Acessibilidade / Reportar erro

Singularidades e diferenças na música pop. Uma revisão do termo world music nas mídias

Singularities and differences in pop music. A review of the term world music in the media

Resumo

A organização da música pop recorre ao termo world music para classificar produções não aderentes ao núcleo Europa/Estados Unidos. Este trabalho propõe três eixos de discussão sobre o uso do world music: a) revisar textos sobre o tema; b) identificar desigualdades narrativas históricas, de âmbito global, que o permeiam; c) análise empírica das obras de três artistas com base na Semiótica da Cultura e contribuições de linhas pós-estruturalista e decolonial para repensar o world music e sua função de forma estética.

Palavras-Chave
world music ; diferenças; gêneros musicais; hibridismos; singularidades

Abstract

The organization of pop music uses the term world music to classify productions which do not adhere to the cores Europe/United States of America. This paper proposes three axes of discussion about the use of world music: a) to review texts on the theme; b) to identify historical narrative inequalities, from global scope, that permeate it; c) to propose an empirical analysis of the works of three artists based on Semiotics of Culture and with contributions of poststructuralist and decolonial thought to rethink world music and its function of aesthetic form.

Keywords
world music; differences; music genres; hybridities; singularities

Introdução

A parceria entre a clarinetista israelense Anat Cohen e o grupo Trio Brasileiro, formado pelos irmãos Alexandre (percussão) e Douglas Lora (violonista) e por Dudu Maia (bandolinista), rendeu o álbum Rosa dos ventos (2017), trabalho que remete ao choro e tem referências de jazz. Na faixa “Choro pesado”1 1 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zLBvw50QQ7M>. Acesso em: 22 dez. 2019. , canção que integra o disco, muito além de apenas no título, percebe-se formação instrumental e elementos rítmico-melódicos do gênero choro (síncope, fraseados e arpejos). Indicado ao Grammy Music Awards de 2017 na categoria Melhor Álbum de World Music, o trabalho de Anat Cohen e Trio Brasileiro concorreu com artistas de diversas regiões e culturas distintas, como o guitarrista espanhol de flamenco Vicente Amigo, a cantora espanhola de ascendência guineense Concha Buika, o grupo vocal sul-africano Ladysmith Black Mambazo e a banda Tinariwen (Mali).

O problema semântico que emerge do agrupamento de diferentes formatos musicais sob o rótulo world music é o que este artigo busca enfrentar, uma vez que as demais categorias da premiação obedecem aos moldes dos gêneros musicais mais ou menos estabelecidos pelo mercado fonográfico. A questão aqui proposta pretende ir além da premiação Grammy Music Awards, tomando-a apenas como ponto de partida para, então, oferecer uma crítica à fragilidade da classificação world music, presente em lojas de discos, festivais de música, plataformas de streaming e meios de comunicação (tradicionais e mídias digitais). Trata-se de uma demarcação historicamente constituída nas mídias.

A crítica aqui elaborada passa por três tópicos: a) enfrentar narrativas que nos chegam na temporalidade e que carregam relações desiguais entre norte e sul globais; b) demonstrar que a world music não tem uma forma estética definida para funcionar como gênero musical, mas opera como significante ou escritura (gramma) para conter singularidades do Sul Global em um campo homogêneo; e c) como exercício de análise semiótica, discutir as obras dos artistas Bantu Continua Uhuru Consciousness (BCUC), Joe Strummer e M.I.A. para identificar elementos sonoros de diferentes fronteiras culturais e o sentido político de revisão narrativa que assumem. Como significante, world music remete a uma ideia genérica de música do mundo e indica uma leitura estereotipada de artistas de diferentes regiões. É preciso, então, construir uma crítica à sua gramaticidade, recorrente nas narrativas que moldam a moderna música pop nas mídias, para identificar as processualidades menores que tornam tal rótulo insuficiente.

