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Comunicação e Lebenswelt, racionalidade e experiência estética: uma discussão interdisciplinar e pragmatista

Communication and Life-World, rationality and aesthetic experience: an interdisciplinary discussion from a pragmatist perspective

Resumo

Este artigo pretende discutir a tríade comunicação, racionalidade e experiência estética no contexto do Lebenswelt (mundo da vida), que é essencial para a condição social do ser humano e sua cultura. Enquanto a racionalidade tem sido um dos grandes temas da filosofia desde o início da antiguidade grega – e o termo latim ratio traduz, em conjunto com oratio, o grego λόγος (lógos) –, a atenção dada à comunicação e à experiência estética, como em Alfred Schütz e William James, é mais recente, assim como a racionalidade comunicativa de Jürgen Habermas. O texto tenta desenvolver enfrentamentos e uma discussão entre esses autores e outros como John Dewey, Ernst Cassirer e Vilém Flusser, baseados numa perspectiva pragmatista e fenomenológica do Lebenswelt, que é visto como uma rede produzida pelas trocas simbólicas e comunicativas.

Palavras-chave
comunicação e cultura; Lebenswelt (mundo da vida); pragmática; experiência estética; racionalidade

Abstract

The following article discusses the triad of communication, rationality and aesthetic experience, essential for the social character of man and his culture, in the light of the Life-World. Whereas rationality has been a topic of philosophical inquiry since Greek antiquity – and the Latin term ratio translates, together with oratio, the Greek λόγος (lógos) -, the attention given to communication and aesthetic experience, as by Alfred Schütz and William James, is more recent, as also is the notion of communicative rationality developed by Jürgen Habermas. The text intends to line up shared characteristics and propose a discussion along these authors and others like John Dewey, Ernst Cassirer and Vilém Flusser, based on a pragmatist and phenomenological viewpoint of the Life-World, understood as a net sustained by symbolic exchange and communication.

Keywords
culture and communication; Lifeworld; pragmatics; aesthetic experience; rationality

Introdução: raízes comuns da cultura

Foi descoberto recentemente, em 2004, numa gruta na África do Sul, um conjunto de 41 búzios, todos do mesmo tamanho e todos furados no meio, apresentando restos de uma pintura cor de ocre. Não existe dúvida sobre a idade, avaliada em 75 mil anos. Obviamente, os búzios foram trazidos de um rio distante 20 km, selecionados segundo o tamanho, intencionalmente perfurados e pintados. Mesmo que uma causalidade natural não possa ser excluída totalmente, parece que se trata do enfeite mais antigo da humanidade.1 1 Steinzeit-Kette: Ältester Schmuck der Welt entdeckt. In: Spiegel Online, 17.4.2004. Disponível em: http://www.spiegel.de/wissenschaft/mensch/steinzeit-kette-aeltester-schmuck-der-welt-entdeckt-a-295471.html. Acesso em: 03 jan. 2016.

A importância desse achado resulta do fato de que a produção de enfeite exige criatividade, um pensar abstrato em símbolos e uma comunicação sobre todos os aspectos envolvidos nisso, ou seja, pressupõe o desenvolvimento de uma linguagem complexa, comparável às nossas na atualidade. Portanto, trata-se, no caso desse colar de búzios, de uma prova do uso de símbolos produzidos ativamente pelo homem. Todavia, ainda assim, as primeiras ferramentas, como machados de mão da cultura acheuleéia de dois gumes e com 1,75 milhões de anos de idade (FACCHINI, 2006FACCHINI, F. Die Ursprünge der Menschheit. Stuttgart: Theiss, 2006. Em italiano: Le origini dell’uomo e l’evoluzione culturale. Milano: Editoriale Jaca Book, 2006.), já têm caraterísticas iniciais estéticas, o que exige uma divisão de trabalho com uma colaboração social implicando uma linguagem e comunicação pelo menos rudimentar.

A habilidade para a experiência estética, consequentemente, teria se desenvolvido não apenas a partir de 40-50 mil anos atrás, o que é comprovado por ferramentas, instrumentos musicais, obras de arte e pinturas rupestres, mas em tempo anterior. Sendo assim, a arte e a comunicação seriam duas formas de uma mesma competência simbólica subjacente, conforme já foi expressado por Ernst Cassirer, um dos autores que Vilém Flusser (1999b, p. 51)______. Bodenlos. Eine philosophische autobiographie. Frankfurt/Main: Fischer 1999b. destaca como referência de seu pensamento. Segundo Cassirer, a “racionalidade é de fato um traço inerente a todas as atividades humanas” (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. Ensaio sobre o Homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 49) e, portanto, ele não considera só as linguagens conceitual, científica ou lógica como fontes da razão, mas também as linguagens emocional e da imaginação poética:

A razão é um termo muito inadequado com o qual compreender as formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. Mas todas essas formas [mito e religião, linguagem, arte, história, e a ciência] são formas simbólicas. Logo, em vez de definir o homem como animal rationale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum. (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. Ensaio sobre o Homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 50)

