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Teorias do jornalismo – A hipótese do mediador complexo: da isenção (possível) à independência (necessária)

Journalism theories - The complex mediator hypothesis: from (possible) exemption to (necessary) independence

Resumo

Este artigo, em diálogo com as teorias do jornalismo, examina a possibilidade de considerar o jornalista um mediador complexo. Retoma-se o debate sobre a questão da objetividade e da verdade. Sustenta-se que nem tudo depende do ponto de vista do observador ou analista.

Palavras-chave
teorias do jornalismo; complexidade; comunicação

Abstract

This article, in dialogue with journalism theories, examines the possibility of considering the journalist as a complex mediator. The debate on the question of objectivity and truth is resumed. It is argued that not everything depends on the point of view of the observer or analyst.

Keywords
theories of journalism; complexity; communication

A construção da irrealidade

Os positivistas não aceitavam divergências sobre a realidade. Os antipositivistas não aceitam a realidade, mas passam o tempo todo denunciando as falsificações do real por jornalistas e intelectuais, embora, muitas vezes, sejam jornalistas e intelectuais. Recusam a objetividade, a neutralidade, a imparcialidade e a isenção como impossibilidades cognitivas. Não raro, contudo, atacam veículos e jornalistas dos quais discordam por distorcerem os fatos, mostrando-se parciais. Consideram a ideia de verdade redutora ou impossível, mesmo assim, atacam ferozmente as mentiras dos seus oponentes. A mentira, como a ideologia, no sentido de um “preconceito doutrinal” (SAID, 1990SAID, E. W. Orientalismo – o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras: 1990., p. 331), é sempre do outro. Como a falácia do fim das ideologias proclamada por ideólogos da ordem permanente ou da segurança eterna do Capital: “É inconcebível que as ideologias ‘murchem’ por si [...] enquanto existirem conflitos sociais importantes com os quais estão inextricavelmente interligadas” (MÉSZÁROS, 2014MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 109). Ideologia, de resto, no sentido negativo do termo, é um afastamento consciente ou inconsciente do real. Então o real existe?

Há teoria segundo a qual só a teoria realmente importa. Essa tese tem a ver com as narrativas legitimadoras, cuja morte Jean-François Lyotard (1986)LYOTARD, J. F. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. anunciou, a morte por inanição dessas superteses, como o marxismo ou o freudismo, que dariam conta do todo, e de tudo, amarrando fios dispersos, superando as contingências do real, explicando a totalidade de modo coerente e dando sentido ao descosturado. Sempre houve aí uma nostalgia do sentido absoluto, do esclarecimento total, da vitória do conceito sobre o concreto, do triunfo da ideia sobre o empírico. A pergunta que Lyotard retomou pode ser resumida assim: o que prova que uma prova é uma boa prova? (idem, 1986). Ela pode ser mais simples: é possível provar alguma coisa? Ou: é possível provar que algo existe ou aconteceu?

Nessa linha de raciocínio, isento é aquele cujas ideias coincidem com as do seu destinatário. Uma boa verdade, mesmo que seja uma mentira, é aquela que coincide com o ponto de vista do receptor da mensagem. Uma visão não ideológica é aquela que coincide com a ideologia do seu público, do seu leitor, do seu ouvinte. Não há verdade? Salvo essa que acaba de ser enunciada? Tudo depende do ponto de vista? Até a esfericidade da Terra ou a afirmação de que a dengue é transmitida por um mosquito, não por uma formiga? Em teorias do jornalismo parece haver uma verdade: não há fatos, só reconstruções de acontecimentos. Será? O clichê sugere que se cinco pessoas presenciarem um acidente de carro haverá cinco versões sobre o ocorrido. Será? As descrições de jogos de futebol por diferentes jornais parecem demonstrar todo dia o contrário: uniformização total. Títulos iguais, avaliações equivalentes, narrativas idênticas.

