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Interações midiatizadas: aproximações entre midiatização e regimes de interação e sentido

Mediatized interactions: Convergences between mediatization and regimes of meaning and interaction

Resumo

O artigo articula midiatização e interação ao aproximar e tensionar as perspectivas teóricas acerca da midiatização e os regimes de interação e sentido propostos pela sociossemiótica. Assim, considera que a articulação das perspectivas norte-europeias e latino-americanas de midiatização, com os quatro regimes de interação e sentido — programação, manipulação, ajustamento e acidente —, apresenta potencial heurístico para analisar interações midiatizadas. A análise dessas interações se volta para alguns elementos da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro à presidência em 2018, destacando as fake news operadas por bots e o episódio da facada ao então candidato. O trabalho conclui, com base nesse caso, que programação, manipulação e acidente tendem a se relacionar com a perspectiva institucionalista da midiatização, centrada na lógica da mídia. Manipulação, ajustamento e acidente tendem a se relacionar com a perspectiva socioconstrutivista, inscrita nas lógicas da midiatização.

Palavras-chave
interações midiatizadas; Jair Bolsonaro; midiatização; regimes de interação e sentido; sociossemiótica

Abstract

The paper articulates mediatization and interaction by approaching and tensioning theoretical perspectives about mediatization as well as the interaction and meaning regimes proposed by sociosemiotics. Thus, it considers that the articulation of the North European and Latin American perspectives of mediatization with the four regimes of interaction and meaning — programming, manipulation, adjustment and accident — present heuristic potential to analyze mediatized interactions. The analysis of these interactions turns to some elements of Jair Bolsonaro’s election campaign for the presidency in 2018, highlighting the fake news operated by bots and the stabbing episode of the candidate. This paper concludes, based on this case, that programming, manipulation and accident tend to be related to the institutionalist perspective of mediatization, centered on the media logic. Manipulation, adjustment and accident tend to be related to the socio-constructivist perspective, inscribed in the logics of mediatization.

Keywords
Jair Bolsonaro; mediatized interaction; mediatization; regimes of meaning and interaction; sociosemiotics

Introdução

Neste artigo, aproximamos as correntes institucionalista e socioconstrutivista de midiatização dos quatro regimes de interação e sentido (programação, manipulação, ajustamento e acidente), propostos pela sociossemiótica elaborada por Eric Landowski (2014)______. Interações arriscadas. Tradução Luiza Helena Oliveira da Silva. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014.. Consideramos que a articulação e o tensionamento entre tais correntes e suas lógicas, juntamente com os regimes mencionados, apresentam potencial heurístico para analisar interações midiatizadas. Assim, buscamos identificar e apresentar como tais construtos podem operacionalizar e modelizar algumas dessas interações.

A primeira seção aborda as perspectivas de midiatização e de interação midiatizada, e enfatiza suas bases teórico-conceituais oriundas das tradições institucionalista e socioconstrutivista de midiatização. Apresenta, ainda, as abordagens macrossocial e semiótica adotadas pelos estudiosos latino-americanos, que indicam proximidades com tais tradições. A segunda seção caracteriza a lógica da mídia inscrita na vertente institucionalista, bem como as lógicas da midiatização, alinhadas à vertente socioconstrutivista. A terceira seção destaca as especificidades do enfoque sociossemiótico da interação e os regimes de interação e sentido. Buscamos compreender, sobretudo, aquilo que os relaciona com os processos de interações midiatizadas. Na última seção, alguns elementos da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro à presidência nos auxiliam a verificar as aproximações possíveis entre as perspectivas de midiatização e os regimes de interação e sentido. A ênfase recai na lógica da mídia e nas lógicas da midiatização, que incidem sobre processos de comunicação no campo político-midiático brasileiro. Esse recorte se justifica pela relevância do processo político-midiático nacional no cenário da midiatização e dos processos de interação midiatizada.

Perspectivas de midiatização e de interação midiatizada

A midiatização se configura como processo não completo e não hegemônico em vias de implementação em sociedades urbanizadas e industrializadas (VERÓN, 2001VERÓN, E. El cuerpo de las imágenes. Bogotá: Grupo Editorial Norma, 2001.), que não alcança igualmente todas as esferas. Ela resulta, assim, da “evolução de processos mediáticos que se instauram nas sociedades industriais [...] e que chamam a atenção para os modos de estruturação e funcionamento dos meios nas dinâmicas sociais e simbólicas” (FAUSTO NETO, 2008FAUSTO NETO, A. Fragmentos de uma “analítica da midiatização”. Matrizes, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 89-105, abr. 2008., p. 90). A complexificação das sociedades em vias de midiatização, que sucedem as sociedades pré-midiáticas e as sociedades midiáticas, se dá em função da industrialização, da urbanização e da ênfase nas tecnologias de comunicação, que se implementam progressivamente no tecido social (VERÓN, 2001VERÓN, E. El cuerpo de las imágenes. Bogotá: Grupo Editorial Norma, 2001.; BRAGA, 2006______. Mediatização como processo interacional de referência. Animus, Santa Maria, v. 5, n. 2, p. 9-35, jul./dez. 2006.).