Flusser (2000, p. 33)______. Briefe an Alex Bloch. Göttingen: European Photography, 2000. salienta a importância da condição simbólica do ser humano, como aponta Anatol Rapport, em 1951, e um dos ecos de Cassirer em Flusser encontra-se no seu artigo seminal sobre a natureza da comunicação, intitulado O que é a comunicação, no qual ele usa uma expressão semelhante à da citação de Cassirer acima. “A comunicação humana tece o véu do mundo codificado, o véu da arte, da ciência, da filosofia e da religião, ao redor de nós, e o tece com pontos cada vez mais apertados”. (FLUSSER, 2007______. O mundo codificado. Por uma filosofia do design e da comunicação. Org. CARDOSO, R. São Paulo: Cosacnaifi, 2007., p. 91) Essa ideia de que a cultura humana seria composta por formas simbólicas que são constantemente produzidas – e: construídas – inspirou também o construtivismo de Nelson Goodman, outro autor que provavelmente influenciou Flusser (HEGENBERG, 1969HEGENBERG, L. Explicações científicas. Introdução à filosofia da ciência. São Paulo: Herder/USP, 1969., p. 17), agradece a Flusser pela leitura crítica e pelas recomendações do manuscrito do seu livro Explicações científicas, especialmente a do capítulo sobre a língua, em que Hegenberg trata a publicação de Nelson Goodman, “Fact, fiction and forecast”, de 1955). Nesse sentido, não vivemos em um único mundo, mas em vários, e esses, que são produzidos por nós, são resultados de nossas construções, “maneiras diferentes de fabricar mundos”, que traduz o título do livro em inglês de Goodman, Ways of worldmaking (GOODMAN, 1978GOODMAN, N. Ways of Worldmaking. Indianapolis: Hackett 1978.). Nele, o autor defende que imagens, esculturas, danças, música etc. enriquecem e formam nossas ideias e experiências, e representações linguísticas e lógicas parecem ser somente algumas poucas formas para descrever nosso mundo. Essa pluralidade em relação às maneiras de pensar deixa transparecer o caráter construtivo dessas formas, que é a contribuição de Goodman para o paradigma do construtivismo (FISCHER/SCHMIDT, 2000FISCHER, H. R.; SCHMIDT, S. J. (Orgs.). Wirklichkeit und Welterzeugung. In memoriam Nelson Goodman. Heidelberg: Carl-Auer, 2000.).

Mídia, imagens e experiência estética

Vilém Flusser, um dos pioneiros da teoria da comunicação e da mídia (HANKE, 2004b______. A Comunicologia segundo Vilém Flusser. Galáxia 7, 2004b, p. 59-72.), mostra-se bem informado e com conhecimento da história da cultura quando observa, em 1990, que “búzios já desde sempre foram juntados para formar correntes” (FLUSSER, 2002______. Writings. Organized and with an introduction by Andreas Ströhl. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002., p. 112, tradução nossa), e ao considerar essa prática uma técnica cultural primordial e exemplar para o pensamento linear (FLUSSER, 1988______. Krise der Linearität. Bern: Bentele, 1988., p. 9). Esse pensamento é resultado de um entre dois tipos de mídia que estão à nossa disposição: unidimensionais, como códigos lineares; e bidimensionais, como códigos imagéticos, superfícies (FLUSSER, 2002______. Writings. Organized and with an introduction by Andreas Ströhl. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002., p. 31). Esses dois tipos de mediações entre nós e os fatos (o mundo) fornecem-nos dois tipos de ficção, a conceitual e a imagética (FLUSSER, 2002______. Writings. Organized and with an introduction by Andreas Ströhl. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002., p. 28).

Ao desenvolver cultura propriamente dita, o homem aprende, por meio da abstração de objetos e da gravação em superfícies, por exemplo, em paredes de grutas, a fazer imagens, com a característica de um tempo-espaço bidimensional. O próximo grau de abstração avança para o unidimensional e, portanto, linear, transformando cenas imagéticas em processos (FLUSSER, 1998______. Kommunikologie. Frankfurt/Main: Fischer, 1998., p. 74), linhas que representam o mundo projetando-o como uma série de sucessões em forma de processo ou narrativa. Resulta, a partir daí, a capacidade de conceber (“to conceive”, no texto em inglês), desenvolver conceitos lineares e progressivos, o que representa um pré-passo midiático para a escrita (FLUSSER, 2002______. Writings. Organized and with an introduction by Andreas Ströhl. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002., p. 112).

Flusser, que se encantou com as pinturas rupestres na gruta de Lascaux, na França, a “capela sistina do pré-histórico”, se referiu repetidamente a essas imagens como as primeiras mídias. Por meio do exemplo de uma pintura rupestre de caça, o autor ilustra, como elas são, enquanto mediações, uma forma de acessar o mundo e, como uma experiência estética, podem ser uma forma de racionalização:

A caça do touro é de importância vital. Não deveria ser praticada cegamente (como faz o chacal). É preciso observá-la por fora (da subjetividade) e orientar-se conforme o que se vê. Assim se caçará melhor. Mas o que foi visto é fugaz: por isso, precisa de ser documentado em uma parede rochosa, e isso numa forma tal que outros possam orientar-se. A imagem de touro na parede rochosa é um reconhecimento fixado, uma vivência fixada, uma apreciação fixada, além de servir como modelo para reconhecimento, experiência e atuação futura intersubjetiva, em futuras caças de touro. Ela é “imagem” no sentido próprio da palavra. Qualquer transporte dessa imagem até nem entra em questão. Os receptores, digamos a tribo, tem que se reunir em frente da imagem, para, diante dela, treinar a caça de touro, por exemplo, através da dança (FLUSSER, 1999a______. Medienkultur. Frankfurt/Main: Fischer, 1999a., p. 84, tradução nossa).