As discussões deste texto partem do uso do world music como gênero musical, fundado por estratégias mercadológicas da indústria da música para nomear produções não ocidentais (sobretudo as que não priorizam estéticas anglo-americanas), que inviabilizam o campo perceptivo e sensorial no qual singularidades e outras realidades tentam ganhar expressão. É na recorrência discursiva de identidades globais estereotipadas que se constituem narrativas maiores e universalizações. Este trabalho retoma, em alguns momentos, estudos sobre world music para mostrar pontos em que é preciso avançar, uma vez que preocupações com demandas de gravadoras, apropriações feitas por artistas europeus e norte-americanos ou vínculos modernizadores com gêneros musicais ocidentais (FRITH, 2000FRITH, S. The discourse of world music. In: BORN, G.; HESMONDHALGH, D. (ed.) Western music and its others: difference, representation, and appropriation in music. Berkeley: University of California Press, 2000. p. 305-322.; FELD, 2000FELD, S. A sweet lullaby for world music. Public Culture, v. 1, n. 12, p. 145-171, 2000.; REGEV, 2007REGEV, M. Rock aesthetics and musics of the world. In: CATEFORIS, T (ed.). The rock history reader. New York: Routledge, 2007. p. 303-308.) não dão conta de uma revisão epistêmica necessária às maneiras como nos relacionamos com produtos midiáticos num cenário de cultura pop globalizada.

A base teórica tem como ponto de partida o pensamento pós-estruturalista de Jacques Derrida (2013)DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2013. e a noção de uma compreensão para além do gramma (letra, escritura) — menos uma questão de gênero do que de entremeio semiótico e cultural. No ambiente midiático, a categoria world music tem uma força narrativa que cerceia leituras mais complexas de produções musicais emergentes das periferias globais, muitas vezes criticada pelos próprios artistas2 2 Como exemplo, ver depoimento da cantora beninense Angélique Kidjo. Disponível em: <https://newint.org/columns/finally/2014/04/01/angelique-kidjo-interview>. Acesso em: 24 jan. 2020. que recebem tal rotulação. Trata-se de uma escritura midiatizada, articulada como elemento histórico no imaginário, que permeia as leituras mais recorrentes sobre música pop. Por isso, ao notar esse aspecto que tangencia percepções na temporalidade, é preciso buscar outro conceito de história (BENJAMIN, 2020BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. São Paulo: Alameda, 2020.), capaz de reivindicar lugares para as singularidades no pop global para além da homogeneização.

Ao aproximar categorias linguísticas e categorias históricas, com base no pensamento de Walter Benjamin, Giorgio Agamben (2017)AGAMBEN, G. Língua e história. In: AGAMBEN, G. A potência do pensamento: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 33-49. observa a transmissão dos nomes — e seus significados na cultura. Para o autor, o ser humano “só pode receber os nomes, que sempre o precedem, através da transmissão, o acesso a essa esfera fundamental da linguagem é mediada e condicionada pela história” (AGAMBEN, 2017AGAMBEN, G. Língua e história. In: AGAMBEN, G. A potência do pensamento: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 33-49., p. 35). A transmissão histórica do termo world music sugere que diferenças sejam categorizadas em um espaço semântico, limitando a amplitude sensorial das singularidades ali agrupadas. E, claro, como Agamben se baseia no pensamento de Benjamin (2020)BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. São Paulo: Alameda, 2020., essa transmissão à qual o autor se refere, que ocorre na historicidade, somente pode ser pensada como acúmulo de desigualdades. Não à toa, a world music fornece as condições para leituras exóticas e estabelece certa distância entre a modernidade associada à música pop e as percepções de regionalismos sempre vinculadas à rigidez das tradições. Sua aplicação sugere um sentido vago e pode classificar tanto um maracatu pernambucano como uma rumba congolesa e reduz a própria noção de música popular a poucos gêneros reconhecíveis pelos parâmetros globalizados da música pop.

