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Morte e narrativa

Death and narrative

Resumo

Há um pequeno relato de morte escrito por Fiódor Dostoievski em 1876, inspirado em notícias de jornal, em que o esforço narrativo se volta para cobrir de sentido a falta de sentido original do morrer. Intitulado A dócil, esse texto é aqui retomado para pensar sobre alguns dos caminhos que tomam o jornalismo e seus relatos ao ingressarem na teia de referências associadas à morte em nossa cultura.

Palavras-chave
narrativa; Dostoievski; jornalismo

Abstract

There is a short narrative about death written by Fiódor Dostoiévski in 1876 that was inspired by newspaper articles and in which the narrative effort aims to cover the lack of the original sense of death. Titled A gentle creature, the novel is here taken to think about some of the ways that journalism and his texts get to enter into the web of references associated with death in our culture.

Keywords
narrative; Dostoiévski; journalism

[...] e digo mesmo “morria”, não perecia ou lia ou viajava ou dormia ou ria, mas “morria”, como se fosse um verbo, como se houvesse um sujeito para esse verbo entre outros.

Michel Deguy

No prefácio da edição brasileira de A dócil, o tradutor Vadim Nikitin (2003, p. 8)NIKITIN, V. Notas do subtexto. In: DOSTOIEVSKI, F. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo. São Paulo: Ed. 34, 2003. p. 7-10. informa que Dostoievski encontrou o argumento central dessa novela nos jornais de São Petersburgo, no último quartel do século XIX. A fonte principal de A dócil, nos diz Nikitin, foi uma onda de suicídios, em particular o da costureira Maria Boríssovna, noticiado pelo jornal Nôvoie Vrêmia (O Novo Tempo). “Maria viera sozinha de Moscou e, acuada pela miséria, acabou atirando-se de um sexto andar abraçada a um ícone da Virgem, presente de seus pais.” (NIKITIN, 2003NIKITIN, V. Notas do subtexto. In: DOSTOIEVSKI, F. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo. São Paulo: Ed. 34, 2003. p. 7-10., p. 8.) A cena desse voo com a imagem da Virgem, caracterizável como um fait divers, inspirou o jornalista/escritor Dostoievski que, dois meses depois, no final de 1876, encheu com a história uma edição inteira de sua revista mensal, Diário de um escritor.

Na novela (adaptada ao século XX por Robert Bresson no filme Une femme douce, de 1969, o que atesta a sua longevidade), o marido da jovem suicida, um usurário dono de uma pequena casa de penhores, repassa consigo mesmo, diante do corpo morto, as coisas que sucederam ao casal, dentro do duro limite do seu próprio entendimento. Toda a novela se restringe, cenograficamente, a essa tentativa desesperada de entender, dar sentido ao corpo morto da mulher, estendido sobre a mesa, ao longo de uma noite. Dostoievski (2003, p. 13)DOSTOIEVSKI, F. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo. São Paulo: Ed. 34, 2003. nos apresenta seu texto assim, na carta editorial da revista:

Peço desculpas aos meus leitores, pois desta vez, em lugar do Diário na sua forma habitual, ofereço apenas uma novela. Mas estive de fato ocupado com essa novela a maior parte do mês. [...] Imaginem só um marido, sobre a mesa da casa jaz a sua mulher, uma suicida, que algumas horas antes jogou-se pela janela. Ele está transtornado e ainda não teve tempo de juntar as suas ideias. Anda pelos cômodos da casa e procura atinar com o ocorrido, “juntar as suas ideias num ponto”. Ademais é um hipocondríaco inveterado, daqueles que falam sozinhos. Aí está ele falando sozinho, narrando a coisa, esclarecendo-a para si mesmo. [...] (Grifo do autor.)

Sua novela é mesmo um exercício exemplar do que é conceitualmente a narrativa, esse processo em camadas (“contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo”, diz Benjamin, 1993BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993., p. 205) que recobre ou procura recobrir de significado o acontecimento. É a tentativa de incluir o acontecimento num relato ordenador, ou seja, de enredá-lo, dar-lhe um enredo em que se estabelecem relações, em geral de causa e de efeito, tornando-o de algum modo compreensível e, assim, subtraindo-lhe aos poucos a ausência radical de sentido. Sabe-se, no âmbito da teoria da narrativa, que esse exercício de ordenação é tranquilizador e confortante, na medida em que situa a experiência numa sequência medianamente unificada e estável, e por isso portátil, podendo ser retida, recarregada, reiterada, refeita.