Trata-se nesse caso de um dos tipos de uso da imagem dentre os três que Flusser propõe, sendo a diferença entre eles marcada pela mobilidade do suporte: 1) ausência de mobilidade no caso da imagem na parede da gruta; 2) formas mistas (como a tela de óleo); 3) as imagens imateriais da nova mídia (imagens televisivas), sendo que o aumento da mobilidade é tanto da imagem quanto do receptor, acompanhado por impactos respectivos.

Já nessa primeira situação de uso da imagem encontramos a função cognitiva da representação, a função intersubjetiva que orienta a atuação, e a da sociabilidade, ou seja, uma junção de experiência estética com racionalidade.

O fato de que imagens desse tipo podem ser encontradas no mundo inteiro nos lugares mais diversos e distantes2 2 Inclusive na América do Sul existem muitas inscrições rupestres; entre elas, destacam-se aquelas do Xique-Xique, em Carnaúba dos Dantas, Rio Grande do Norte (FACCHINI, 2006, p. 218-219) , sem uma influência exercida reciprocamente, mostra que essa forma da racionalização estética faz parte de uma competência simbólica mais abrangente. Assim sendo, para Flusser, a arte em geral e as imagens, em específico, são um método poderoso para reconhecer e perceber a realidade. A arte, assim como a teoria científica, que à primeira vista parecem não ter fim ou utilidade, formam, segundo Flusser (2002, p. 168)______. Writings. Organized and with an introduction by Andreas Ströhl. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002., o núcleo da cultura. Mesmo que a arte e o conhecimento não possam ser separados existencialmente, o autor insiste (FLUSSER, 1999a______. Medienkultur. Frankfurt/Main: Fischer, 1999a., p. 115) em distinguir ontologicamente entre os dois níveis de realidade: a realidade tout court e a ficção.

Esferas delimitadas de sentido e o mundo da vida

Outras diferenças ontológicas entre as várias formas de experiência são discutidas pelo pragmatista americano William James em seu livro The principles of Psychology de 1893, no qual o autor mostra que existem diversas ordens de realidades, chamadas “subuniversos”, provavelmente em número infinito, cada uma com seu estilo especial e distinto de existência. Exemplos para esses subuniversos são o mundo dos sonhos, de imaginações e fantasmas, de brincadeiras infantis, da religião, da mitologia, da contemplação científica, da política e o mundo da arte ou da experiência estética. Cada mundo, enquanto se está focalizado nele, é real segundo o seu próprio estilo. James considera que tudo que excita e estimula nosso interesse é real, enraizado em nossa perspectiva subjetiva, que é contraposta aos subuniversos.

O sociofenomenólogo Alfred Schütz, husserliano como Flusser (para uma introdução em alemão, conferir HANKE, 2002HANKE, M. Alfred Schütz. Wien: Passagen, 2002.), trabalhou e aperfeiçoou o conceito de Lebenswelt, “mundo da vida”, ao adaptar essa teoria de James das diferentes realidades nas quais nós vivemos o mesmo tempo (SCHÜTZ, 1971SCHÜTZ, A. Gesammelte Aufsätze. Vol. 1: Das Problem der sozialen Wirklichkeit; vol. 2: Studien zur soziologischen Theorie. Den Haag: Nijhoff, 1971; 1972., p. 263-265). Schütz destaca que James toca numa das questões filosóficas mais importantes, mas prefere substituir “subuniversos” por “esferas delimitadas de sentido”3 3 Segundo a tradução para o português de Creusa Capalbo (1998, p. 41). (“finite provinces of meaning”). Assim, segundo Schütz, é o significado de nossas experiências e não a estrutura ontológica dos objetos que constitui a realidade; ou seja, os mundos não são considerados como se existissem diferentemente entre si, mas são experimentados e acessados de diversas maneiras. São diferentes “modos da consciência” (attention á la vie, no sentido de Henri Bergson) que constituem as experiências, às quais atribuímos o caráter da realidade. Passamos num tempo definido por várias fases desses modos, que pertencem à mesma consciência que experimenta a vida por meio dessas modificações. Essa atenção à vida define o que é relevante para nós e conduz nosso interesse e qual tipo de informação é processada.

Cada esfera delimitada de sentido tem o seu estilo cognitivo particular, e a especificidade desse estilo constitui a província finita do significado como tal. Todas as experiências feitas dentro desse estilo são consistentes e compatíveis umas com as outras. Um estilo é caracterizado por

  1. uma tensão específica de consciência (entre estar plenamente desperto, atento, e o sono);

  2. uma forma específica de experiência de si próprio;

  3. uma forma específica de socialização (intersubjetiva ou solitária);

  4. uma perspectiva temporal específica (a durée, ou o tempo padrão como tempo universal do mundo intersubjetivo, ou o tempo cósmico);

  5. uma forma de espontaneidade (para atuar ou reagir);

  6. um tipo de redução da suspensão da dúvida em relação à experiência (graus de certeza).

