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Tafonomia funerária na Serra das Confusões: os processos de formação dos depósitos mortuários na Toca do Enoque, Holoceno médio, Nordeste do Brasil

Funerary taphonomy in the Serra das Confusões: the processes for the formation of mortuary deposits in Toca do Enoque, Middle Holocene, Northeastern Brazil

Resumo

Este artigo apresenta uma interpretação das práticas funerárias e pós-funerárias do sítio arqueológico Toca do Enoque, situado no Parque Nacional Serra das Confusões (Piauí, Brasil). As escavações arqueológicas possibilitaram a descoberta de três sepultamentos no local. Através de uma releitura dos contextos funerários escavados no sítio, foi possível propor a versão presumida dos processos de formação de cada depósito mortuário por meio de uma abordagem tafonômica. Dois sepultamentos eram individuais, o primeiro do tipo primário e não perturbado, enquanto o terceiro apresentou perturbações pós-deposicionais naturais e culturais. Ademais, o segundo sepultamento, uma ‘tumba de uso contínuo’ (ongoing tomb use) continha dez indivíduos e características complexas de formação, uso e reuso do depósito mortuário. As datações indiretas dos sepultamentos situam o uso funerário do abrigo por povos indígenas caçadores-coletores pré-ceramistas durante o Holoceno médio (c. 6.000-5.000 anos antes do presente).

Palavras-chave
Tafonomia funerária; Práticas funerárias; Pós-funerárias; Toca do Enoque; Holoceno médio; Nordeste do Brasil

Abstract

This article presents an interpretation of the funerary and post-funerary practices of the archaeological site Toca do Enoque, located in the Serra das Confusões National Park (Piauí, Brazil). Archaeological excavations have made it possible to discover three burials at the site. Through a new lecture on the mortuary contexts excavated at the site, it was possible to propose the presumed reconstruction of each mortuary deposit formation processes through a taphonomic approach. Two burials were individual, the first primary and undisturbed, while the third had post-depositional natural and cultural disturbances. In addition, the second burial, an ongoing tomb use, contained ten individuals and complex characteristics of the mortuary deposit formation, use and reuse. Indirect burial dates place the funerary use of the shelter by indigenous groups, pre-ceramic hunter-gatherers, during the Middle Holocene (c. 6,000 – 5,000 years before the present).

Keywords
Funerary taphonomy; Funerary; Post-funerary practices; Toca do Enoque; Middle Holocene; Northeast of Brazil.

INTRODUÇÃO

As pesquisas arqueológicas na caatinga semiárida no sudeste do estado do Piauí, Nordeste do Brasil, lideradas por Niede Guidon e a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), estão em andamento desde a década de 1970. Inicialmente, as atividades ficaram centradas na prospecção dos numerosos sítios com registros rupestres das tradições Nordeste, Agreste e Geométrica, incluindo as suas subtradições e estilos localizados na região dos Parques Nacionais Serra da Capivara e Serra das Confusões (Pessis, 1992Pessis, A. M. (1992). Identidade e classificação dos registros gráficos pré-históricos do nordeste do Brasil. Clio Arqueológica, 1(8), 35-68.).

Nesta região do Nordeste, foram registrados, até o presente, 1.210 sítios pré-históricos e históricos, arqueológicos e paleontológicos nos dois parques nacionais. Neste total, foram escavados 27 sítios arqueológicos contendo remanescentes ósseos humanos. A maioria dos sítios apresenta registros rupestres, entretanto, alguns também incluem achados de fogueiras, artefatos líticos, cestaria, cerâmica, ossos, óxido de ferro (ocre) para pinturas e outros materiais arqueológicos. Muitos desses vestígios estão associados a uma série de práticas mortuárias realizadas por diferentes grupos indígenas pré-contato, que viveram por milênios nesta área do Nordeste brasileiro. As datações revelaram o uso para fins funerários de cavernas, abrigos sob rocha e locais ao ar livre, pelo menos, desde a transição Pleistoceno-Holoceno e ao longo do Holoceno até o período de contato com os europeus (Martin, 1992Martin, G. (1992). La antigüedad del hombre en el Nordeste de Brasil. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, (2), 7–12. https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.1992.108964
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, 1996Martin, G. (1996). Pré-história do Nordeste do Brasil. Editora Universitária da UFPE.; Pessis, 1999Pessis, A. M. (1999). Pré-história da região do Parque Nacional Serra da Capivara. In M. C. Tenório (Org.), Pré-história da Terra Brasilis (pp. 61-72). UFRJ.; Guidon et al., 2009bGuidon, N., Pessis, A. M., & Martin, G. (2009b). Pesquisas arqueológicas na região do Parque Nacional Serra da Capivara e seu entorno (Piauí, 1998-2008). Fumdhamentos, (8), 1-61.; Pessis et al., 2014Pessis, A. M., Martin, G., & Guidon., N. (Orgs.). (2014). Os biomas e as sociedades humanas na pré-história da região do Parque Nacional Serra da Capivara, Brasil. FUMDHAM.; Strauss et al., 2018Strauss, A., Oliveira, R. E., Gratão, M., Costa, A., Fogaça, E., & Böeda, E. (2018). Human skeletal remains from Serra da Capivara, Brasil: review of the available evidence and report on new findings. In K. Harvati, G. Jäger & H. Reyes-Centeno (Orgs.), New perspectives on the peopling of the New World (pp. 153-171). Kerns Verlag.; Lourdeau, 2019Lourdeau, A. (2019). A Serra da Capivara e os primeiros povoamentos sul-americanos: uma revisão bibliográfica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 14(2), 367-398. http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222019000200007
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).

As práticas funerárias mais comuns de sepultar os mortos, entre os povos indígenas caçadores-coletores e, posteriormente, horticultores-ceramistas no Parque Nacional da Serra da Capivara, caracterizam-se por inumações individuais primárias (ou simples), com ou sem acompanhamentos funerários e presença de remanescentes de fogueiras associadas ao ritual do enterramento. Os corpos eram depositados diretamente no solo em covas ou, indiretamente, dentro de urnas funerárias de cerâmica. As deposições funerárias continham esqueletos de indivíduos de várias idades e de ambos os sexos, dispostos em diferentes posições, em sua maioria, em decúbito dorsal estendidos ou hiperfletidos em posição fetal, sentados ou deitados (Martin, 1994Martin, G. (1994). Os rituais funerários na Pré-história do Nordeste. Clio Arqueológica, 10(1), 29-46.). Entre esses locais, podemos citar alguns exemplos, como Toca do Paraguaio, Toca do Gongo I, Toca do Gongo III, Toca dos Coqueiros, Toca da Janela da Barra do Antonião, Toca do Garrincho, Toca das Moendas e Toca da Baixa dos Caboclos, entre outros (Alvim & Ferreira, 1985Alvim, M. C. M., & Ferreira, F. J. L. C. (1985). Os esqueletos do abrigo Toca do Paraguaio, Município de São Raimundo Nonato, Piauí: estudo antropofísico. Cadernos de Pesquisa - Série Antropologia, 3(4), 239-261.; Maranca, 1976Maranca, S. (1976). A Toca do Gongo I: abrigo com sepultamentos no estado do Piauí. Revista do Museu Paulista, 23, 155-173., 1991Maranca, S. (1991). Agricultores ceramistas da área de São Raimundo Nonato. Clio Arqueológica, 4(1), 95-97.; Peyre, 1993Peyre, E. (1993). Nouvelle découverte d’un homme préhistorique américain: une femme de 9700 ans au Brésil. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, 316(6), 839-842.; Peyre et al., 1998Peyre, E., Guérin, C., Guidon, N., & Coppens, Y. (1998). Des restes humains pléistocènes dans la grotte du Garrincho, Piauí, Brésil. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences, 327(5), 335-360. https://doi.org/10.1016/S1251-8050(98)80055-4
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; Guidon et al., 1998Guidon, N., Parenti, F., Oliveira, C., & Vergne, C. (1998). Nota sobre a sepultura da Toca dos Coqueiros, Parque Nacional Serra da Capivara, Brasil. Clio Arqueológica, (13), 187-197., 2000Guidon, N., Peyre, E., Guérin, C., & Coppens, Y. (2000). Resultados da datação de dentes humanos da Toca do Garrincho, Piauí, Brasil. Clio Arqueológica, (14), 75-86., 2009aGuidon, N., Guérin, C., Faure, M., Felice, G. D., Buco, C., & Ignácio, E. (2009a). Toca das Moendas, Piauí-Brasil, primeiros resultados das escavações arqueológicas. Fumdhamentos, (8), 71-85.; Lessa & Guidon, 2002Lessa, A., & Guidon, N. (2002). Osteobiographic analysis of skeleton I, Sítio Toca dos Coqueiros, Serra da Capivara National Park, Brazil, 11, 060 BP: first results. American Journal of Physical Anthropology, 118(2), 99-110. https://doi.org/10.1002/ajpa.10084
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; Almeida & Neves, 2009Almeida, T. F., & Neves, W. A. (2009). Toca do Serrote das Moendas: cura, inventário e descrição sumária. Fumdhamentos, 8, 86-93. http://fumdham.org.br/wp-content/uploads/2018/08/fumdham-fumdhamentos-viii-2009-_853648.pdf
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; Souza et al., 2002Souza, S. M. F. M., Vidal, I. A., Oliveira, C., & Vergne, C. (2002). Mumificação natural na Toca da Baixa dos Caboclos, sudeste do Piauí: uUma interpretação integrada dos dados. Canindé, 2, 83-102.; Cook & Souza, 2012Cook, D. C., & Souza, S. M. F. M. (2012). Tocas do Gongo, São Raimundo Nonato, Piauí, Brasil: uma bioarqueologia retrospectiva. Revista de Arqueologia, 24(2), 30-49. https://doi.org/10.24885/sab.v24i2.326
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; Leite, 2015Leite, L. (2015). Os espaços funerários de um cemitério pré-histórico. Habitus, 13(2), 57-70. http://dx.doi.org/10.18224/hab.v13.2.2015.57-70
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, 2016Leite, L. (2016). Estruturas funerárias escavadas na rocha matriz de um abrigo: primeiras observações. Cadernos do Lepaarq, 13(26), 124-137.; Solari et al., 2018Solari, A., Pessis, A. M., Martin, G., & Guidon, N. (2018). Funerary practices at the Toca do Gongo III Site during the Late Holocene in Serra da Capivara (Piauí, Brazil). Bioarchaeology International, 2(3), 165-181. https://doi.org/10.5744/bi.2018.1016
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).