Este trabalho, portanto, parte da seguinte questão: como diferenças do sul global forçam os limites do world music e abrem revisões da episteme da música pop, suas desigualdades e sua historicidade nas mídias? A partir da Semiótica da Cultura, de Iuri Lotman (1996)LOTMAN, I. La semiosfera I. Semiótica da cultura y del texto. Madri: Ediciones Frónesis Cátedra Universitat de Valencia, 1996., em especial, noções de semiosfera3 3 Segundo Lotman (1996), trata-se de um espaço semiótico e comunicacional em que os textos das culturas produzem sentidos. Em seus núcleos, as relações são mais estáveis e nas fronteiras ocorrem contatos com outras semiosferas, atualizações e novos sentidos. e fronteira cultural, os elementos sonoros fronteiriços serão pensados como relações radicais de diferença — tal como o campo popular se apresenta enquanto multiplicidades. O entendimento do movimento artístico que possibilita essas misturas, sua ética sonora, reúne noções sobre texto artístico e intertextualidade (KRISTEVA, 1980KRISTEVA, J. Desire in language: a semiotic approach to literature and art. New York: Columbia University Press, 1980.) e contribuições da crítica decolonial (MBEMBE, 2017MBEMBE, A. Crítica da razão negra. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2017.) — somadas a epistemologias do sul (SANTOS, 2018SANTOS, B. S. Construindo as epistemologias do Sul: antologia essencial. v. I. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Clacso, 2018.) — para encontrar os sentidos políticos da produção de diferenças que emerge de semióticas limítrofes. Para a observação empírica, a título de exemplos para reflexão, a análise semiótica aborda trabalhos de BCUC, Joe Strummer e M.I.A., que valorizam as fronteiras culturais e exigem um alargamento das percepções, em especial das leituras mais recorrentes sobre música pop. Mas, antes, é preciso apontar para as fragilidades do termo world music, notadamente suas funções de gênero musical e identidade musical globalizada.

World music como gênero fonográfico, narrativas e gramma ocidental

A experiência comunicacional da música pop nas mídias passa pelos regimes de reconhecimento e identificação centrados em parâmetros de endereçamento e consumo. Com a midiatização de produtos culturais ocorrida na consolidação dos mass media, notadamente durante a ascensão da cultura pop nas décadas de 1950 e 1960, os significados dos gêneros musicais ganharam força narrativa e se tornaram parâmetros para sociabilidades. Consumir rock ou samba é prática de construção e manutenção de identidades, expressa posições diante do mundo. Esse apresentar-se aos outros estabelece articulações no campo simbólico e sugere sociabilidades — pertencer a comunidades que se definem como território interno ao diferenciar-se das exterioridades. Embora não seja a discussão principal deste trabalho, compreender a dinâmica dos gêneros musicais como formas culturais, ou seja, que têm modos artísticos específicos, posteriormente apropriadas na escuta e no consumo, é decisivo para diferenciar o uso do termo world music da dinâmica dos gêneros. Para Felipe Trotta (2005, p. 187)______. Música e mercado: a força das classificações. Contemporânea, v. 3, n. 2, p. 181-195, jul./dez. 2005., apropriar-se e fruir (consumir) certo gênero é uma identificação cultural, pois “o reconhecimento psico-acústico de um determinado padrão rítmico previamente classificado fornece um ‘ambiente’ simbólico que determina a qualidade da experiência musical”. O world music não tem essa forma específica, mas tenta agrupar diferentes estéticas e sonoridades de regiões variadas — especialmente regionalidades do sul global.