A mudança ou transição entre as esferas de sentido é acompanhada por “uma modificação radical da tensão da nossa consciência, fundamentada num tipo diferente de attention à la vie” (SCHÜTZ, 1979SCHÜTZ, A.; LUCKMANN, T. Strukturen der Lebenswelt. 2 v. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1979; 1984., p. 252). Entre os exemplos para esse chamado choque encontra-se:

[...] a transformação interior por que passamos quando a cortina do teatro se levanta, que é a transição para o mundo do palco; a mudança radical em nossa atitude se, diante de uma pintura, permitimos que nosso campo visual seja limitado pelo que está dentro da moldura, que é a passagem para o mundo pictórico [...] (SCHÜTZ, 1971SCHÜTZ, A. Gesammelte Aufsätze. Vol. 1: Das Problem der sozialen Wirklichkeit; vol. 2: Studien zur soziologischen Theorie. Den Haag: Nijhoff, 1971; 1972., p. 266, tradução nossa).

É importante lembrar que esse conceito de esferas delimitadas de sentido não envolve qualquer conotação estática, pois nossa consciência, mesmo numa única hora, “pode correr pelos diferentes tipos de tensão e adotar as mais diferentes atitudes de atenção com relação à vida” (SCHÜTZ, 1971SCHÜTZ, A. Gesammelte Aufsätze. Vol. 1: Das Problem der sozialen Wirklichkeit; vol. 2: Studien zur soziologischen Theorie. Den Haag: Nijhoff, 1971; 1972., p. 297). Ainda existem “enclaves”, ou seja, “regiões que pertencem a uma esfera de sentido abrangida por outra” (SCHÜTZ, 1971SCHÜTZ, A. Gesammelte Aufsätze. Vol. 1: Das Problem der sozialen Wirklichkeit; vol. 2: Studien zur soziologischen Theorie. Den Haag: Nijhoff, 1971; 1972., p. 267). Seria esse o caso de todos os objetos estéticos que fazem parte da esfera da vida cotidiana – como, por exemplo, uma pintura rupestre numa gruta.

Entre as esferas delimitadas de sentido, aquela da vida cotidiana é a realidade suprema (“paramount reality”) e serve como arquétipo de nossa experiência. Esse privilégio vem, dentre outros, do pertencimento do corpo a essa esfera e da percepção, que surge daí, além do seu caráter social, ou seja, o mundo da cultura intersubjetiva e da comunicação.

A comunicação depende de conhecimentos, códigos e padrões de interpretação intersubjetivamente e socialmente compartilhados. Assim, sendo a realidade uma construção social alcançada e sustentada pela comunicação, ela opera basicamente por meio dos signos, cujo sistema mais importante é a língua, como afirmam, entre inúmeros outros autores, Flusser e Schütz (FLUSSER, 1998______. Kommunikologie. Frankfurt/Main: Fischer, 1998., p. 81; SCHÜTZ/LUCKMANN, 1979SCHÜTZ, A.; LUCKMANN, T. Strukturen der Lebenswelt. 2 v. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1979; 1984., p. 141). É por meio desses tipos de signos que a nossa experiência imediata é superada, assim como a intersubjetividade é estabelecida. A comunicação precisa da província do significado da vida prática cotidiana porque a intermediação material necessária se realiza por meio de objetos e acontecimentos, que pertencem a essa realidade suprema e ao mundo exterior, pois “toda comunicação pressupõe ações exteriorizadas, conclui-se que a intersubjetividade só se dá na esfera da vida prática” (CAPALBO, 1998CAPALBO, C. Metodologia das ciências sociais. A fenomenologia de Alfred Schutz. Londrina: Editora UEL, 1998., p. 42).

A função representativa do signo exige dois elementos: um representamen, ou signo-veículo perceptível, e a sua referência, algo que é representado (para a semiótica de Schütz, confere HANKE, 2004a______. Signos, comunicação e mundo da vida: a abordagem sócio-fenomenológica da semiótica de Alfred Schütz. In: Significação 22, 2004a, p. 79-97.). Aquilo que é representado pode fazer parte de qualquer outra esfera delimitada de sentido. Ou seja, também a experiência estética, devido à precondição material da comunicação, é comunicada através da vida cotidiana. Porém, seus símbolos remetem à sua esfera específica, conforme mencionado acima.

Mesmo se, na comunicação dessas experiências, a realidade comunicada é distorcida pela transformação em linguagem, narrativas desse gênero podem superar as transcendências representadas por outras esferas delimitadas de sentido, como um relato comunicativo sobre o que foi experimentado além do cotidiano (SCHÜTZ/LUCKMANN, 1984SCHÜTZ, A.; LUCKMANN, T. Strukturen der Lebenswelt. 2 v. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1979; 1984., p. 197). E o conceito de “mundo da vida” (Lebenswelt) destaca que este mundo é resultado de interação simbólica, produzida e sustentada pela comunicação, e a realidade, como consequência, é uma construção social (BERGER/LUCKMANN, 1998BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.).