Não haverá um superfaturamento da subjetividade? Imaginar que cada um olha as coisas de maneira diferente, única, não contradiz as teses sobre o papel formatador da educação e das ideologias? Se a sociedade é produto de um processo contínuo de enquadramento, como sustentar que cada indivíduo seja uma ilha de observação singular? Se não há real atingível, um padrão de verdadeiro contra o qual medir as falsificações, qual é o sentido de denunciar manipulações e mentiras? Não será a tese da impossibilidade de se atingir a objetividade, a imparcialidade, a isenção e a neutralidade a simples expressão de: a) uma revolta contra o positivismo, que tomava visões pessoais por universais; b) um desejo de enterrar divergências e impor a própria visão como a única aceitável?

Se não há real contra o qual medir a falsificação, qual o sentido da atividade crítica? Edward Said (1990, p. 57)SAID, E. W. Orientalismo – o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras: 1990. fala do “método Kissinger” de divisão de países desenvolvidos e em desenvolvimento: os primeiros — ocidentais, pós-newtonianos — se caracterizam pelo fato de considerar o “mundo real” externo ao observador. Os outros — orientais, pré-newtonianos — tomariam o mundo como “quase completamente interno ao observador”. As passagens entre aspas são da lavra de Henry Kissinger, célebre personagem da política dos Estados Unidos. Seriam os jornalistas pré-newtonianos? Uma coisa é um jornalista, ou uma empresa, querer suprimir fatos ou distorcê-los por interesses econômicos, políticos ou o que quer que seja. Acontece todos os dias sem virtude nem constrangimento. Outra coisa, bem diferente, é a impossibilidade humana da objetividade por imposição cerebral.

É impossível ser objetivo? O dia a dia mostra o contrário. Quantos relatos coincidem? Quantas acareações produzem o mesmo relato? É desejável ser isento? Sempre? Nunca? Às vezes? De um juiz se espera que seja imparcial. Por que não esperar o mesmo de um repórter? De resto, quem confia no relato de alguém identificado com o lado oposto ao seu? Said acusa o Ocidente de produzir uma visão falseadora do Oriente. Coerente, defende que estudiosos do Oriente “são perfeitamente capazes de se libertarem da velha camisa de força ideológica” (SAID, 1990SAID, E. W. Orientalismo – o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras: 1990., p. 331). Ou seja, de verem o Oriente real. Como? Privilegiando a experiência, não as teses: “Talvez devêssemos lembrar também que o estudo do homem em sociedade está baseado na história e nas experiências humanas concretas, e não em abstrações solenes, ou em leis obscuras ou sistemas arbitrários” (ibidem). O melhor que as ciências humanas podem produzir são grandes reportagens, indo em busca da experiência, de fatos. Autores não devem ser usados para legitimação pela autoridade ou como efeito de erudição oca, mas como fontes de apoio argumentativo ou refutação. A pesquisa deve, afirma Said (1990, p. 331)SAID, E. W. Orientalismo – o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras: 1990., ser “moldada pela experiência”. Na realidade, esse é apenas o ponto de vista de Said? O oposto disso também pode ser somente o ponto de vista de alguém. A tese sobre a impossibilidade da isenção não está demonstrada. Talvez se confunda a fartura da falta de isenção com impossibilidade epistemológica ou cognitiva de tal operação. Uma contradição se escancara: a objetividade é impossível por causa da trajetória de cada um (formação, percurso, biografia), mas a formação produz um imaginário coletivo. Só se pode concluir que a educação estabelece blocos de subjetividade, não uma subjetividade por pessoa. Nada, porém, fixa um determinismo da formação. Em contrário, toda etnografia seria um exercício fadado ao fracasso. A ideia de que é impossível se colocar no lugar do outro, por exemplo, é uma tese baseada numa hipérbole retórica. Na prática, experiência e sensibilidade indicam que a empatia funciona, o que é provado pela afirmação de alguém que, sentindo-se inteiramente compreendido, reconhece a leitura do outro.