Ao mesmo tempo, os dois únicos sítios arqueológicos com uso funerário escavados, até o momento, no Parque Nacional da Serra das Confusões, foram Toca do Enoque e Toca do Alto do Capim (Guidon & Luz, 2009Guidon, N., & Luz, M. F. (2009). Sepultamentos na Toca do Enoque (Serra das Confusões – Piauí) Nota prévia. Fumdhamentos, (8), 115-123.; Guidon et al., 2019Guidon, N., Felice, G. D., & Macedo, A. O. (2019). A conservação dos vestígios arqueológicos no sítio Toca do Alto da Serra do Capim: um tafone no Parque Nacional Serra das Confusões - PI, Brasil. Fumdhamentos, 16(2), 3-34. http://fumdham.org.br/cpt_revistas/fumdhamentos-xvi-2019-n2-2/; Faure et al., 2011Faure, M., Guérin, C., & Luz, M. F. (2011). Les parures des sépultures préhistoriques de l’abri-sous-roche d’enoque (Parc National Serra das Confusões, Piauí, Brésil). Anthropozoologica, 46(1), 27-45. https://doi.org/10.5252/az2011n1a2
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, 2013; Luz, 2014Luz, F. (2014). Práticas funerárias na área arqueológica da Serra da Capivara, sudeste do Piauí, Brasil [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].; L. Silva & Fontes, 2014Silva, L. B., & Fontes, M. A. F. (2014). Queimaram ossos na Toca do Alto do Capim. Cadernos do Lepaarq, 11(22), 100-122. https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/lepaarq/article/view/3905
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; L. Silva, 2017Silva, L. B. (2017). Entre queimados e enterrados: práticas funerárias na Toca do Alto do Capim, Parque Nacional Serra das Confusões, Piauí - Brasil [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro].). Esses sítios mostraram padrões mortuários ‘típicos’, similares aos já mencionados, mas também outros de características ‘atípicas’, incluindo: sepultamentos múltiplos de uso continuado, sepultamentos com perturbações antrópicas pós-funerárias, sepultamentos com corpos envoltos em redes e depositados em estruturas funerárias feitas de capim e cremações secundárias.

Assim, o sítio arqueológico Toca do Enoque destacou-se por apresentar registros de algumas práticas mortuárias diferentes das evidenciadas nos outros sítios de uso funerário mais ‘tradicionais’. Os primeiros resultados das escavações foram publicados em Guidon e Luz (2009)Guidon, N., & Luz, M. F. (2009). Sepultamentos na Toca do Enoque (Serra das Confusões – Piauí) Nota prévia. Fumdhamentos, (8), 115-123. e na tese de doutorado de Luz (2014)Luz, F. (2014). Práticas funerárias na área arqueológica da Serra da Capivara, sudeste do Piauí, Brasil [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].. Também foram publicadas outras informações sobre a análise arqueométrica do ocre vermelho e amarelo nos sepultamentos (Cavalcante et al., 2011Cavalcante, L. C., Luz, M. F., Guidon, N., Fabris, J. D., & Ardisson, J. D. (2011). Ochres from rituals of prehistoric human funerals at the Toca do Enoque site, Piauí, Brazil. Hyperfine Interact, 203, 39-45. https://doi.org/10.1007/s10751-011-0346-0
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); a fauna e os adornos de ossos e dentes animais usados como enxoval funerário nos sepultamentos (Faure et al., 2011Faure, M., Guérin, C., & Luz, M. F. (2011). Les parures des sépultures préhistoriques de l’abri-sous-roche d’enoque (Parc National Serra das Confusões, Piauí, Brésil). Anthropozoologica, 46(1), 27-45. https://doi.org/10.5252/az2011n1a2
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, 2013Faure, M., Guérin, C., & Luz, M. F. (2013). O material funerário das sepulturas pré-históricas da Toca do Enoque (Parque Nacional Serra das Confusões, Piauí, Brasil). Clio Arqueológica, 26(2), 289-317.); as análises bioantropológicas de três esqueletos (Cunha 2014Cunha, E. (2014). Análise antropológica de 15 esqueletos da região do Parque Nacional Serra da Capivara. In A. M. Pessis, G. Martin & N. Guidon (Orgs.), Os biomas e as sociedades humanas na pré-história da região do Parque Nacional Serra da Capivara, Brasil (pp. 18-379). FUMDHAM.); e a comparação entre dois métodos de datação usados no sítio: radiocarbono (14C) e espectroscopia por ressonância do spin eletrônico (ESR) (Kinoshita et al., 2016Kinoshita, A., Sullasi, H. L., Asfora, V. K., Azevedo, R. L., Guzzo, P., Guidon, N., . . . Baffa, O. (2016). Dating of fossil human teeth and shells from Toca do Enoque site at Serra das Confusões National Park, Brazil. Anais da Academia Brasileira de Ciências, 88(2), 847-855. https://doi.org/10.1590/0001-3765201620150083
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).

A continuidade das pesquisas foi interrompida após o falecimento da pesquisadora responsável pela escavação do sítio, a Dra. Fátima da Luz. No entanto, para dar continuidade ao seu trabalho, as características únicas dos sepultamentos e seus contextos associados demandaram a retomada das pesquisas para que novas interpretações e resultados sejam divulgados. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é apresentar uma síntese de um estudo bioarqueológico mais detalhado dos sepultamentos do sítio Toca do Enoque (Solari et al., 2020aSolari, A., Pessis, A. M., Martin, G., & Guidon, N. (2020a). An archaeothanatological approach for interpreting a complex funerary deposit: the case-study of ‘Burial 2’ at Toca do Enoque (Middle Holocene, Northeastern Brazil). Archaeological and Anthropological Sciences, 12, 223. https://doi.org/10.1007/s12520-020-01180-5
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, 2020bSolari, A., Pessis, A. M., Martin, G., & Guidon, N. (2020b). Fetal bioarchaeology: a case-study of a premature birth from Burial 2 in Toca do Enoque (Middle Holocene, Northeastern Brazil). Childhood in the Past, 13(1), 8-19. https://doi.org/10.1080/17585716.2020.1738629
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, 2020cSolari, A., Pessis, A. M., Martin, G., Barbosa, F., & Silva, S. F. S. M. (2020c). Las termitas como agentes naturales de alteraciones tafonómicas postdepositacionales en un esqueleto humano del sítio arqueológico Toca do Enoque (Piauí, Brasil). Revista Argentina de Antropología Biológica, 22(1), 1-10. https://doi.org/10.24215/18536387e016
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, 2020dSolari, A., Silva, S. F. S. M., Pessis, A. M., Martin, G., & Guidon, N. (2020d). Applying the bioarchaeology of care model to a severely diseased infant from the Middle Holocene, North-Eastern Brazil: a step further into research on past health-related caregiving. International Journal of Osteoarchaeology, 30(4), 482-491. https://doi.org/10.1002/oa.2876
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), focado em reconstruir as práticas funerárias e outras atividades antrópicas pós-funerárias, com ênfase também nos processos de formação dos depósitos mortuários. O estudo é feito por meio de uma abordagem de análise tafonômica dos remanescentes humanos em seus contextos funerários.

MATERIAIS E MÉTODOS

Os materiais de estudo compreenderam os esqueletos articulados e ossos humanos desarticulados, correspondentes a três deposições funerárias escavadas no sítio Toca do Enoque, bem como seus materiais funerários diretamente associados. A releitura desses contextos funerários foi feita em conjunto com uma análise dos dados coletados em campo, como croquis, fotografias, diários e cadernos de registro das escavações e outros dados de análises e publicações prévias relativos a estes elementos esqueléticos.

No Laboratório de Vestígios Orgânicos da FUMDHAM, foi realizada uma nova análise bioantropológica completa dos esqueletos e a caracterização do perfil biológico de cada indivíduo inumado no sítio. Os procedimentos para o estudo deste perfil em uma coleção de ossos humanos de procedência arqueológica, como a do sítio Toca do Enoque, incluíram a observação e a estimativa de número mínimo de indivíduos (NMI), idade no momento da morte, sexo biológico, estatura, afinidade biológica ou ancestralidade biogeográfica, doenças ou patologias, sinais de alterações ósseas causadas por processos tafonômicos naturais e/ou culturais e outras informações que permitem avaliar alguns aspectos demográficos da população, o estilo de vida ou conhecer melhor seus comportamentos em relação à morte.

