005
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). Em 1814, por exemplo, Vicente José Bento, identificado como ‘mina forro’, foi preso, no centro do Rio de Janeiro, para averiguações, de acordo com as autoridades, por granjear ‘o nome de curador de diversas enfermidades’. Conforme as testemunhas ouvidas, Vicente usava ervas, raízes e ossos para alcançar as curas. Suspeito de extorquir diversas ‘quantias em dinheiro’, um mês depois de sua prisão, um ofício endereçado ao juiz do crime de São José complementava que o ‘preto se inculcava feiticeiro’ e que realizava ‘embustes para extorquir dinheiros a pessoas rústicas’ (“Registro do ofício...”, 1814Registro do ofício ao juiz do crime do bairro de São José. (1814, agosto e setembro). (Códice 329, 2, 213v-214). Arquivo Nacional.).

É possível que Vicente José Bento tenha adquirido os seus conhecimentos herbários a partir da cultura iorubá (localizada no oeste africano, onde se identifica, de modo genérico, os mina), cuja cosmologia incluía um orixá específico – Ossanha – e em nome do qual realizou-se um amplo estudo das folhas, ervas e raízes das florestas, classificando-as de acordo com as suas propriedades terapêuticas (Thompson, 2011Thompson, R. F. (2011). Flash of the spirit: arte e filosofia africana e afro-americana. Museu Afro Brasil., p. 55). Outros estudos sobre o sul escravista dos EUA também apontam para a circulação de conhecimentos sobre plantas, em especial as locais, entre gerações de escravizados (Covey, 2007Covey, H. C. (2007). African American slave medicine: Herbal and non-herbal treatments. Lexington Books., pp. 46-47; Savitt, 2002Savitt, T. L. (2002). Medicine and slavery: diseases and health care of blacks in Antebellum Virginia. University of Illinois Press., p. 173). No caso de curandeiros e feiticeiros no Rio de Janeiro, devemos considerar o contato com as culturas africanas sempre renovado pelo tráfico atlântico até 1850. Quanto a Vicente, pode-se supor que, chegando ao Brasil, passou a organizar novas informações sobre as plantas medicinais nativas sob os mesmos preceitos da cultura onde foi criado na África.

Observa-se que Vicente Bento era forro e, talvez, sua liberdade tenha sido alcançada com os rendimentos obtidos no exercício da arte de curar; ou poderia ter sido liberto a partir das relações estabelecidas por essa atividade ou mesmo através de seus conhecimentos de ervas para amansar seu senhor. Três possibilidades que podem ter concorrido para que Vicente fosse alforriado.

Destaque-se que a presença de ervas, plantas e raízes era citada, frequentemente, como um dos elementos que confirmava que a repressão policial identificava a casa investigada como local de práticas religiosas de origem africana. Assim, o subdelegado da freguesia de São José, ao verificar uma denúncia contra a ‘preta forra’ Maria, fez questão de destacar que encontrou, em sua casa, pós, raízes e folhas diversas, além de “. . . água benta, cordões com diferentes nós, figuras emblemáticas e uma infinidade de bruxarias. . .” (Jornal do Commercio, 1853Jornal do Commercio. (1853, junho 12). Jornal do Commercio. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=364568_04&Pesq=%22infinidade%20de%20bruxarias%22&pagfis=5407
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, p. 2). Em outra situação, a morte de uma senhora branca, D. Francisca do Valle, com mais de 70 anos e sem herdeiros, levou autoridades à sua casa, onde se descobriu que ela acreditava em feitiços de ‘negros Minas’. Entre muitos outros objetos, encontraram “. . . uma imensidade de drogas espalhadas pelo chão, raízes e cascas desconhecidas, pequenas penas de pássaros e muitas outras coisas. . .”. Além disso, abriram os ‘inumeráveis breves ou patuás’ e registraram que “. . . continham dentro unhas, espinhos e pedacinhos de paus e drogas da Costa d’África. . .” (“Morte, bruxaria”, 1851Morte, bruxaria, esterquilínio. (1851, setembro 22). Jornal do Commercio. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=364568_04&pasta=ano%20185&pesq=%22esterquilinio%22&pagfis=2777
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, p. 1).