Teorias do jornalismo

As teorias do jornalismo não deixam de ser um capítulo das teorias da comunicação, que podem ser vistas como sociologia da comunicação. Dois modelos predominam: em um deles — considerado positivista e ultrapassado —, o jornalismo é espelho da realidade, retratando fielmente o ocorrido. No outro, tudo é construção. Neste, duas vertentes se contradizem: a subjetividade do jornalista, que tudo deforma, versus o interesse da empresa, que tudo conforma. No modelo da construção não há, em princípio, verdade, mas cada um apresenta essa ausência de verdade definitiva como verdade absoluta: a subjetividade individual não permite reconstruir fielmente o fato; o interesse da empresa se sobrepõe ao do jornalista e contamina a narrativa. Para alguns, o jornalista é um intelectual orgânico a serviço da reprodução dos valores do sistema dominante. Para outros, o jornalista pode ser um perigoso agente de contestação da ordem.

Uma leitura do funcionamento do jornalismo denuncia a falta de pluralismo na mídia dita corporativa. O jornalismo da leitura oposta, contudo, também não costuma ser pluralista. Cobra-se o que não se pratica? É possível pensar um jornalismo que não esteja o tempo todo enviesado pela ideologia do jornalista ou do jornal? Ou se trata de uma guerra perdida? Seria o caso de a cada dia se ler o jornal da esquerda e o da direita para tirar as próprias conclusões? Ou de se contentar em consumir aquele que coincide com a postura do destinatário, optando-se por uma bolha e abandonando a ideia de ver o outro lado, de ouvir o contraditório?

O jornalismo baseia-se numa suposta fidelidade ao real? O acontecido não pode ser reconstituído? O fato não pode ser fotografado? É preciso assumir o risco da ingenuidade: por que não? Não mesmo? Não se pode provar que o autor de um assassinato foi A e não B? Não se pode reconstituir a cena do crime? Não se trata de chegar a um fato em si metafísico, mas de chegar ao mesmo resultado a partir de olhares diferentes, um olhar estatístico. Diante de um navio que se aproxima do porto, dificilmente algum jornalista verá um elefante. Nenhum, salvo sério problema de percepção ou erro, o descreverá como vermelho se for preto e branco.

As teorias parecem disseminar-se como um vírus. Tome-se um manual bastante conhecido no Brasil: Teorias da comunicação (1999), de Mauro Wolf. As principais ideias sobre a impossibilidade, por exemplo, da objetividade e da imparcialidade foram coligidas na obra por ele. Um aspecto paradoxal trata da ilusão de independência a ser alcançada: “Se os jornalistas pudessem ser libertados dos vínculos que os ligam, a autonomia profissional garantiria uma imparcialidade incorrupta e uma formação integral” (GOLDING; ELLIOTT apud WOLF, 1999WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1999., p. 165). Por que não? A subjetividade de cada jornalista não permitiria? O termo incorrupta falseia o jogo. Um jornalista pode sucumbir. Mas todos o farão também?

Segundo esse ponto de vista, autonomia profissional e distorção da informação surgem como duas faces da mesma moeda: a perspectiva é muito mais radical do que aquela que, remetendo toda a deficiência e manipulação da cobertura informativa exclusivamente para pressões e influências externas, se priva da possibilidade de captar o funcionamento da “distorção inconsciente”, ligada às práticas profissionais, às rotinas produtivas normais, aos valores partilhados e interiorizados acerca do modo de desempenhar a função de informar

(WOLF, 1999WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1999., p. 165).

Se durante muito tempo o homem foi considerado racional, ignorando o seu inconsciente, agora a racionalidade seria um vestígio amplamente dominado por forças subterrâneas. Por que o ser humano não poderia aprender a controlar essas distorções inconscientes? Por que elas são inconscientes? O raciocínio fica tautológico. Além disso, toma o jornalista como indivíduo isolado. Há um ponto de partida a ser questionado: “As notícias são aquilo que os jornalistas definem como tal” (Altheide apud Wolf, 1999WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1999., p. 171). Os jornalistas, porém, não escolhem, salvo situações pontuais, as notícias arbitrariamente. Não o fazem a bel-prazer. São até acusados de não ter autonomia para tanto. As notícias são aquilo que os jornais definem como tal? Na complexidade do conjunto, eles também não o fazem de modo arbitrário. Se alguns o fazem, pagam por isso.