O surgimento do termo world music resulta de uma série de fenômenos sociais. No início, a preocupação acadêmica da etnomusicologia (FELD, 2000FELD, S. A sweet lullaby for world music. Public Culture, v. 1, n. 12, p. 145-171, 2000.), entre as décadas de 1950 e 1960, de dar conta do não ocidental em seus estudos; depois, a necessidade de rotular certos movimentos artísticos, como a inclusão de uma categoria específica, em 1958, de melhor artista World Music, no Grammy Awards; já na década de 1960, a inusitada parceria dos Beatles com o músico indiano Ravi Shankar; por fim, o surgimento do festival WOMAD — fundado por Peter Gabriel, em 1980. Esses acontecimentos entram na lógica da circulação da música pop, organizada pelas indústrias midiáticas, como demanda de mercado (FRITH, 2000FRITH, S. The discourse of world music. In: BORN, G.; HESMONDHALGH, D. (ed.) Western music and its others: difference, representation, and appropriation in music. Berkeley: University of California Press, 2000. p. 305-322.), daí o uso do termo como gênero musical. Tratava-se de uma estratégia mercadológica de encontrar em um único local da loja de discos uma cumbia colombiana ou uma highlife de Gana. O que está em jogo no uso dessa nova categoria é a criação de uma identidade global para singularidades que representam intermináveis possibilidades sonoras, que deixam de ser lidas em sua especificidade para serem agrupadas num campo homogêneo do não ocidental. Pretende-se aqui propor um afastamento desse dispositivo mercadológico ou de leituras que celebram a diferença por meio de sua captura em um espaço de contenção de diferenças para lhe conferir uma identidade global. A crítica ao uso do termo world music deve se ocupar da força narrativa que o conceito adquire na memória midiática, em especial à qual experiência comunicacional ele diz respeito.

A história do pensamento ocidental não pode ser separada da constituição de categorias. A prática de nomear é parte de uma episteme que categoriza e exclui para estabelecer narrativas de origem e eventos fundantes. Não à toa, ocorrências como o Iluminismo e a Colonização espalharam ordens discursivas e significados que foram centrais para os jogos de disputa de poder. Trata-se de uma herança influente e profunda na produção de conhecimento e nas formas de representar o mundo, estendida ao fenômeno da globalização e sua aderência a um centro político, econômico e cultural. Ou seja, passa também por um nomear apoiado em certos signos, bem como por uma “verdade ou de significado primeiro” (DERRIDA, 2013DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2013., p. 23). Essas narrativas historicamente constituídas, portanto, refletem-se na produção musical, como “no descrédito da música popular frente à música de concerto” (CAMPESATO; IAZZETTA, 2019CAMPESATO, L.; IAZZETTA, F. Práticas locais, discursos universalizantes: relendo a música experimental. In: FIGUEIRÓ, C. Desobediência sonora: selos de música experimental e suas tecnologias de sustentabilidade. Salvador: EDUFBA, 2019. p. 15-72., p. 25) de matriz europeia, ou na ideia de bom gosto atribuída às formas operísticas (TROTTA, 2005______. Música e mercado: a força das classificações. Contemporânea, v. 3, n. 2, p. 181-195, jul./dez. 2005., p. 188). Com o tempo, outras disputas narrativas se formaram no ambiente midiático após a consolidação da indústria fonográfica, com reflexos específicos em territórios marcados por desigualdades econômicas históricas. São narrativas que inscrevem marcas simbólicas nos imaginários, nas quais gêneros musicais associados a determinadas classes sociais são narrados como revolucionários e protagonistas de grandes rompimentos semânticos — que remetem a um bom gosto seletivo —, como é o caso da bossa nova no Brasil e seu sentido amplamente compartilhado na memória midiática (VARGAS; BRUCK, 2017VARGAS, H.; BRUCK. M. S. Entre ruptura e retomada: crítica à memória dominante da bossa nova. Matrizes, v. 11, n. 3, p. 221-239, set./dez. 2017.). Acessar a memória midiática é adentrar um campo de relações desiguais, daí nosso objetivo de adentrar criticamente esse espaço para mostrar o sem fundo que suspende quaisquer imposições de fundamento (DELEUZE, 2018DELEUZE, G. Diferença e repetição. São Paulo: Paz e terra, 2018.).

