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Plataformas de fazendas de cliques: condições de trabalho, materialidades e formas de organização

Click farm platforms: working conditions, materialities and forms of organization

Resumo

Este artigo analisa as plataformas de fazendas de cliques como elemento de aprofundamento da plataformização do trabalho no Brasil. Com base em entrevistas com trabalhadores e observações em plataformas, grupos de WhatsApp, Facebook e vídeos no YouTube, a investigação destaca condições de trabalho, materialidades e formas de organização das pessoas que são pagas para curtir, comentar e seguir perfis em plataformas de mídias sociais. As fazendas de cliques agem como plataformas parasitas em relação às infraestruturas das mídias sociais. O perfil de quem trabalha para as plataformas é de mulher, com histórico de trabalho informal. Há mercados paralelos de venda e compras de contas fakes e bots, que fazem parte das táticas desses trabalhadores para sobreviver no contexto das fazendas de cliques.

Palavras-Chave
fazendas de cliques; plataformas; trabalho

Abstract

This paper analyses click farm platforms as an element of contribution to the deepening of platformization of labour in Brazil. Based on interviews with workers and observations of platforms, WhatsApp and Facebook groups, and videos on YouTube, the investigation highlights working conditions, materialities and forms of organization of people who are paid to like, comment, and follow accounts on social media platforms. Click farms act as parasite platforms in relation to social media infrastructures. The profile of those who work for the platforms is that of woman, with history of informal work. There are parallel markets for selling and buying fake accounts and bots, which are part of the tactics of these workers to survive in the context of click farms.

Keywords
click farm; platforms; work

Introdução

Há pessoas que passam o dia curtindo, comentando e seguindo perfis em plataformas de mídias sociais como atividade de trabalho a mando de outras plataformas. São as plataformas de fazendas de cliques, ou simplesmente fazendas de cliques. O nome vem de click farm, e a literatura (LINDQUIST, 2018LINDQUIST, J. Illicit economies of the internet: click farming in Indonesia and beyond. Made in China Journal, n. 4, 2018., 2021; ONG; CABANES, 2019ONG, J.; CABANES, J. When disinformation studies meet production studies: Social identities and moral justifications in the political trolling industry. International Journal of Communication, n. 13, 2019.) aponta sua existência principalmente no Sudeste Asiático, funcionando em espaços similares a call centers, com vários telefones celulares ao mesmo tempo. Na América Latina, especialmente no Brasil, as fazendas de cliques apresentam-se como plataformas, conectando clientes que precisam de “seguidores reais” a trabalhadores, e são um elemento importante — e não suficientemente explorado — da plataformização do trabalho (CASILLI; POSADA, 2019______.; POSADA, J. The platformization of labor and society. In: GRAHAM, M.; DUTTON, W. (org.). Society and the internet: How networks of information and communication are changing our lives. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 293–306.; GROHMANN, 2020GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: entre dataficação, financeirização e racionalidade neoliberal. EPTIC, v. 22, n. 1, 2020.).

Este artigo, baseado na pesquisa The hidden labour of Brazilian women on AI platforms, parte do projeto Histories of artificial intelligence, financiada pela Universidade de Cambridge, tem o objetivo de discutir as fazendas de cliques no Brasil em meio à plataformização do trabalho, destacando materialidades, condições de trabalho e mercados paralelos. Argumentamos que as fazendas de cliques agem como plataformas parasitas em relação às infraestruturas das mídias sociais, em um contexto de “árvores das plataformas” (VAN DIJCK, 2021VAN DIJCK, J. Seeing the forest for the trees: visualizing platformization and its governance. New Media & Society, v. 23, n. 9, 2021.). O perfil de quem trabalha para as plataformas é de mulher, com histórico de trabalho informal, articulando trabalhos por plataformas, de cuidados e reprodutivo (ALTENRIED, 2020ALTENRIED, M. The platform as factory: crowdwork and the hidden labour behind artificial intelligence. Capital & Class, v. 44, n. 2, 2020.; TUBARO et al., 2022TUBARO, P. et al. Hidden inequalities: the gendered labour of women on micro-tasking platforms. Internet Policy Review, Online First, 2022.). Há mercados paralelos de venda e compras de contas fakes e bots que fazem parte das táticas de trabalhadores para sobreviver no contexto das fazendas de cliques, enquanto fissuras em relação ao poder das plataformas. (FERRARI; GRAHAM, 2021FERRARI, F. GRAHAM, M. Fissuras no poder algorítmico: plataformas, códigos e contestação. Fronteiras – Estudos Midiáticos, v. 23, n. 2, 2021.; GROHMANN et al., 2022______.; PEREIRA, G.; GUERRA, A.; ABÍLIO, L.; MORESCHI, B; JURNO, A. Platform scams: Brazilian workers’ experiences of dishonest and uncertain algorithmic management. New Media & Society, v. 24, n. 7, 2022.).

A pesquisa ocorreu entre outubro de 2020 e janeiro de 2022, e a metodologia envolveu: a) observações nas plataformas de fazendas de clique GanharNoInsta, Dizu, FarmarSocial e SigaSocial; b) observações em grupos de WhatsApp e Facebook relacionados às fazendas de cliques; c) análise de canais do YouTube relacionados às fazendas de cliques; d) entrevistas com trabalhadores, com roteiro semiestruturado, considerando trajetória de vida, condições de trabalho, relações de gênero e relações com tecnologia. O artigo articula as dimensões metodológicas1 1 Optamos por não introduzir print screens como uma forma de preservar a identidade de grupos e trabalhadores. a serviço do objetivo — introduzir as fazendas de cliques como elemento da plataformização do trabalho em termos de condições de trabalho, materialidades e formas de organização.

Desta forma, o artigo contextualiza o papel das fazendas de cliques na plataformização do trabalho e sua importância na pesquisa em comunicação. Em seguida, explora as materialidades em torno das fazendas de cliques, incluindo as relações com as infraestruturas das mídias sociais e o circuito em torno das plataformas, como os clientes. A seção seguinte foca as condições de trabalho, relações de gênero, forma de entrada nas plataformas e o histórico de trabalho informal. A última seção destaca os mercados paralelos de contas fakes e bots como estratégias de sobrevivência dos trabalhadores, enquanto fissuras e formas de organização. As conclusões apontam para as fazendas de cliques como um elemento central para compreensão tanto do aprofundamento do trabalho por plataformas quanto das práticas na área de comunicação.

As fazendas de clique na plataformização do trabalho

Temos argumentado que o trabalho por plataformas é um laboratório da luta de classes (GROHMANN, 2021______.; ARAÚJO, W. O chão de fábrica (brasileiro) da inteligência artificial: a produção de dados e o papel da comunicação entre trabalhadores de Appen e Lionbridge. Palabra Clave, v. 24, n. 3, 2021.), e a plataformização — enquanto crescente dependências de plataformas digitais para execução de atividades de trabalho (POELL; NIEBORG; VAN DIJCK, 2020POELL, T.; NIEBORG, D.; DUFFY, B. Platforms and cultural production. London: Polity, 2021.) — tende à generalização para os distintos setores, com diferentes perfis de plataformas e pessoas trabalhadoras, embora haja mecanismos em comum, como o gerenciamento algorítmico e a extração de dados como forma de capital (WOODCOCK; GRAHAM, 2019______.; GRAHAM, M. The gig economy: a critical introduction. London: Polity, 2019.; VAN DOORN; CHEN, 2021VAN DOORN, N.; CHEN, J. Odds stacked against workers: datafied gamification on Chinese and American food delivery platforms. Socio-Economic Review, v. 19, n. 4, 2021.; GROHMANN, 2020______. Trabalho digital: o papel organizador da comunicação. Comunicação, Mídia e Consumo, v. 18, n. 51, 2020.).