Para Altheide (apud Wolf, 1999WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1999., p. 173), o que é escolhido “depende sempre dos interesses e das necessidades do órgão informativo e dos jornalistas”. O que isso quer dizer? O interesse pode ser o de satisfazer o público sob pena de ser batido pelo concorrente. A credibilidade impõe obrigações. Omitir ou manipular pode levar a um desmascaramento pelo simples fato de o material ser veiculado na concorrência. A comparação é inevitável. Ainda que cada pessoa não consuma todos os veículos a ponto de poder comparar, o sistema expõe as falhas e, a médio prazo, carimba cada ator em razão de suas escolhas equivocadas ou falsificadas. Pode-se parafrasear Karl Marx: são os jornalistas que produzem as suas notícias, mas os jornalistas reais, atuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas. Condicionados, não lobotomizados. O paradoxo do jornalismo está em sua abertura/fechamento.

Idílico seria o jornalista acreditar em ser tão somente o interlocutor do fato — lembrando ser o contar “a primeira atividade teórica da razão, ainda oscilante entre o pensamento e o sentimento” (MARX, 2001MARX, K. Liberdade de imprensa. Porto Alegre: L&PM, 2001., p. 11) —, tal qual a ingenuidade de se referir a si mesmo na terceira pessoa, como se com este procedimento asseverasse neutralidade ao episódio ou então desse ao acontecimento a prerrogativa de verdade. Cândida pretensão: “Na realidade, se a imprensa fosse tudo, realizaria todas as funções de um povo, e este seria supérfluo” (MARX, 2001MARX, K. Liberdade de imprensa. Porto Alegre: L&PM, 2001., p. 28).

Mediador complexo

A dialógica do jornalismo funciona com base em antagonismos equilibrados: negociação/conflito, liberdade/restrição, autonomia/dependência. Na leitura objetivista, que condena todo o processo à dependência de um determinismo cognitivo de formação, uma série de contradições é acionada. Primeiro, declara-se a impossibilidade da objetividade; depois, da neutralidade; na sequência, da imparcialidade; por fim, da isenção. Logo, da independência. Cabe portanto a cada jornalista ser militante, escolhendo seu lado. A maior vítima é a verdade. Porém, quem diz que não há verdade cobra verdade dos oponentes. No limite, essa perspectiva invalida toda crítica por falta de parâmetro. Dizer que verdade não existe é uma contradição performativa. E uma mentira, embora compreensível, se considerarmos ser a concepção da inexistência da verdade um regime de verdade (FOUCAULT, 2011FOUCAULT, M. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.), apropriado à intencionalidade de quem o profere.

Cada um trabalha com suas categorias de percepção (Bourdieu, 1997BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997., p. 35). Existem oito bilhões de lentes no mundo? Oito bilhões de categorias de percepção distintas? O método do desencobrimento dialógico ajuda a questionar esse superfaturamento da subjetividade já sugerido. Consta que a primeira ferida narcísica a abalar a humanidade foi saber que a Terra não é o centro do Universo. A segunda teria sido a descoberta darwiniana de que o homem se insere numa evolução natural como qualquer outra espécie. A terceira, freudiana, revelaria um ser humano dominado por forças inconscientes. A quarta ferida narcísica seria tomar conhecimento de que há uma realidade externa que não depende do ponto de vista de cada um? A pandemia do coronavírus impôs uma reflexão sobre o relativismo. Em tempos de terraplanismo, relativistas tiveram de afirmar: o formato da Terra não depende do ponto de vista de cada um. A ciência prova que a Terra não é plana. O mesmo se deu em relação a medicamentos defendidos como capazes de evitar os efeitos mais graves da Covid-19. Foi preciso se levantar e gritar: a ciência mostra que eles não têm efeito real. Afinal, esclarecia Feyerabend (2011, p. 100)FEYERABEND, P. A ciência em uma sociedade livre. São Paulo: Editora Unesp, 2011., “a tolerância não significa aceitação de falsidade lado a lado com a verdade: significa tratamento humano daqueles que infelizmente estão presos na falsidade”. Efeito cloroquina: a verdade existe e pode ser provada. O fato de que nem todas as situações podem ser resolvidas em termos de verdade ou inverdade não pode resultar na afirmação de que não existe verdade. Afora a contradição performativa dessa solução generalizada talvez por orgulho, estratégia ou comodismo, ficou explicitada a contradição. Yuval Noah Harari, em Homo Deus (2016)HARARI, Y. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., sugere, em grandes lances de provocação, que os algoritmos poderão conhecer melhor os homens do que eles mesmos, poderão votar por eles, definindo o melhor candidato em razão das constantes do imaginário do eleitor, que, sob pressão, pode esquecer parte dos seus pressupostos e escolher um representante inadequado para o conjunto das suas posições mais permanentes. Dotados de aparelhos cognitivos e perceptivos equivalentes e configurados com parâmetros iguais (pela educação, pelo meio, por ideologia), por que os homens fariam leituras diferentes, únicas, incomparáveis de tudo que lhes é externo?