A associação entre as crenças espirituais e as atividades de cura é evidenciada no estudo de Sampaio (2009)Sampaio, G. R. (2009). Juca Rosa: Um pai-de-santo na corte imperial. Arquivo Nacional., que mostra que parte da clientela do feiticeiro Juca Rosa buscava respostas para males físicos, tratados com rituais, manipulação de forças sobrenaturais e remédios feitos de ervas e líquidos. O processo contra Juca Rosa, de 1871, explicita também que não bastava conhecer as ervas medicinais apropriadas. Era necessário saber os procedimentos rituais específicos. Assim, uma testemunha relatou que, ao se queixar de uma “. . . ferida de mau caráter. . .”, Pai Juca Rosa orientou que fosse colocada uma mistura de azeite de dendê e ervas no local, mas o remédio só teria efeito se a moça colhesse as ervas de acordo com a batida de seu coração. Provavelmente, a seguidora de Rosa sabia quais plantas deveriam ser usadas, de acordo com seu orixá (Sampaio, 2009Sampaio, G. R. (2009). Juca Rosa: Um pai-de-santo na corte imperial. Arquivo Nacional., pp. 226-228).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurou-se mostrar que as plantas estavam presentes no cotidiano de africanos e seus descendentes no Rio de Janeiro como um importante elemento em suas concepções de mundo, de acordo com a qual o sobrenatural poderia interferir no natural, sobretudo entre os grupos procedentes da África Central, que constituíam a maior parte dos africanos vindos para a cidade durante o século XIX, mas também de outras regiões africanas. Concordando com a afirmação de que a religião, além de ocupar papel de resistência, foi central na maneira de organizar a vida das pessoas (Sampaio, 2009Sampaio, G. R. (2009). Juca Rosa: Um pai-de-santo na corte imperial. Arquivo Nacional., p. 207), considerou-se que as crenças religiosas apontavam os modos como lidar com as doenças e com tensões com os senhores. Exemplos como o do curandeiro Bento Joaquim e de feiticeiros, citados no Jornal do Commercio, mostram a associação de práticas religiosas com o uso de plantas.

Cura, proteção e defesa seriam alcançadas através do conhecimento das plantas e de como usá-las. Isso envolvia a agência dos escravizados, mas também suas redes de sociabilidade construídas com outros escravizados, libertos e livres. Remetiam-se, em geral, a líderes religiosos que detinham tais conhecimentos, mas, por vezes, algumas práticas e usos podiam ser compartilhados entre a comunidade.

Deve-se considerar a circulação de saberes e práticas a respeito das plantas entre os diferentes grupos que habitavam o Rio de Janeiro no período das décadas de 1810 até 1850. Neste artigo, a análise é focada em diferentes utilizações das plantas por escravizados e libertos, que eram africanos e seus descendentes. Essas pessoas, provavelmente, usavam plantas de diversas origens, contudo, é preciso se atentar para a historiografia, que indica que parte dos vegetais utilizados era de origem africana, como ‘colas da costa’. Estudos sobre escravidão e disseminação de plantas voltados para o Caribe e o sul dos Estados Unidos apontam que os navios que faziam a travessia do Atlântico, levando africanos escravizados, eram abastecidos também com plantas originárias da África (Carney, 2003Carney, J. (2003). African traditional plant knowledge in the circum-Caribbean region. Journal of Ethnobiology, 23(2), 167-185.; Savitt, 2002Savitt, T. L. (2002). Medicine and slavery: diseases and health care of blacks in Antebellum Virginia. University of Illinois Press.).

A documentação da Fisicatura-mor mostra o reconhecimento de saberes e práticas de curandeiros que adequaram suas solicitações ao discurso esperado pelo órgão. O conhecimento sobre as plantas era valorizado e apresentado como um elemento que autorizava o exercício de suas atividades. Já as notícias veiculadas nos jornais do Rio de Janeiro entre as décadas de 1820 e de 1850 referem-se mais às ocorrências policiais, em que eram denunciados curandeiros e feiticeiros que estariam ludibriando pessoas consideradas ignorantes. As plantas apareciam na descrição da cena encontrada pelas autoridades como um objeto que enquadrava os suspeitos como estelionatários ou como supersticiosos incivilizados.