Trata-se de um processo de longo prazo, construído social e historicamente, que não deriva apenas do mercado, do Estado, das indústrias culturais ou dos aparatos tecnomidiáticos. Por isso, uma diversidade de instituições, dispositivos sociotécnicos e atores participam de sua construção, de seus usos e de suas apropriações. Ao mesmo tempo, a midiatização se torna a referência central para as interações e para as mediações socioculturais (BRAGA, 2001______. Interação & Recepção. In: FAUSTO NETTO, A.; HOHLFELDT, A.; PRADO, J. L. A.; PORTO, S. D. (Orgs.). Interação e sentidos no ciberespaço e na sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. p. 109-136., 2006______. Mediatização como processo interacional de referência. Animus, Santa Maria, v. 5, n. 2, p. 9-35, jul./dez. 2006., 2011BRAGA, J. L. Constituição do campo da Comunicação. Verso e Reverso, São Leopoldo, v. 25, n. 58, p. 62-77, jan./abr. 2011.; HJARVARD, 2012______. Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e cultural. Matrizes, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 53-91, jan./jun. 2012., 2015HJARVARD, S. Da Mediação à Midiatização: a institucionalização das novas mídias. Parágrafo, v. 2, n. 3, p. 51-62, jul./dez. 2015.; COULDRY; HEPP, 2013COULDRY, N.; HEPP, A. Conceptualizing Mediatization: Contexts, Traditions, Arguments. Communication Theory, v. 23, n. 3, p. 191-202, jul. 2013.). O campo midiático é a mediação central dentre as múltiplas mediações presentes na vida contemporânea, sejam as de ordem sociocultural e política, subjetiva e coletiva, ou mercadológicas e tecnológicas (BRAGA, 2015______. Lógicas das mídias, lógicas da midiatização. In: FAUSTO NETO, A. et al. (Orgs). Relatos de investigaciones sobre mediatizaciones. Rosário, Argentina: UNR Editora, 2015. p. 15-32.).

Os processos de midiatização são múltiplos e constituídos em temporalidades distintas para grupos diferentes de pessoas e instituições (HEPP, 2014HEPP, A. As configurações comunicativas de mundos midiatizados: pesquisa da midiatização na era da “mediação de tudo”. Matrizes, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 45-64, jun. 2014.), materializando-se em relações transversais entre dispositivos midiáticos e processos comunicacionais (FERREIRA, 2007FERREIRA, J. Midiatização: dispositivos, processos sociais e de comunicação. E-compós, Rio de Janeiro, v. 10, 2007.). Sodré (2002)SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002. ressalta que a midiatização serve de referência ao processo de socialização e às atividades cotidianas, instaurando uma qualificação cultural própria, a tecnocultura, caracterizada por uma conectividade e interação permanente entre indivíduos, instituições e mídias.

Entendidas como processos sociotécnicos e midiaticamente construídos, as interações midiatizadas designam as relações atravessadas pela lógica própria da cultura midiática, que alteram, processual e dialeticamente, as práticas interacionais face a face de sujeitos e diversas instâncias da sociedade (política, cultura, religião etc.). Tais práticas são nomeadas por Braga (2006)______. Mediatização como processo interacional de referência. Animus, Santa Maria, v. 5, n. 2, p. 9-35, jul./dez. 2006. de interações midiatizadas, à medida que são permeadas pela cultura midiática, que se espraia para as demais atividades da vida cotidiana. As interações midiatizadas superam, portanto, a disjunção entre mídias e interações e possuem configurações específicas que se estruturam em torno de modalidades interacionais. Elas são geradas pelos produtos midiáticos e redes sociais online, mas também podem se estabelecer em situações circunscritas a ambientes presenciais, sejam em espaços privados ou públicos.

Na área da comunicação, os estudos acerca da midiatização emergem ao final da década de 2000, na Europa (especialmente nos países nórdicos), nos Estados Unidos e na América Latina. Buscam compreender, ainda, a onipresença e a multidirecionalidade das mídias na contemporaneidade e investigam os efeitos da expansão generalizada das mídias nas práticas socioculturais e políticas, em escalas local, regional e global. São impulsionados pelo acesso à internet, por sua popularização, pelo surgimento de plataformas na web e pela utilização de dispositivos móveis.

As abordagens prevalecentes até o fim do século XX — análise textual, economia política da comunicação e estudos de audiência —, conforme Couldry e Hepp (2013, p. 192)COULDRY, N.; HEPP, A. Conceptualizing Mediatization: Contexts, Traditions, Arguments. Communication Theory, v. 23, n. 3, p. 191-202, jul. 2013., não conseguiram responder “por que a mídia importava tanto (e cada vez mais)”. Em função dessa lacuna, os estudos de midiatização emergem, sobretudo, ao final daquele século, para investigar os padrões de mudanças nos processos comunicacionais e seus desdobramentos.

Para responder tal questão, as tradições institucionalista e socioconstrutivista da midiatização são elaboradas nos países nórdicos. A primeira considera a mídia como instituição social independente ou semi-independente, que contamina o funcionamento de diversas instâncias da vida social. A segunda estuda como os processos midiatizados atuam na construção social da realidade ao considerar a complexidade da mídia como instituição social.

Stig Hjarvard (2014)______. Midiatização: conceituando a mudança social e cultural. Matrizes, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 21-44, jan./jun. 2014., signatário da corrente institucionalista, considera que as mídias se tornam coprodutoras de nossas representações mentais e tomam formas não midiáticas de representação. Ao mesmo tempo, os atores não midiáticos devem estar de acordo com a lógica midiática para alcançar visibilidade.