A supremacia da subjetividade individual não seria apenas a ilusão alimentada pelo “humanismo liberal” (Harari, 2016HARARI, Y. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.)? Há reservas sagradas do imaginário que, em geral, não podem ser questionadas. O triunfo da subjetividade é uma delas. Por imaginário se deve entender aqui o espaço da ficção compartilhada e da magnificação do real, ou seja, aquilo que ganha um excesso de significação. Não se trata de negar a existência da subjetividade, mas de pensar sobre seu funcionamento. Seria algo inato, característico do aparelho cognitivo de cada um? Ou uma espécie de faculdade mental passível de desenvolvimento e formatação pela cultura? A subjetividade é a falsa objetividade forjada por um determinismo estrutural ou uma autonomia radical do indivíduo ante a cultura na qual se forma?

Harari (2016, p. 332)HARARI, Y. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. questiona a individualidade dos indivíduos. Segundo ele, o individualismo liberal assenta-se em três crenças: a individualidade indivisível do sujeito; a liberdade absoluta do “eu autêntico”; e a consciência indevassável do eu sobre si mesmo. As ciências biológicas, no entanto, desafiariam essas ilusões do ego liberal:

De acordo com as ciências biológicas: 1. Organismos são algoritmos e humanos não são indivíduos — são “divíduos”. Isto é, humanos são uma montagem de muitos algoritmos diferentes que não têm uma voz interior única ou um eu único. 2. Os algoritmos que constituem um humano não são livres. São configurados por genes e pressões ambientais e tomam decisões determinística ou aleatoriamente – mas não livremente. 3. Segue-se daí que um algoritmo externo é teoricamente capaz de me conhecer muito melhor do que eu jamais poderia fazê-lo.

(ibidem, 2016, p. 332).

É só o ponto de vista das ciências biológicas ou de alguns profissionais dessa área? Essa perspectiva é aquela que, ao relativizar tudo, torna equivalente todas as possibilidades, sugere não ser possível fazer qualquer demonstração e anula o trabalho da ciência. Nem por isso se deve, em contraposição a ela e aos seus perigos, aceitar como verdade aquilo que não passa de hipótese. A ciência confirma e refuta hipóteses. Algumas permanecem no limbo à espera de novos conhecimentos capazes de ajudar a resolver os problemas propostos. A hipótese examinada neste texto é esta: a ideia de que tudo depende do ponto de vista e que cada receptor recebe a mensagem de modo único não está suficientemente demonstrada e produz contradições na medida em que pode ser defendida por pessoas que denunciam, ao mesmo tempo, a força das determinações estruturais.