As plataformas de “microtrabalho” têm ocupado um lugar central na investigação e nas tipologias (HOWCROFT; BERGVALL-KAREBORN, 2018HOWCROFT, D.; BERGVALL-KAREBORN, B. A typology of crowdwork platforms. Work, Employment & Society, v. 33, n. 1, 2018.; WOODCOCK; GRAHAM, 2019______.; GRAHAM, M. The gig economy: a critical introduction. London: Polity, 2019.; VALLAS; SCHOR, 2020VALLAS, S.; SCHOR, J. What do platforms do? Understanding the gig economy. Annual Review of Sociology, n. 46, 2020.) sobre trabalho por plataformas — ao lado dos conhecidos motoristas e entregadores —, como demonstram investigações internacionais de Gray e Suri (2019)GRAY, M.; SURI, S. Ghost work: how to stop Silicon Valley from building a new global underclass. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2019., Roberts (2019)ROBERTS, S. Behind the screen: content moderation in the shadows of social media. New Haven: Yale University Press, 2019., Casilli (2019)______.; POSADA, J. The platformization of labor and society. In: GRAHAM, M.; DUTTON, W. (org.). Society and the internet: How networks of information and communication are changing our lives. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 293–306., Jones (2021)JONES, P. Work without the worker: labour in the age of platform capitalism. London: Verso, 2021., e nacionais como Kalil (2020)KALIL, R. Capitalismo de plataforma e Direito do Trabalho: crowdwork e trabalho sob demanda por meio de aplicativos. 2020. Tese (Doutorado) em Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2020., Moreschi, Pereira e Cozman (2020)MORESCHI, B.; PEREIRA, G.; COZMAN, F. The Brazilian workers in Amazon Mechanical Turk: dreams and realities of ghost workers. Contracampo, v. 39, n. 1, 2020., Braz (2021)BRAZ, M. Heteromação e microtrabalho no Brasil. Sociologias, v. 23, n. 57, 2021. e Grohmann e Araújo (2021)______.; NONATO, C.; MARQUES, A.; ACOSTA, C. As estratégias de comunicação das plataformas de trabalho: circulação de sentidos nas mídias sociais das empresas no Brasil. Comunicação e Sociedade, v. 39, 2021.. Em linhas gerais, essas plataformas servem como dispositivos de fauxtomation (falsa automação) ou heteromação (EKBIA e NARDI, 2017EKBIA, H.; NARDI, B. Heteromation and other stories of computing and capitalism. Cambridge: MIT Press, 2017.), com trabalhadores terceirizados atuando em tarefas de alimentação de processos automatizados e inteligência artificial, para empresas de diferentes setores por meio de plataformas digitais.

Isto é, essas plataformas aceleram e intensificam a plataformização do trabalho por meio de um processo de taskificação/fragmentação do trabalho (CASILLI, 2019CASILLI, A. En attendant les robots: enquête sur le travail du clic. Paris: Seuil, 2019.) e produção de dados para automação. Nomes dados para essas atividades — como microtrabalho, microtarefa ou trabalho do clique — são mais ilustrações vernaculares do tipo de tarefas repetitivas realizadas pelos trabalhadores do que conceitos acadêmicos. Essas nomenclaturas são usadas pelas plataformas para justificar renda extra e fácil, trabalhando de casa, em tarefas fáceis e que exigem poucas habilidades (CASILLI, 2021______. Waiting for robots: the ever-elusive myth of automation and the global exploitation of digital labor. Sociologias, v. 23, n. 57, 2021.). As nomenclaturas ainda revelam dificuldades em relação à construção de conceitos e tipologias, pois, epistemologicamente, o trabalho nunca é “micro” ou envolve só o “clique”, pois mobiliza todo o corpo das pessoas que trabalham (SOHN-RETHEL, 1978SOHN-RETHEL, A. Intellectual and manual labour: a critique of epistemology. New Jersey: Atlantic Highlands, 1978.).

Há cerca de 160 milhões de trabalhadores no mundo atuando com microtrabalho, a maioria do Sul Global (CASILLI, 2021______. Waiting for robots: the ever-elusive myth of automation and the global exploitation of digital labor. Sociologias, v. 23, n. 57, 2021.). Ou seja, há uma geopolítica do trabalho por plataformas, com mão de obra do Sul apoiando processos, empresas e infraestruturas do Norte, reforçando ou intensificando processos coloniais, como argumentam Grohmann e Araújo (2021)______.; ARAÚJO, W. O chão de fábrica (brasileiro) da inteligência artificial: a produção de dados e o papel da comunicação entre trabalhadores de Appen e Lionbridge. Palabra Clave, v. 24, n. 3, 2021. e Posada (2022)_____. Embedded reproduction in platform data work. Information, Communication & Society, Online First, 2022.. Como afirma Phil Jones, as plataformas de microtrabalho representam “a soma de processos de crescimento lento, proletarização e demanda de trabalho em declínio que incharam setores informais de países como Índia, Venezuela e Quênia”. Para ele, o microtrabalho não seria uma “fênix do Sul”, mas uma outra “reviravolta em nossa crise planetária de trabalho” (JONES, 2021JONES, P. Work without the worker: labour in the age of platform capitalism. London: Verso, 2021., p. 13).

Na América Latina, há um intenso mercado envolvendo as plataformas de microtrabalho, como mostram pesquisas de Miceli e Posada (2021)MICELI, M; POSADA, J. Wisdom for the crowd: discoursive power in annotation instructions for computer vision. In: CVPR 2021 Workshop: Beyond Fairness: Towards a Just, Equitable, and Accountable Computer Vision. Anais […], CVPR 2021 Workshop, 2021., envolvendo especialmente Venezuela, Argentina e Brasil. Em 2019, SchmidtSCHMIDT, F. Crowdsourced production of AI training data: how human workers teach self-driving cars how to see. Working Paper Forschungsförderung, Hans-Böckler-Stiftung, Düsseldorf, n. 155, 2019. concluiu que a maioria dos treinadores de dados para carros autônomos do mundo era da Venezuela. Já Ribeiro (2021)RIBEIRO, P. ‘É chicote mesmo’: TikTok pagou menos de um salário-mínimo para funcionários sem registro trabalharem até 18 horas por dia. The Intercept Brasil, out. 2021. evidenciou uma cadeia de produção Brasil-Paquistão-China em que brasileiros eram mal pagos para transcrever vídeos para o TikTok por menos de 1 dólar. Segundo Braz (2021)BRAZ, M. Heteromação e microtrabalho no Brasil. Sociologias, v. 23, n. 57, 2021., no Brasil, há cerca de 50 plataformas de microtrabalho em atuação, divididas entre diferentes subtipos, com sedes em vários países do mundo.