O esforço de organizar e assim dar sentido à experiência é perfeitamente material, no texto de Dostoievski. Denota-se, na leitura, a confusão inicial do narrador em relação a sua própria memória, e ele retoma os eventos que precederam o suicídio numa fala não-cronológica e acidentada, que em diversos momentos se dobra sobre si mesma. Para definir o começo da história do suicídio, por exemplo, ele recua algumas vezes. No início do segundo parágrafo do capítulo primeiro, diz: “Se querem saber, ou melhor, se é para começar bem do começo”. Cinco parágrafos longos depois: “Agora sim é que tudo começa”. Na parte final do capítulo primeiro, dirá: “Mas o que há comigo. Se eu continuar assim, quando é que vou juntar tudo num ponto? Depressa, depressa – não é absolutamente nada disso, ah meu Deus!”. E assim segue. Na sexta e última parte do capítulo primeiro, havendo relatado algumas das passagens brutais do relacionamento com a mulher, dirá: “Talvez não fosse nada disso, talvez eu nem tivesse pensado nisso então; mas tudo isso tem que ter acontecido, ainda que sem pensamento, porque depois não fiz outra coisa senão pensar nisso a cada hora da vida”.

Assim, naquela noite, nosso narrador encadeia acidentadamente, e com gagueira narrativa, uma história autocomplacente. Sua autoridade é escassa. Ele a desconstrói, a autoridade, ao mesmo tempo que a exige sempre para si. Mostra-se como personagem pouco digno de confiança, tanto ao expor as tramas inseguras de sua memória na materialidade no texto, como por apresentar sua versão das coisas e pessoas de modo a se justificar todo o tempo, centrado em si mesmo em excesso. Enquanto fala, esse narrador muda de posição diante do interlocutor: às vezes interpela um público que imagina, outras parece falar para si mesmo, mais à frente se dirige a um tribunal imaginário, que estivesse julgando suas ações. Nas diversas posições, o narrador encontra justificativas e isenções para si mesmo. A culpa foi toda dela, concluirá diversas vezes, enquanto nós, leitores, compreendemos paulatinamente o contrário. Ele recorda eventos de intensa crise, como o cada vez mais seco e radical silêncio a que ele a submetia, a história de sua saída vexaminosa do regimento em que servira acusado de covardia, a desconfiança infundada de uma traição e a tentativa de flagrante armado com um revólver, o dia seguinte em que acorda com a esposa encostando o cano do revólver em sua testa (ele apenas fecha os olhos e a ignora), a doença dela e o arroubo da preocupação dele, o dia em que ela de repente canta e ele arrebatado começa a lhe beijar os pés e quer levá-la para uma nova felicidade numa estação de banhos (“E eu pensava que o senhor me deixaria assim”, dirá ela, nesse momento de seu desespero). Depois de tudo, ele conclui que ela morreu porque ele demorou cinco minutos para chegar em casa. “Tivesse eu chegado cinco minutos antes – e o momento teria passado ao léu como uma nuvem [...].”

A forma desse relato, em que o personagem rememora de forma entrecortada, instável e não linear, na presença do corpo, ou seja, no presente da morte, os eventos que precederam a morte, é considerada por Dostoievski um elemento fantástico. Argumenta, na apresentação do texto, que sugere a hipótese de um estenógrafo que anotasse tudo, enquanto o personagem elabora suas lembranças e sua crise. É, contudo, uma estratégia realista, justamente pela gagueira franca da sua memória, da sua autocomplacência eloquente. São índices que conferem uma aura de veracidade porque nos permitem “ver” o personagem e ouvir sua voz ao mesmo tempo insegura e agressiva. A reprodução do modo como as pessoas falam, pensada como técnica narrativa, é a rigor um dos recursos do realismo, mas é, antes disso, um dos talentos de Dostoievski, conforme verificou Mikhail Bakhtin em seus estudos sobre o autor.

