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A alegre indiferença

The cheerful indifference

ROSA, Miriam Debieux. A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. São Paulo: Escuta/Fapesp, 200. 2016.

Resumo

Esta resenha apresenta o livro A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento, de Miriam Debieux Rosa, publicado pela Escuta/Fapesp em novembro de 2016. Trata-se de reflexões da autora a partir de suas experiências de intervenções clínicas com populações hostilizadas pelo discurso social, o que ela chamou de “intervenções psicanalíticas clínico-políticas”. A partir da necessidade de reconhecimento do diálogo da psicanálise com o discurso público, o próprio dispositivo de escuta clínica psicanalítico é colocado em pauta, tanto em seu clássico setting quanto no que diz respeito à implicação e ao lugar de escuta do analista.

Palavras-chave
psicanálise; dimensão sociopolítica; clínica psicanalítica

Abstract

This book overview presents Miriam Debieux Rosa’s book: The psychoanalytic clinic facing the sociopolitical dimension of suffering, published in november 2016, by Escuta/Fapesp. Her book is about author’s reflections, related with her clinical interventions experiences within harshly mistreated populations harassed or neglected by normative social discourse - at what she calls “clinical-political psychoanalytic interventions”. In acknowledging the importance of dialogue between psychoanalysis and public discourse, the psychoanalytic clinical listening device is placed on the agenda. In this sense, one must redefine the setting of psychoanalytic clinical listening as much as analyst ethical implication.

Keywords
psychoanalysis; sociopolitical dimension; psychoanalytical clinic

Neste belo livro de Rosa, a primeira coisa que eu gostaria de apontar é que ele é resultado de cerca de vinte anos de trabalho, pesquisa e publicações em torno de situações de sofrimento que aparentemente estão de fora do contexto clássico do consultório particular, como as da adolescência (como questão social), do jovem infrator, do viciado ou do imigrante errante. Neste seu último trabalho, a autora não apenas dá prosseguimento à pesquisa dessas temáticas específicas como, a partir delas, conduz a uma provocação e debate sobre o próprio dispositivo da escuta psicanalítica. Convoca o leitor psicanalista (mas não só ele) a pensar seu lugar como profissional em face da violência das instituições, do Estado e, por fim, do próprio laço social.

A aproximação entre psicanálise e política remonta a Freud, em seu interesse pelos pactos sociais, pela guerra, pela morte, pelo poder, pela civilização. Ao voltar-se para os grandes temas humanos, a psicanálise deve não apenas “investigar a dimensão inconsciente presente nas práticas sociais” (p.27), mas ainda “explicitar a instância política presente na clínica em vez de caracterizá-la como clínica aplicada, em extensão ou preliminar” (p.35). As situações de sofrimento que não podem “chegar ao consultório” ou que exigem um movimento do psicanalista para fora do setting habitual são frequentemente traduzidas como entrave técnico para o trabalho analítico, sendo o indivíduo considerado inapto para sustentar um processo analítico.

Rosa observa que esse tipo de discurso repete a violência sofrida pelos grupos socialmente marginalizados – o problema, em sua natureza coletiva, é transformado em precariedade ou patologia individualizadas. Nesse sentido, aponta: “nossa hipótese forte é que há no analista uma resistência de classe de seu grupo social, o que pode ser impeditivo da escuta clínica.” (p.48). A saída para esse entrave não pode ser outra além do convívio e desejo do analista de se aproximar da fala e do sofrimento desses grupos, em seus próprios meios de expressão e contexto. Essa é uma lição que Rosa deixa transparecer em sua própria trajetória como psicanalista, trabalhando com pessoas submetidas a vários tipos de violência social – migração forçada, racismo, pobreza, miséria, humilhação, exclusão etc. Em suas palavras, é preciso por fim: “[...] levantar o recalque que promove a distância social e permite-nos conviver, alegres, surdos, indiferentes ou paranoicos, com o outro miserável” (ibidem).

Esse movimento representa uma ampliação do dispositivo clínico analítico para o contexto público, buscando aquilo que está excluído, o não dito, o tabu, “o resto” – ou seja, uma ampliação natural e necessária daquilo que é o cerne da atitude psicanalítica. O favelado, o infrator, o viciado, o imigrante invasor, a criança de rua ou o sem teto são figuras esvaziadas no discurso social oficial, transformadas em categorias sem história ou coisas sem nome próprio e sem voz. Eventualmente, “fazem barulho”, o que não é tolerado por muito tempo. Seu lugar acaba sendo o da “cena de violência”, transformada em espetáculo de gozo que canaliza e oculta o sofrimento e mal-estar subjacentes ao conflito social: desde as cenas banalizadas cotidianamente nos programas jornalísticos “mundo cão”, até os grandes espetáculos, como os massacres de Eldorado, Candelária ou Carandiru. Assim, além da violência material, há a violência do discurso social que se pretende hegemônico e que procura eliminar a pluralidade ou a diferença dos discursos.

Como aponta a autora, “o que se quer eliminar não é só aquele que está ali, mas o real, aquilo de insuportável e ingovernável que vem do real como o impossível de ser abarcado, representado, dominado, aquilo que aponta a castração.” (p.115). Entretanto, por mais adversas que possam ser as situações, haverá sempre a perspectiva da escuta psicanalítica, uma vez que a dimensão inconsciente do psiquismo impede o ser humano de ser completamente dominado. O psicanalista deve procurar observar suas próprias identificações com o “discurso todo”, que recusa a existência de outras vozes, e com isso criar condições de escuta e fala daqueles que estão excluídos do discurso social normativo.