Podemos classificar as plataformas de microtrabalho, em geral, em três tipos: 1) cujos trabalhadores treinam e produzem dados para processos de inteligência artificial, como alimentar algoritmos de reconhecimento facial, abastecer bancos de dados, e classificar/anotar imagens. São exemplos: Amazon Mechanical Turk, Appen e Lionbridge, todas vindas do Norte global; 2) cujos trabalhadores atuam como moderadores de conteúdo, terceirizados de grandes empresas de tecnologia/plataformas de mídias sociais, como Twitter, Google e Facebook, responsáveis por “limpar” manualmente todo o conteúdo considerado nocivo ou proibido. São exemplos Cognizant e Pactera; 3) fazendas de cliques, cujos trabalhadores são pagos para curtir, comentar e seguir perfis e vídeos/fotos em mídias sociais como Instagram, TikTok e YouTube. Desta forma, as plataformas de fazendas de cliques são um tipo de plataforma de microtrabalho, e, entre elas, a menos conhecida da literatura até o momento.

As principais plataformas de fazendas de cliques do Brasil são GanharNoInsta, Dizu, FarmarSocial e SigaSocial, todas sediadas no Brasil, em cidades como Goiânia/GO e Santa Rosa/RS. A maioria delas define-se como empresas de marketing digital voltadas para redes sociais. A Dizu, por exemplo, se apresenta como “uma startup inovadora que encontrou uma forma de suprir a dor de pessoas que desejam se tornar famosas e a dor de pessoas que têm interesse em ganhar uma renda extra pela internet e assim remunerá-las”. O enunciado equivale a “dor” de quem deseja se tornar famoso a de quem precisa de plataformas de trabalho como essas para gestão da sobrevivência. Isso já revela, de alguma forma, relações entre trabalho plataformizado e indústria de influenciadores/celebridades.

O tipo de fauxtomation das fazendas de cliques não se relaciona exatamente à inteligência artificial, como outras plataformas de microtrabalho, mas aos trabalhadores por trás de cliques, comentários e seguidores — como bots humanos. A isso Gray e Suri (2019)GRAY, M.; SURI, S. Ghost work: how to stop Silicon Valley from building a new global underclass. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2019. chamam de “trabalho fantasma”. Mas Noopur Raval (2021)RAVAL. N. Acabando com a invisibilidade em um mundo global. DigiLabour, 2021. Disponível em: <https://digilabour.com.br/2021/08/15/acabando-com-a-invisibilidade-em-um-mundo-global/> . Acesso em 07 set. 2022.
https://digilabour.com.br/2021/08/15/aca...
alerta para irmos além de perspectivas que chamam trabalhadores de “fantasmas” ou “invisíveis”, pois, embora haja pouca cobertura midiática ou política em relação a eles, são fundamentais para a sustentação da economia de cliques e de processos envolvendo inteligência artificial. Isso significa ir além de uma perspectiva eurocêntrica para nomear trabalhadores que são, em geral, do Sul Global. De alguma forma, podemos considerar o trabalho em plataformas de fazendas de clique uma camada mais profunda — como uma deep web — do trabalho por plataformas. Ele aprofunda mecanismos da plataformização do trabalho por meio de trabalho remoto a troco de poucos centavos por tarefa em um circuito do trabalho por plataformas (QIU, GREGG; CRAWFORD, 2014QIU, J.; GREGG, M.; CRAWFORD, C. Circuits of labour: a labour theory of the iPhone era. TripleC, v. 12, n. 2, 2014.) com componentes centrais em território brasileiro — como as próprias plataformas.

A literatura sobre fazendas de cliques até o momento oscila entre conexões com a indústria da desinformação (ONG; CABANES, 2019ONG, J.; CABANES, J. When disinformation studies meet production studies: Social identities and moral justifications in the political trolling industry. International Journal of Communication, n. 13, 2019.; ONG; TAPSELL, 2022_____.; TAPSELL, R. Demystifying disinformation shadow economies: fake news work models in Indonesia and the Philippines. Asian Journal of Communication, Online First, 2022.) e as economias digitais ilícitas (LINDQUIST, 2018LINDQUIST, J. Illicit economies of the internet: click farming in Indonesia and beyond. Made in China Journal, n. 4, 2018.; 2021). O acento está na criação e circulação de perfis falsos como parte integrante e central da economia digital, enquanto fábricas de seguidores. Lindquist (2021)______. Good enough imposters: the market for Instagram followers in Indonesia and Beyond. In: WOOLGAR, S. et al. (org.). The imposter as social theory: Thinking with gatecrashers, cheats and charlatans. Bristol: Bristol University Press, 2021. chega a falar nas fazendas de clique como “infraestruturas de impostores”. O ponto de vista do trabalho — e dos trabalhadores — nas fazendas de clique ainda não foi suficientemente explorado na bibliografia da área. É interessante notar como a totalidade dos textos acadêmicos sobre o tema até o momento concentra-se em países do Sul Global, como Indonésia e Filipinas. Isso reforça o ponto de Jones (2021)JONES, P. Work without the worker: labour in the age of platform capitalism. London: Verso, 2021., para quem as plataformas de microtrabalho são uma marca das periferias globais.

Desta forma, o microtrabalho coloca-se como uma atualização da informalidade do trabalho na América Latina, como aprofundamos em outro texto, (GROHMANN et al., no prelo______.; AQUINO, M.; RODRIGUES., A.; MATOS, E.; GOVARI, C.; AMARAL, A. Click farm platforms: an updating of informal work in Brazil and Colombia. Work Organization, Labour & Globalization. No prelo.). Trata-se antes de falar em trabalho precário do que de precarização do trabalho — o que pressuporia um processo histórico de tornar-se precário — pois as pessoas que trabalham para essas plataformas já vivem em um histórico de informalidade, como têm defendido pesquisadores brasileiros sobre trabalho por plataformas (ABÍLIO, AMORIM; GROHMANN, 2021______.; AMORIM, H.; GROHMANN, R. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, v. 23, n. 57, 2021.).

Além disso, as plataformas de fazendas de cliques são um nó central para a pesquisa e a prática em comunicação. Além da consideração de que plataformas são meios de comunicação e produção (GROHMANN, 2021______.; ARAÚJO, W. O chão de fábrica (brasileiro) da inteligência artificial: a produção de dados e o papel da comunicação entre trabalhadores de Appen e Lionbridge. Palabra Clave, v. 24, n. 3, 2021.) e que comunicação e trabalho são articulados entre si, as fazendas de cliques apresentam relações entre plataformas de mídias sociais (como Instagram e TikTok) e clientes como políticos, influenciadores e celebridades. Até o momento, a literatura sobre plataformas e influenciadores não têm destacado o trabalho que há por trás dessas práticas. De fato, parte da comunicação digital em território nacional depende desse circuito do trabalho por plataformas em que se enredam as fazendas de cliques. Com base nisso, explicamos as materialidades implicadas nessas plataformas.

Entrando nas Plataformas: materialidades das fazendas de cliques

Compreender as materialidades das plataformas, enquanto meios de produção e comunicação (WILLIAMS, 2011WILLIAMS, R. Cultura e materialismo. São Paulo: Unesp, 2011), significa, ao mesmo tempo, descortinar o que as tecnologias nos permitem fazer por meio de seus artefatos (LEMOS, 2020LEMOS, A. Epistemologia da comunicação, cultura digital e neomaterialismo. Galáxia, v. 43, 2020.) e analisar as infraestruturas mais amplas às quais elas se conectam, enquanto “árvores de plataformas” (VAN DIJCK, 2021VAN DIJCK, J. Seeing the forest for the trees: visualizing platformization and its governance. New Media & Society, v. 23, n. 9, 2021.) ou mapas infraestruturais (CRAWFORD, 2021CRAWFORD, K. Atlas of AI. New Haven: Yale University Press, 2021.), posicionando-as em relação ao processo de plataformização.