Para isso, foram adotados parâmetros teóricos e metodológicos dos principais autores das áreas da Antropologia Biológica e Osteoarquelogia (Steele & Bramblett, 2000Steele, D. G., & Bramblett, C. A. (2000). the anatomy and biology of the human skeleton. Texas A&M University Press.; White, 2000White, T. D. (2000). Human osteology. Academic Press.; White e Folkens, 2005White, T. D., & Folkens, P. A. (2005). The human bone manual. Elsevier Academic Press.), Paleopatologia (Pinhas & Mays, 2008Pinhas, R., & Mays, S. (2008). Advances in Human Paleopathology. Wiley.; Ortner, 2003Ortner, D. J. (2003). Identification of pathological conditions in human skeletal remains. Academic Press/Elsevier.; Waldron, 2009Waldron, T. (2009). Paleopathology. Cambridge University Press.), Bioarqueologia de indivíduos subadultos1 1 Seguindo Halcrow e Tayles (2008, 2011), neste artigo, o termo ‘subadulto’ se refere à idade biológica, salvo indicação em contrário. ‘Subadulto’ é usado para designar jovens, sejam eles bebês ou crianças. O termo não se refere a uma diferenciação hierárquica entre adultos e subadultos e é equivalente aos termos ‘não adulto’ ou ‘juvenil’ usados por outros bioarqueólogos (Lewis, 2007; Scheuer & Black, 2004). & Black, 2004; Schaefer et al., 2009Schaefer, M., Black, S., & Scheuer, L. (2009). Juvenile osteology: a laboratory and field manual. Elsevier Academic Press.) e Antropologia Dental (Cucina, 2011Cucina, A. (Org.). (2011). Manual de Antropología dental. Casa Editorial UADY.; Hillson, 1996Hillson, S. (1996). Dental Anthropology. Cambridge University Press.), entre outros.

Além do perfil biológico dos indivíduos inumados no sítio, a continuidade das pesquisas na Toca do Enoque centrou-se particularmente na reconstrução do processo de formação dos depósitos mortuários e na interpretação dos ciclos funerários em outras atividades pós-deposicionais e pós-funerárias associadas a cada sepultamento. Interpretar o comportamento mortuário de populações do passado implica a reconstrução dos processos de formação dos depósitos mortuários ou sua história tafonômica, através de um estudo tafonômico aplicado aos registros arqueológicos de natureza funerária e uma análise mortuária dos conjuntos ósseos escavados. Tal tarefa foi feita a partir de releitura dos dados bioarqueológicos de campo e laboratório obtidos para as deposições funerárias, por meio de aproximação teórico-metodológica apropriada para esses fins, conhecida como Tafonomia Funerária ou Arqueotanatologia (Duday et al., 1990Duday, H., Courtaud, P., Crubezy, E., Sellier, P., & Tillier, A. M. (1990). L’Anthropologie ‘de terrain’: reconnaissance et interprétation des gestes funéraires. Bulletins et Mémoires de la Société d’anthropologie de Paris, 2(3-4), 9-49., 2014Duday, H., Le Mort, F., & Tillier, A. M. (2014). Archaeothanatology and funeral archaeology. Application to the study of primary single burials. Anthropologie, 52(3), 235-246.; Duday, 2005Duday, H. (2005). L’archéothanatologie ou l’archéologie de la mort. In O. Dutour, J. J. Hublin & B. Vandermeersch (Orgs.), Objets et methodes en paleoanthropology (pp. 153-215). Comité des Travaux Historiques et Scientifiques., 2009; Gligor, 2014Gligor, M. (Org.). (2014). Archaeothanatology: an interdisciplinary approach on death from prehistory to middle ages. Editura Mega.; Knüsel & Robb, 2016Knüsel, C., & Robb, J. (2016). Funerary taphonomy: an overview of goals and methods. Journal of Archaeological Science: Reports, 10, 655-673. https://doi.org/10.1016/j.jasrep.2016.05.031
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; Stutz, 1998Stutz, L. N. (1998). Dynamic cadavers: a “Field-Anthropological” analysis of the Skateholm II Burials. Lund Archaeological Review, 4, 5-17.), cujo principal objetivo é a interpretação das práticas funerárias e a reconstrução das ações feitas sobre os restos físicos dos indivíduos falecidos, através do estudo contextual dos remanescentes humanos, utilizando as evidências tafonômicas registradas durante a escavação e posteriormente observadas no laboratório. Esse enfoque visa compreender as atitudes dos povos antigos em relação aos seus mortos e como estas se manifestam nos atos relacionados com o tratamento, o manejo e a deposição dos cadáveres.

Essa abordagem inclui a análise de dois conjuntos de dados tafonômicos, os registrados em campo e os observados em laboratório. A primeira envolve o registro de dados do contexto arqueológico e dos materiais associados, incluindo posição e orientação dos esqueletos ou ossos no local de deposição, presença de sinais de preparação ou manipulação dos corpos ou esqueletos e presença de acompanhamentos funerários. Os registros das observações de campo permitem o reconhecimento do tipo de deposição (primária ou simples e secundária ou composta) por meio do registro das relações de articulação entre os elementos esqueléticos referentes às articulações lábeis e persistentes (Duday et al., 1990Duday, H., Courtaud, P., Crubezy, E., Sellier, P., & Tillier, A. M. (1990). L’Anthropologie ‘de terrain’: reconnaissance et interprétation des gestes funéraires. Bulletins et Mémoires de la Société d’anthropologie de Paris, 2(3-4), 9-49., Duday & Guillon, 2006Duday H., & Guillon M. (2006). Understanding the circumstances of decomposition when the body is skeletonized. In A. Schmitt, E. Cunha & J. Pinheiro (Orgs.), Forensic anthropology and medicine (pp. 117-157). Humana Press. https://doi.org/10.1007/978-1-59745-099-7_6
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; Roksandic, 2002Roksandic, M. (2002). Posítion of skeletal remains as a key to understanding mortuary behavior. In W. D. Haglund & M. H. Sorg (Orgs.), Advances in forensic taphonomy (pp. 99-117). CRC Press.). Também a interpretação do tipo de ambiente onde aconteceu a decomposição do cadáver, indicando se a decomposição dos tecidos moles ocorreu em espaços vazios ou preenchidos de sedimentos, na observação do deslocamento ou colapso dos elementos esqueléticos pela ação da gravidade, dependendo da posição original do corpo (Duday et al., 1990Duday, H., Courtaud, P., Crubezy, E., Sellier, P., & Tillier, A. M. (1990). L’Anthropologie ‘de terrain’: reconnaissance et interprétation des gestes funéraires. Bulletins et Mémoires de la Société d’anthropologie de Paris, 2(3-4), 9-49.; Duday & Guillon, 2006Duday H., & Guillon M. (2006). Understanding the circumstances of decomposition when the body is skeletonized. In A. Schmitt, E. Cunha & J. Pinheiro (Orgs.), Forensic anthropology and medicine (pp. 117-157). Humana Press. https://doi.org/10.1007/978-1-59745-099-7_6
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; Roksandic, 2002Roksandic, M. (2002). Posítion of skeletal remains as a key to understanding mortuary behavior. In W. D. Haglund & M. H. Sorg (Orgs.), Advances in forensic taphonomy (pp. 99-117). CRC Press.). Esse conjunto de dados possibilita a inferência sobre o tipo de deposição mortuária e a sequência dos tratamentos funerários relacionados.

Por outro lado, os dados observados em laboratório (que completam os dados coletados em campo) envolvem uma análise osteoarqueológica detalhada de cada esqueleto e/ou ossos avulsos recuperados no campo, com destaque na observação dos sinais de modificações ósseas causadas por forças ou agentes tafonômicos naturais ou culturais, tais como: exposição ao ar livre; danos por insetos, animais ou plantas; padrões de fraturas; sinais de queima; marcas de corte, entre outros (Knüsel & Robb, 2016Knüsel, C., & Robb, J. (2016). Funerary taphonomy: an overview of goals and methods. Journal of Archaeological Science: Reports, 10, 655-673. https://doi.org/10.1016/j.jasrep.2016.05.031
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). A análise de laboratório também compreende a estimativa da representação óssea, a preservação do conjunto osteológico, o cálculo do número de indivíduos ou de elementos ósseos nos casos de esqueletos desarticulados ou a inferência de relações de segunda ordem entre os ossos, quer dizer, o pareamento de ossos pertencentes ao mesmo indivíduo nos casos de ossos misturados (Lambacher et al., 2016Lambacher, N., Gerdau-Radonic, K., Bonthorne, E., & Valle de Tarazaga Montero, F. J. (2016). Evaluating three methods to estimate the number of individuals from commingled contexts. Journal of Archaeological Science: Reports, 10, 674-683. https://doi.org/10.1016/j.jasrep.2016.07.008
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).

Nesse sentido, adotamos a proposta teórico-metodológica do modelo esquemático de Weiss-Krejci (2011, p. 69)Weiss-Krejci, E. (2011). The formation of mortuary deposits: implications for understanding mortuary behavior of past populations. In S. C. Agarwal & B. A. Glencross (Orgs.), Social bioarchaeology (pp. 68-106). Wiley-Blackwell., a qual considera que a formação de um depósito mortuário envolve uma sequência cronológica que se inicia no passado, com a morte do indivíduo, e termina no presente, com sua redescoberta arqueológica. Entre esses dois eventos, ocorrem séries de processos naturais e culturais que caracterizam os depósitos arqueológicos. Logo após a morte do indivíduo, o ciclo funerário começa. O ciclo tem início com o tratamento do corpo e finaliza com a sua deposição final. A preparação do corpo pode ser mínima ou muito elaborada. Dependendo dos métodos empregados, os corpos podem manter-se articulados ou resultar desarticulados. Entre o tratamento inicial do corpo e a deposição final, com tempo extremamente variável entre eles, pode haver (ou não) uma ou mais deposições temporárias, incluindo práticas de exumação e reinumação. Deste modo, o depósito final pode ser primário, secundário ou terciário, equivalente aos depósitos simples e compostos de Sprague (2005)Sprague, R. (2005). Burial terminology. Guide for researchers. Altamira Press. e S. Silva (2005-2006)Silva, S. F. S. M. (2005-2006). Terminologias e classificações usadas para descrever sepultamentos humanos: exemplos e sugestões. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, (15-16), 113-138. https://doi.org/10.11606/issn.2448-1750.revmae.2006.89712
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. Também, ocasionalmente, não há deposição final do corpo ou há mais de um local de deposição final para um corpo. Ainda, além do ciclo funerário, seguindo com Weiss-Krejci (2011)Weiss-Krejci, E. (2011). The formation of mortuary deposits: implications for understanding mortuary behavior of past populations. In S. C. Agarwal & B. A. Glencross (Orgs.), Social bioarchaeology (pp. 68-106). Wiley-Blackwell., podem ocorrer (ou não) outros processos extra ou pós-funerários. Dentre os primeiros, encontram-se os corpos que, por motivos diversos, não receberam tratamento funerário intencional; enquanto nos últimos, estão aqueles processos que perturbam o depósito funerário final, podendo incluir uma variedade de práticas rituais ou não rituais, como a exumação e reinumação dos remanescentes ósseos para veneração de antepassados ou como relíquias.