Racionalidade e pensamento cotidiano

Para o estilo cognitivo do pensamento cotidiano, o princípio da racionalidade como ideal não é efetivamente um traço característico, porque esse estilo só é parcialmente configurado para alcançar um conhecimento clarus et distinctus. Enquanto a racionalidade recorre a noções oriundas da lógica tradicional, o pensamento cotidiano visa menos a dicotomia “verdadeiro – falso” do que graus de probabilidade; em vez de certezas, satisfazem meras probabilidades (“not certainty, but likelihood”).

No cotidiano, é quase impossível calcular as complicadas sequências de meios-fins com seus respectivos impactos (“efeitos colaterais indesejados” só representam um caso limite). Raramente atuamos racionalmente no sentido estrito do conceito porque a base de nossas decisões é a “bagagem de conhecimentos disponíveis” do “homem da atitude natural” (CAPALBO, 1998CAPALBO, C. Metodologia das ciências sociais. A fenomenologia de Alfred Schutz. Londrina: Editora UEL, 1998., p. 33), e é dela que partimos para definições subjetivas da situação. Ainda estamos imersos num mundo da vida pré-estruturado e organizado, com instituições com lógicas próprias e diferentes relações sistematizadas, nas quais mantemos infinitos graus entre intimidade e anonimato. Por isso as interpretações dos outros atores sociais são insuficientemente calculáveis, e nossos interesses, advindos da nossa situação, caracterizam nossa perspectiva. No lugar da racionalidade, prevalece o princípio pragmático: o conhecimento vale para nós e para nossos fins práticos.

Schütz parte da base pragmática de William James e John Dewey – vale ressaltar que Flusser também foi leitor de Dewey, o que pode ser comprovado pela presença de quatro livros desse autor na biblioteca de viagem do Arquivo Flusser em Berlim4 4 John Dewey: Problems of men (New York, 1946), Intelligence in the modern world: John Dewey’s philosophy (New York, 1939), Reconstrução em filosofia (São Paulo, 1959), e ainda The Philosopher of the common man: essays in honour of John Dewey (New York, 1940). , e na autobiografia Bodenlos: “Os filósofos, que a gente leu, foram […] Dewey e os pragmatistas” (FLUSSER, 1999b______. Bodenlos. Eine philosophische autobiographie. Frankfurt/Main: Fischer 1999b., p. 51). Nessa linha, Schütz faz questão de distinguir entre dois patamares: 1) o do ator social na vida cotidiana, e 2) o de sua respectiva descrição e análise científica. A racionalidade que, segundo Schütz, é um conceito-chave nas ciências sociais, não provém do primeiro, mas sim do segundo. Sendo o sentido do agir essencialmente subjetivo (como quer Max Weber) e o mundo da vida produzido pelos atores que o controlam e o interpretam, os métodos das ciências sociais precisam elaborar um conhecimento objetivo dessas estruturas subjetivas.

Cabe ao procedimento científico servir, entre as atividades humanas, como modelo para a racionalidade. Mas isso não implica privilegiar o processo de conhecimento científico em detrimento a outras formas de conhecimento, e sim inseri-lo e situá-lo entre as outras formas de racionalidade. A sua forma rudimentar já é a organização das experiências cotidianas que seguem um princípio, segundo o qual construímos, com base na variedade dos fenômenos, aspectos típicos, e elaboramos nessa base construções de primeira ordem do pensamento cotidiano (“common-sense-thinking”). Essa transformação de um mundo, cotidianamente realizada, “que antes fugia do controle e da compreensão, numa Gestalt organizada, que é compreensível e, portanto, dominável, incluindo a possibilidade de fazer previsões” (SCHÜTZ, 1972SCHÜTZ, A. Gesammelte Aufsätze. Vol. 1: Das Problem der sozialen Wirklichkeit; vol. 2: Studien zur soziologischen Theorie. Den Haag: Nijhoff, 1971; 1972., p. 31), é um processo de tipificação acumulativa. Esse processo corresponde ao “desencantamento do mundo” segundo Max Weber, o que representa, na sua obra, uma versão de significado do termo racionalização.