Emprestando as analogias de Van Dijck (2021)VAN DIJCK, J. Seeing the forest for the trees: visualizing platformization and its governance. New Media & Society, v. 23, n. 9, 2021. em relação às árvores2 2 Sabemos dos limites explicativos de metáforas no âmbito da cultura digital (WYATT, 2021), contudo, aqui nos interessa apenas a título de ilustração do funcionamento da infraestrutura. , consideramos as fazendas de cliques “plataformas parasitas” em termos infraestruturais. Isso acontece porque elas têm uma lógica de dependência em relação às plataformas de mídias sociais, como uma espécie de “golpe” (GROHMANN et al, 2022______.; PEREIRA, G.; GUERRA, A.; ABÍLIO, L.; MORESCHI, B; JURNO, A. Platform scams: Brazilian workers’ experiences of dishonest and uncertain algorithmic management. New Media & Society, v. 24, n. 7, 2022.). As fazendas de clique só conseguem sustentar-se enquanto plataforma — incluindo modelos de negócio (POELL, NIEBORG; VAN DIJCK, 2020______.; NIEBORG, D.; VAN DIJCK, J. Plataformização. Fronteiras – Estudos Midiáticos, v. 22, n. 1, 2020) — porque se infiltram nas interfaces de programação de aplicação (API) de mídias sociais como TikTok, Instagram, Facebook e Kwai. Por meio disso, as fazendas de cliques conseguem acessar os perfis dos clientes, que pagam para receber número de seguidores, comentários e curtidas. Essa lógica de dependência infraestrutural faz que as fazendas de clique sejam subservientes aos mecanismos das plataformas de mídias sociais, como regras para criação e bloqueio de contas — mecanismos esses que não são nem neutros nem naturais, conforme alertam Arriagada e Siles (2020)ARRIAGADA, A.; SILES, I. Not natural, nor neutral: the cultural configurations of social media affordances within the Chilean influencer industry. AoIR Selected Papers of Internet Research, 2020.. Aliás, essas plataformas parasitas, por meio da sustentação de trabalhadores em processo de heteromação (EKBIA; NARDI, 2017EKBIA, H.; NARDI, B. Heteromation and other stories of computing and capitalism. Cambridge: MIT Press, 2017.), produzem certo “engajamento artificial”3 3 Entendendo “engajamento” no sentido fraco, no discurso corrente das plataformas de mídias sociais (BASTOS; GROHMANN; OLIVEIRA, 2021). .

As interfaces das fazendas de clique são configuradas como websites e voltadas às pessoas trabalhadoras. Antes da inscrição, é possível simular os ganhos com a plataforma. Um dos botões pergunta com quantas contas a pessoa quer trabalhar — um indício de que é possível ter contas falsas. Após a inscrição, é possível adicionar quantas contas de Instagram, TikTok ou Kwai a pessoa quiser. Contudo, há requisitos mínimos — no intuito de adequar-se aos mecanismos das plataformas de mídias sociais em relação a possíveis bloqueios. Alguns requisitos são: o perfil precisa ter foto humana, mínimo de 60 seguidores, seguir pelos menos 10 pessoas, ter no mínimo quatro publicações, ter uma biografia e perfil público/não fechado. Uma das instruções é mais específica em relação a minimizar os riscos de bloqueio pelas mídias sociais: “possuir nome brasileiro, nome de usuário, e todas as fotos necessitam ser de pessoas reais, não pode ser foto de objetos, animais, jogos, esportes, natureza, conteúdo adulto, foto aleatória, etc.” (dados de pesquisa, informado por uma das plataformas). Isto é, com essas instruções, as fazendas de clique subentendem que os trabalhadores criam perfis fake para trabalhar nas plataformas, e tenta criar mecanismos de “passabilidade” em relação às regras das mídias sociais para bloqueio de perfis. Inclusive, chama os critérios mínimos de “contas de baixa qualidade”.

Contudo, o discurso das plataformas (GROHMANN et al., 2021______.; NONATO, C.; MARQUES, A.; ACOSTA, C. As estratégias de comunicação das plataformas de trabalho: circulação de sentidos nas mídias sociais das empresas no Brasil. Comunicação e Sociedade, v. 39, 2021.) é de que não tolera contas fake. Uma das regras de uma plataforma é “utilize apenas contas reais” e afirma: “nosso sistema possui técnicas avançadas de detecção de contas fakes. Se alguma conta fake for detectada, a mesma será excluída do sistema e os pontos das tarefas realizadas por ela serão estornados” (dados de pesquisa, informado por uma das plataformas). Desta forma, a plataforma se porta publicamente como organização que combate desinformação e fake, mas aceita e incentiva o que chama de “contas de baixa qualidade”. Ou seja, dá as dicas e táticas para os trabalhadores construírem “fissuras” (FERRARI; GRAHAM, 2021FERRARI, F. GRAHAM, M. Fissuras no poder algorítmico: plataformas, códigos e contestação. Fronteiras – Estudos Midiáticos, v. 23, n. 2, 2021.) em meio às plataformas de mídias sociais — mais um atributo do que faz das fazendas de cliques o que chamamos de plataformas parasitas.

Essas “dicas” por parte das plataformas dão a elas um atributo de “mentoria” ou do que Soriano e Panaligan (2019)SORIANO, C; CABANES, J. Between “world class work” and “proletarianized labor”: Digital labor imaginaries in the global south. In: POLSON, E. et al. (org.). The Routledge Companion to Media and Class. London: Routledge, 2019. chamam de skill makers (em tradução literal, os “criadores de habilidades”). Na interface da plataforma para o trabalhador, há um menu chamado “dicas e tutoriais”, cuja chamada principal afirma: “dicas para ter menos bloqueios no Instagram” — a principal plataforma utilizada. Ali, há inclusive vídeos de YouTube para “criação de contas de alta qualidade” e “evitar/resolver bloqueios”. Uma das dicas é:

“recomendamos que crie as contas em navegador no modo anônimo, preferencialmente no celular, utilizando a rede 3G/4G. Caso você queira criar mais de uma conta, reinicie o celular antes de proceder para a criação da próxima conta. Uma quantidade considerada segura com base no feedback de nossos usuários é de 30 ações por hora”.

Isso significa que, ao ensinar as fissuras — como se estivessem driblando as “regras do jogo” — para os trabalhadores, as plataformas de fazendas de cliques terceirizam as tarefas de infiltração nas plataformas de mídias sociais (GROHMANN et al., 2022______.; PEREIRA, G.; GUERRA, A.; ABÍLIO, L.; MORESCHI, B; JURNO, A. Platform scams: Brazilian workers’ experiences of dishonest and uncertain algorithmic management. New Media & Society, v. 24, n. 7, 2022.) às pessoas trabalhadoras. Além disso, elas constroem maneiras de os próprios modelos de negócios de suas plataformas se manterem, pois, com menos bloqueios de contas, há mais garantia de clientes satisfeitos com as operações.

Ao entrar na plataforma, após cadastrar as contas, os trabalhadores recebem tarefas por meio de gerenciamento algorítmico — de maneira semelhante ao que acontece em outras plataformas de trabalho (RANI; FURRER, 2021RANI, U; FURRER, M. Digital labour platforms and new forms of flexible work in developing countries: algorithmic management of work and workers. Competition & Change, v. 25, n. 1, 2021.). Essas tarefas são, em geral, seguir ou curtir ou comentar em perfis dos clientes. Ao clicar na tarefa, há as instruções do que se deve fazer. A plataforma alerta para não “desfazer a ação” — por exemplo, não se deve “descurtir” o perfil “curtido”.