Nos Estudos Culturais, a noção de hegemonia fornece importantes contribuições para a compreensão das construções narrativas nas mídias, presentes nas classificações da música pop. Stuart Hall (2003, p. 36)HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. lembra que a “globalização está ainda profundamente enraizada nas disparidades estruturais de riqueza e poder”, aspecto relacionado à visibilidade que algumas produções musicais recebem em detrimento de outras. O estatuto do termo world music passa por essas normas de reconhecimento, circulação e valoração legitimadas historicamente no pensamento ocidental e se impõem como logos4 4 Aqui, a menção ao termo logos foi retirada de seu uso no pensamento filosófico dos estoicos com o objetivo de estabelecer proximidade com a ideia de um princípio ou marca fundadora. nas representações midiáticas. Os gêneros musicais, por exemplo, fornecem leituras paradigmáticas, uma vez que “falamos em ‘baixo, guitarra e bateria’ e imediatamente pensamos na estética musical do rock” (TROTTA, 2008TROTTA, F. Gêneros musicais e sonoridade: construindo uma ferramenta de análise. Ícone, v. 10, n. 2, p. 1-12, 2008., p. 3). Há uma imagem sonora que se forma pelos regimes de identificação e reconhecimento, principais mediações que dão acesso à música pop. Por outro lado, confinar configurações radicalmente diferentes no rótulo world music funciona somente como estratégia mercadológica, pois abre mão de configurar uma forma cultural específica. Essa captura pelo mercado, no entanto, cria narrativas ao oferecer os gêneros musicais nascidos em territórios anglo-americanos como formas estéticas mais reconhecíveis, associadas à inovação e oferecidas à cultura jovem, enquanto a produção local do restante do mundo é lida como tradicional e exótica. Há uma economia de circulação e consumo que se impõe no âmbito global para estimular a produção de subjetividades vinculadas a experiências estéticas mais centralizadas no norte global. Esses regimes de signos5 5 Para Deleuze e Guattari (1995, p. 83), “cada regime de signos efetua a condição da linguagem”, para os autores, trata-se de um fenômeno que mobiliza relações incorpóreas e que detém certa circularidade. (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 2. São Paulo: Editora 34, 1995.), aderentes às representações institucionalizadas nas mídias, tendem a se manifestar em leituras do senso comum, nas formas cotidianas de fruição, oferecendo visões de mundo mais limitadas, que por vezes ressoam na academia.

Em seu estudo sobre as apropriações de sons das periferias globais por artistas6 6 O autor se refere aos samples usados pelo grupo francês Deep Forest, na faixa “Sweet lullaby”, e ao álbum Visible world, gravado pelo saxofonista norueguês Jan Garbarek, que usa canções populares de grupos pigmeus. ocidentais, Steven Feld (2000)FELD, S. A sweet lullaby for world music. Public Culture, v. 1, n. 12, p. 145-171, 2000. concentra sua crítica nos direitos autorais não pagos a artistas locais. Em diversos trechos, observa o local como algo pouco maleável, e parece admitir o world music como identidade global, embora critique sua celebração multiculturalista. Já a abordagem de John Connell e Chris Gibson (2004)CONNELL, J.; GIBSON, C. World music: deterritorializing place and identity. Progress in Human Geography, v. 28, n. 3, p. 342-361, 2004., ao notar as identidades desterritorializadas de artistas do sul global e sua tendência à hibridização, mantém a leitura do uso do world music como estratégia mercadológica ocidental, sem avançar no sentido de sua superação. Como a metafísica da presença, questionada por Jacques Derrida (2013)DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2013., que limita possibilidades mais diversas de significação e percepção da experiência, a forma genérica que caracteriza a música do mundo é ausente de referencial estético. É preciso pensar o world music como signo apaziguador que leva diferenças aos fluxos globais e, ao adquirir identidade aceita nos termos da globalização, reduz as tensões que lhes são inerentes. É preciso priorizar a singularidade expressa no som e sua carga histórica capaz de acionar revisões epistemológicas no processo de escuta musical, no lugar de aceitar um termo homogêneo que reduz potencialidades.