Vale ressaltar que, ainda que a atuação dos especialistas em curar com plantas medicinais nativas fosse considerada legítima pela Fisicatura-mor, havia repressão àqueles que não se encaixavam no perfil adequado de curandeiro, como Vicente José Bento. Do mesmo modo, após a extinção da Fisicatura-mor, as notícias acerca do uso de plantas por africanos e seus descendentes não eram apenas relativas à repressão. Se, por um lado, observa-se cada vez mais o discurso da elite médica e de autoridades que procuravam desqualificar e desautorizar os terapeutas populares, por outro, proprietários consideravam que cativos com conhecimento de ‘ervas e raízes medicinais’ poderiam ser mais valorizados, constituindo uma qualidade a ser destacada em anúncio de venda nos jornais da Corte, como esse, publicado em 1852:

Vende-se um preto de bonita figura, sem vícios nem moléstias, muito bom cozinheiro de fogão e assados de forno, e padeiro, para casa particular, muito bom pajem e trata bem de animais, e para todo o serviço de roça; é muito bom para um fazendeiro, por ter muita prática de tratar e curar escravos doentes, pelo conhecimento que tem de ervas e raízes medicinais, e mesmo de algumas moléstias triviais; podendo-se lhe fazer toda confidência para compras, vendas e outros muitos encargos; quem do mesmo precisar, dirija-se à rua do Conde n. 47, desde as 6 até às 9 horas da manhã, e de 1 às 3 da tarde, que achará com quem tratar e se dirá o motivo da venda

(“Vende-se”, 1852Vende-se. (1852, julho 30). Jornal do Commercio. http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=364568_04&pasta=ano%20185&pesq=%22fazer%20toda%20confid%C3%AAncia%20para%20compras%22&pagfis=4057
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader...
, p. 4).

Em relação às últimas décadas do Império, observam-se médicos, literatos e intelectuais discursando a favor do embranquecimento da população, buscando civilizar o Brasil de acordo com os moldes europeus burgueses. Sampaio (2009, p. 232)Sampaio, G. R. (2009). Juca Rosa: Um pai-de-santo na corte imperial. Arquivo Nacional. argumenta que, nesse contexto, a repressão se intensificou contra práticas religiosas africanas, que envolviam tratamentos espirituais e físicos. De fato, ao final do século XIX, os médicos haviam avançado bastante no processo de organização da corporação e de institucionalização. Dessa forma, a elite médica constituía uma voz importante contra as práticas religiosas e curativas de origem africana e exercidas por africanos e seus descendentes. Contudo, mesmo em relação a esse período, a historiografia mostra que os médicos acadêmicos não tinham tanto poder quanto gostariam e que a população, em geral, confiava e recorria com muita frequência a curandeiros e feiticeiros (Sampaio, 2001Sampaio, G. R. (2001). Nas trincheiras da cura: As diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas].; Edler, 2014Edler, F. C. (2014). Ensino e profissão médica na Corte de Pedro II. Editora da Universidade Federal do ABC.).

Por fim, destaca-se que, do ponto de vista da história social, é necessário compreender os saberes de escravizados e libertos sobre as plantas e as práticas de cura e/ou religiosas que as envolviam a partir da análise sobre o mundo desses africanos e seus descendentes, cujas vidas foram atravessadas pela experiência da escravidão. Portanto, a utilização de plantas constituiu um modo de resolver dificuldades e impasses do dia a dia. As plantas eram usadas para tratar doenças causadas por condições físicas ou por malefícios e desequilíbrios espirituais. Também se recorria às plantas para amenizar ou resolver a exploração por parte dos senhores. Assim, a análise de sua presença no cotidiano desse grupo pretende contribuir para ampliar a compreensão sobre as condições de vida e sobre a agência dessas pessoas.

AGRADECIMENTOS

A autora agradece a Eliane Fleck por valiosa indicação bibliográfica e aos pareceristas pelos comentários, críticas e sugestões. A pesquisa que embasou o artigo foi realizada com apoio da bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