Inspirada na sociologia do conhecimento formulada por Berger e Luckmann (1966-1983)BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1966-1983., a tradição socioconstrutivista tem como principais expoentes Friedrich Krotz, Andreas Hepp e Nick Couldry. O termo midiatização visa compreender como ocorrem os processos de construção comunicativa da realidade e investigar a participação das mídias nesses processos. Apesar de enfatizar a mídia no processo de construção da realidade, essa tradição considera que a midiatização é construída pela coletividade, e não apenas pela mídia, pela tecnologia e pelo mercado. Por isso, considera a complexidade da mídia como instituição social. Nesse sentido, investiga como as práticas sociais mudam quando estão envolvidas com a mídia, indo além das lógicas midiáticas e das influências diretas de suas materialidades (HEPP, 2020______. Deep mediatization. New York: Routledge, 2020.).

Na América Latina, Eliseo Verón (2001)VERÓN, E. El cuerpo de las imágenes. Bogotá: Grupo Editorial Norma, 2001. inaugura os estudos de midiatização, sob a perspectiva semiótica. Suas investigações, desenvolvidas ao final dos anos 1970, consideram que a produção de sentido se faz no interior de uma atividade assimétrica entre produtores e receptores de discursos. Em 1986, postula um diagrama em que descreve a ambiência, os componentes e as dinâmicas estruturantes da midiatização, destacando as afetações mútuas entre mídias, instituições e atores. Para Verón (apud FAUSTO NETO, 2018______. Mediação, midiatização: conceitos entre trajetórias, biografias e geografias. In: FERREIRA, J. et al. (Orgs.). Entre o que se diz e o que se pensa: onde está a midiatização? Santa Maria: FACOS - UFSM, 2018. p. 63-102.), essas esferas comportam relações não causais, que ocorrem por operações de acoplamentos, abarcando práticas sociais diversas. A avaliação de Verón (2001)VERÓN, E. El cuerpo de las imágenes. Bogotá: Grupo Editorial Norma, 2001. acerca da revolução promovida pela internet quanto ao acesso ao conhecimento, à cultura e às instituições, complexifica os modelos de análise da midiatização na América Latina.

O enfoque de Braga (2006______. Mediatização como processo interacional de referência. Animus, Santa Maria, v. 5, n. 2, p. 9-35, jul./dez. 2006., 2015)______. Lógicas das mídias, lógicas da midiatização. In: FAUSTO NETO, A. et al. (Orgs). Relatos de investigaciones sobre mediatizaciones. Rosário, Argentina: UNR Editora, 2015. p. 15-32. sobre a midiatização é macrossocial e se inspira em Berger e Luckmann. Nessa direção, aproxima-se do socioconstrutivismo por considerar que a sociedade constrói a realidade social com base em processos interacionais por meio dos quais os indivíduos, grupos e setores da sociedade se relacionam. O autor parte do princípio de que construímos socialmente a realidade na medida em que, tentativamente, organizamos possibilidades de interação.

Considerando os tensionamentos entre as perspectivas de midiatização, é possível agrupá-las em duas lógicas distintas: a lógica da mídia, ligada à vertente institucionalista, que decorre de padrões e restrições de ordem econômica, tecnológica e profissional; e as lógicas da midiatização, inscritas na vertente socioconstrutivista, derivadas de processos sociais e interacionais mais flexíveis e diversificados.

Anteriormente, verificamos que a primeira vertente concebe a midiatização como processo por meio do qual cultura e sociedade tornam-se cada vez mais dependentes da mídia e de seus modi operandi, ou seja, da lógica da mídia. Essa lógica não é única ou unificada, comum a todos os formatos de mídia, pois representa “[...] uma simplificação conceitual do modus operandi institucional, estético e tecnológico da mídia” (HJARVARD, 2015HJARVARD, S. Da Mediação à Midiatização: a institucionalização das novas mídias. Parágrafo, v. 2, n. 3, p. 51-62, jul./dez. 2015., p. 54). Nesse sentido, as instituições são governadas por diferentes lógicas e regras, que podem estar em desacordo ou não com o funcionamento da mídia.

As lógicas da midiatização são processos mais abrangentes e plurais, porém, menos investigados do que a lógica midiática, ligada a um conjunto de processos profissionais, empresariais e tecnológicos, como considera Braga (2015)______. Lógicas das mídias, lógicas da midiatização. In: FAUSTO NETO, A. et al. (Orgs). Relatos de investigaciones sobre mediatizaciones. Rosário, Argentina: UNR Editora, 2015. p. 15-32., inspirado pela vertente socioconstrutivista. Para o autor, as lógicas da midiatização abarcam campos sociais diversos e suas dinâmicas interacionais — seja por parte de atores autorizados ou por vozes marginais não diretamente vinculadas aos setores sociais estabelecidos. Tais atores desenvolvem práticas de interação experimentais e tentativas nas esferas públicas circunscritas, midiatizadas, institucionalizadas ou não, formais ou informais, a exemplo de pessoas comuns, grupos, coletivos e movimentos sociais, que ocupam tais esferas para manifestar suas demandas, lutas e críticas em diferentes âmbitos.