Em um enunciado de regras, uma das plataformas pede: “não desfaça as ações. Nós somos honestos com nossos usuários e permitimos que os mesmos ganhem dinheiro realizando ações, e, em contrapartida, nós pedimos que você também seja honesto conosco e não desfaça as ações que foram realizadas” (dados de pesquisa, informado por uma das plataformas). Isso acontece porque, na terceirização das tarefas de clique (CASILLI, 2019______.; POSADA, J. The platformization of labor and society. In: GRAHAM, M.; DUTTON, W. (org.). Society and the internet: How networks of information and communication are changing our lives. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 293–306.), há o acordo plataforma-cliente em relação ao pacote pago de número de seguidores/curtidas/comentários. Assim, os trabalhadores apenas são pagos pelas tarefas que realizam e que possam ser checadas pela plataforma. Ou seja, quando um perfil é bloqueado, a fazenda de cliques não consegue fazer a checagem, e o trabalhador não recebe pela tarefa.

O valor por cada tarefa é menor do que outras plataformas de microtrabalho, como Amazon Mechanical Turk, Appen ou Lionbridge (MORESCHI, PEREIRA; COZMAN, 2020MORESCHI, B.; PEREIRA, G.; COZMAN, F. The Brazilian workers in Amazon Mechanical Turk: dreams and realities of ghost workers. Contracampo, v. 39, n. 1, 2020.; GROHMANN; ARAÚJO, 2021______.; ARAÚJO, W. O chão de fábrica (brasileiro) da inteligência artificial: a produção de dados e o papel da comunicação entre trabalhadores de Appen e Lionbridge. Palabra Clave, v. 24, n. 3, 2021.), e tem variado ao longo do tempo – instabilidade que também acontece com outras modalidades de plataformas de trabalho. Até março de 2021, uma das plataformas pagava R$ 0,01 para cada ação. Em seguida, houve uma mudança no sistema de pagamento e o valor passou para R$ 0,006 por tarefa — quase a metade. A plataforma ainda afirma no próprio espaço para comunicação dos valores: “o valor pode parecer pouco, mas, pela quantidade de ações realizadas por dia, você pode ter uma boa renda extra mensal, tendo em vista que você gasta poucos segundos para realizar cada ação!” (dados de pesquisa, informado por uma das plataformas).

Isto é, o discurso da empresa reforça a ideia presente em outras plataformas do setor (GRAY; SURI, 2019GRAY, M.; SURI, S. Ghost work: how to stop Silicon Valley from building a new global underclass. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2019.; CASILLI, 2019______.; POSADA, J. The platformization of labor and society. In: GRAHAM, M.; DUTTON, W. (org.). Society and the internet: How networks of information and communication are changing our lives. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 293–306.) de que o trabalho/os trabalhadores não são qualificados e de que se trata apenas de uma “renda extra” — algo que também aparece em discursos de plataformas de entrega, como mostram Anwar e Graham (2021). A instabilidade também se dá em relação a quais plataformas de mídias sociais estão incluídas nas fazendas de cliques. No início, os trabalhadores podiam ser pagos até para dar dislike (curtidas negativas) em vídeos do YouTube. Atualmente (em abril de 2022), o YouTube não está mais disponível. As plataformas presentes neste momento são Instagram, TikTok, Kwai e Facebook, sendo o Instagram a mais utilizada.

O circuito de produção e consumo (MARX, 2011MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.; QIU, GREGG; CRAWFORD, 2014QIU, J.; GREGG, M.; CRAWFORD, C. Circuits of labour: a labour theory of the iPhone era. TripleC, v. 12, n. 2, 2014.) das fazendas de cliques envolve, pois, suas materialidades e infraestruturas. Com base na observação das plataformas, observamos quem são os clientes, em uma amostra qualitativa, aleatória e não representativa estatisticamente, por meio da qual podemos afirmar que a quase totalidade é brasileira. Neste percurso exploratório, detectamos a presença de políticos, músicos, apresentadores de televisão e jogadores de futebol. Contudo, consideramos sua quantidade pequena, quase anedótica. Mesmo que a amostra tenha seus limites, podemos afirmar que a maioria dos clientes são influenciadores. Isso passa por perfis verificados e não verificados, com alcance e tamanho distintos4 4 Não é intenção deste artigo se aprofundar nos achados sobre o perfil dos clientes das fazendas de cliques, mas somente pontuar um panorama. Será publicado outro artigo focado especificamente nos clientes. . Entretanto, destacamos uma forte presença de perfis de influenciadores da área da saúde, como personal trainers e instrutores de crossfit. Isso significa que há relações entre a economia de influenciadores — ou creator economy (CUNNINGHAM; CRAIG, 2021CUNNINGHAM, S.; CRAIG, D. Creator culture: an introduction to global social media entertainment. New York: New York University Press, 2021.) — e as fazendas de cliques, enquanto parte deste circuito do trabalho por plataformas. A compreensão das fazendas de cliques passa também, então, por saber quem são as pessoas que trabalham para essas plataformas.

Quem são os trabalhadores?

A literatura sobre trabalho por plataformas (WOODCOCK; GRAHAM, 2019______.; GRAHAM, M. The gig economy: a critical introduction. London: Polity, 2019.) e, especificamente as de microtrabalho (BRAZ, 2021BRAZ, M. Heteromação e microtrabalho no Brasil. Sociologias, v. 23, n. 57, 2021.), por exemplo, tem apontado a dificuldade de reduzir a somente um perfil de cada um que trabalha para essas plataformas, inclusive com diferenças internas. Por exemplo, quem trabalha para Appen e Lionbridge costuma ter formação acadêmica mais elevada do que os da Amazon Mechanical Turk (GROHMANN; ARAÚJO, 2021______.; ARAÚJO, W. O chão de fábrica (brasileiro) da inteligência artificial: a produção de dados e o papel da comunicação entre trabalhadores de Appen e Lionbridge. Palabra Clave, v. 24, n. 3, 2021.). No caso das fazendas de cliques, o perfil encontrado — por meio de entrevistas, observações em grupos de WhatsApp e Facebook — é de pessoas em relação de trabalho informal, fora das plataformas, inclusive como catador de latinha. Isso ocorre também porque, diferentemente das outras plataformas de microtrabalho, todas as tarefas das fazendas de cliques são realizadas em português, e com atividades que podem ser realizadas por meio de telefones celulares. O trabalho por plataformas em um país como o Brasil, ainda mais em atividades que podem ser realizadas por celular, encontra a subsunção da viração e o autogerenciamento subordinado (ABÍLIO, 2021______. Uberização e juventude periférica: desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos Cebrap, v. 39, n. 3, 2021.).

