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Fotos de guerra, entre a beleza e o caos

War photography: between beauty and chaos

SHIELDS, David. War is beautiful. Nova York: owerHouse Books, 112. 2015.3.

Resumo

Publicado nos EUA em 2015, este livro acusa o jornal The New York Times de glamourizar a guerra com edição de fotografias de conflito marcadas pela beleza estética. A seleção de imagens privilegia cenas bucólicas e de apelo emotivo para expor a abordagem ideológica da violência da intervenção militar dos EUA no Afeganistão e no Iraque. Ao mesmo tempo, ao isolar as fotografias do ambiente jornalístico, a obra radicaliza o efeito estetizante e se torna, ela mesma, uma bela antologia.

Palavras-chave
fotografia de guerra; estética; jornalismo; jornalismo de guerra

Abstract

This book accuses The New York Times of glamorizing the war when editing photographs of conflict with strong aesthetic effect. The selection of images privileges bucolic scenes and emotional appeal to expose what the author considers to be an ideological distortion of the violence of US military intervention in Afghanistan and Iraq. At the same time, in isolating the photographs from the journalistic environment, the work radicalizes the aestheticizing effect and becomes, itself, a beautiful anthology.

Keywords
war photography; aesthetics; journalism; war journalism

A fotografia de guerra vive permanentemente a tensão da ambiguidade entre a sedução artística e a repugnância da violência. Entre monstra e astra, segundo a dualidade proposta por Aby Warburg1 1 Monstra e Astra são duas palavras latinas que Warburg utiliza frequentemente e significam a brutalidade monstruosa das forças naturais e a sua contenção pela civilização (astra significa os astros, estrelas, mas remete aos deuses que eles representam, as “figuras mitológicas do firmamento”, conforme a “concepção grega do cosmos”, a que Warburg se refere na descrição da prancha : produzida conforme as regras de construção da imagem estabelecidas no desenvolvimento da fotografia, sob influência da perspectiva estetizante pós-renascentista, a imagem de um conflito apreende a violência com técnicas concebidas para captar e reproduzir a perfeição da Criação.

É motivo de frequentes polêmicas o choque provocado pelo retrato de um fenômeno associado ao horror produzido com técnicas dedicadas a exprimir o belo: a bela foto de guerra é atacada por estetizar a violência.

É no contexto desse entrechoque que foi produzido o livro War is beautiful, um ensaio crítico de autoria de David Shields que ataca o que chama de glamour das fotografias de guerra publicadas no jornal The New York Times. O livro recebeu boas resenhas na imprensa norte-americana e ao menos uma crítica elogiosa no Brasil, de Dorrit Harazim (em “O Instante Certo”, 2016), pelo caráter de denúncia da estetização da guerra.

Shields (2015) entende que as imagens de conflito publicadas no jornal norte-americano “glorificam a guerra por meio de um infinito desfile de belas imagens cuja função é consagrar as legendas sobre batalhas, morte, destruição e deslocamento de populações”. O autor formou essa intuição como assinante do jornal: “o ethos dominante era, sem chance de erro, a glamourização da guerra e os sacrifícios feitos por quem serve na guerra”.

Para a produção do livro, pesquisou cerca de 4,5 mil primeiras páginas do jornal, do momento da invasão do Afeganistão, em 2001, até 2014; entre elas, encontrou aproximadamente mil fotos de guerra, das quais selecionou as 67 imagens que compõem War is beautiful, produzidas entre 2002 e 2009.

A obra é um libelo contra o que seu autor entende ser a estética glamourizante das fotografias, que mostram cenas da participação de soldados dos EUA nos conflitos em que o país se envolveu no início do século, Iraque e Afeganistão, e embates entre Israel e Palestina.

A acidez começa pela capa, desenhada pelo artista gráfico Milton Glaser, imitando o layout das primeiras páginas do Times. Nela, o título da obra funciona como manchete e o subtítulo diz: guia visual do New York Times para o glamour dos conflitos armados. Um asterisco ao final da frase remete a uma nota de rodapé que completa o ataque: “Onde o autor explica por que parou de ler o ‘Times’”.