Apesar de Braga (2015)______. Lógicas das mídias, lógicas da midiatização. In: FAUSTO NETO, A. et al. (Orgs). Relatos de investigaciones sobre mediatizaciones. Rosário, Argentina: UNR Editora, 2015. p. 15-32. não desprezar a incidência das mídias nas interações cotidianas, ele avalia que a presença de processos sociais e lógicas que atravessam a complexa dinâmica interacional entre pessoas, instituições e campo midiático deve ser igualmente considerada. Isso porque o campo midiático não abarca necessariamente todas as formas de interação. Quando o faz, as lógicas da mídia e da midiatização podem ser vistas de maneira relacionada.

Para compreender a transição da lógica da mídia para as lógicas da midiatização, é importante considerar o processo de deslocamento da sociedade dos meios para a sociedade midiatizada. Na sociedade dos meios, conforme Fausto Neto (2008)FAUSTO NETO, A. Fragmentos de uma “analítica da midiatização”. Matrizes, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 89-105, abr. 2008., as mídias atuam como representantes dos sentidos delegados pelos atores; na sociedade midiatizada, as mídias perdem o lugar representacional para se tornarem uma referência que engendra um modo próprio de ser da sociedade, em que produtores também são consumidores e vice-versa.

A seguir, apresentamos os regimes de interação e sentido que se inscrevem na sociossemiótica para explicitar em que medida podem lançar luz às interações midiatizadas, considerando, sobretudo, a lógica da mídia e as lógicas da midiatização. Optamos por privilegiar essas lógicas em relação às tradições e abordagens acerca da midiatização, tendo em vista que elas demarcam as distinções entre os processos de interação influenciados pelas instituições de mídia e aqueles que são agenciados pelos atores e suas organizações formais ou informais.

Regimes de interação e sentido e interações midiatizadas

A sociossemiótica considera que o sentido emana da interação realizada em ato: “[...] o sentir e o entender são dimensões indissociavelmente envolvidas em nossas relações com o Outro” (LANDOWSKI, 2016______. Entre Comunicação e Semiótica, a interação. Parágrafo, v .4, n .2, p. 207-217, jul./dez. 2016., p. 210). O sentido produzido pela interação é explicado por meio de uma sintaxe geral composta de quatro regimes de interação e sentido (idem, 2014): programação, manipulação, ajustamento e acidente (Figura 1).

Fig. 1
Regimes de interação e sentido.

A programação é definida pela regularidade, que implica interações baseadas em relações de causalidade, coerções socioculturais, como regras, hábitos ou estereótipos de comportamento. Tal regime se define como o da rotina e é baseado numa maior segurança entre os relacionamentos. Para Landowski (2014______. Interações arriscadas. Tradução Luiza Helena Oliveira da Silva. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014., 2016)______. Entre Comunicação e Semiótica, a interação. Parágrafo, v .4, n .2, p. 207-217, jul./dez. 2016., a programação traduz uma forma de apreensão do mundo marcada pelo determinismo, em função dos algoritmos de comportamento regular dos atores (humanos ou não). Em termos modais, o regime da programação corresponde a um fazer-advir.

O regime da manipulação é regido pela intencionalidade: “manipular é sempre imiscuir-se em certo grau na vida interior de outrem (tipicamente por meio da persuasão) nos motivos que o outro sujeito possa ter para atuar num sentido determinado” (idem, 2014______. Interações arriscadas. Tradução Luiza Helena Oliveira da Silva. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014., p. 22). Tal regime se estrutura por meio de cálculos estratégicos, intercâmbios argumentativos, avaliações constantes de interesse e de quadros de valores recíprocos. A competência modal, ou seja, a modalização pelo querer, que fará do interactante um sujeito. A manipulação corresponde a um fazer-querer. Os regimes da programação e da manipulação estão ancorados na lógica da junção, que implica a circulação de objetos-valor entre sujeitos (idem, 2004______. Passions sans nom: essais de socio-sémiotique Paris: Presses Universitaires France, 2004.).

À direita da elipse (Figura 1), estão o ajustamento e o acidente. No primeiro, as interações não dependem de leis preestabelecidas e objetiváveis. Diferentemente do sujeito da manipulação, definido por um elemento cognitivo/inteligível, no regime do ajustamento, o sujeito é definido pela competência estésica, pelo sentir. Em termos modais, o ajustamento se define como um fazer-sentir e é governado pela sensibilidade.

O regime do acidente ou assentimento comporta o maior grau de risco — o risco puro — e se baseia no princípio da aleatoriedade (idem, 2016______. Entre Comunicação e Semiótica, a interação. Parágrafo, v .4, n .2, p. 207-217, jul./dez. 2016.). Modalmente, corresponde a um fazer-sobrevir. Tal regime trata, em última análise, do acaso, dos eventos que irrompem sem aviso prévio. Tanto o ajustamento quanto o acidente se baseiam na lógica da união, que implica na troca de sensibilidades entre sujeitos em copresença (idem, 2004______. Passions sans nom: essais de socio-sémiotique Paris: Presses Universitaires France, 2004.).