O SÍTIO ARQUEOLÓGICO TOCA DO ENOQUE, SERRA DAS CONFUSÕES, PIAUÍ

O sítio arqueológico Toca do Enoque está em um abrigo rochoso, localizado na serra das Andorinhas, dentro do Parque Nacional da Serra das Confusões, no sudoeste do estado do Piauí, nas coordenadas geográficas 43° 55’ 625” longitude oeste e 9° 14’ 653” latitude Sul (Figura 1). O abrigo tem cerca de 60 m de comprimento e 10 m de altura, orientado no eixo noroeste-sudeste, com abertura voltada para sudoeste. A parede arenítica do abrigo contém representações rupestres de figuras geométricas, zoomórficas e antropomórficas pintadas de vermelho, principalmente com representações de animais, como répteis, aves e mamíferos, associadas às tradições Nordeste, Agreste e Geométrica (Guidon & Luz, 2009Guidon, N., & Luz, M. F. (2009). Sepultamentos na Toca do Enoque (Serra das Confusões – Piauí) Nota prévia. Fumdhamentos, (8), 115-123.; Luz, 2014Luz, F. (2014). Práticas funerárias na área arqueológica da Serra da Capivara, sudeste do Piauí, Brasil [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].) (Figura 2).

Figura 1
Localização do sítio arqueológico Toca do Enoque, Piauí.
Figura 2
Representações rupestres no paredão do sítio Toca do Enoque.

As escavações no sítio foram realizadas no decorrer de três campanhas arqueológicas, entre 2008 e 2009, lideradas por Fátima da Luz, arqueóloga e coordenadora da equipe da FUMDHAM, sob supervisão geral de Niede Guidon (Guidon & Luz, 2009Guidon, N., & Luz, M. F. (2009). Sepultamentos na Toca do Enoque (Serra das Confusões – Piauí) Nota prévia. Fumdhamentos, (8), 115-123.; Luz, 2014Luz, F. (2014). Práticas funerárias na área arqueológica da Serra da Capivara, sudeste do Piauí, Brasil [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].). Além dos registros rupestres no paredão, foram evidenciados três sepultamentos humanos e três grandes estruturas de fogueiras associadas a rituais funerários (Figura 3).

Figura 3
Planta do sítio com a localização dos sepultamentos.

Cronologicamente, o uso funerário do local foi estimado conforme datas indiretas de radiocarbono, obtidas de amostras de carvão vegetal, encontradas nos contextos de inumação, visto que várias tentativas de datar diretamente os ossos e dentes humanos e alguns dos acompanhamentos funerários (ossos de fauna) não ofereceram resultados satisfatórios por falta de colágeno. Conforme Guidon e Luz (2009)Guidon, N., & Luz, M. F. (2009). Sepultamentos na Toca do Enoque (Serra das Confusões – Piauí) Nota prévia. Fumdhamentos, (8), 115-123. e Luz (2014)Luz, F. (2014). Práticas funerárias na área arqueológica da Serra da Capivara, sudeste do Piauí, Brasil [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco]., as datações de amostras de carvão indicaram uma cronologia relativa de 5930 ± 50 AP (Cal AP 6890 a 6660/BETA-252374) para o sepultamento 1; entre 6220 ± 50 AP (Cal AP 7250 a 7000/BETA-257093) e 6610 ± 40 AP (Cal AP 7570 a 7430/BETA-257092) para o sepultamento 2; e 3430 ± 40 AP (Cal AP 3830 a 3580/BETA-252607) para o sepultamento 32 2 Salvo menção contrária, todas as datas apresentadas são dadas em anos ‘antes do presente’ (AP) (sendo o presente o ano de 1950, por convenção). .

Além dos carvões, foram feitas outras datações para o sepultamento 2, obtidas através de um dente retirado do esqueleto 5 e de uma concha de gastrópode que estava junto ao crânio do esqueleto 2. Para datar o dente do esqueleto 5, foi utilizado o método de ESR em dois laboratórios diferentes: na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e na Universidade de São Paulo (USP), que forneceram, respectivamente, as datas de 5,4 ± 0,5 ky BP3 3 Kilo Years Before Present (milhares de anos antes do presente). ky BP. A partir de uma concha associada no sepultamento, o esqueleto 2 também foi datado de forma indireta pelo método de radiocarbono (14C) em dois laboratórios distintos. A datação da UFPE indicou a idade de 5,0 ± 0,6 ky BP, enquanto a datação da USP proveu a idade de 4,8 ± 0,4 ky BP (Kinoshita et al., 2016Kinoshita, A., Sullasi, H. L., Asfora, V. K., Azevedo, R. L., Guzzo, P., Guidon, N., . . . Baffa, O. (2016). Dating of fossil human teeth and shells from Toca do Enoque site at Serra das Confusões National Park, Brazil. Anais da Academia Brasileira de Ciências, 88(2), 847-855. https://doi.org/10.1590/0001-3765201620150083
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, p. 853).

UMA DESCRIÇÃO GERAL DOS SEPULTAMENTOS

O sepultamento 1 caracterizou-se pela presença de uma estrutura de blocos de pedra dispostos no mesmo sentido do esqueleto (acima dele), que sinalizavam sua presença, compreendendo uma fossa ovalada de 1,60 m de comprimento e 0,70 m de largura, observada como uma mancha de sedimento escuro, contendo cinzas e vestígios vegetais queimados, distinta da matriz arenosa mais clara e avermelhada do abrigo. Na cova, foi evidenciado o esqueleto de um indivíduo subadulto, uma criança de aproximadamente sete anos no momento da morte e de sexo indeterminado. O indivíduo tinha sido depositado em decúbito dorsal, estendido, no sentido leste-oeste, com os pés para leste e a cabeça para oeste. Apresentava acompanhamentos em contas feitas de sementes e conchas trabalhadas de Megalobulimus sp. e, acima do esqueleto, ocre vermelho espargido (Figura 4).

Figura 4
Sepultamento 1, indivíduo 1, Toca do Enoque: A) croqui; B) fotografia.

O sepultamento 2 compreendia uma ampla fossa oval, medindo aproximadamente 2,5 m de comprimento por 1,5 m de largura, observada também como uma mancha de sedimento escuro na matriz arenosa mais clara do abrigo. O sedimento escuro continha uma abundante mistura de material vegetal queimado, que forrava o fundo da cova e recobria os indivíduos dentro dela. No fundo da cova, foi evidenciado um grande bloco de arenito com gravuras de figuras geométricas. No total, dez indivíduos4 4 A partir das escavações em campo e sem ter feito uma análise bioantropológica completa do conjunto funerário, inicialmente foi estimada uma contabilidade diferente do número de indivíduos para o sepultamento 2, resultando numa quantidade consideravelmente maior de indivíduos apresentada nas primeiras publicações. A nova análise em laboratório e a releitura arqueotanatológica do conjunto ósseo mudaram esse resultado a respeito da quantidade e alteraram a denominação dos indivíduos em alguns casos. foram inumados nesta cova, dois adultos jovens (esqueletos 3 e 8) possivelmente do sexo feminino e oito subadultos com idades variadas. Dentre os indivíduos subadultos, foram registrados um feto (esqueleto 10) e dois bebês de sete a nove meses (esqueletos 6 e 9), os outros indivíduos foram cinco crianças de seis a dez anos (esqueletos 2, 4, 5, 7, e X).

Entre os dez indivíduos, a maioria (esqueletos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10) apresentou esqueletos completos ou parcialmente completos, articulados ou parcialmente articulados, depositados na cova em decúbito dorsal, com membros estendidos e eixos crânio-pelve orientados na mesma direção, com as cabeças a sudeste e os pés a noroeste. Outro grupo de ossos desarticulados foi achado e realocado em um dos extremos da fossa, junto com seus adornos, sendo esses vestígios registrados como remanescentes ósseos misturados e denominados conjunto de ossos 115 5 Originalmente denominado esqueleto 11, incluía, na realidade, remanescentes ósseos de três indivíduos diferentes. , que incluía parte dos esqueletos 7, 8 e o esqueleto X completo (Solari et al., 2020aSolari, A., Pessis, A. M., Martin, G., & Guidon, N. (2020a). An archaeothanatological approach for interpreting a complex funerary deposit: the case-study of ‘Burial 2’ at Toca do Enoque (Middle Holocene, Northeastern Brazil). Archaeological and Anthropological Sciences, 12, 223. https://doi.org/10.1007/s12520-020-01180-5
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) (Figura 5).

Figura 5
Sepultamento 2, Toca do Enoque, com a numeração dos esqueletos (2 até 10) e do grupo de ossos (11).