Com 18 livros de não-ficção publicados e colaborações em diversos veículos de prestígio, incluindo o próprio NY Times, Shields dividiu o livro em dez capítulos, com conjuntos temáticos de imagens, reunidas conforme sentimentos comuns que detectou nas imagens a partir de gestos ou cenas semelhantes: Natureza; Playground; Pai; Deus; Pietà; Pintura; Filme; Beleza; Amor; Morte.

As fotos são publicadas sem legenda: ao final do livro, há um índice em que cada uma é identificada por dois verbetes: a reprodução da legenda publicada originalmente pelo Times quando da publicação, e uma explicação de seu conteúdo original, ou seja, o contexto no qual a imagem foi produzida, com informações que poderiam ter aumentado o seu impacto crítico na data da publicação.

Mesmo considerando que o tema do livro é polêmico, é difícil deixar de concordar com o autor diante de algumas fotografias que ele escolheu para sua antologia, que poderiam perfeitamente ilustrar anúncios de destinos turísticos (como a do soldado que vasculha uma plantação de papoulas no Afeganistão, que parece um campo de tulipas na Holanda); ou uma página de esportes (em um jogo de beisebol ao pôr-do-sol, no Iraque, o contraste deixa ver o jogo, mas elimina o lugar).

Outras fotos não parecem tão frias, até ao contrário, podem ter chocado leitores: crianças emolduradas de sangue, uma rua onde as pessoas fogem de uma explosão (em que uma linda mulher em primeiro plano acentua mais a percepção de violência do que a estética); corpos de pessoas mortas, carros incendiados, soldados em fogo cruzado, tanques e bazucas atirando, etc.

O paradoxo entre a beleza da fotografia e a dramaticidade do que retrata é questão colocada de tempos em tempos por críticos diante do trabalho de grandes fotógrafos. Em Diante da dor dos outros, Susan Sontag (2003)SONTAG, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. criticou a obra de Sebastião Salgado com argumento semelhante. Atualmente, dois dos mais premiados fotógrafos de guerra internacionais são os brasileiros Maurício Lima e André Liohn. Um trabalho de Lima para o Times (a cobertura da crise dos imigrantes do Oriente Médio para a Europa) recebeu o Pulitzer de 20152 2 Lima não tem fotos entre as selecionadas em War is beautiful. . Uma foto de André Liohn durante os conflitos que antecederam a queda do ditador Muamar Kadafi, na Líbia, em 2011, rendeu a ele a Medalha de Ouro Robert Capa como melhor fotografia de guerra daquele ano.

O trabalho dos dois pode ser dividido conforme os paradigmas estetizante e chocante. O próprio Liohn (2016)LIOHN, A. Missão (quase) impossível: entrevista. São Paulo: Revista Top Magazine, ed. 209, p. 118-121, 2016. Entrevista a Leão Serva. levanta a polêmica (sem se referir a Lima, mas aos editores do jornal nova-iorquino) ao criticar a chamada higienização da fotografia de guerra pelos editores da imprensa: “minhas fotos têm senso estético, está lá, mas o conteúdo é que dá a elas importância. Não gosto dessa higienização do fotojornalismo” (LIOHN, 2016LIOHN, A. Missão (quase) impossível: entrevista. São Paulo: Revista Top Magazine, ed. 209, p. 118-121, 2016. Entrevista a Leão Serva., p.118).

Geralmente, a crítica à estetização da fotografia de guerra se baseia no argumento de que a beleza provoca uma fruição da imagem em si, que impede a observação mais atenta de seu conteúdo, retirando da imagem a possibilidade de indignar o espectador. O deleite diante da obra de arte anularia sua transitividade, a capacidade de transmitir “a dor dos outros”. É uma discussão que tende a ser atenuada em relação a imagens de guerras mais distantes no tempo, quando esfria o calor político em torno de uma tragédia ativa e suas fotos, estetizantes ou repulsivas, passam a ser parte da história.

É representativo desse esfriamento o fato de que hoje não se discuta a estetização da violência em Guernica, de Pablo Picasso, considerado uma denúncia da desumanidade da guerra, ao tempo de sua criação; ao mesmo tempo, uma pessoa que jamais tenha sabido do que trata o quadro, hoje talvez não identificasse nele cenas de violência ou guerra: a legenda forjou sua interpretação, como mostra Knightley (2004)KNIGHTLEY, P. The first casualty: The war correspondent as hero and myth-maker from the Crimea to Iraq. JHU Press, 2004., quando comenta a interpretação do quadro de Picasso. O autor faz um paralelo entre o quadro e a fotografia de Robert Capa chamada O instante da morte ou Soldado espanhol morrendo e conclui que ambas são imagens que não falam por si, sua repercussão foi determinada por textos e interpretações divulgados sobre elas.