Racionalidade comunicativa e mundo da vida

Sem dúvida, o Lebenswelt, “mundo da vida”, em sua forma filosoficamente elaborada por Edmund Husserl, é um dos conceitos de maior impacto do século XX. Flusser, em seu artigo sobre Husserl (On Edmund Husserl, FLUSSER, 1987______. On Edmund Husserl. In: Review of the Society for the History of Czechoslovak Jews, New York, Vol. I, 1987, p. 91-100 [manuscrito, Arquivo Vilém Flusser, Berlim].), valoriza a importância do Lebenswelt enquanto “mundo que habito” (“‘Lebenswelt’, the world I live in”, FLUSSER, 1987______. On Edmund Husserl. In: Review of the Society for the History of Czechoslovak Jews, New York, Vol. I, 1987, p. 91-100 [manuscrito, Arquivo Vilém Flusser, Berlim]., p. 1), visto como uma rede composta por intencionalidades: “o que torna o Lebenswelt concreto é que ele é uma rede de intencionalidades que relacionam experiências, conhecimento e valores” (“what renders the ‘Lebenswelt’ concrete: that it is a net of intentionalities which relate experiences, knowledge and values”, FLUSSER, 1987______. On Edmund Husserl. In: Review of the Society for the History of Czechoslovak Jews, New York, Vol. I, 1987, p. 91-100 [manuscrito, Arquivo Vilém Flusser, Berlim]., p. 2). O Lebenswelt dá origem ao sentido (“it gives meaning”, FLUSSER, 1987______. On Edmund Husserl. In: Review of the Society for the History of Czechoslovak Jews, New York, Vol. I, 1987, p. 91-100 [manuscrito, Arquivo Vilém Flusser, Berlim]., p. 2), e Flusser até estabelece uma ligação entre o Lebenswelt e a sociedade de informação telemática (“the channels of telematics […] sometimes called ‘information society’”, FLUSSER, 1987______. On Edmund Husserl. In: Review of the Society for the History of Czechoslovak Jews, New York, Vol. I, 1987, p. 91-100 [manuscrito, Arquivo Vilém Flusser, Berlim]., p. 4).

Uma valorização semelhante do conceito de Lebenswelt, com referência a Husserl e destaque desse autor para as ciências sociais, se encontra em Schütz (como no seu artigo Husserl’s importance for the Social Sciences, SCHÜTZ, 1971SCHÜTZ, A. Gesammelte Aufsätze. Vol. 1: Das Problem der sozialen Wirklichkeit; vol. 2: Studien zur soziologischen Theorie. Den Haag: Nijhoff, 1971; 1972., p. 162-173), e nas obras dele (por exemplo, SCHÜTZ, 1971SCHÜTZ, A. Gesammelte Aufsätze. Vol. 1: Das Problem der sozialen Wirklichkeit; vol. 2: Studien zur soziologischen Theorie. Den Haag: Nijhoff, 1971; 1972., p. 66; p. 155; p. 284), assim como em SCHÜTZ/LUCKMANN (Strukturen der Lebenswelt, alemão em 1979, primeiro em inglês The structures of the Life-World, 1973). Também, nessa mesma linha de pensamento, em Berger/Luckmann (1998)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Editora Vozes, 1998., para os quais a noção de Lebenswelt é básica, como ainda, finalmente, em Jürgen Habermas, que, em sua obra seminal A teoria do agir comunicativo, se apropria do conceito do Lebenswelt na interpretação de Schütz/Luckmann (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., II, p. 192-205). Apesar da crítica da “redução culturalista” do conceito de Lebenswelt de Habermas (1981, II, p. 205)HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., motivo que o levou a introduzir o conceito de sistema para sanar tal deficiência, o Lebenswelt se configura, além do sistema, como um dos dois pilares da teoria habermasiana. O Lebenswelt é o lugar para o ator social produzir sentido, por meio da comunicação, que é interligada com a racionalidade, já que a teoria do agir comunicativo trata programaticamente a noção da racionalidade comunicativa e o problema da racionalização da sociedade partindo de várias perspectivas teóricas.

Nesse contexto, o embasamento em Husserl é restrito: Habermas rejeita o princípio da “fenomenologia transcendental” husserliana, também mantida, apesar das ressalvas, por Schütz (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., II, p. 216), assim como “os conceitos da filosofia da consciência, que Husserl utiliza para tratar da problemática do mundo da vida” (1981, II, p. 189). Como Schütz, segundo Habermas, “continua apegado ao método intuitivo de Husserl”, também “Schütz e Luckmann não conseguem apreender as estruturas do mundo da vida diretamente das estruturas da intersubjetividade produzida de modo linguístico, sendo levados a buscá-las no reflexo da vivência subjetiva de atores solitários” (1981, II, p. 198). Habermas, em contraposição a isso, insiste em superar a filosofia da consciência por um paradigma baseado na teoria da comunicação, o “agir comunicativo”, e, consequentemente, elaborar o conceito do mundo da vida em termos da teoria da comunicação (1981, II, p. 216).