Edgar Morin (2011, p. 208)MORIN, E. O Método 6. Porto Alegre: Sulina, 2011. examina os dois ângulos dessa questão milenar buscando uma síntese complexa capaz de superar a contradição exposta. Por um lado, destaca a força da estrutura sobre os indivíduos:

O imprinting é a marca sem retorno imposta pela cultura, primeiramente familiar, depois social, e que se mantém na vida adulta. Inscreve-se no cérebro desde a primeira infância por estabilização seletiva das sinapses. Essas inscrições vão marcar irreversivelmente o espírito individual no seu modo de conhecer e de agir. A isso se acrescenta e combina a aprendizagem que elimina ipso facto outros modos possíveis de conhecer e de pensar.

(ibidem, 2011, p. 208).

Por outro lado, Morin (2011, p. 19)MORIN, E. O Método 6. Porto Alegre: Sulina, 2011. destaca a relação permanente entre indivíduo-sociedade-espécie, afirmando que “o indivíduo humano, mesmo na sua autonomia, é 100% biológico e 100% cultural”. Em consequência, de modo indissolúvel, o humano “carrega a herança genética e, ao mesmo tempo, o imprinting e a norma de uma cultura”. Essa é a sua dialógica.

Podemos distinguir, mas não isolar umas das outras as fontes biológica, individual e social. Essas três fontes estão no coração do indivíduo, na sua própria qualidade de sujeito. Aqui, eu me refiro à concepção de sujeito, elaborada por mim, que vale para todo ser vivo. Ser sujeito é se autoafirmar situando-se no centro do seu mundo, o que é literalmente expresso pela noção de egocentrismo. Essa autoafirmação comporta um princípio de exclusão e um princípio de inclusão. O princípio de exclusão significa que ninguém pode ocupar o espaço egocêntrico onde nos exprimimos pelo nosso Eu. Dois gêmeos univitelinos podem ter tudo em comum, mas não o mesmo Eu.

(MORIN, 2011MORIN, E. O Método 6. Porto Alegre: Sulina, 2011., p. 19).

O eu individual constitui o Sujeito. Ele só será despersonalizado por uma força estrutural totalitária. Sem um processo de violência simbólica, o Sujeito preservará sua autonomia relativa. Ele não é o mero produto da estrutura. Nem seu produtor consciente ou inconsciente. Essa dialógica pode parecer a alguns como demasiadamente imprecisa. Afinal, quem é determinante? Quem comanda? Na história das teorias da comunicação, conforme se pode constatar em diversos autores (DeFLEUR; BALL-ROKEACH, 1993DeFLEUR, M.; BALL-ROKEACH, S. Teorias da comunicação de massa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.; TRAQUINA, 2004TRAQUINA. N. Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são. v. 1. Florianópolis: Insular, 2004.; WOLF, 1999WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1999.), há uma busca recorrente pela ênfase num dos polos da relação comunicacional: das teorias do emissor forte às teorias do receptor tão autônomo a ponto de se tornar inalcançável. A verdade estaria no interacionismo simbólico e nas perspectivas voltadas para a construção social dos significados, que teriam ficado a meio caminho de uma interpretação complexa ou descambado para a ênfase num novo polo, como a linguagem ou a subjetividade. Num eterno movimento de fluxo e refluxo, com novos nomes e novos estudos, o determinismo retorna pela janela.

Contra o determinismo da objetividade, o determinismo da subjetividade. Contra o determinismo individual, o determinismo estrutural. Às vezes, paradoxalmente, os dois ao mesmo tempo. Não é impossível que esses polos sejam conjugados numa leitura consistente. É fundamental, porém, que ela não seja redutora, mas complexa. Se o indivíduo é submetido a um imprinting, formatado por anos de condicionamento educacional, como ele mantém sua autonomia subjetiva? Se o jornalista é preparado para ter “óculos” (Bourdieu, 1997BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997., p. 25), lentes que condicionam sua visão da realidade, objetivando ou subjetivando seu olhar como uma visão compartilhada, por que ele não se daria com o destinatário, também ele submetido a processos de adestramento? Se o jornalista é formado para ver e contar da mesma maneira, como cada jornalista veria e contaria de maneira subjetiva e própria?