O narrador protagonista da novela de Dostoievski encarna esse exercício de encadear uma narrativa em sua versão pessoal, como de resto provavelmente todos agimos diante da morte do outro, da morte que não é a nossa. Ele encarna o sujeito mobilizado pelo acontecimento da morte da mulher, e uma morte particularmente sensível ao gesto do enredamento, que é a morte suicida. O suicídio de pessoa que conhecemos tende sempre a nos implicar; o da pessoa remota, ou a da celebridade, aciona a seu modo esse complexo das implicações. O que é mais rigorosamente decisivo, nessa operação de tomar posição diante da morte, é que ela estrutura uma subjetivação. É a tomada de posição diante da morte de outrem que torna essa morte um acontecimento, para cada um de nós ou para uma coletividade. Para o personagem narrador de A dócil, a subjetivação se realiza ao final em forma literária esplêndida:

Dizem que o sol anima o universo. O sol vai nascer e – olhem para ele, por acaso não é um cadáver? Tudo está morto, e há cadáveres por toda a parte. Há somente os homens, e em volta deles o silêncio – essa é a terra. [...] O pêndulo bate insensível, repugnante. Duas horas da madrugada. As suas botinhas estão junto da cama, como que esperando por ela... Não, é sério, quando amanhã a levarem embora, o que é que vai ser de mim? (DOSTOIEVSKI, 2003DOSTOIEVSKI, F. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo. São Paulo: Ed. 34, 2003., p. 87.)

No jornal ou na televisão, um repórter relata o morrer de outrem, ou relata não a morte, mas a situação ou a história de um morto. A notícia em si de uma morte talvez nos surpreenda por um motivo ou por outro, mas esse modo de contar, que é um modo “externo” ou “exterior”, não nos sobressalta. Afinal, quem relata a morte está vivo, não relata a sua própria experiência de morrer. Morrer, contar a morte. Entre essas duas experiências se estende um limite: pode um moribundo contar seu “ir morrendo” até, de fato, a sua morte? Morrer é, aí, a ruptura radical do relato? Timothy Leary fez filmar em videoteipe sua morte, ele diz “Why not?” e morre, de modo que existe essa mimese da morte, que é o filme do morrer. E existem as fotografias de mortos, imagens de cadáveres, que podem ser momentos narrativos, no sentido de serem temporalidades, ou podem indicar uma espacialidade, a morte como um lugar. E as imagens de guerra, de bombas, de ações violentas da polícia, das mortes captadas por câmaras de vigilância.

Já a diegese da morte, esse contar a experiência de morrer, enfrenta necessariamente a ruptura narrativa implicada na morte. Em termos narrativos, toda a linguagem se torna a linguagem de outros diante do morrer. É ainda necessária a suspensão temporária da incredulidade, defendida por Coleridge, para ler o relato “interno” do morto Brás Cubas ou o fantástico relato de O último dia de um condenado (Victor Hugo, 1829), em que o morto conta o seu morrer, até o fim. É pela ficção que se desliza do possível ao impossível e vice-versa: ao morto já não é dado falar, mas é bem da morte, segundo Walter Benjamin (1993, p. 207-209)BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993., que deriva toda a autoridade de quem narra. Ou seja, a morte “autoriza” a narrativa como talvez nenhum outro acontecimento. Em seu ensaio sobre Nikolai Leskov, que se tornou um clássico sobre o narrar, Benjamin diz: “[...] é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível” (1993, p. 207). E, algumas linhas depois: “A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade” (p. 208).

Sublinhe-se nessas passagens não apenas o problema da autoridade narrativa, cujo desgaste Benjamin associa, naqueles anos da década de 1930, às experiências desmoralizadoras: “a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes” (BENJAMIN, 1993BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993., p. 198). Sublinhe-se, também, que ele considera a existência vivida como sendo a substância primordial das histórias, na medida em que é exatamente a experiência (e sua exaustão) que mobiliza o pensamento de Benjamin em relação ao narrador oral e à morte histórica desse mesmo narrador. Essas anotações sobre a morte, a narrativa, a experiência e seu partilhamento são sem dúvida férteis para pensar a relação do narrar com o morrer.