Quem olha demais a foto não vê a floresta, parafraseando Ortega y Gasset. Ao selecionar entre as fotos do Times apenas aquelas excessivamente estetizadas, Shields (2015) pode ter se tornado incapaz de observar outras tantas mais impactantes e de constatar que a dualidade paradigmática entre a foto violenta e estética está presente em toda a trajetória da fotografia.

É o que se pode observar na exposição Valise Mexicana3 3 O catálogo de todas as fotos, incluindo as expostas em São Paulo, foi lançado em 2010 sob o título The Mexican Suitcase. , recentemente apresentada em São Paulo, na Caixa Cultural, com fotos feitas durante a guerra civil espanhola por Robert Capa, sua mulher Gerda Taro e David Seymour (Chim). Entre os fotogramas, desaparecidos nos anos 1940 e reencontrados há poucos anos, pode-se notar Robert Capa experimentando o estilo que iria ficar como sua marca: trabalhando próximo aos objetos das cenas e, em algumas fotos de ação, criando imagens tremidas, sem foco, o que resulta em contorno pouco definido dos elementos. Mais tarde, ele resumiria esses procedimentos em duas ideias que passaram a ser mandamentos para a fotografia de guerra: que uma foto não é boa quando não é feita suficientemente de perto; e que a foto de guerra precisa ser “ligeiramente fora de foco”.

O resultado dessa forma de trabalhar fica particularmente claro em umas tantas fotos de cenas que ele fotografou com Gerda Taro, como é o caso de um desfile de tropas republicanas, que Gerda fotografa à distância, de um ponto de vista superior, que garante a visão do contexto e uma composição geométrica (própria da perspectiva clássica e coerente com o que Henri Cartier-Bresson [1999]CARTIER-BRESSON, H. The mind's eye. Nova York: Aperture, 1999. definia como “um padrão geométrico sem o qual seriam sem forma ou sem vida”). Já Capa se coloca junto aos soldados, no meio do movimento, sem preocupação com a geometria da imagem, o que a torna mais caótica.

Um último comentário poderia ser feito sobre o trabalho de Shields, a partir de seu próprio motivo: a edição de War is beautiful tem um alto nível gráfico e a seleção de fotos, deslocadas do jornal, acentua ainda mais a fruição estética. Por assim dizer, as bonitas fotos de guerra, no livro, ficam ainda mais belas. A obra feita para destruir a glamourização da fotografia de guerra do New York Times resulta em um lindo coffee table book.

  • 1
    Monstra e Astra são duas palavras latinas que Warburg utiliza frequentemente e significam a brutalidade monstruosa das forças naturais e a sua contenção pela civilização (astra significa os astros, estrelas, mas remete aos deuses que eles representam, as “figuras mitológicas do firmamento”, conforme a “concepção grega do cosmos”, a que Warburg se refere na descrição da prancha
  • 2
    Lima não tem fotos entre as selecionadas em War is beautiful.
  • 3
    O catálogo de todas as fotos, incluindo as expostas em São Paulo, foi lançado em 2010 sob o título The Mexican Suitcase.

Referências

  • CARTIER-BRESSON, H. The mind's eye Nova York: Aperture, 1999.
  • HARAZIM, D. O instante certo São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  • KNIGHTLEY, P. The first casualty: The war correspondent as hero and myth-maker from the Crimea to Iraq. JHU Press, 2004.
  • LIOHN, A. Missão (quase) impossível: entrevista. São Paulo: Revista Top Magazine, ed. 209, p. 118-121, 2016. Entrevista a Leão Serva.
  • RUBÍ, L. B. Un viaje a las fuentes. In: WARBURG, Aby. El atlas de imágenes mnemosine, Vol. 2. Coyoacan (MEX): UNAM, Instituto de Investigaciones Estéticas, 2012.
  • SONTAG, S. Diante da dor dos outros São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • YOUNG, C. et al The Mexican suitcase 2 Vols. Nova York: ICP/Steidl, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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