Este é o ângulo de ataque ao problema, o mais negativo: a objetividade seria o resultado de um processo coletivo de formatação dos aparelhos perceptivos. Como explicar as leituras divergentes? Por brechas, margens de manobra. A formatação nunca seria total. Outro ângulo, menos determinista, remete ao próprio real. Será que ele fornece aos seus intérpretes infinitas possibilidades de abordagem ou apenas algumas? Retorna o problema inicial: quantos acidentes há num acidente? Tantos quantos forem os espectadores? Alguns? Muitos? A ciência tem plenas condições de testar. Diante de evidências, aceitando-se que elas existem e podem ser mostradas, a diversidade suposta de relatos passa por correção?

A percepção da realidade não é uma construção social no sentido de uma soma de leituras individuais sobrepostas e negociadas, mas possivelmente o resultado de um jogo de angulações expostas. Se a objetividade positivista foi um mito do espelho, não será a hipótese da subjetividade incontornável uma mitologia própria do hiperindividualismo da sociedade de consumo no seu estágio mais extremo, no qual cada um tem direito a uma lente pessoal intransferível, uma câmera particular?

Perspectivas

Toda solução costuma criar novos problemas. A crítica ao objetivismo pode ter levado a um subjetivismo problemático e filosoficamente inconsistente. É muito provável que haja um problema de expressão. A linguagem parece não dar conta das necessidades expressivas em certas circunstâncias, gerando contradições performativas. Afirmar que a imparcialidade é impossível significa, de certo modo, sustentar que o indivíduo não pode se manifestar contra o seu imprinting. A honestidade intelectual e os casos concretos provam o contrário todos os dias. Exceções? Ou demonstrações de que o problema é estrutural, não cognitivo?

Por outro lado, existem verdades demonstráveis e demonstradas: a dengue não é transmitida por abelhas, mas por mosquitos. Vírus não são bactérias. A ciência tem um histórico de comprovações. Tudo pode, contudo, ser refutado a qualquer momento? Os terraplanistas poderão um dia provar que sempre tiveram razão ou já há uma verdade científica incontestável nesse terreno? A refutabilidade, ou falsificabilidade, como princípio científico combate dogmas e enfatiza a argumentação racional e a abertura para revisões com base em novas descobertas e evidências, não constando que se apresente como defesa de que todas as teorias são sustentáveis.

Há campos, porém, como o das humanidades, em que prevalecem o convencimento e a consequência. Se uma visão de mundo convence alguém, que a adota no seu cotidiano, isso gera consequências que levam a viver de uma maneira, e não de outra. Por que alguns se convencem e outros não? No limite talvez ainda não se saiba a razão disso. Por força da cultura ou da subjetividade? Indivíduos com formação idêntica — irmãos gêmeos com percursos educativos iguais — podem fazer escolhas opostas. Limite da determinação estrutural. Pessoas com formações opostas podem fazer escolhas iguais. Esse é o limite da subjetividade, o jogo não está jogado. A relação entre observador e observado requer novas observações. Embora seja um dos problemas mais antigos da epistemologia, ainda conserva zonas não iluminadas, oscilando entre o positivismo radical e o relativismo ingênuo.

Afinal, tudo depende do ponto de vista de cada um ou há uma realidade externa perceptível por todos? O mínimo que se pode dizer é que muitas vezes há coincidência absoluta na descrição de algo por diferentes observadores. O que isso significa? Certamente, que há muitas situações de compartilhamento pleno da percepção. Em que proporção? Em que condições? O mais importante é admitir que essa coincidência ocorre, e não necessariamente com observadores de uma categoria homogênea. Sobressai uma conclusão: a ênfase na subjetividade ou na objetividade tem dependido menos de experiências concretas de observação sistemática e mais de conveniências, crenças e estratégias. Essa não seria a prova de que o subjetivo prepondera? Não necessariamente. Pode ser a prova de que quando não se faz observação sistemática de certos fenômenos, caso da relação entre a mensagem jornalística e o seu público, fica mais fácil fazer inferências interessadas sobre eles. A aposta na subjetividade é tão útil para quem a defende quanto a crença na pureza absoluta da objetividade.