O sepultamento 3 pode ser caracterizado como um depósito mortuário com sinais de perturbação por processos naturais e culturais, que continha um único indivíduo cujos contexto original, posição e orientação do corpo são desconhecidos. No momento da escavação, foi possível verificar uma fossa perturbada em formato semelhante ao ovalado, contendo sedimento de coloração escura, composto por abundantes restos vegetais (folhas, sementes, madeira) queimados, e circundada por blocos de pedra. Nessa antiga cova perturbada, foram recuperados os ossos de um esqueleto humano incompleto (esqueleto 136 6 Foi mantida a numeração original deste esqueleto, por mais que, no sítio, tenha sido estimada a presença de 12 indivíduos inumados no total. ), desordenados e sem conexão anatômica, pertencentes a um indivíduo adulto (com cerca de 40 anos) do sexo masculino. Apesar da desordem, entre os ossos, foram localizados alguns adornos, como pingentes, pequenas contas e ossos de animais (Luz, 2014Luz, F. (2014). Práticas funerárias na área arqueológica da Serra da Capivara, sudeste do Piauí, Brasil [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].). Nessa deposição, foi possível observar que, em algumas partes da fossa perturbada, foram registradas áreas queimadas, restos de fogueiras, carvões e cinzas abundantes, junto com alguns ossos parcialmente queimados do esqueleto. Ao mesmo tempo, ninhos de cupins foram observados na área da cova e grandes blocos de pedra foram achados entre os ossos dispersos do esqueleto (Luz, 2014Luz, F. (2014). Práticas funerárias na área arqueológica da Serra da Capivara, sudeste do Piauí, Brasil [Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco].; Solari et al., 2020cSolari, A., Pessis, A. M., Martin, G., Barbosa, F., & Silva, S. F. S. M. (2020c). Las termitas como agentes naturales de alteraciones tafonómicas postdepositacionales en un esqueleto humano del sítio arqueológico Toca do Enoque (Piauí, Brasil). Revista Argentina de Antropología Biológica, 22(1), 1-10. https://doi.org/10.24215/18536387e016
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) (Figura 6).

Figura 6
Sepultamento 3, indivíduo 13, Toca do Enoque: A) vista geral da cova perturbada; B) detalhe da cova perturbada (decapagem 15).

A Tabela 1 apresenta uma síntese das características gerais dos 12 indivíduos recuperados nos três sepultamentos do sítio.

Tabela 1
Características gerais dos indivíduos dos sepultamentos de Toca do Enoque, Piauí, Brasil.

OS ACOMPANHAMENTOS FUNERÁRIOS

Dentre as estruturas funerárias, ainda que os sepultamentos 1 e 3 apresentassem escassos adornos nas covas, foi, sobretudo, o sepultamento 2 que se destacou pela quantidade e variedade dos acompanhamentos funerários associados aos esqueletos, especialmente das crianças, conforme Faure et al. (2011Faure, M., Guérin, C., & Luz, M. F. (2011). Les parures des sépultures préhistoriques de l’abri-sous-roche d’enoque (Parc National Serra das Confusões, Piauí, Brésil). Anthropozoologica, 46(1), 27-45. https://doi.org/10.5252/az2011n1a2
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, 2013)Faure, M., Guérin, C., & Luz, M. F. (2013). O material funerário das sepulturas pré-históricas da Toca do Enoque (Parque Nacional Serra das Confusões, Piauí, Brasil). Clio Arqueológica, 26(2), 289-317..

Em particular, os remanescentes ósseos humanos do sepultamento 2 foram encontrados em associação com abundantes e variados materiais funerários, em particular, um número significativo de adornos feitos em material de origem animal. Entre estes, foram recuperados alguns dentes perfurados de grandes felinos (Panthera onca, Felis concolor, Felis pardalis) e muitos de pequenos canídeos (aproximadamente 600 caninos de Cerdocyon thous), 145 pingentes confeccionados a partir de metatarsos e metacarpos de cervídeos pequenos (Mazama gouazoubira), outros pingentes feitos de ulnas de pássaros grandes, carapaças de tartaruga e fragmentos de conchas de moluscos perfuradas por atrição.

Também no sepultamento 2, foram descobertos 235 artefatos líticos feitos de sílex, quartzo e quartzo hialino; 105 placas de ocre de diferentes tamanhos (algumas colocadas sobre os crânios) e ocre pulverizado e espargido sobre os esqueletos. Além disso, foram descobertos alguns artefatos ‘enigmáticos’ produzidos com placas de tatu (Dasypodidae sp.) e fragmentos polidos de conchas incrustados em argila. Igualmente, foram registrados, sob alguns esqueletos (6, 7 e 10), restos de fibras vegetais trançadas, possivelmente de uma esteira ou rede sobre a qual os corpos teriam sido depositados.

Por fim, em associação com esses adornos, havia macrovestígios vegetais (grãos, fragmentos de madeira e cascas) e outros restos de animais não trabalhados, incluindo: grandes conchas de gastrópodes terrestres (Megalobulimus sp.), fragmentos de mandíbulas de caititu (Dicotyles tajacu), mandíbulas de ouriço (Coendou prehensilis) e chifres e metatarsos de veado (Mazama gouazoubira) (Figura 7).

Figura 7
Alguns dos acompanhamentos funerários associados aos indivíduos do sepultamento 2, Toca do Enoque: A) colar de dentes de canídeos; B) colar de sementes; C-D) chifres e metatarsos de veados não trabalhados; E) artefato ‘enigmático’ produzido com placas de tatu; F) pingentes de ossos de cervídeos; G) detalhe de fibras vegetais trançadas in situ, possivelmente de uma esteira ou rede.

DISCUSSÃO: RECONSTRUINDO OS DEPÓSITOS MORTUÁRIOS E INTERPRETANDO AS PRÁTICAS FUNERÁRIAS E PÓS-FUNERÁRIAS

Apresentamos aqui nossa proposta reconstrutiva dos ciclos funerários7 7 Na reconstrução da história tafonômica dos sepultamentos na Toca do Enoque, ainda que, arqueologicamente, não tenha sido possível acessar as práticas rituais realizadas entre a morte dos indivíduos e o momento das inumações, o início dos ciclos funerários de cada sepultamento foi inferido a partir do momento do depósito dos corpos nas covas. para cada sepultamento feita a partir da releitura tafonômica dos processos de formação dos depósitos mortuários. Dessa forma, sugerimos um cenário provável de como puderam ter sido as práticas funerárias e pós-funerárias vinculadas aos três sepultamentos do sítio Toca do Enoque.

Assim, o ciclo funerário do sepultamento 1 iniciou-se com a abertura e o preenchimento da cova com materiais vegetais queimados para receber o corpo do indivíduo 1. Trata-se de um sepultamento primário, que envolveu a colocação do corpo na cova junto com seus acompanhamentos funerários numa única deposição final, e cujo ciclo funerário teria finalizado com a colocação de blocos de pedra para sua delimitação e/ou proteção. Esse sepultamento não apresentou qualquer perturbação ou ação cultural antrópica pós-funerária até sua descoberta e escavação arqueológica no presente.

Por outro lado, o ciclo funerário do sepultamento 2 foi o mais extenso no tempo, além de complexo e o mais elaborado do sítio, combinando um mesmo ciclo funerário em longo prazo junto com vários processos funerários e pós-funerários, numa prática melhor caracterizada como ‘tumbas de uso contínuo’ (ongoing tomb use sensuMiddleton et al., 1998Middleton, W. D., Feinmann, G. M., & Mouna Yillegas, G. (1998). Tomb use and reuse in Oaxaca, Mexico. Ancient Mesoamerica, 9(2), 297-307., p. 298). As ‘tumbas de uso contínuo’ referem-se ao uso e reuso do mesmo local de enterramento de forma ininterrupta ao longo do tempo, com uma sequência de ações repetitivas e duradouras. Assim, os indivíduos do sepultamento 2 teriam sido enterrados simultânea e/ou consecutivamente em vários eventos diferentes de abertura e reutilização da estrutura funerária, envolvendo um uso continuado da cova8 8 Nas primeiras publicações, observou-se uma interpretação diferente no tocante às distintas etapas de uso e reuso do sepultamento 2 e à ordem na qual foram depositados os corpos no interior da cova. A nova análise e releitura de todo o conjunto ósseo aqui apresentado mudou parcialmente essa interpretação inicial. . A Figura 8 mostra um diagrama de fluxo com nossa proposta reconstrutiva da estrutura funerária e a Figura 9 ilustra, de forma colorida, o cenário provável proposto para os diferentes momentos de inumação dos indivíduos, em duas vistas: planta e perfil.

Figura 8
Diagrama de fluxo simplificado com a sequência de ações feitas na formação do depósito funerário no sepultamento 2.
Figura 9
Representação gráfica do ciclo funerário proposto para o sepultamento 2 por cores, em planta (acima) e perfil (abaixo): depósito inicial (n° 6-7-8-10) em verde; seguido de um processo de redução de corpos (grupo de ossos n° 11) para a inumação ‘desviante’ (n° 9) com ‘relíquias corporais’ associadas em amarelo; seguido de um depósito duplo simultâneo (n° 4-5) em vermelho; seguido de um depósito sucessivo (n° 2) em azul; finalizando com o último depósito (n° 3) em cinza.

Portanto, o início do ciclo funerário de uso contínuo do sepultamento 2 teria ocorrido com a preparação da cova para receber os corpos dos indivíduos falecidos e seus acompanhamentos. Após a escavação da fossa no solo arenoso do abrigo e acima de um grande bloco de pedra, sua base foi preenchida com abundantes restos de plantas queimadas e cinzas, misturados com o sedimento arenoso do local, similarmente ao sepultamento 1.