Há também uma forte presença de mulheres trabalhando para as plataformas de fazendas de cliques. Elas são as que mais comentam em grupos de WhatsApp e Facebook e as que mais têm funções de “gerenciamento de comunidades” nessas mídias sociais. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mulheres, jovens e negros foram os mais afetados no mercado de trabalho durante a pandemia de covid-19 (COSTA, BARBOSA; HECKSER, 2021COSTA, J.; BARBOSA, A.; HECKSER, M. Desigualdades no mercado de trabalho e pandemia da covid-19. Texto para discussão n. 2684. Brasília: Ipea, 2021.). Nas entrevistas e observações, encontramos mulheres que perderam seu emprego durante o período pandêmico e outras cujo marido perdeu o emprego, e as famílias necessitavam de mais renda mensal — em linha com outras pesquisas que pontuam o papel das famílias no trabalho para esse tipo de plataformas na América Latina (POSADA, 2021POSADA, J. Family units. Logic Magazine, n. 15, 2021. Disponível em: <https://logicmag.io/beacons/family-units/>. Acesso em 07 set. 2022.
https://logicmag.io/beacons/family-units...
).

O trabalho remoto por plataformas pode renovar e intensificar formas de exploração de gênero, em articulação com trabalho doméstico e trabalho reprodutivo (ALTENRIED, 2020ALTENRIED, M. The platform as factory: crowdwork and the hidden labour behind artificial intelligence. Capital & Class, v. 44, n. 2, 2020.; POSADA, 2022_____. Embedded reproduction in platform data work. Information, Communication & Society, Online First, 2022.), por meio da própria multiplicação do trabalho em diferentes frentes. Nas entrevistas, descobrimos que todas as trabalhadoras estão em busca de aumento de renda, mas nem todas conseguem ter independência financeira somente com o trabalho por plataformas, e têm duas ou três atividades de trabalho. A informalidade é explorada pelas plataformas por meio da captura dessas trabalhadoras em busca de um ganho extra pelas promessas de altos ganhos. Essas promessas articulam mecanismos de trabalho que combinam tarefas automatizadas com atividades que demandam tempo e trabalhos manuais.

Tudo isso resulta em uma condição de trabalho no mínimo incompatível com princípios de trabalho decente (FAIRWORK, 2022FAIRWORK. Fairwork Brasil 2021: por trabalho decente na economia de plataformas. Porto Alegre/ Oxford: Fairwork, 2022.), pois, para tentar atingir os ganhos prometidos, algumas trabalhadoras acabam tendo rotinas e horários insalubres, com cerca de 12 horas diárias de atividades que envolvem as fazendas de cliques. Além das tarefas propriamente para as plataformas, as trabalhadoras destacam um circuito mais amplo de trabalho que envolve a criação de perfis e o trabalho com bots (detalhados na próxima seção), o que significa mais tempo de trabalho. Uma das trabalhadoras entrevistadas afirma: “se você fizer corpo mole, você não vai ganhar. Então essa imagem ‘ah, vou trabalhar pouco’ engana, porque eu trabalho mais do que se estivesse trabalhando com CLT”.

A maioria dos trabalhadores entrevistados afirma que conheceu as fazendas de cliques (que eles chamam de sites) por meio de canais do YouTube prometendo renda extra e renda fácil, de propriedade de pessoas que se apresentam como estrategistas de marketing digital e empreendedores digitais. O apelo presente nos conteúdos dos vídeos é principalmente com foco nos ganhos, ou nas promessas de rendimento e de riqueza. As estratégias para captar trabalhadores são, além de ensinar como funcionam as tarefas enquanto skill makers (SORIANO; PANALIGAN, 2019______. ‘Skill-Makers’ in the platform economy: transacting digital labour. In: ATHIQUE, A.; BAULCH, E. (org.). Digital Transactions in Asia. London: Routledge, 2019.), criar esperança naquelas que precisam ganhar dinheiro. Alguns enunciados desses vídeos são: “Vai da pessoa querer descansar ou ganhar dinheiro no tempo livre”; “fazer algo simples” ou “transformar em lucro” aquilo que “a pessoa já faz no dia a dia”. Desta forma, isso reforça a questão da informalidade, de certo modo, desqualificando a tarefa e, ao mesmo tempo, pressionando quem visualiza o vídeo a aderir às fazendas de cliques.

Nos grupos de Facebook e WhatsApp, observamos como os anúncios para trabalho de apenas clicar, atrelado à promessa de ganhar dinheiro fácil atrai muitas trabalhadoras com baixa escolaridade e que, muitas vezes, nem computador ou celular próprio têm. Elas começam a trabalhar com um celular emprestado e, com o dinheiro que ganham nas plataformas, conseguem comprar o primeiro aparelho. Este não é um exemplo isolado: os relatos de novas aquisições, no grupo — seja de um celular, seja um cosmético ou comida —, são frequentes. Em um caso compartilhado em um grupo de Facebook, uma trabalhadora dessas plataformas afirmou que ficou chateada porque outros trabalhadores falaram que ela apenas reclama que precisa de dinheiro logo e está ansiosa para receber seu pagamento. Quando ela finalmente foi paga, postou uma foto de sua geladeira cheia de comida, agradecendo à plataforma pelo dinheiro, a Deus por poder comprar comida e especialmente por ter essas plataformas para trabalhar. Esses relatos de agradecimento a Deus e às plataformas são muito frequentes também em comentários de vídeos do YouTube. Segundo essa trabalhadora, mesmo com os problemas gerados por esse tipo de atividade/trabalho, essas plataformas ajudam muito quando não há outro trabalho, conforme o exemplo abaixo.

Outra prática muito comum — que de certa forma dialoga com o que comentamos —, é a abertura de tópicos exclusivos para que os trabalhadores falem bem das plataformas, nos quais eles contam o que conseguiram comprar com o dinheiro recebido pelas tarefas realizadas. Os comentários envolvem “lanche”, “coisas pro aniversário do meu filho”, “paguei a luz”, “pizza”, “comprei roupas”, “arrumei o cabelo”, “boletos da faculdade”, “fraldas”, “dor de cabeça, raiva, e de vez em quando, com muita fé em Deus, um pagamento depois de 10 dias”. Todo esse contexto está em linha com pesquisas anteriores, como Wood et al. (2019)WOOD, A. et al. Good gig, bad gig: autonomy and algorithmic control in the global gig economy. Work, Employment & Society, v. 33, n. 1, p. 56-75, [s.d.]. e Soriano e Cabanes (2019)SORIANO, C; CABANES, J. Between “world class work” and “proletarianized labor”: Digital labor imaginaries in the global south. In: POLSON, E. et al. (org.). The Routledge Companion to Media and Class. London: Routledge, 2019., sobre, ao mesmo tempo, a precariedade e a sensação de oportunidade gerada pelas plataformas — o que envolve, inclusive, reclamações e contradições em relação ao pagamento (GROHMANN; ARAÚJO, 2021______.; NONATO, C.; MARQUES, A.; ACOSTA, C. As estratégias de comunicação das plataformas de trabalho: circulação de sentidos nas mídias sociais das empresas no Brasil. Comunicação e Sociedade, v. 39, 2021.).