A principal consequência da teoria da subjetividade é a desqualificação da verdade enunciada pelo outro sem a necessidade de fazer a demonstração da verdade apresentada como oposta. Cada qual com a sua verdade torna-se cada qual com sua crença. O problema é que costuma acontecer uma edição do que é mostrado. Aquilo que contraria uma verdade é omitido por quem a defende. Como a operação se dá no domínio da crença, as contradições são relativizadas. Em contrário, como chamar de falsa a suposta verdade alheia sem a existência de um critério de validade das verdades? Diante do enunciado, durante mais de três séculos houve escravidão legal no Brasil, qual pode ser a possibilidade de negação?

Não é desse tipo de verdade que se está falando quando se discute o estatuto da prova e da verdade? Quem tem o poder de definir do que se está tratando e quais argumentos são válidos? Mesmo que se aceite essa ressalva, resta a evidência de que afirmações sobre a inexistência de verdades extrapolam a demonstração e funcionam como arroubos retóricos. O perigo embutido na aceitação desse relativismo tão disseminado num tempo de individualismo radical é a desvalorização da prova. A explosão das fake news, a exemplo do efeito cloroquina, tem representado um freio poderoso contra a vulgata relativista. Se há notícias falsas, há verdade. Se há verdade, nem tudo depende do ponto de vista de cada um. Sendo assim, por que insistir num subjetivismo que morde o próprio rabo a cada instante?

A chamada pós-modernidade há muito identificou o ponto nevrálgico: não é que não existam verdades, mas que muitas pretensas verdades nunca fizeram a demonstração suficiente da validade dos seus enunciados. O universalismo abstrato, por exemplo, estrebucha. Fica a cada dia provado que esconde privilégios de todo tipo: locais, históricos, de classe, de gênero, etc. Possivelmente as teorias do jornalismo tenham de reposicionar suas preocupações: não havendo objetividade o tempo inteiro, nem subjetividade permanente, como identificar as razões das leituras divergentes e as condições em que elas acontecem? Isso passa por lidar com autoengano, determinações estruturais e imprinting. Se um antropólogo enxergar a cultura até então desconhecida com os olhos da sua cultura, para que, parafraseando Clifford Geertz (1978)GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., sair de casa? Toda etnografia seria um exercício de etnocentrismo dissimulado? Uma grande reportagem seria aquela na qual o jornalista dá voz ao outro antes de reduzi-lo a si e ao seu imaginário?

Seria a subjetividade um produto à venda para um cliente sedento de diferença e de singularidade? Ou uma astúcia ideológica para transformar, no caso do jornalismo, todo jornalista em militante de alguma causa? O jornalismo estaria dividido em dois campos de militância: conscientes e inconscientes? De manipulador, o jornalista praticante da militância inconsciente passaria à condição também de manipulado (pela empresa, pelo mercado, por suas ilusões objetivistas). Manipulador manipulado. Evidentemente que há militantes conscientes, o que é totalmente legítimo, e militantes inconscientes, iludidos, o que é lamentável, assim como militantes conscientes que negam ser militantes, o que é revoltante.

O uso da palavra militante para qualificar o outro adquiriu tom pejorativo, recurso normalmente da direita para tentar desqualificar a esquerda. Fica novamente a pergunta: se jornalistas de esquerda e de direita querem ser julgados por juízes imparciais, indicando que isso é cognitivamente possível e eticamente necessário, por que um consumidor de informações não poderia querer receber relatos, sobre este ou aquele tema, produzidos por jornalistas imparciais? E por que isso não seria possível do ponto de vista cerebral, político e técnico? Uma teoria complexa do jornalismo precisa considerar os diversos atores em cena, seus papéis, condicionamentos, obstáculos, possibilidades e visões compartilhadas.

Referências

  • BOURDIEU, P. Sobre a televisão Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
  • DeFLEUR, M.; BALL-ROKEACH, S. Teorias da comunicação de massa Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
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  • FOUCAULT, M. A coragem da verdade São Paulo: Martins Fontes, 2011.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2022
  • Aceito
    18 Mar 2022
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