Assim, essa sintaxe geral da interação procura dar conta das “relações flutuantes, de ‘fluxos’ e de interações contingentes (e, provavelmente, até mesmo aleatórias)” (idem, 2016______. Entre Comunicação e Semiótica, a interação. Parágrafo, v .4, n .2, p. 207-217, jul./dez. 2016., p. 212). Como modelo cujos termos funcionam em relação, “está previsível que nunca encontraremos, no plano empírico, casos que correspondem estritamente — pura e exclusivamente — a uma dessas definições e nada à outra” (ibidem, p. 213). Logo, os quatro regimes de interação e sentido “constituem, mais que uma taxionomia, uma sintaxe geral da interação, uma rede de configurações conectadas” (idem, 2008LANDOWSKI, E. Da interação, entre Comunicação e Semiótica. In: PRIMO, A. et al. (Orgs.). Comunicação e Interações. Porto Alegre: Sulina, 2008. p. 43-70. , p. 67).

Os regimes propostos por Landowski (2014)______. Interações arriscadas. Tradução Luiza Helena Oliveira da Silva. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014. possibilitam pensar em interações midiatizadas em todos eles, pois entendemos tais interações com base em dois critérios: a) aquelas midiatizadas por dispositivos técnicos, que implicam uma disjunção temporal e/ou espacial entre sujeitos e b) aquelas interações que, mesmo face a face, quando não implicam disjunção temporal e/ou espacial, são marcadas por um modo de dizer próprio da mídia.

Pelo primeiro critério, pode haver interações midiatizadas (por dispositivos técnicos, ou seja, com disjunção espacial e/ou temporal entre os sujeitos) em todos os regimes interacionais. Assim, qualquer interação midiatizada que se paute pelo princípio da regularidade, constitui uma interação programática. Uma interação midiatizada pautada no princípio da intencionalidade conforma uma interação estratégica, pois visa a convencer, persuadir, fazer crer. Nesses dois regimes, consideram-se interações midiatizadas pela lógica da junção.

Por outro lado, também pela lógica da união, as interações midiatizadas têm lugar. O regime do ajustamento é definido por Landowski (2004)______. Passions sans nom: essais de socio-sémiotique Paris: Presses Universitaires France, 2004. como o da copresença sensível, o da troca de sensibilidades, ao qual subjaz a lógica da união:

A problemática da união [...] se concentra não mais sobre os estados juntivos sucessivos, mas sobre o que se passa entre os actantes, ou melhor, sobre o que se passa estesicamente e a cada instante, de um ao outro, não importando o seu estado de junção momentânea. Porque conjuntos ou disjuntos, os actantes interagem entre eles pelo simples fato de estarem em copresença, quer seja ela imediata ou a uma distância maior ou menor, a partir do momento em que um entre eles, ao menos, é capaz de sentir estesicamente o outro, de sentir nele mesmo a maneira de ser no mundo do outro.

(LANDOWSKI, 2004______. Passions sans nom: essais de socio-sémiotique Paris: Presses Universitaires France, 2004., p. 63, tradução nossa).1 1 La problématique de l’union est tout autre en ce qu’elle se concentre non pas sur les états jonctifs successifs mais sur ce qui ce passe entre les actants, ou mieux, sur ce qui passe, esthésiquement et à chaque instant, de l’un à l’autre quel que soit leur état de jonction momentané. Car, disjoints ou conjoints, les actants interagissent entre eux du seul fait de leur co-présence, qu’elle soit immédiate ou plus ou moins à distance, dès le moment où l’un au moins d’entre eux est à même de sentir esthésiquement l’autre, d’éprouver en lui-même la manière d’être au monde de l’autre.

Assim, a leitura que fazemos dessa “copresença”, ou seja, dessa presença conjunta, é que ela não implica necessariamente a conjunção do mesmo tempo e/ou espaço entre os interactantes. Corrobora nossa leitura acerca da concepção de copresença outro trabalho de Landowski (2002)______. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. Trad. Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2002., que trata da carta como ato de presença, que, como mostra o autor, implica necessariamente uma disjunção espaço-temporal entre os sujeitos da prática epistolar:

É, em todo caso, essa perspectiva que nos autoriza a afirmar que, em vez de dever reproduzir inevitavelmente uma disjunção manifesta, o discurso da carta, se os interessados o quiserem, pode também atualizar uma forma de copresença entre eles [...].

(LANDOWSKI, 2002______. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. Trad. Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2002., p. 181).

Portanto, qualquer interação midiatizada à qual subjaza o princípio da sensibilidade se faz no esteio do regime do ajustamento, como a circulação de imagens de sexo explícito por pessoas comuns em sites pornográficos amadores (Cf. RIBEIRO; MIRANDA, 2012RIBEIRO, J. C.; MIRANDA, T. B. Sites de vídeos pornográficos amadores: encenação, midiatização e exibicionismo do anonimato. In: Encontro Anual da Associação dos Programas de Pós-graduação em Comunicação, 21, 2012, Juiz de Fora, MG. Anais... Juiz de Fora: Compós, 2012.). Por fim, eventos imprevistos e midiatizados, pautados pelo princípio da aleatoriedade, são interações que se dão no esteio do regime do acidente.

O segundo critério que adotamos para definir uma interação midiatizada é o fato de que, mesmo quando há uma conjunção temporal e espacial entre sujeitos, como no caso das interações face a face, essas são midiatizadas, isto é, caracterizadas por um modo de dizer próprio da mídia como instituição. A esse respeito, Sodré (2002)SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002. cita o caso dos Testemunhas de Jeová que, mesmo sem concessão de rádio e sem TV, figuram entre as maiores denominações cristãs do Brasil.