A morte é potencialmente um lugar de acontecimento, que atravessa os fluxos e as posições dos sujeitos e que mobiliza temporalidades heterogêneas. Considero o acontecimento aquilo que atravessa os fluxos e as posições dos sujeitos, e que redireciona de maneira imprevista tais fluxos, de modo a exigir subjetivações imprevistas. Esta formulação foi abstraída basicamente de Jacques Rancière (1995, p. 239)RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34. 1995.. Não se pode olhar as imagens da morte sob a ilusória concepção de um imaginário uniforme e vivido por todos. Pode-se pensar com Michel Lauwers (2002, p. 244)LAUWERS, M. Morte e mortos. In: LE GOFF, J; SCHMITT, J.-C. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, v.2. p. 243-261. que uma imagem da morte se inscreve sempre em redes de relações e de trocas hierarquizadas, de estruturas de autoridade e poder, de sistemas simbólicos cuja coerência e lógica convém reencontrar. Imagens do morrer, memórias do morrer, carregadas a partir de arquivos múltiplos da memória dos indivíduos e dos grupos, acionadas de modo dialógico diante da morte e dos relatos da morte e requisitadas para que uma verdade faça seu caminho. Já contar a morte é uma aventura narrativa, um encadeamento ou um desencadeamento, que organiza e constitui em si um arquivo de imagens e de memórias do morrer.

Dostoievski tinha sua própria revista e publicou nela a história da moça morta. Nessa história não sabemos com exatidão os limites entre invenção criativa e elementos da realidade empírica. A moça suicida que se precipita agarrada na imagem da Virgem terá existido. Todo o personagem narrador pode ter sido tramado pelo escritor, que o deixa perfeitamente verossímil, porém nem por isso ele é necessariamente veraz. Essa abertura nos dêiticos, na ancoragem dos elementos narrativos no mundo, é uma das formas de identidade da literatura, e a distingue de modelos textuais como o da história ou do jornalismo. Mas essa é uma distinção que possuía liames próprios na época de Dostoievski, que era já um escritor reconhecido em 1876, por seu Crime e Castigo. Em A dócil, ele está atuando na imprensa. Era o período em que a literatura europeia começava a viver do público dos jornais. Os limites da invenção não estavam definidos para os jornalistas literários dessa época, como se pode observar, por exemplo, em reportagens de Charles Dickens. Em “The Great Tasmania’s Cargo”, (1812-1870), publicada em 1860 em seu semanário All the Year Round, Dickens reporta com grande detalhe realista a condição dramática dos passageiros do trem, e passa a discutir o que relata com Pangloss, o personagem criado por Voltaire. Essa limitação, contudo, se tornou enfática desde o final do século XIX, e é um dos aspectos que seguramente afeta a performance do jornalismo diante da narrativa da morte.

“Numa cidade de 245 mil habitantes, cerca de 100 mil haviam morrido ou iriam morrer em breve; outros 100 mil estavam feridos”, relata John Hersey (2002, p. 31-32)HERSEY, J. Hiroshima. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. em sua reportagem sobre a bomba de Hiroshima. “Oito horas foi o tempo necessário para retirar o corpo de um morador de rua que morreu em frente da Prefeitura, no centro de São Paulo, ontem de madrugada”, relata Camilla Rigi no caderno Cidades do jornal O Estado de S. Paulo (2008). Nesses relatos do jornalismo, fala-se de um “estar morto”, ou seja, de um estado de coisas. Mais do que a morte, os sentimentos e atitudes que suscita, são os mortos, os cuidados que recebem, o papel e o lugar que lhe são reconhecidos pelos vivos, que parecem constituir o objeto de interesse maior.

A morte como acontecimento jornalístico tende a remeter, nesses casos, a um estado de coisas. Remete a um estar morto, no presente, em relação ao qual uma asserção pode ser verdadeira ou falsa. Como experiência, contudo, a lógica do acontecimento da morte é mais complexa: morrer é de fato um acontecimento puro, um infinitivo. Assim se coloca uma questão sobre o relato da morte: de que modo esse relato se situa diante da experiência efetiva do morrer? Vislumbram-se as camadas que essa resposta pode compreender: a característica em si da morte como um acontecimento; o conflito visto por Benjamin entre informação e experiência (a morte como local máximo de validação da experiência) e o desgaste da experiência em si; as variáveis retóricas e poéticas de apreensão do acontecimento da morte; a irredutibilidade da experiência da morte a classificações e estratificações.