As condições de trabalho nas fazendas de cliques envolvem não só a relação direta com as plataformas, mas toda a multiplicação do trabalho ao redor delas. Isso significa todo o trabalho necessário por trás da realização das tarefas, como a criação de contas. Como a remuneração por tarefa é muito baixa, os trabalhadores recorrem à criação de múltiplos perfis para fazer a gestão da sobrevivência. Isso significa, na visão deles, dilemas éticos na criação de e-mails temporários e contas falsas para trabalhar para as plataformas. Uma das trabalhadoras entrevistadas afirmou que tem táticas para a criação desses perfis: ou cria contas de celebridades ou de parentes próximos (e pede permissão a eles), pois tem medo de ser processada judicialmente pela criação de perfis falsos. Outro trabalhador afirma que não teria coragem de comentar e seguir contas com seu próprio perfil, e precisa separar a vida pessoal que está em seu Instagram da renda extra que ganha com as plataformas. Alguns chegam a criar rostos falsos por meio da inteligência artificial em sites como This Person Does Not Exist. Esses dilemas não são resolvidos, pois as pessoas precisam dessas atividades para sobrevivência, e demonstram a necessidade de se pensar uma ética de dados e ética na inteligência artificial desde o nível mais baixo, e não somente com base nas grandes empresas de tecnologia (NEDZHVETSKAYA; TAN, 2021NEDZHVETSKAYA, N. TAN, JS. The role of workers in AI ethics and governance. In: BULLOCK, J. et al. (org.). Oxford handbook of AI governance. Oxford: Oxford University Press, 2021.).

Há trabalhadores que atuam com até 200 perfis ao mesmo tempo, com vários e-mails temporários. Uma trabalhadora entrevistada afirma: “nós criamos perfis falsos, sim; do contrário, você não faz dinheiro”. Muitas vezes é necessário utilizar mais de um aparelho — celular ou computador de mesa para conseguir gerenciar todas as contas. Em um canal do YouTube, um trabalhador pergunta nos comentários se essas práticas são legais, ao que o youtuber responde: “não é ilegal, mas o Instagram não gosta”. Assim, o maior problema enfrentado pelos trabalhadores é o bloqueio das contas pelas plataformas de mídias sociais. Com o bloqueio, eles não são pagos pelas tarefas. Isso faz parte da multiplicação do trabalho nas fazendas de cliques (ALTENRIED, 2020ALTENRIED, M. The platform as factory: crowdwork and the hidden labour behind artificial intelligence. Capital & Class, v. 44, n. 2, 2020.), pois invariavelmente eles precisarão trabalhar com um número de contas a mais já prevendo bloqueios. Uma das táticas que os trabalhadores usam, enquanto fissuras (FERRARI; GRAHAM, 2021), é manter contas de backup para que consigam trabalhar enquanto tiverem outras bloqueadas. Uma trabalhadora afirma que já teve mais de 200 reais deduzidos por causa de perfis bloqueados.

Outra tática dos trabalhadores, além dos vários perfis, é a automatização de tarefas por meio de bots. Ou seja, robôs que comportam até 300 contas ao mesmo tempo e que fazem automaticamente as tarefas de curtir, comentar e seguir solicitadas pelas plataformas. Em suma: a) clientes compram fazendas de cliques em busca de seguidores reais; b) as tarefas são terceirizadas para uma multidão mal paga de trabalhadores; c) cansados das condições, os trabalhadores terceirizam mais uma vez o serviço, desta vez para bots (justamente o que os clientes não gostariam de comprar). Assim, com o uso de bots, se há contas bloqueadas, pelo menos elas não foram manuseadas com a força de trabalho das pessoas. Uma das trabalhadoras entrevistadas afirma: “Houve um tempo que era errado usar bots. Nós éramos bloqueados. Atualmente, a gente só consegue fazer dinheiro com o uso de bots. Quem só faz trabalho manual não está conseguindo”.

Nos grupos de Facebook, os trabalhadores também trocam informações sobre a ação de comprar robôs, tais como “eu no manual faço 2 reais por dia com 7 contas”, “nossa bem difícil viu, pq com a extensão automática eu consigo fazer 3 reais por dia”, “faz 4 contas que vc consegue uns 10 reais usando a extensão com 4 navegadores abertos”, “usando o bot dmf, muito satisfeita, recomendo”. A comunicação entre trabalhadores é central para o mercado paralelo e a organização das pessoas em torno do circuito das fazendas de cliques. Na interação com outros trabalhadores, eles aprendem táticas e fissuras sobre como aumentar seus rendimentos com a plataforma.

O uso de contas falsas e bots faz parte das atividades cotidianas de trabalho em fazendas de cliques. De fato, podemos compreendê-las como a porta de entrada para mercados paralelos, especialmente em grupos de WhatsApp e Facebook, que acabam por engendrar formas de organização de trabalhadores.

Mercados paralelos e formas de organização

As contas falsas e os bots não nascem no vazio. Muitas vezes, eles são produto de mercados paralelos em grupos de WhatsApp, com títulos como “Vendas TikTok Instagram”, “Crescendo nas plataformas” e “Leilão Oficial do Insta”. Os grupos de WhatsApp são as infraestruturas facilitadoras desses mercados paralelos, como lugares para comércio, comunicação e organização entre trabalhadores. São uma síntese do que Soriano e Cabanes (2020)______. Entrepreneurial solidarities: social media collectives and Filipino digital platform workers. Social Media + Society, Online First, 2020. chamam de solidariedades empreendedoras, e têm acontecido em grupos de trabalhadores plataformizados de diversos setores (GROHMANN, 2021______.; NONATO, C.; MARQUES, A.; ACOSTA, C. As estratégias de comunicação das plataformas de trabalho: circulação de sentidos nas mídias sociais das empresas no Brasil. Comunicação e Sociedade, v. 39, 2021.). Há, a um só tempo, um sentimento de ajuda mútua entre os membros dos grupos e reforços de uma racionalidade neoliberal empreendedora, como uma contradição que não se resolve (HARVEY, 2017HARVEY, D. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2017.). Os trabalhadores compartilham tanto dicas para trabalhar quanto anúncios de contas e bots. Assim, formam-se tanto redes de solidariedade, enquanto formas emergentes de organização, quanto possibilidades de transformar os grupos em mais uma faceta do mercado.

Um dos anúncios, por exemplo, diz: “boa noite, amigos! Compre contas boas no Instagram por R$ 1,50. Tenho clientes que estão rodando há duas semanas sem bloqueio. Tenho indicações! Contas vem com bio, 100 seguidores, 5 fotos, like em todas”. Os vendedores prometem alto desempenho, e vendem desde contas vazias (por cerca de R$ 0,70) até o que chamam de contas alto padrão. Quanto mais seguidores, fotos e detalhes a conta tiver, mais alto padrão ela será, e, consequentemente, mais difícil de ser bloqueada pelas plataformas de mídias sociais. Essas contas são usadas somente com a finalidade de seguir e comentar perfis para as fazendas de cliques. Isto é, o mercado paralelo serve ao circuito do trabalho nessas plataformas.

Nas interações, há dinâmicas interacionais que se relacionam à informalidade histórica do trabalho, como a pechincha. Um dos exemplos é essa interação para venda de contas: “contas zeradas por R$ 1, interessados chamar no privado”, “vendo por 90 centavos”, “pois faço 80 centavos então”, “to fazendo por R$ 0,65”. Há também anúncios para revenda de contas e para que trabalhadores se tornem potenciais revendedores, em uma atualização plataformizada da histórica atividade de revenda no Brasil (ABÍLIO, 2014ABÍLIO, L. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2014.).

Várias das contas falsas no mercado paralelo são de mulheres, como mostra esse anúncio: “Nomes reais, femininos, sem aquele monte de números e símbolos”. Há também venda de pacotes de fotos para construção desses perfis, em geral também de mulheres: “pack com mais de 90 fotos, perfil feminino, não é celebridade nem blogueirinha, sempre gera muito engajamento, 25 centavos”. Isto é, há várias dimensões de gênero envolvidas no trabalho em fazendas de cliques — desde as trabalhadoras até a circulação de perfis fake por meio de mercados ilegais (PINHEIRO-MACHADO, 2017PINHEIRO-MACHADO, R. Counterfeit itineraries in the Global South: the human consequences of piracy in China and Brazil. London: Routledge, 2017.). Isso também mostra como esse circuito do trabalho envolve diversas camadas para além da própria relação trabalhador-plataforma.