Além da noção do Lebenswelt, Habermas se apoia em Max Weber e sua análise do processo de racionalização da modernização. Weber, por sua vez, toma como ponto de partida três esferas culturais de valor: 1) a ciência moderna e a tecnologia, 2) a arte autônoma e a literatura, e 3) o direito e a moral pós-tradicional (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., I, p. 252), sendo estes três os pilares de referência da racionalização cultural (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., I, p. 262). Essa visão corresponde grosso modo às três formas de relacionar-se ao mundo que Flusser (2007, p. 99)______. O mundo codificado. Por uma filosofia do design e da comunicação. Org. CARDOSO, R. São Paulo: Cosacnaifi, 2007. utiliza correntemente: epistemológica (reconhecer), estética (experienciar) e política (atuar) – em alemão: “epistemologisch”, “ästhetisch”, “politisch” (FLUSSER, 1998______. Kommunikologie. Frankfurt/Main: Fischer, 1998., p. 18); com as respectivas três categorias básicas de informação: “fática”, “estética” e “normativa” – em alemão: “faktische”, “ästhetische” e “normative information” (FLUSSER, 1998______. Kommunikologie. Frankfurt/Main: Fischer, 1998., p. 19).5 5 Flusser não foi um leitor de Habermas; Ströhl, entretanto, na sua introdução aos Writings de Flusser (2002, p. XVII-XVIII), apresenta paralelos e chega à conclusão de que “as duas abordagens oferecem uma análise semelhante da situação atual” (2002, p. XVIII, tradução nossa). Ou, de forma mais geral, às categorias históricas da epistemologia (“Erkenntnistheorie”), ética (“Ethik”) e estética (“Ästhetik”) (FLUSSER, 1993______. Nachgeschichte. Eine korrigierte Geschichtsschreibung. Bensheim: Bollmann, 1993., p. 330), o que corresponde a “tudo o que nos apoia” (FLUSSER, 2007______. O mundo codificado. Por uma filosofia do design e da comunicação. Org. CARDOSO, R. São Paulo: Cosacnaifi, 2007., p. 176).

Inicialmente fundada em conceitos de mundos religiosos, a chave da racionalidade ocidental é o potencial cognitivo, que é produzido pela paulatina diferenciação dessas esferas de valor e baseado na sua história inerente, seguindo o padrão seletivo da modernização capitalista (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., I, p. 202). Dentro das esferas funcionam os elementos normativos, cognitivos e expressivos da cultura, nos quais se formam as estruturas modernas da consciência, oriundas da racionalização dos conceitos de mundo. Esse processo de diferenciação gradativa segue uma reivindicação universal e uma lógica própria. As tensões que surgem entre as esferas nesse processo têm sua causa na incompatibilidade das diversas estruturas internas; daí pode resultar que, quando uma dessas perspectivas é assumida, todas as outras parecem carecer de racionalidade (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., I, p. 234; p. 258). Modernização é equiparada à racionalização da sociedade e realiza-se no sistema global por meio da paulatina diferenciação dentro das esferas de valor e entre elas.

O pessimismo famoso de Max Weber em relação a esse processo provém do caráter paradoxal constatado nessa racionalização da sociedade. O paradoxo é, segundo Weber, que no processo dessa diferenciação das lógicas próprias das esferas culturais de valor já se encontra exatamente o cerne para a destruição desse mundo que o possibilitou. Em grande parte, Habermas segue, apesar de certas correções, a abordagem weberiana. Porém, uma diferença é que Habermas não compartilha desse pessimismo, ao qual ele se contrapõe por meio de sua ética comunicativa. Esta se encaixa na “virada comunicativa”, que foi, segundo Habermas, provocada pelo pragmatismo semiótico de Peirce e pelo interacionismo simbólico de Mead (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., II, p. 11), ou seja, do pramati(ci)smo americano. Ele pretende dessa maneira usufruir dos potenciais cognitivos produzidos no processo de modernização, justamente para propor uma racionalidade comunicativa e, por causa disso, a teoria da ação comunicativa deve proporcionar uma base sólida para uma teoria social que vai além do conceito weberiano da racionalização da sociedade (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., I, p. 365). O novo modelo de racionalidade da razão comunicativa é fundado nas possibilidades de uma pragmática da linguagem, e esse cunho pragmatista, segundo o qual a ação comunicativa se revela como princípio de socialização, é também essencialmente relevante para o campo da comunicação. Nesse sentido, Habermas supera a concepção de Weber, assim como já tinha feito com a de Husserl.

Juntamente com Weber, Habermas parte das três esferas de valores culturais mencionadas, ou seja, arte, ciência, e moral e direito (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., II, p. 291), cada uma com uma atitude própria, sendo elas, respectivamente, uma expressiva, uma orientada em objetividade e a última em conformidade com as normas específicas. Esse modelo é subjacente para as formas de comunicação sistematizadas propostas por ele (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., II, p. 286). O autor distingue aqui quatro esferas de atuação divididas, de um lado, em formas sacras: 1) a prática de culto; 2) sistemas de interpretação religiosos no cotidiano; e, de outro, em formas profanas: 3) comunicação e 4) trabalho. Dentro das esferas de atuação, funcionam reivindicações específicas que são desenvolvidas em graus diferentes, começando na prática (o ritual) e chegando na argumentação explícita. Dentre as doze formas de comunicação, encontra-se uma, a nona, referente à contemplação da arte autônoma e à institucionalização da experiência estética (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., II, p. 286).

Mesmo que a arte contemporânea tenha se libertado da sua origem no culto, da mesma forma como o direito e a moral tenham se libertado do seu fundo religioso e metafísico (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., II, p. 292), ela deriva da prática do culto e faz parte da esfera de atuação sacra e não da profana. Entre as esferas de atuação sacra e profana, existe um viés que diz respeito à autoridade e racionalidade. A área sacra é caracterizada por um alto teor de autoridade em conjunto com a baixa racionalidade, enquanto que na área profana pode-se encontrar um alto nível de racionalidade em conjunto com a baixa autoridade.