O que a novela A dócil elabora é um explícito anseio de autojustificação, no qual as idas e vindas do esforço encadeador fazem ver sua própria e forçada fragilidade e seu pendor para o acobertamento, para o velamento. Dostoievski, mestre da polifonia, encena o monólogo como uma gagueira. Noções que no jornalismo tendem a ser lineares, como a sucessão do tempo, se desestruturam nessa gagueira que é precursora do fluxo de consciência. A manhã seguinte foi hoje, percebe de repente o narrador (p. 80). No jornalismo a gagueira poucas vezes pode se mostrar tão explícita. A linguagem dominante no jornalismo aspira à transparência e à certeza, com o que se vela, em nome do verídico, o grau de gagueira que atravessa toda verdade.

Dostoievski foi considerado mestre da polifonia por Bakhtin (1992, p. 407)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.:

Entre os escritores, quem conseguiu a maior profundidade nessa transmutação de coisa em sentido foi Dostoievski, ao desvelar os atos e os pensamentos de seus heróis principais. A coisa, que continua sendo coisa, influi somente sobre as coisas. Para influir sobre a pessoa, ela deve revelar seu potencial de sentido, tornar-se palavra, ou seja, participar de um contexto virtual do sentido verbal.

Está na frase final a ideia da polifonia, que é a compreensão das palavras num contexto virtual de sentidos. Nesse espaço em que as palavras se encontram, em que os sentidos se elaboram, ocorrem, na perspectiva bakhtiniana, lutas de opiniões e de ideologias. Daí que o crítico diz: “Apenas o grande polifonista que foi Dostoievski soube captar na confusão das lutas de opinião e de ideologias (das diversas épocas) a natureza inacabada do diálogo sobre as grandes questões (na escala da grande temporalidade)” (BAKHTIN, 1992BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992., p. 393).

Na narrativa clássica, a relação entre causas e efeitos obedece a uma lógica que é sempre interna ao encadeamento do relato, ou seja, sua verossimilhança é exigente apenas nas causas e efeitos interiores da história – não por acaso tal como no fait-divers, cuja imanência lhe propicia abertura interpretativa e, logo, é um jornalismo sempre aberto à literatura, mesmo que seja literatura considera “má” (cf. BARTHES, p. 275). E que nos lembra novamente Benjamin (1993, p. 203)BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993., que contrapôs o universo sempre explicativo da informação jornalística ao quase descaso que a arte narrativa tradicional mantém para com a explicação. Donde ao menos nessa fração clássica do jornalismo, num sentido de fato histórico, que é o fait divers, o artifício das explicações em geral absurdas abre o signo como conteúdo aberto.

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. [...] Ele [o leitor] é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação. (BENJAMIN, 1993BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993., p. 203.)

A morte, e em particular a morte suicida, embora seja esta um tabu no jornalismo, é sempre potencialmente um tema para o fait-divers. A reportagem sobre a morte de Felipe Klein (“A tragédia de Felipe Klein”, Porto Alegre, Jornal Já, 20 dez 2004), que recebeu o prêmio Esso de reportagem no ano seguinte, é exemplar no modo como o insondável abre o limite dos significados e amplia a potência do relato diante da experiência da morte. O jovem Felipe, de 20 anos, tinha o corpo transformado pela body modification e, como a jovem suicida da novela de Dostoievski, se precipita pela janela e cai morto na calçada. Na reportagem de Renan Antunes de Oliveira, a história da morte do jovem que queria se parecer com um lagarto, porque se sentia em absoluto mal-estar com a humanidade, estabelece um confronto narrativo vigoroso entre o jornalismo e a morte. Sua frase final abre uma fissura irônica nos fatos relatados, todos eles ditos como verazes: “Agora é tarde, Felipe Augusto foi na frente. Nos precedeu na luz”.

Fora do âmbito do fait divers, o jornalismo age de certa forma como ordenador de enredos, articulador de causas e de efeitos, sentidos que, mesmo provisórios, preencham a angústia do acontecimento, que não exibe ou mesmo trai as relações de causalidade em sua superfície de evidência. O jornalismo atua assim diante da morte: enreda-a, porém quase sempre na perseguição das explicações, que são como embreagens para a acomodação. Donde se perseguem as causas e antecedentes que expliquem o ataque de 11 de setembro, ou a morte de Amy Winehouse, ou as causas e antecedentes do massacre de 91 pessoas na Noruega, atrás de uma narrativa unificadora. Além disso, o jornalista narra experiências que em geral não testemunhou, dependendo da qualidade narrativa de outros, de suas memórias, de sua capacidade e disponibilidade de partilhar a experiência diante da morte e do morrer. Há um trabalho narrativo peculiar no jornalismo, que se estende entre o verossímil e o veraz, com o desafio de não encerrar significados diante da experiência infinitiva do morrer.