Foi possível observar que essa mistura de restos vegetais queimados, cinzas e areia também recobriu os corpos, criando um ‘espaço preenchido’ (Duday et al., 1990Duday, H., Courtaud, P., Crubezy, E., Sellier, P., & Tillier, A. M. (1990). L’Anthropologie ‘de terrain’: reconnaissance et interprétation des gestes funéraires. Bulletins et Mémoires de la Société d’anthropologie de Paris, 2(3-4), 9-49.; Duday & Guillon, 2006Duday H., & Guillon M. (2006). Understanding the circumstances of decomposition when the body is skeletonized. In A. Schmitt, E. Cunha & J. Pinheiro (Orgs.), Forensic anthropology and medicine (pp. 117-157). Humana Press. https://doi.org/10.1007/978-1-59745-099-7_6
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) de sedimentos para a decomposição cadavérica natural de todos os indivíduos enterrados. O espaço deixado pela decomposição dos tecidos moles teria sido progressivamente preenchido por essa mistura de sedimento arenoso e materiais orgânicos queimados ao redor dos corpos, evitando o deslocamento ou colapso dos ossos pela gravidade e mantendo os esqueletos articulados nas posições originais em que foram depositados (Stutz, 1998Stutz, L. N. (1998). Dynamic cadavers: a “Field-Anthropological” analysis of the Skateholm II Burials. Lund Archaeological Review, 4, 5-17.; Roksandic, 2002Roksandic, M. (2002). Posítion of skeletal remains as a key to understanding mortuary behavior. In W. D. Haglund & M. H. Sorg (Orgs.), Advances in forensic taphonomy (pp. 99-117). CRC Press.). Assim, todas as desarticulações observadas em alguns dos esqueletos foram produzidas cultural e intencionalmente após a decomposição natural dos cadáveres in situ.

Inicialmente, a uma profundidade máxima de 55 cm, o indivíduo 8 (adulto, possivelmente de sexo feminino) teria sido possivelmente o primeiro corpo a ser inumado na cova. Seus ossos foram localizados aproximadamente no centro da estrutura funerária, apresentando a parte superior do esqueleto articulada e a parte inferior desarticulada, numa ação antrópica pós-funerária posterior à sua decomposição cadavérica natural. De tal modo, uma possibilidade seria de que o indivíduo 8 tenha sido enterrado inicialmente só, como um sepultamento primário individual que foi ampliado posteriormente.

Entretanto, também consideramos válida a possibilidade de que o indivíduo 8 teria sido inumado simultaneamente com outros indivíduos subadultos (6, 7, 10 e X9 9 O indivíduo X, inicialmente, estava numerado como 11; posteriormente, essa numeração foi mantida para o agrupamento de ossos que continha um NMI de três indivíduos; para não mudar a numeração original, foi acrescentada a denominação de ‘X’. e seus acompanhamentos funerários, em um sepultamento primário múltiplo, no qual os cinco corpos teriam sido originalmente depositados na mesma posição, em decúbito dorsal, estendidos e de orientação do eixo crânio-pelve semelhante, com cabeças para sudeste e pés para noroeste.

Nesse sentido, Duday (2009)Duday, H. (2009). The archaeology of the dead. Lectures in Archaeothanatology (Studies in Funerary Archaeology, Vol. 3). Oxbow Books. https://doi.org/10.2307/j.ctt1cd0pkv
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aponta que, ao analisar sepultamentos com mais de um indivíduo num mesmo nível, se houver conexões anatômicas para cada esqueleto, não é possível dizer se todos foram enterrados simultaneamente em um mesmo evento ou se cada corpo foi enterrado separadamente em eventos diferentes consecutivos, mas dentro de um curto período. Assim, as diferenças de profundidade em que todos esses esqueletos foram recuperados se explicam, por um lado, pelas irregularidades na base da cova, constituída em parte pela escavação do solo para inumar os corpos e pela grande rocha de formato irregular no fundo da cova. Outro fator contribuinte seriam as diferenças de volume entre os corpos inumados, significando a escavação de covas moderadamente profundas para o depósito do indivíduo adulto (n° 8) e dos subadultos de diversas idades, tamanhos e pesos (6, 7, 10 e X).

Neste grupo inicial de subadultos inumados, destacou-se o indivíduo 10. Trata-se de um feto prematuro pós-parto, entre 30 e 34 semanas de gestação, descoberto fora da cavidade pélvica da mãe (Halcrow et al., 2018Halcrow, S. E., Tayles, N., & Elliott. G. E. (2018). The bioarchaeology of fetuses. In S. Han, T. K. Betsinger & A. B. Scott (Orgs.), The Anthropology of the fetus: biology, culture, and society (pp. 83-111). Bergahn Books. https://doi.org/10.2307/j.ctvw04h7z.10
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; Fazekas & Kósa, 1978Fazekas, I. G. Y., & Kósa, F. (1978). Forensic fetal osteology. Akadémiai Kiadó.), que foi depositado na cova em decúbito dorsal, com membros estendidos do lado da cabeça de um indivíduo adulto e possivelmente de sexo feminino (n° 8), submetido a um cuidadoso ritual funerário, que incluía acompanhamentos e adornos associados ao minúsculo corpo, assim como as outras crianças e adultos depositados ao seu redor (Solari et al., 2020bSolari, A., Pessis, A. M., Martin, G., & Guidon, N. (2020b). Fetal bioarchaeology: a case-study of a premature birth from Burial 2 in Toca do Enoque (Middle Holocene, Northeastern Brazil). Childhood in the Past, 13(1), 8-19. https://doi.org/10.1080/17585716.2020.1738629
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).

Ainda sobre o uso continuado da cova, a primeira reabertura da estrutura funerária e a perturbação pós-deposicional antrópica intencional mais importante da cova teriam ocorrido após essa deposição primária individual expandida ou primária múltipla inicial. O processo pós-funerário resultante envolveu a reutilização da cova, um evento de redução corporal que formou um agrupamento de ossos misturados com seus acompanhamentos funerários, seguido pelo sepultamento de um novo indivíduo (n° 9), com a colocação de ossos humanos isolados e redundantes (considerados como ‘relíquias corporais’) ao lado desse corpo.

Para interpretar essas ações, podemos considerar que, quando esqueletos desarticulados são encontrados em um determinado depósito mortuário, é fundamental a distinção entre depósitos secundários e o processo de redução corporal. Segundo Duday et al. (1990, 2014), o processo de redução corporal caracteriza-se pelo reagrupamento intencional dos elementos esqueléticos em um contexto primário após a reabertura de uma tumba. Por sua vez, isso pode levar à exumação de ossos para uso como relíquias. Em contraste, um sepultamento secundário inclui uma fase intermediária que ocorre em outro lugar e não é definida por um esqueleto desarticulado em si. Em vez disso, um sepultamento secundário é o resultado da remoção do esqueleto de seu primeiro local de deposição para um segundo local de inumação.

Por conseguinte, o agrupamento de ossos misturados denominado grupo de ossos 11 foi formado por um processo de redução corporal que teria ocorrido após a reabertura da sepultura, que significou também a remoção parcial dos esqueletos dos indivíduos 7 e 8 e a remoção total do esqueleto de outro subadulto (X), o qual, originalmente, teria sido depositado entre eles. Após a decomposição dos tecidos moles, parte ou a totalidade dos ossos desses três esqueletos (7, 8 e X) teria sido ‘varrida’ e deslocada para o norte da estrutura funerária, formando um acúmulo desorganizado e desarticulado de restos esqueléticos misturados com seus adornos: o grupo de ossos 1110 10 Inicialmente, os esqueletos incompletos e parcialmente articulados e o agrupamento de ossos misturados geraram maior confusão, levando à estimação de maior número de indivíduos entre os verdadeiramente inumados no sepultamento 2. NMI do agrupamento (Lambacher et al., 2016Lambacher, N., Gerdau-Radonic, K., Bonthorne, E., & Valle de Tarazaga Montero, F. J. (2016). Evaluating three methods to estimate the number of individuals from commingled contexts. Journal of Archaeological Science: Reports, 10, 674-683. https://doi.org/10.1016/j.jasrep.2016.07.008
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) foi estimado em laboratório pela triagem dos ossos por tipo, unidade óssea, lateralidade, idade e tamanho, comparando-os também com os esqueletos incompletos e previamente identificados, como os dos indivíduos 7 e 8.

Os esqueletos incompletos dos indivíduos 7 e 8 foram encontrados in situ na cova em conexão anatômica, com ossos articulados ou semiarticulados, enquanto os ossos ‘ausentes’ desses indivíduos foram localizados misturados junto com ossos de outro indivíduo e com acompanhamentos funerários vários no grupo de ossos 11. Nesse agrupamento, foi recuperado um esqueleto completo, com todos os seus ossos desarticulados, de outro subadulto, o indivíduo X. A integridade deste esqueleto X dentro do agrupamento de ossos e a presença de um espaço vazio na cova entre os indivíduos 7 e 8 reforçam nossa interpretação de que este outro indivíduo, recuperado dos restos de esqueletos misturados, teria sido outro corpo originalmente enterrado no evento de deposição inicial primária múltipla, descrito anteriormente.

Este agrupamento ósseo, grupo de ossos 11, foi produto do processo de redução corporal acima explicado, feito para gerar um espaço no centro da estrutura funerária, aos pés do indivíduo 8, a fim de inumar o corpo de outro subadulto (n° 9) em uma deposição primária individual consecutiva, com a mesma posição e orientação dos outros corpos anteriormente depositados na sepultura, mas com outras características e ações funerárias distintivas.

Em particular, o esqueleto do subadulto 9 destacou-se pela presença de remodelações patológicas observadas no esqueleto, sugerindo comorbilidade resultante de doenças metabólicas e/ou infecciosas crônicas vinculadas à sua morte, e porque teria recebido um tratamento funerário relativamente diferente dos outros indivíduos enterrados ao seu lado, caracterizando-se como um sepultamento ‘desviante’ quando comparado com as outras inumações dentro do sepultamento 2 (Solari et al., 2020dSolari, A., Silva, S. F. S. M., Pessis, A. M., Martin, G., & Guidon, N. (2020d). Applying the bioarchaeology of care model to a severely diseased infant from the Middle Holocene, North-Eastern Brazil: a step further into research on past health-related caregiving. International Journal of Osteoarchaeology, 30(4), 482-491. https://doi.org/10.1002/oa.2876
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). Considera-se ‘desviante’ qualquer tratamento mortuário anômalo, não normativo, diferencial ou atípico em relação a outros membros do grupo, mas sem qualquer conotação negativa (deviant burials sensu – Hodgson, 2013Hodgson, J. E. (2013). ‘Deviant’ Burials in Archaeology. Anthropology Publications, 58, 1-24. https://ir.lib.uwo.ca/anthropub/58
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; Murphy, 2008Murphy, E. (2008). Deviant burial in the archaeological record. Oxbow Books.). Neste caso, o tratamento funerário ‘desviante’ do indivíduo 9 envolveu o processo de redução corporal, que formou o conjunto de restos esqueléticos misturados (grupo de ossos 11) descrito acima e também um depósito atípico de ossos isolados e redundantes junto ao corpo, considerados ‘relíquias corporais’, como ilustrado na Figura 10.