Conforme Sodré (2002, p. 35)SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002., mesmo certas interações face a face desse grupo são midiatizadas, pois dizem mais da “[...] capacidade pessoal de gerar espetáculo (telegenia, histrionismo, agressividade bem dosada etc.), portanto, performatividade midiática, do que conteúdos programáticos”. Trata-se de um modo de dizer, de uma fala conotativa, que pode sobredeterminar as interações em conjunção espaço-temporal ou não.

Midiatização e regimes de interação e sentido na campanha eleitoral de Bolsonaro

Para aproximar e tensionar as perspectivas de midiatização e os regimes de interação e sentido, discutimos as possíveis aproximações entre a lógica da mídia e as lógicas da midiatização nos quatro regimes interacionais apresentados. Iniciamos pelas articulações da visão institucionalista, pautada pela lógica da mídia, com os regimes interacionais. Ao atribuir a essa lógica a capacidade de afetar e alterar as práticas sociodiscursivas, performativas, técnico-estéticas, entre outras, dos campos sociais e profissionais, tal visão se aproxima dos regimes da programação e da manipulação.

Aproximações entre a lógica da mídia e o regime da programação ficam evidentes quando verificamos que, independentemente da natureza da mediação entre atores humanos ou não, as interações programadas preveem ações condicionantes e comportamentos automatizados, de um lado, e ações de afetação da mídia no funcionamento das instâncias sociais, de outro, de modo que impõem suas regras e padrões.

Comportamentos estereotipados que tendem à regularidade e, portanto, à programação, dizem respeito à chamada “geografia da opinião pública” (LANDOWSKI, 2014______. Interações arriscadas. Tradução Luiza Helena Oliveira da Silva. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014., p. 35). Por tal perspectiva, há parâmetros objetiváveis (como localização geográfica, idade, sexo, escolaridade, renda) que, combinados, definem a preferência de votos em um território. Ao considerarmos as últimas eleições presidenciais brasileiras, notamos que Jair Bolsonaro foi o candidato mais bem votado em todos os estados em que Aécio Neves também fora vencedor em 2014. Isso mostra que as regiões Sul e Centro-oeste e a maior parte da Sudeste, que votaram no candidato mais à direita em 2014, também o fizeram em 2018.

Antes de avançarmos, cabe dizer que a lógica da mídia, relacionada à perspectiva institucionalista da midiatização, alinha-se, também, ao regime da manipulação, notadamente no contexto da sociedade dos meios ou sociedade midiática. Nesses ambientes, o discurso midiático é visto como suporte e instrumento de representação da realidade, e a mídia é tratada como uma instituição independente ou semi-independente. Além de influenciar a lógica de outros campos, o sistema midiático agencia e legitima a visibilidade dos atores e de seus campos. No jornalismo, caberia ao seu setor profissional engendrar, com exclusividade, processos de produção e de mediação dos acontecimentos (FAUSTO NETO, 2008FAUSTO NETO, A. Fragmentos de uma “analítica da midiatização”. Matrizes, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 89-105, abr. 2008.). Assim, a interação se apoia em lógicas lineares sob o comando de forças ou agentes engajados em processos de manipulação.

No regime da manipulação, os processos interacionais demandam um sujeito de vontade, modalizado por um querer. Em vez de implicar procedimentos próprios de uma ação manipuladora, sustentados pela força e dominação explícitas, esse regime consiste em mecanismos de persuasão pelos quais um sujeito age sobre outro ao estabelecer um contrato.

A conexão entre a midiatização, vista sob o ângulo da institucionalização, e o regime da manipulação, na esfera política, pode ser apreendida do uso intenso de fake news durante o processo eleitoral de 2018, com o predomínio da campanha de Bolsonaro sobre a de Fernando Haddad. Num misto de programação e manipulação, os bots exerceram papel fundamental na viralização de notícias falsas, sobretudo no WhatsApp, a ponto de interferir no resultado das eleições. A uma semana do primeiro turno, houve uma alteração significativa da intenção de votos favoráveis a Bolsonaro em razão do uso intenso do WhastApp para a divulgação de notícias falsas sobre o Haddad, candidato do PT, que vinha crescendo nas pesquisas de intenção de voto.2 2 Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/eleicoes/entenda-as-pesquisas-eleitorais-desde-o-comeco-da-campanha,c834da8afe8875cb9e3e89fd95f39073x241glyy.html>. Acesso em: 13 mar. 2020.

Com base nisso, há convergência entre os regimes da programação e da manipulação, tendo em vista a complementaridade entre as ações e estratégias de comunicação utilizadas, sobretudo, por Bolsonaro, pautadas pela regularidade e, ao mesmo tempo, pela intencionalidade dos produtores das mensagens. Nesse sentido, a campanha de Bolsonaro conjugou a programação (relativa à “geografia da opinião pública” e à própria programação dos bots) com o uso de sofisticadas técnicas de manipulação junto aos seus seguidores em redes sociais online. A repetição e a regularidade de mensagens destinadas a reforçar junto ao seu eleitorado e aos eleitores potenciais, por meio da formação e ampliação de “bolhas ideológicas”, que sua gestão implementaria uma “nova política” no país somaram-se à intencionalidade da campanha de manipular (fazer crer para fazer querer).3 3 As “bolhas ideológicas” se baseiam no que se curte, segue e compartilha. Portanto, o fazer persuasivo da campanha baseada em fake news enviadas por WhatsApp, pautado pela intencionalidade (manipulação) e pela regularidade (programação), foi condicionado por um regime anterior, baseado na regularidade do comportamento dos usuários (programação). Em síntese, nesse caso, a lógica da mídia se operacionaliza principalmente nos regimes da programação e da manipulação, além de se aproximar da noção de sociedade midiática.