Porém não se está em território uniforme e plano. Em condições favoráveis de sensibilidade e habilidade narrativa, o acontecimento da morte às vezes alcança na reportagem as condições para o registro e a partilha da experiência, mesmo quando se está em outro ambiente, que não o do fait-divers. Isso ocorre, por exemplo, nas reportagens de guerra de Ernest Hemingway, com sua técnica do iceberg, de manter os dados mais graves em estado de velamento. E ocorre em passagens como esta, de Caco Barcellos, ao contar sobre a Nicarágua sandinista em A Revolução das Crianças (1982, p. 10):

Ela está gritando desde o momento em que uma bomba acabou com a sua família. Eram seis da tarde de hoje quando vi Marvin sair de casa com a filha nos braços, seguido por Norma. Estavam horrivelmente feridos. Ele caminhava com os ossos da perna à mostra e a menina parecia morta, pois a mãe tentava repor suas vísceras no lugar. Ela gritava assassinos! e olhava para o céu como se o piloto a estivesse ouvindo. Os guerrilheiros corriam, corcundas, buscando posições no meio dos escombros. O incêndio chegara a duzentos metros da casa de Norma, queimando as árvores e os fios de alta tensão. Algumas pessoas tentavam escapar, carregando seus pertences nos braços, em baldes plásticos, em carrinhos de madeira. Iam desviando das pedras, dos carros virados e dos movimentos aflitos de Norma. Quando o marido caiu morto no asfalto, Norma pegou o corpo da filha e tentou botá-la de pé, sobre um poste tombado. Mas as pernas estavam moles. Mesmo depois de estar certa da morte da menina, ela insistia em tentar ressuscitá-la. Sacudia-lhe a cabeça, passava a mão no seu rosto, beijava-a, dizia: – Vive, Suzi, vive!

O jornalista é acima de tudo um contemporâneo, bem observou Bakhtin (1992, p. 393)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.. “É realmente obrigado a sê-lo. Vive na esfera das questões que podem ser resolvidas na contemporaneidade (ou, pelo menos, num tempo próximo). Participa de um diálogo que pode ser concluído, de um diálogo que pode passar à ação, pode converter-se em força empírica.” A palavra do jornalismo é por isso, conforme nos mostra Bakhtin, preponderantemente retórica: designa os acontecimentos com o empenho de lhes atribuir uma solução histórica temporal. Os grandes problemas e sua verdade são dificilmente apreensíveis pela discussão retórica, mesmo em suas formas superiores; são, talvez, mais compatíveis com a experimentação poética.

Roland Barthes (1977, p. 15)BARTHES, R. Ensaios críticos. Lisboa: Edições 70, 1977., numa de suas tentativas de definir a literatura, recorreu a um exemplo da relação da linguagem com a morte:

Um amigo acaba de perder alguém que lhe é muito querido e eu pretendo mostrar-lhe a minha compaixão. Começo então a escrever-lhe espontaneamente uma carta. No entanto, as palavras que me saem não me satisfazem: são “frases”; construo “frases” com o mais íntimo de mim próprio; penso então para comigo que a mensagem que pretendo fazer chegar a esse amigo, e que é a minha própria compaixão, poderia em suma, reduzir-se a uma simples palavra: pêsames. Todavia, o próprio fim da comunicação opõe-se a isso, porque seria uma mensagem fria, e por conseguinte invertida, uma vez que aquilo que pretendo comunicar é o próprio calor da minha compaixão. Daí concluo que, para retificar a minha mensagem (isto é, para que ela seja exata), é necessário não apenas que eu a altere, mas também que essa alteração seja original e como que inventada. (Grifo do autor.)