Figura 10
Inumação ‘desviante’ do indivíduo 9 no sepultamento 2, Toca do Enoque, incluindo as ‘relíquias corporais’ ao lado do esqueleto (A). As setas indicam o processo de redução de corpos que formou o grupo de ossos 11, enquanto gerou o espaço onde foi enterrado o indivíduo 9 (B).

Nesse sentido, embora o esqueleto 9 apresentasse acompanhamentos funerários ricos e variados, similares aos demais indivíduos, ao mesmo tempo, destacou-se por uma associação exclusiva de elementos esqueléticos humanos interpretados como ‘relíquias corporais’ (corporeal relics sensuWalsham, 2010Walsham, A. (2010). Introduction: relics and remains. Past & Present, 206(Supl. 5), 9-36. https://doi.org/10.1093/pastj/gtq026
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), com possíveis significados sagrados, sobrenaturais ou mágicos para os membros do grupo que os inumaram junto ao corpo (Solari et al., 2020dSolari, A., Silva, S. F. S. M., Pessis, A. M., Martin, G., & Guidon, N. (2020d). Applying the bioarchaeology of care model to a severely diseased infant from the Middle Holocene, North-Eastern Brazil: a step further into research on past health-related caregiving. International Journal of Osteoarchaeology, 30(4), 482-491. https://doi.org/10.1002/oa.2876
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). Esses fragmentos corporais humanos de adulto, que incluíam uma ulna e duas patelas, não pertenciam a nenhum dos dois adultos com esqueletos completos (3 e 8) enterrados na mesma cova, nem pertenciam a nenhum dos outros indivíduos dos sepultamentos 1 (subadulto) ou 3 (adulto) do mesmo sítio11 11 Foi verificada em laboratório a proveniência desses ossos avulsos redundantes que foram comparados com os ossos dos outros três esqueletos de indivíduos adultos inumados no mesmo sítio. . Portanto, teriam sido ossos coletados de outros sepultamentos mais antigos, fora da área do abrigo, preservados por um tempo desconhecido e realocados neste sepultamento. Diferentemente dos outros ossos coletados e reposicionados em associação aos esqueletos 2 e 3, estes seriam os únicos ossos avulsos que não pertenciam a nenhum dos indivíduos sepultados no sítio, reforçando-se o caráter de ‘relíquia’ dos mesmos.

Para essa interpretação, fizemos uso da proposta de Walsham (2010)Walsham, A. (2010). Introduction: relics and remains. Past & Present, 206(Supl. 5), 9-36. https://doi.org/10.1093/pastj/gtq026
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, que define ‘relíquias’ como restos humanos que passam a ser considerados sagrados, com diferentes significados e funções a eles atribuídos, tornando-se foco de reverência ou celebração pelas sociedades do passado, em uma ampla gama de períodos e culturas. Entre as múltiplas definições, para essa autora, as relíquias corporais incluem o corpo ou um fragmento do corpo de uma pessoa falecida. Entre os traços definidores que caracterizam as relíquias, a autora destaca a durabilidade e a resistência, bem como a portabilidade e a mobilidade. Também as relíquias podem ser definidas como manifestação material do ato de recordação, que une o passado e o presente, ou os vivos e os mortos de formas concretas. Além disso, as relíquias têm poder, que pode ser sagrado, sobrenatural ou mágico. No entanto, o status das relíquias é dado culturalmente, bem como as suas formas de preservação e exposição.

Continuando com o uso da mesma estrutura funerária (sepultamento 2). Em um evento funerário consecutivo após a inumação do indivíduo 9, a cova foi novamente aberta para inumar simultaneamente os corpos dos indivíduos 4 e 5 na parte sudoeste da cova, a uma profundidade menor (de aproximadamente 45 cm). Esse sepultamento primário duplo consistiu nos esqueletos completos em conexão anatômica de dois subadultos com a mesma idade ao morrerem e seus acompanhamentos funerários. As duas crianças foram depositadas na mesma posição e orientação, mas com a particularidade de os corpos terem sido colocados com suas cabeças em direções opostas, de forma que suas faces ficassem voltadas ‘olhando’ (facing) uma para a outra. Esse sepultamento duplo foi interpretado como um novo depósito consecutivo, porque, enquanto a inumação anterior do indivíduo 9 gerou uma grande perturbação intencional (descrita anteriormente), os ossos dos membros inferiores dos esqueletos 4 e 5, que estavam localizados muito próximos ao esqueleto 9, não sofreram qualquer tipo de perturbação.

Durante essa mesma reabertura da cova para a inumação simultânea dos indivíduos 4 e 5 ou numa outra reabertura consecutiva, a uma profundidade semelhante, de 40 cm, mas no lado norte da sepultura, um novo corpo (indivíduo 2) com seus acompanhamentos funerários foi inumado acima do agrupamento de ossos misturados: o grupo de ossos 11. O indivíduo 2 teria sido originalmente depositado com a mesma posição e orientação dos outros indivíduos, resultado de uma deposição primária individual. Apesar do que inferimos como sua deposição original, o esqueleto foi achado in situ na cova, parcialmente articulado, apresentando sinais de perturbação antrópica intencional pós-deposicional, com alguns ossos desarticulados e realocados numa posição anatomicamente não natural, bem como outros ossos retirados após a decomposição dos tecidos moles e relocados junto a outro indivíduo. Tais ações foram associadas à realização da última inumação, a do indivíduo 3.

Fechando o ciclo funerário de uso contínuo no sepultamento 2, a última inumação teria sido a de um indivíduo adulto (n° 3) com seus adornos, localizado no sudoeste da fossa, a uma profundidade de 35 cm, parcialmente acima do esqueleto 4.

A principal observação de natureza tafonômica para inferir que os indivíduos 2 e 3 teriam sido enterrados sucessivamente, em vez de simultaneamente, foi que o esqueleto 2 havia sido parcialmente perturbado após a decomposição dos tecidos moles. A perturbação antrópica pós-funerária percebida no esqueleto 2 incluiu a manipulação intencional de certos ossos do esqueleto. Em um primeiro momento, teria ocorrido a desarticulação das fíbulas e das tíbias, as quais, depois, foram realocadas cruzadas sobre os fêmures do mesmo esqueleto; também foi registrada ausência de dois ossos, a ulna e o rádio esquerdos, que foram retirados do esqueleto 2 e realocados acima do corpo do último indivíduo enterrado na cova, do indivíduo 3.

A inumação do indivíduo 3 consistiu numa deposição de tipo primária individual, de um adulto (possivelmente de sexo feminino), com a mesma posição e orientação dos demais corpos no sepultamento 2. O esqueleto 3 foi encontrado em conexão anatômica, apresentando uma perturbação na região torácica-abdominal, com a desarticulação parcial de alguns ossos. Possivelmente vinculados a essa perturbação, acharam-se associados os dois ossos removidos do esqueleto 2 e realocados acima do n° 3. A correspondência desses ossos, ulna e rádio esquerdos, ausentes no esqueleto 2 e encontrados como ossos redundantes no esqueleto 3, foi observada em laboratório, considerando o tamanho, a lateralidade, o comprimento, a preservação e a morfologia geral dos ossos, bem como o desenvolvimento do crescimento relacionado aos subadultos e adultos (Lambacher et al., 2016Lambacher, N., Gerdau-Radonic, K., Bonthorne, E., & Valle de Tarazaga Montero, F. J. (2016). Evaluating three methods to estimate the number of individuals from commingled contexts. Journal of Archaeological Science: Reports, 10, 674-683. https://doi.org/10.1016/j.jasrep.2016.07.008
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).

Por último, sobre o ciclo funerário do sepultamento 3, embora não tenha sido possível observar seu contexto e arranjo original, inferimos que poderia ter sido bastante semelhante ao sepultamento 1 (deposição primária individual), pois, mesmo na desordem registrada na escavação dos remanescentes ósseos e demais materiais associados, repetiam-se suas características gerais, que seriam: um único indivíduo; a mistura de sedimentos escuros de materiais orgânicos queimados, cinzas e sedimento arenoso do local, que revestiriam a ‘cova original’ para receber e cobrir o corpo; alguns poucos adornos que acompanhavam o corpo; e grandes blocos líticos como possíveis marcadores da existência do sepultamento e/ou para sua proteção.

No entanto, ao contrário do sepultamento 1, após o que teria sido o fim do ciclo funerário do sepultamento 3, este último sofreu consideráveis perturbações pós-deposicionais de origem natural e antrópica. Por uma parte, a maioria dos ossos preservados apresentou sinais de bioerosão, marcas de alterações termíticas macroscopicamente observáveis, que permitiam reconhecer um padrão de dano no esqueleto compatível com a atividade de cupins subterrâneos da família Termitidae, endêmica da região neotropical do Nordeste brasileiro (Solari et al., 2020cSolari, A., Pessis, A. M., Martin, G., Barbosa, F., & Silva, S. F. S. M. (2020c). Las termitas como agentes naturales de alteraciones tafonómicas postdepositacionales en un esqueleto humano del sítio arqueológico Toca do Enoque (Piauí, Brasil). Revista Argentina de Antropología Biológica, 22(1), 1-10. https://doi.org/10.24215/18536387e016
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).