O “desamparo discursivo”, que pode acompanhar o desamparo social, não pode ser tomado imediatamente como patologia, para poder constituir-se como via privilegiada de investigação de diversos fenômenos sociopolíticos e subjetivos. A criança que não aprende, o adolescente mudo, a favela que não se encaixa na cidade, o imigrante invasor, todas são figuras de estranhamento que podem forçar o sujeito a uma “posição de não querer saber sobre si” (p.39). O processo de exclusão possui uma violência simbólica específica, que diz mais respeito à clínica do trauma do que à das patologias: “diante do impacto traumatizante de uma consciência clara da impotência diante do Outro consistente e insistente em barrar qualquer acesso à condição de uma lógica fálica e desejante, o sujeito cala-se.” (p.43).

Daí a importância de não se tomar levianamente os “rolezinhos”, o funk, o tecnobrega, o reggae paraense – são expressões espontâneas de um grupo que encontra formas novas de dizer e fazer, não catalogadas no discurso oficial sobre ele. O incômodo estético que causam socialmente (coisa feia, brega, de pobre, ignorante, alienada) oculta o receio de ver falar e fazer em seus próprios termos aqueles que deveriam permanecer quietos ou em seu próprio canto (nas periferias, nos bairros afastados, na cidade de origem) – ou seja, fora de vista.

O indivíduo marginalizado, além de ser comumente responsabilizado pelos processos violentos de exclusão que sofre, poderá também ser tomado pelo discurso social em outro sentido, o de vítima que nada tem a dizer sobre seu lugar desejante. Isso pode impedir o reconhecimento social do eventual desejo do sujeito pela violência que ele próprio sofre (seja ela relativa ou não à presente no discurso social); em outras palavras, a vitimização pode negar-lhe a responsabilização que lhe cabe. Nesse sentido, Rosa retoma Freud para observar que a culpa e obediência aos imperativos superegoicos não dependem de qualquer apreciação moral do sujeito, sendo-lhe anteriores.

A psicanálise torna-se, então, fundamental para a criminologia, sugerindo uma observação mais detalhada da relação do sujeito com a lei, de modo que seja possível passar da simples submissão a imperativos superegoicos e abstratos para a responsabilização e confrontação com o desejo e suas consequências posteriores. Sem a discussão sobre o contexto social, a lei pode ser tomada de forma vazia e abstrata, e a responsabilidade e eficácia da punição podem ser substituídas por justiçamento e vingança. O crime se torna um espetáculo para o gozo que reforça a cisão entre algozes e vítimas, sendo o Estado ou a lei transformados em carrascos. Como alternativa a esse modelo, Rosa aponta as proposições da justiça restaurativa, em que diferentes lugares do discurso são convocados à fala, em mútua presença; a contravenção ou o crime não estão mais individualizados, mas concernem (de diferentes maneiras) a todos. A responsabilização é possível diante de uma retomada do laço coletivo, em condição de igualdade perante o lugar da fala, quando então pode haver uma reconstituição narcísica junto ao Outro; por fim, a responsabilização tem de ser um ato coletivo.

Em um determinado momento do livro, a autora toca na dúvida quanto aos limites do trabalho discursivo. Na fala de um menino da Febem: “não posso pensar assim, eu tenho de voltar prá lá” (p.76). Isso se repete na fala de um colega em missão humanitária da CARE: “às vezes sou muito ‘trauma orientado’, não sei, não sei se vale a pena fazer com que revivam tudo” (p.75). Faz também referência aos suicídios de Primo Levi e Bruno Bettelheim, sobreviventes dos campos de concentração nazistas que escreveram livros sobre suas experiências. Há uma angústia ao se perceber os limites do recurso aos dispositivos simbólicos e, ainda assim, talvez não haja outro caminho. A resolução do impasse se dá quando se assume o risco: “será que basta [o ato político da palavra] diante de ruídos e incoercível resistência do trauma a sua tramitação? É nosso risco e aposta” (p.86).

Por fim, trata-se de um livro de maturidade que, além de desenvolver as questões a que se propõe de maneira autoral e sensível, convoca o leitor a livrar-se da alegre indiferença ou paranoia com o outro. Termino com uma pequena provocação, naquilo que me pareceu mais problemático dentro do instrumental teórico utilizado pela autora. Em diversas passagens, a teoria lacaniana do falo serve para apontar certo prejuízo da potência polissêmica, sendo evocados a cada vez o “significante pai”, a “posição fálica” ou o “valor fálico”. Haverá uma equivalência inequívoca da função paterna (e, portanto, da lei) com o falo? O registro fálico, ainda que regulador e organizador, permanece ele próprio ao largo do “enigma do orifício sexual feminino” (FREUD, 1905/1996FREUD, S. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. In: Obras Completas, Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1905/1996., p.186), com o qual terá de se haver depois na elaboração genital da castração; a partir de então, não se sustentará mais de forma autossuficiente, sendo necessário prestar contas ao vazio e ao buraco. Além disso, em sua dimensão fantasmática, o falo pode estar a serviço daquilo mesmo denunciado por Rosa, o “discurso todo”, que se pretende colar ao real, bastando-se e preenchendo todo o espaço, em uma fantasia de satisfação ilimitada e autoerótica. O discurso da violência, muitas vezes, adquire contornos de um discurso fálico – ou “falocêntrico”, como advertem grupos feministas e gays/trans. Talvez seja preciso, neste ponto, desvelar A Origem do Mundo; o quadro, de Gustave Coubert, já pertencera a Lacan, que o escondia das vistas atrás de outro quadro, pintado por seu cunhado para este propósito. Mostrava-o quando lhe aprazia, para alguns convidados em sua casa de campo.

Referências

  • FREUD, S. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. In: Obras Completas, Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1905/1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017
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