É nessa série fatal de dificuldades, de recobrir o indizível pelo inventado, que Barthes reconhece a literatura. Sua formulação resume um estatuto de autonomia que a literatura ganhou na modernidade, na medida em que ela se afastava da concepção tradicional de belas letras. Nesse percurso, a literatura também se diferenciava do jornalismo, o qual estabeleceu a sua moldura cultural, o seu reconhecimento como um discurso de credibilidade, justamente pela possível verificação de uma asserção ser verdadeira ou ser falsa. Na literatura como a compreende Barthes, assim como na poesia de Michel Deguy, citada na epígrafe deste texto, morrer é de fato um acontecimento puro, um infinitivo, que se precipita como uma questão de temporalidade inacabável. No jornalismo, a morte é muitas vezes um acontecimento a ser tratado e compreendido na sua própria contemporaneidade, com um caráter que, por mais complexo, está carregado pelo elemento do atual, do imediato.

Bakhtin, que como se observou anteriormente, encontrou em Dostoievski a matéria de referência para seu conceito de polifonia, julgou com rigor os materiais jornalísticos do escritor. “A palavra do jornalista, se introduzida no romance polifônico, fica humilde ante o diálogo infinito e inacabável. Quando se penetra no campo do jornalismo de Dostoievski, observa-se um bruto estreitamento do horizonte [...]” (BAKHTIN, 1992BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992., p. 393.). E, no entanto, as anotações de Bakhtin percebem em seguida que os personagens dostoievskianos “viviam e agiam (e pensavam) perante o mundo inteiro (perante a terra e o céu)” (ainda p. 393), lançando-os numa temporalidade maior, mesmo no âmbito do seu jornalismo.

A dócil é um desses materiais que tem um estatuto aberto. Apresenta-se como um acontecimento-novela que é dobra de um acontecimento-notícia. Nikitin, no prefácio supracitado, sugere mesmo que Dostoievski exercita em seu Diário um “modo específico de entretecer informação e experiência” (grifos do autor). O espanto que A dócil encena diante do corpo morto faz crer que a notícia, afinal, não matou o narrador. Ao contrário. Dostoievski mostra como ler (ou ver) a notícia tornou-se, ao lado conjuntamente com a literatura, a poesia, o cinema, o videoteipe e a fotografia, uma das formas modernas de se relacionar com a morte e com o morrer.

Há uma relação do jornalismo com a morte que se dá a ver de na grande maioria das coberturas, que persegue a linearidade clara das causas dos eventos. Porém ocorrem qualitativamente outras maneiras de narrar a morte no ambiente do jornalismo, seja nas explorações híbridas do jornalismo do século XIX, seja nas reportagens inteiramente embreadas na realidade empírica que preponderam desde então. Talvez se possa, recorrendo ainda, muito positivamente, a Benjamin, caracterizá-las como “bárbaras”, a partir de um conceito novo e positivo de barbárie. A pobreza de experiência impele o bárbaro “a partir para frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” (BENJAMIN, 1993BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993., p. 116).

Referências

  • BAKHTIN, M. Estética da criação verbal São Paulo: Martins Fontes, 1992.
  • BARTHES, R. Ensaios críticos Lisboa: Edições 70, 1977.
  • BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993.
  • BARCELLOS, C. A Revolução das Crianças Porto Alegre: Mercado Aberto. 1982.
  • DOSTOIEVSKI, F. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo. São Paulo: Ed. 34, 2003.
  • HERSEY, J. Hiroshima São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
  • LAUWERS, M. Morte e mortos. In: LE GOFF, J; SCHMITT, J.-C. Dicionário temático do Ocidente Medieval Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, v.2. p. 243-261.
  • NIKITIN, V. Notas do subtexto. In: DOSTOIEVSKI, F. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo. São Paulo: Ed. 34, 2003. p. 7-10.
  • OLIVEIRA, R. A. de. A tragédia de Felipe Klein. In: Jornal Já, Porto Alegre, 20 dez 2014. Disponível em http://www.jornalja.com.br/2004/12/20/a-tragedia-de-felipe-klein/
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  • RANCIÈRE, J. Políticas da escrita Rio de Janeiro: Editora 34. 1995.
  • RIGI, C. Corpo fica 8h diante da Prefeitura. In: O Estado de S. Paulo: São Paulo, 24 out 2008. C-3.
  • VOGEL, D. O acontecimento no jornalismo e na arte. In: BENETTI, M.; FONSECA, V. P. da S. Jornalismo e acontecimento: mapeamentos críticos. Florianópolis: Insular, 2010. p. 63-67.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    Dez 2015
  • Aceito
    Jul 2016
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