As lógicas da midiatização alinham-se às características das sociedades em midiatização e ao regime da manipulação e do ajustamento. O regime de interação por ajustamento encontra, nesse cenário midiatizado, um ambiente propício para o desenvolvimento de experiências sensíveis e compartilhadas entre os sujeitos em comunicação, visto que as relações se fundam não mais apenas sobre o fazer crer e o fazer querer, de forma unilateral, mas sobre o fazer sentir entre sujeitos.

Isso pôde ser observado na campanha eleitoral de Bolsonaro, que prescindiu, em parte, da mediação jornalística — fato que se relaciona com a sociedade midiatizada e com as lógicas da midiatização —, uma vez que o então candidato não participou de nenhum debate no segundo turno das eleições, o que foi justificado pela facada da qual fora vítima durante a campanha. Essa interação corpo a corpo, midiatizada pelas redes sociais online, que Bolsonaro passou a ter com seus seguidores, constitui uma interação também baseada no fazer sentir.4 4 Mesmo que esse seja um simulacro de ajustamento ou ainda uma “sensibilidade reativa” que, como afirma Landowski (2014, p. 52), “não está distante da programação”, está englobado por um regime interacional pautado pela intencionalidade (ser vencedor no pleito eleitoral).O termo criante não é um neologismo mas uma palavra de uso raro. Aqui buscamos enfatizar o relacionalismo da criação — ao invés de criatura/criadora — criante porque em contínuo processo de criação e afetação com o que cria, com seu entorno e com o que é criado. Outro elemento relativo ao sentir diz respeito às paixões que, juntamente com a crença, são os elementos que validam a adesão do destinatário ao discurso das fake news, conforme Barros (2019)BARROS, D. L. P. Algumas reflexões sobre o papel dos estudos linguísticos e discursivos no ensino-aprendizagem na escola. Estudos Semióticos, v. 15, n. 2, p. 1-14, 2019., que, no caso da eleição de Bolsonaro, podem ser exemplificados com os chamados “kit gay” e “mamadeira de piroca”.

Outro elemento relativo ao ajustamento sensível diz respeito à exposição do corpo5 5 O exemplo se baseia na palestra “Corpo e contágio na era do populismo digital: hipóteses sociossemióticas”, de Paolo Demuru, no PPGCom da PUC Minas, em 13 de março de 2020. de Bolsonaro em situações de suposta privacidade: em traje de banho, na cama do hospital, durante um café da manhà, numa mesa improvisada com elementos simples.6 6 Posteriormente, esse fato foi comprovado como sendo uma encenação. Disponível em: https://epoca.globo.com/guilherme-amado/mesas-de-cafe-da-manha-de-jair-bolsonaro-na-eleicao-eram-fakes-1-24265281. Acesso em 26 mar. 2020. A exposição desse corpo diz respeito ao regime do ajustamento sensível, ou seja, ao regime em que sujeitos e seus respectivos corpos se afetam mutuamente em copresença sensível, que pode, evidentemente, se realizar pela mediação de aparatos técnicos, conforme proposição anterior.

A campanha de Bolsonaro se ancorou, portanto, no regime do ajustamento, porque o então candidato adotou uma estratégia de comunicação direta com seus seguidores, baseada no princípio da sensibilidade. Igualmente, baseou-se no regime da manipulação, posto que acionou recursos de persuasão deliberada para incitar, provocar e seduzir segmentos da sociedade como um todo.

Em suma, as lógicas da midiatização se operacionalizam, principalmente, no caso em questão, nos regimes de manipulação e ajustamento. A manipulação é comum às quatro perspectivas de midiatização, que foram agrupadas nas lógicas da mídia e da midiatização. O regime da programação, porém, parece estar mais articulado com a lógica da mídia, enquanto o ajustamento, com as lógicas da midiatização. O regime do acidente, por sua vez, por implicar uma descontinuidade qualquer, regido pela aleatoriedade, relaciona-se com as duas lógicas.

Conforme a lógica da mídia, descontinuidades podem ocorrer em função do rompimento com certas expectativas baseadas em comportamentos estereotipados dos sujeitos. Pela ótica das lógicas da midiatização, os diversos campos se tornam relativamente independentes do campo da mídia, principalmente aqueles que têm condições de operar e agenciar os seus próprios mecanismos de comunicação. Nesse cenário, eventos baseados na imprevisibilidade e na aleatoriedade também têm lugar.

O episódio da facada que Bolsonaro levou durante a campanha presidencial constitui, certamente, uma descontinuidade, um evento inesperado. Filmado por pessoas que acompanhavam a passeata de Bolsonaro em Juiz de Fora (MG), instantânea e concomitantemente, o episódio viralizou nas redes sociais online e foi veiculado pelos meios de comunicação, o que faz com que convirjam, nesse caso, as lógicas da midiatização e da mídia. Desse modo, houve uma confluência nos processos de produção, mediação e circulação do ocorrido em decorrência da formação de um circuito comunicacional agenciado por vários atores, incluindo as mídias.