  • 1
    Neste artigo, o Jornal do Commercio é priorizado, pois o levantamento inicial apontou mais resultados nesse periódico. A análise dos resultados, contudo, mostrou que, dos 658 registros de ‘raízes’, por exemplo, um número bem pequeno referia-se às plantas. A maior parte guardava outros significados, como origens de determinada questão.
  • 2
    A categoria terapeutas populares abarca uma grande diversidade de ofícios, abrangendo “. . . os que prestavam assistência à saúde de quem precisasse, utilizando saberes que não foram adquiridos academicamente. Em geral, pertenciam a camadas sociais mais baixas” e eram aceitos e requisitados pela população. Ver nota 3 em Pimenta (2004, p. 90)Pimenta, T. S. (2004). Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro durante a primeira metade do Oitocentos [Supl. 1]. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 11, 67-92. https://doi.org/10.1590/S0104-59702004000400004
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    .
  • 3
    As licenças localizadas no fundo Fisicatura-mor do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, referem-se à província do Rio de Janeiro. Provavelmente, como as licenças podiam ser assinadas pelos representantes do físico-mor, os trâmites se restringiam às províncias onde o curandeiro atuava, não havendo necessidade de que o processo fosse enviado para a Corte.
  • 4
    Estudos sobre regiões mais urbanas mostram que muitas parteiras tinham outras atividades relacionadas, como “. . . aluguel de amas de leite, a criação de crianças de leite, aluguel de quartos para senhoras, aulas de partos, sangrias e aplicação de ventosas, cura de chagas no útero e de enfermidades em geral. . .” (Barbosa & Pimenta, 2016Barbosa, G. M., & Pimenta, T. S. (2016). O ofício de parteira no Rio de Janeiro imperial. Revista de História Regional, 21(2), 485-510., p. 492).
  • 5
    Bebida ou medicamento que reanima, fortalece.
  • 6
    Schwartz (2009, p. 96)Schwartz, M. J. (2009). Birthing a slave: Motherhood and medicine in the antebellum South. Harvard University Press. chama atenção para o interessante ponto acerca da intencionalidade do aborto, destacando que a ambiguidade sobre suspensão da menstruação e o início da vida concedia às mulheres algum grau de flexibilidade no controle da fertilidade, sem enfrentarem resistência por parte da comunidade escrava. Ver também Fett (2002)Fett, S. M. (2002). Working cures: Healing, health, and power on southern slave plantations. The University of North Carolina Press..
  • 7
    Curandeiros de origem africana, no sul dos Estados Unidos, também tiveram suas práticas influenciadas por artes de curar europeia, nativa, africana, incorporadas de acordo com as questões médicas colocadas no contexto em que atuavam (Covey, 2007Covey, H. C. (2007). African American slave medicine: Herbal and non-herbal treatments. Lexington Books.).
  • 8
    Documento citado em Pimenta (1998, p. 369)Pimenta, T. S. (1998). Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-28). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 5(2), 349-374. https://doi.org/10.1590/S0104-59701998000200005
    https://doi.org/10.1590/S0104-5970199800...
    .
  • 9
    Ver Título 2, parágrafo 4º, Postura de 11 de setembro de 1838 (Moraes Filho, 1894Moraes Filho, M. (1894). Código de Posturas: Leis, decretos, editais e resoluções da Intendência Municipal do Distrito Federal. Papelaria e Typographia Mont’Alverne., p. 3).
  • 10
    Reis (2008, p. 152)Reis, J. J. (2008). Domingos Sodré: Um sacerdote africano escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. Companhia das Letras. chama atenção para essa canção colhida por R. Rodrigues (2010)Rodrigues, R. N. (2010). Os africanos no Brasil. Centro Edelstein de Pesquisa Social. na Bahia, no final do século XIX.
  • 11
    Em seu estudo sobre a rebelião dos Malês, de 1835, Reis (1986, p. 210)Reis, J. J. (1986). Rebelião escrava no Brasil: A história do levante dos malês, 1835. Editora Brasiliense. aponta casos de feiticeiros que curavam com ervas a partir da tradição dos orixás.
  • 12
    Ver, por exemplo, Maggie (1992)Maggie, Y. (1992). Medo do feitiço: Relações entre magia e poder no Brasil. Arquivo Nacional., C. Silva (2017)Silva, C. S. M. S. (2017). A cidade do Feitiço: feiticeiros no cotidiano carioca durante as décadas iniciais da Primeira República, 1890 a 1910 [Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense]., Rocha (2020)Rocha, R. R. (2020). “Curas maravilhosas”: curadores itinerantes no Brasil republicano (1898- 1905) [Tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia]., G. Silva (2019)Silva, G. C. G. (2019). A cabaça do segredo: Religiosidades e concepções populares de cura no Rio de Janeiro, c.1889-1927 [Tese de doutorado, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro]. e Albino (2021)Albino, J. N. (2021). Na imprensa, entre leis e ciências: O curandeirismo em questão na Primeira República (1890-1899) [Dissertação de mestrado, Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz]..
  • 13
    Artigos 199 e 200 do Código Criminal do Império do Brasil, de dezembro de 1830.
  • 14
    Artigo 300 do Código Criminal do Império do Brasil, de dezembro de 1830.
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Editado por

Responsabilidade editorial: Márcio Couto Henrique

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2021
  • Aceito
    18 Jan 2022
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