As formas de comunicação seguem uma linha de progressiva libertação do potencial de racionalização característica da atuação comunicativa (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., II, p. 285). Eis a razão pela qual a experiência estética em foco “só” figura no nono lugar. Para Habermas (1981, I, p. 141)HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., enquanto teórico do discurso, a atuação comunicativa requer o médium da linguagem, que reflete as referências do ator, a argumentação explícita e, portanto, a ação comunicativa e o discurso, localizado no topo da linha ascendente que representa o potencial de racionalização. Racionalidade, consequentemente, é uma disposição de sujeitos aptos à comunicação e ação, que recorrem a reivindicações que, por sua vez, são realizáveis no médium do discurso e podem se tornar conteúdos de argumentação.

A experiência estética faz parte dos objetos e circunstâncias do modelo de uso dos signos, conforme proposto por Karl Bühler e usado por Habermas nesse contexto (1981, I, p. 372; p. 531-534); também integra os atos de fala constativos, que dão início ao processo de racionalização. Além de ações reguladas por normas e expressões evaluativas, também se encontram no modelo explicitamente representações expressivas (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., I, p. 35). Mesmo cabendo à experiência estética uma categoria própria entre as formas de comunicação, ela é, como todas as matrizes culturais de expressão, um recurso para as ações comunicativas dos atores (HABERMAS, 1981HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., II, p. 203). Apesar de Habermas cuidadosamente evitar exagerar sobre o papel da linguagem, esta termina sendo o médium de comunicação em destaque (como também para Flusser, desde seu primeiro livro Língua e realidade, 2004). Transformar algo em linguagem é um resultado próprio dessa tradução, que ao comunicar sobre uma obra de arte recupera o teor da experiência estética em formas de linguagem e liberta o seu potencial inovador em benefício das formas e dos acontecimentos da vida, os quais se reproduzem por meio da ação comunicativa cotidiana, que é a fonte da racionalização em geral e, por isso também, da experiência estética. Não podemos aqui aprofundar mais a discussão entre paralelos e diferenças. De qualquer maneira, Habermas desenvolve, de uma forma mais elegante, ideias que Flusser, de uma maneira embriológica, tinha desenvolvido em Língua e realidade (2004, p. 222), no qual estabelece a conversação no centro do seu modelo da “fisiologia da língua”, com as artes plásticas, a música e a poesia ao redor. Mas o maior denominador comum seria a descoberta da virada comunicacional (e pragmatista) já mencionada acima, da qual ambos, tanto Flusser como Habermas, se apropriam. No caso de Flusser, essa virada se articula no seu “interesse pela Teoria de Comunicação” (FLUSSER, 1976FLUSSER, V. Em busca de significado. In Stanislaus Ladusãns (Org.), Rumos da filosofia atual no Brasil em autorretratos. São Paulo: Loyola, 1976, p. 492-506., p. 503), que serviu como paradigma de seu pensamento a partir de 1965 com o desfecho da sua teoria de comunicação na “Comunicologia” (Kommunikologie, FLUSSER, 1998______. Kommunikologie. Frankfurt/Main: Fischer, 1998.). No caso de Habermas (1981)HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1: Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Vol. 2: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1981., essa articulação se dá na teoria do agir comunicativo. De qualquer maneira, com a virada comunicacional, a comunicação ganhou destaque fundamental para as ciências sociais e a cultura, inclusive para a experiência estética, a racionalidade e o Lebenswelt, mundo da vida.

  • 1
    Steinzeit-Kette: Ältester Schmuck der Welt entdeckt. In: Spiegel Online, 17.4.2004. Disponível em: http://www.spiegel.de/wissenschaft/mensch/steinzeit-kette-aeltester-schmuck-der-welt-entdeckt-a-295471.html. Acesso em: 03 jan. 2016.
  • 2
    Inclusive na América do Sul existem muitas inscrições rupestres; entre elas, destacam-se aquelas do Xique-Xique, em Carnaúba dos Dantas, Rio Grande do Norte (FACCHINI, 2006FACCHINI, F. Die Ursprünge der Menschheit. Stuttgart: Theiss, 2006. Em italiano: Le origini dell’uomo e l’evoluzione culturale. Milano: Editoriale Jaca Book, 2006., p. 218-219)
  • 3
    Segundo a tradução para o português de Creusa Capalbo (1998, p. 41)CAPALBO, C. Metodologia das ciências sociais. A fenomenologia de Alfred Schutz. Londrina: Editora UEL, 1998..
  • 4
    John Dewey: Problems of men (New York, 1946), Intelligence in the modern world: John Dewey’s philosophy (New York, 1939), Reconstrução em filosofia (São Paulo, 1959), e ainda The Philosopher of the common man: essays in honour of John Dewey (New York, 1940).
  • 5
    Flusser não foi um leitor de Habermas; Ströhl, entretanto, na sua introdução aos Writings de Flusser (2002, p. XVII-XVIII)______. Writings. Organized and with an introduction by Andreas Ströhl. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002., apresenta paralelos e chega à conclusão de que “as duas abordagens oferecem uma análise semelhante da situação atual” (2002, p. XVIII, tradução nossa).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    Ago 2016
  • Aceito
    Mar 2017
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