A venda e compra de bots segue a mesma lógica do mercado de contas falsas. Mas, além dos bots, há venda de mentorias e tutoriais para melhor uso dos robôs, com skill makers (SORIANO; PANALIGAN, 2019SORIANO, C; CABANES, J. Between “world class work” and “proletarianized labor”: Digital labor imaginaries in the global south. In: POLSON, E. et al. (org.). The Routledge Companion to Media and Class. London: Routledge, 2019.) em circulação nos grupos de WhatsApp. Nos grupos, os trabalhadores discutem quais os melhores bots e os melhores desempenhos. Eles também compartilham print screens e vídeos dos bots funcionando, para mostrar aos outros trabalhadores que o seu bot está com uma performance acima dos demais — em um típico exemplo das solidariedades empreendedoras, ou seja, um misto de competição entre trabalhadores (o meu é melhor) e construção de redes para ajuda. O compartilhamento de print screens — especialmente de remuneração — acontece também no trabalho por plataformas em outros setores, como transporte e entrega.

O uso de bots foi recentemente reapropriado pelas próprias plataformas de fazendas de cliques, que criaram seus próprios robôs e produziram tutoriais e anúncios para que os trabalhadores não recorram aos mercados paralelos, mas comprem da própria plataforma por ser mais confiável e oficial do que os grupos de WhatsApp. Isso exemplifica como há um jogo intenso entre as possibilidades de agência e fissuras no poder algorítmico (FERRARI; GRAHAM, 2021FERRARI, F. GRAHAM, M. Fissuras no poder algorítmico: plataformas, códigos e contestação. Fronteiras – Estudos Midiáticos, v. 23, n. 2, 2021.) por parte de trabalhadores e as lógicas de incorporação/reapropriação por parte do poder das plataformas (GROHMANN et al., 2022______.; PEREIRA, G.; GUERRA, A.; ABÍLIO, L.; MORESCHI, B; JURNO, A. Platform scams: Brazilian workers’ experiences of dishonest and uncertain algorithmic management. New Media & Society, v. 24, n. 7, 2022.).

Contudo, não significa que os trabalhadores de fazendas de cliques sejam completamente desarticulados em termos organizativos. Pelo contrário, à sua maneira, eles mostram que “as lutas contra o capitalismo de plataforma” — nos termos de Woodcock (2021)WOODCOCK, J. The fight against platform capitalism. London: Westminster University Press, 2021. — acontecem nos diferentes setores da economia de plataformas. Quando as fazendas de cliques diminuíram as tarifas mínimas em março de 2021, os trabalhadores instituíram a primeira greve em fazendas de cliques no Brasil (chamada por eles de “greve dos sites”).

Os protestos iniciaram-se nos grupos de WhatsApp e contaram com a ajuda de youtubers — o que também mostra seu papel contraditório em relação à reprodução da racionalidade empreendedora (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.) — que divulgaram grupos para discutir a greve e explicaram os motivos da paralisação: “se não agirmos hoje, amanhã vai ser R$ 0,0001”. Nos comentários dos canais, os trabalhadores compartilham táticas de organização, como “vamos deixar de seguir todos. Quando os compradores verem que estão perdendo seguidores e reclamar nos sites, eles vão voltar a pontuação de antes”. Os trabalhadores também reconhecem a necessidade da organização coletiva: “até que enfim achei um canal que faz a gente que trabalha com essas plataformas ficarmos mais unidos. Temos que ficar unidos”, “top man vamos paralisar esses parasitas”.

Desta forma, os grupos de WhatsApp tanto delineiam formas de organização quanto são a porta de entrada para mercados paralelos, cruzando fronteiras da ilegalidade e intensificando a informalidade no trabalho no circuito mais amplo do trabalho por plataformas. O uso, a venda e a compra de contas falsas e bots fazem parte de estratégias de trabalhadores na luta pela gestão de suas sobrevivências, em um contexto de deep web do trabalho por plataformas no Brasil.

Considerações finais

O artigo apresentou uma introdução ao trabalho em fazendas de clique no Brasil como elemento importante da plataformização do trabalho, intensificando e reestruturando a informalidade histórica no país. Elegemos três dimensões, a saber: materialidades, condições de trabalho e formas de organização para apresentar como funciona o circuito do trabalho nessas plataformas, incluindo desde interfaces até mercados paralelos. Mostramos como o trabalho para essas plataformas — que são brasileiras — se coloca como uma faceta oculta ou invisível, cujos trabalhadores sustentam — por meio de cliques, comentários e curtidas a troco de centésimos de centavos — parte da presença digital de influenciadores, celebridades e outras pessoas/organizações.

Assim, consideramos que uma primeira contribuição desta pesquisa é ampliar o escopo do trabalho por plataformas e da plataformização do trabalho para além de setores já consagrados na literatura, como entrega e transporte, ou mesmo as mais conhecidas plataformas globais de microtrabalho, como Amazon Mechanical Turk. Uma segunda contribuição é que não há como pensar o mercado em comunicação — especialmente de comunicação digital — ou as práticas profissionais na área sem compreender o papel das fazendas de cliques. Considerando que boa parte das ações profissionais em comunicação depende de lógicas de plataformas (POELL; NIEBORG; DUFFY, 2021POELL, T.; NIEBORG, D.; DUFFY, B. Platforms and cultural production. London: Polity, 2021.), a relação entre fazendas de cliques com economia de influenciadores e indústria da desinformação é também uma preocupação que precisa ser descortinada nas práticas profissionais em comunicação. A própria existência das fazendas de cliques já significa um sintoma de um problema mais amplo e que envolve certamente o papel da comunicação e de organizações/trabalhadores da área da comunicação. Alguns indícios dessa responsabilidade também estão presentes no alto número de pessoas e plataformas intitulando-se da área de marketing digital e a apresentação da missão de uma das empresas, que se coloca a favor de sanar a dor de pessoas que desejam tornar-se famosas.

  • 1
    Optamos por não introduzir print screens como uma forma de preservar a identidade de grupos e trabalhadores.
  • 2
    Sabemos dos limites explicativos de metáforas no âmbito da cultura digital (WYATT, 2021WYATT, S. Metaphors in critical Internet and digital media studies. New Media & Society, v. 23, n. 2, 2021.), contudo, aqui nos interessa apenas a título de ilustração do funcionamento da infraestrutura.
  • 3
    Entendendo “engajamento” no sentido fraco, no discurso corrente das plataformas de mídias sociais (BASTOS; GROHMANN; OLIVEIRA, 2021BASTOS, P.; GROHMANN, R.; OLIVEIRA, T. What is engagement in communication research? Circulation of meanings and consequences for audience studies. Participations: Journal of Audience & Reception Studies, v. 18, n. 1, 2021.).
  • 4
    Não é intenção deste artigo se aprofundar nos achados sobre o perfil dos clientes das fazendas de cliques, mas somente pontuar um panorama. Será publicado outro artigo focado especificamente nos clientes.

Referências

  • ABÍLIO, L. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2014.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2022
  • Aceito
    04 Jul 2022
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