Na Figura 2, organizamos e sintetizamos as relações entre regimes de interação e sentido e as lógicas subjacentes às referidas perspectivas da midiatização:

Fig. 2
Relação entre regimes de interação e sentido e lógicas da mídia e da midiatização.

É importante ressaltar que a correlação entre regimes interacionais e vertentes da midiatização e suas respectivas lógicas indicam tendências, pelo menos conforme o caso analisado. Em outras palavras, propomos que programação, manipulação e acidente se vinculam tendentemente às lógicas da mídia; enquanto manipulação, ajustamento e acidente se vinculam tendencialmente às lógicas da midiatização. Desse modo, não pretendemos afirmar, de forma categórica, que tais aproximações vão se dar exclusivamente dessa maneira. Ademais, no caso da sintaxe interacional, lembramos que um regime pode ser levado a outro e a outro, em um fluxo em constante devir. Cabe dizer, finalmente, que partimos, dedutivamente, da correlação entre vertentes da midiatização e suas lógicas e regimes interacionais, e o caso estudado confirma a hipótese deste trabalho. São necessários, ainda, mais estudos empíricos à luz dessa interface teórico-metodológica para que, indutivamente, as relações entre modelos teóricos aqui propostas possam ganhar maior refinamento e avançar em termos heurísticos.

Considerações finais

Os estudos acerca dos processos de midiatização estão em fase de constituição epistêmica, visto que esse campo de investigação ainda não conseguiu abranger a pluralidade de sentidos e perspectivas que buscam capturá-los e compreendê-los. A interação midiatizada é um fenômeno subjacente aos processos de midiatização, que emerge, concomitantemente, na agenda das pesquisas em comunicação. No cenário atual da midiatização, surge uma multiplicidade de problemáticas e questões ligadas às dimensões teóricas, conceituais e metodológicas que demandam investimentos sistemáticos e de longo prazo de investigação.

Os regimes de interação e sentido formulados pela sociossemiótica possibilitam modalizar os processos interacionais na cena social midiatizada, com base em conceitos e modelos relacionais. Isso nos possibilitou analisar distintos tipos de estratégias — sensíveis e inteligíveis — e relacionar programação, manipulação, ajustamento e acidente com as perspectivas institucionalista e socioconstrutivista da midiatização e suas respectivas lógicas subjacentes. A seção anterior atesta que não há regimes puros de interação, nem de perspectivas de midiatização, na medida em que eles se interpenetram e se interconectam. O caso analisado evidencia combinações e formas híbridas de interação midiatizada.

As aproximações e atravessamentos realizados entre os aportes teóricos e o caso empírico acerca dos regimes de interação e sentido à luz das lógicas das correntes de midiatização não apenas confirmam a potencialidade de tais aportes para analisar os processos de interação midiatizada, como também a necessidade de construção de aparatos teóricos e metodológicos por meio de pesquisas empíricas capazes de analisar os complexos processos de comunicação, heterogêneos e interconectados, em um leque de interações configuradas em redes.

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    La problématique de l’union est tout autre en ce qu’elle se concentre non pas sur les états jonctifs successifs mais sur ce qui ce passe entre les actants, ou mieux, sur ce qui passe, esthésiquement et à chaque instant, de l’un à l’autre quel que soit leur état de jonction momentané. Car, disjoints ou conjoints, les actants interagissent entre eux du seul fait de leur co-présence, qu’elle soit immédiate ou plus ou moins à distance, dès le moment où l’un au moins d’entre eux est à même de sentir esthésiquement l’autre, d’éprouver en lui-même la manière d’être au monde de l’autre.
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    As “bolhas ideológicas” se baseiam no que se curte, segue e compartilha. Portanto, o fazer persuasivo da campanha baseada em fake news enviadas por WhatsApp, pautado pela intencionalidade (manipulação) e pela regularidade (programação), foi condicionado por um regime anterior, baseado na regularidade do comportamento dos usuários (programação).
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    Mesmo que esse seja um simulacro de ajustamento ou ainda uma “sensibilidade reativa” que, como afirma Landowski (2014, p. 52)______. Interações arriscadas. Tradução Luiza Helena Oliveira da Silva. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014., “não está distante da programação”, está englobado por um regime interacional pautado pela intencionalidade (ser vencedor no pleito eleitoral).O termo criante não é um neologismo mas uma palavra de uso raro. Aqui buscamos enfatizar o relacionalismo da criação — ao invés de criatura/criadora — criante porque em contínuo processo de criação e afetação com o que cria, com seu entorno e com o que é criado.
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    O exemplo se baseia na palestra “Corpo e contágio na era do populismo digital: hipóteses sociossemióticas”, de Paolo Demuru, no PPGCom da PUC Minas, em 13 de março de 2020.
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    Posteriormente, esse fato foi comprovado como sendo uma encenação. Disponível em: https://epoca.globo.com/guilherme-amado/mesas-de-cafe-da-manha-de-jair-bolsonaro-na-eleicao-eram-fakes-1-24265281. Acesso em 26 mar. 2020.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2020
  • Aceito
    18 Jun 2020
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