Por outro lado, a ausência de numerosos ossos não explicável por causas naturais e a presença de marcas de queima parcial em alguns dos ossos remanescentes (mandíbula e ulna esquerda) teriam sido os principais indicadores do processo pós-funerário antrópico intencional que afetou este sepultamento (Figura 11). Uma possível interpretação da causa da perturbação antrópica surgiu a partir do achado de relíquias corporais associadas ao indivíduo 9 no sepultamento 2, apontando que, no caso do sepultamento 3, este poderia ter sido reaberto – acidentalmente ou intencionalmente – após um longo tempo depois do término do ciclo funerário, com a consequente manipulação, retirada e coleta de alguns ossos do esqueleto com potencial para serem transportados, conservados e depositados como ‘relíquias corporais’ em alguma outra prática pós-funerária.

Figura 11
Ossos perturbados do indivíduo 13, sepultamento 3, Toca do Enoque: A) ossos preservados do esqueleto após a perturbação antrópica; B-C) mandíbula e ulna esquerda com sinais leves de queima.

Outro dado que apoiaria esta interpretação se vincula à datação indireta de carvões obtida para este sepultamento (n° 3), que foi de 3430 ± 40 AP, uma data significativamente diferente das datações dos outros dois sepultamentos (1 e 2) que apontam para o uso funerário do abrigo por volta de 5.000 a 6.000 anos antes do presente. Nesse caso, por se tratar de um depósito mortuário perturbado, pensamos na possibilidade de que essa datação mais tardia possa estar vinculada ao momento da alteração intencional antrópica dele, que teria sido muito posterior à deposição inicial do corpo, quando os ossos foram propositalmente desordenados, alguns parcialmente queimados e muitos deles removidos da cova.

CONCLUSÃO

A partir dos enfoques fundadores dos estudos mortuários em Arqueologia, as práticas funerárias realizadas pelos vivos sobre os seus mortos no passado teriam sido determinadas por muitos fatores ambientais, sociais, econômicos, políticos e ideológicos (Binford, 1972Binford, L. R. (1972). Mortuary practices: their study and potential. In L. R. Binford (Org.), An archaeological perspective (pp. 108-243). Seminar Press.; Brown, 1971Brown, J. (1971). Introduction.Memoirs of the Society for American Archaeology, 25, 1-5.; Chapman et al., 1981Chapman, R., Kinnes, I., & Randsborg, K. (Orgs.). (1981). The archaeology of death. Cambridge University Press.; O’Shea, 1984O’Shea, J. (1984). Mortuary variability: an archaeological investigation. Academic Press.; Pearson, 1982Pearson, M. P. (1982). Mortuary practices, society, and ideology: an ethnoarchaeological case study. In I. Hodder (Org.), Symbolic and structural archaeology (pp. 99-113). Cambridge University Press.; Saxe, 1971Saxe, A. A. (1971). Social dimensions of mortuary practices in a Mesolithic population from Wadi Halfa, Sudan. American Antiquity, 36(3), 39-57.; Ucko, 1969Ucko, P. J. (1969). Ethnography and Archaeological interpretation of funerary remains. World Archaeology, 1(2), 262-280.). O perfil do morto dentro da população (idade, sexo, posição social vertical ou horizontal, proveniência geográfica, parentesco biológico ou social etc.) condicionava, em parte, o modo de tratar o corpo do falecido e o tipo de prática funerária correspondente em cada caso. Todavia, as decisões sobre os mortos eram reguladas pela sociedade à qual o indivíduo pertencia quando estava vivo, expressando uma variedade de crenças e representações culturais, sociais e/ou religiosas.

Neste artigo, foi usada análise tafonômica funerária como ferramenta para perceber o tratamento físico dos cadáveres, bem como os possíveis significados simbólicos dentro da conformação das deposições funerárias, abrindo possibilidade para uma compreensão integrada das práticas funerárias antigas no sítio arqueológico Toca do Enoque. Esse entendimento foi dirigido nas decisões conscientes adotadas pelos membros sobreviventes da comunidade sobre as expressões materiais de sua relação com os falecidos e com o fenômeno da morte, refletidas na história tafonômica das deposições funerárias e seu contexto imediato.

Em particular, dentre os sepultamentos do sítio, o sepultamento 2 resultou ser um caso extraordinário entre as descobertas arqueológicas na região Nordeste, em particular, e no Brasil, em geral, pelo uso continuado envolvendo a repetição e sobreposição das múltiplas inumações numa mesma cova; pelo número de crianças inumadas; pela variedade e quantidade dos acompanhamentos funerários associados aos esqueletos; pela boa preservação dos restos de natureza orgânica; e pelas práticas de manipulações intencionais observadas nos esqueletos. Também, o sepultamento 3 destacou-se pela prática de perturbação pós-funerária, por meio da exumação e coleta seletiva de ossos possivelmente associada com o uso de ‘relíquias corporais’.

A releitura tafonômica dos três sepultamentos do sítio arqueológico Toca do Enoque que apresentamos aqui mostrou, em pequena escala, a particularidade, a variabilidade e a complexidade das práticas funerárias e pós-funerárias dos povos indígenas caçadores-coletores pré-ceramistas que habitaram no passado a região da caatinga no Parque Nacional Serra das Confusões, nos possibilitando a aproximação com o entendimento dos vínculos existentes entre vivos e mortos durante o Holoceno Médio no Nordeste do Brasil.

  • 1
    Seguindo Halcrow e Tayles (2008Halcrow, S. E., & Tayles, N. (2008). The bioarchaeological investigation of childhood and social age: problems and prospects. Journal of Archaeological Method and Theory, 15(2), 190-215. https://doi.org/10.1007/s10816-008-9052-x
    https://doi.org/10.1007/s10816-008-9052-...
    , 2011)Halcrow, S. E., & Tayles, N. (2011). The bioarchaeological investigation of children and childhood. In S. C. Agarwal & B. A. Glencross (Orgs.), Social Bioarchaeology (pp. 333-360). Wiley-Blackwell., neste artigo, o termo ‘subadulto’ se refere à idade biológica, salvo indicação em contrário. ‘Subadulto’ é usado para designar jovens, sejam eles bebês ou crianças. O termo não se refere a uma diferenciação hierárquica entre adultos e subadultos e é equivalente aos termos ‘não adulto’ ou ‘juvenil’ usados por outros bioarqueólogos (Lewis, 2007Lewis. M. E. (2007). The bioarchaeology of children: perspectives from biological and forensic anthropology. Cambridge University Press.; Scheuer & Black, 2004Scheuer, L., & Black, S. (2004). The juvenile skeleton. Elsevier Academic Press.).
  • 2
    Salvo menção contrária, todas as datas apresentadas são dadas em anos ‘antes do presente’ (AP) (sendo o presente o ano de 1950, por convenção).
  • 3
    Kilo Years Before Present (milhares de anos antes do presente).
  • 4
    A partir das escavações em campo e sem ter feito uma análise bioantropológica completa do conjunto funerário, inicialmente foi estimada uma contabilidade diferente do número de indivíduos para o sepultamento 2, resultando numa quantidade consideravelmente maior de indivíduos apresentada nas primeiras publicações. A nova análise em laboratório e a releitura arqueotanatológica do conjunto ósseo mudaram esse resultado a respeito da quantidade e alteraram a denominação dos indivíduos em alguns casos.
  • 5
    Originalmente denominado esqueleto 11, incluía, na realidade, remanescentes ósseos de três indivíduos diferentes.
  • 6
    Foi mantida a numeração original deste esqueleto, por mais que, no sítio, tenha sido estimada a presença de 12 indivíduos inumados no total.
  • 7
    Na reconstrução da história tafonômica dos sepultamentos na Toca do Enoque, ainda que, arqueologicamente, não tenha sido possível acessar as práticas rituais realizadas entre a morte dos indivíduos e o momento das inumações, o início dos ciclos funerários de cada sepultamento foi inferido a partir do momento do depósito dos corpos nas covas.
  • 8
    Nas primeiras publicações, observou-se uma interpretação diferente no tocante às distintas etapas de uso e reuso do sepultamento 2 e à ordem na qual foram depositados os corpos no interior da cova. A nova análise e releitura de todo o conjunto ósseo aqui apresentado mudou parcialmente essa interpretação inicial.
  • 9
    O indivíduo X, inicialmente, estava numerado como 11; posteriormente, essa numeração foi mantida para o agrupamento de ossos que continha um NMI de três indivíduos; para não mudar a numeração original, foi acrescentada a denominação de ‘X’.
  • 10
    Inicialmente, os esqueletos incompletos e parcialmente articulados e o agrupamento de ossos misturados geraram maior confusão, levando à estimação de maior número de indivíduos entre os verdadeiramente inumados no sepultamento 2.
  • 11
    Foi verificada em laboratório a proveniência desses ossos avulsos redundantes que foram comparados com os ossos dos outros três esqueletos de indivíduos adultos inumados no mesmo sítio.

AGRADECIMENTOS

In Memoriam da Dra. Fátima Luz. Ana Solari agradece o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Desenvolvimento Científico e Tecnológico Regional/Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (DCR/FAPEPI), pelas ajudas financeiras que recebeu durante esta pesquisa. Todos os autores agradecem a contribuição da equipe técnica profissional da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), que participou das atividades de campo e laboratório, e a Dra. Niede Guidon, pelo seu apoio e liderança.

  • Solari, A., Silva, S. F. S. M., Pessis, A. M., & Martin, G. (2022). Tafonomia funerária na Serra das Confusões: os processos de formação dos depósitos mortuários na Toca do Enoque, Holoceno médio, Nordeste do Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 17(3), e20210053. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2021-0053

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Editado por

Responsabilidade editorial: Jorge Eremites de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2021
  • Aceito
    22 Fev 2022
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