No campo dos estudos sociológicos mais preocupados com circulação e consumo, o world music aparece com frequência como fenômeno inerente à globalização (FRITH, 2000FRITH, S. The discourse of world music. In: BORN, G.; HESMONDHALGH, D. (ed.) Western music and its others: difference, representation, and appropriation in music. Berkeley: University of California Press, 2000. p. 305-322.), produto aderente às novas demandas dos mercados transnacionais. Nossa proposta segue outra frente: preocupamo-nos com a força de uma marcação que opera como significante nas mídias e oculta agenciamentos menores de fronteiras culturais (instrumentações, práticas culturais, performances, corpos, idiomas, maneira de lidar com os instrumentos etc.), e assim expõe as desigualdades narrativas da música pop para repensar sua função universal. E esse método de abordagem coloca o som como elemento central na produção e nas diferenças. Mesmo o conceito de híbrido tem sido usado para demarcar assimetrias, como considerar a assimilação dos gêneros globalizados por culturas locais como credencial para a aceitação global (REGEV, 2007REGEV, M. Rock aesthetics and musics of the world. In: CATEFORIS, T (ed.). The rock history reader. New York: Routledge, 2007. p. 303-308.) e assim reduzir a riqueza das trocas culturais da hibridização, uma vez que artistas do Ocidente buscam também referenciais em outros lugares. A contribuição da crítica decolonial ajuda a revisar esses enquadramentos, e aqui cabe recorrer à pertinente provocação da pesquisadora Gayatri Chakravorty Spivak (2010, p. 24)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010. sobre como o sujeito do sul global é “representado no discurso ocidental”. Nosso empenho, diante das categorias universais, portanto, é notar que o Ocidente não é o mundo, mas apenas parte dele (MBEMBE, 2017MBEMBE, A. Crítica da razão negra. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2017., p. 265). Em reflexão sobre a diáspora africana e seus desdobramentos nos processos de globalização, Stuart Hall (2003)HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. reconhece as representações vinculadas a um centro econômico, cultural e político que impõe padrões e oferece identidades — mcdonaldizacao ou nikezação —, mas observa também movimentos “que vagarosa e sutilmente estão descentrando os modelos ocidentais, levando a uma disseminação da diferença cultural em todo o globo” (HALL, 2003HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003., p. 45). Trata-se, sempre, de uma mão dupla de agenciamentos locais, embora certos regimes tendam a oferecer leituras desiguais.

A força do significante world music nas mídias tem aspecto semelhante à da história da escritura, nos termos tratados por Jacques Derrida (2013)DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2013., que tem seu fundamento assombrado ao deparar com gestos, fala, corpos e pensamento. O mesmo vale para a multiplicidade contida no termo world music: seus inúmeros timbres, instrumentação, idiomas locais etc. tendem a produzir desvios na significação. O significante, portanto, remete pelo menos “a uma coisa e a um som. A coisa é, nela mesma, um conjunto de coisas ou uma cadeia de diferenças ‘no espaço’” (DERRIDA, 2013DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2013., p. 114). A relação entre as identidades maiores usadas como marcadores da criação artística ocupa função similar, pois reforça reconhecimentos sempre deslocados por pequenas variações. Assim, a semiótica usada nesta análise percebe na intertextualidade inerente ao texto artístico a recorrência de relações dialógicas que ressoam em variados campos sem cessar. Para Julia Kristeva (1980, p. 65)KRISTEVA, J. Desire in language: a semiotic approach to literature and art. New York: Columbia University Press, 1980., o artista participa da história justamente ao “transgredir essa abstração [a dos significados fixos] através de um processo de leitura-escrita”, fator que abre o texto artístico, e, nessa lógica criativa, é que se posicionam as obras que serão analisadas mais adiante.

No campo da arte, intertextualidades e hibridizações com suas materialidades (timbres, performances corporais e instrumentação) oferecem relações sensoriais radicalmente abertas que dizem respeito às suas posições fronteiriças entre culturas — daí a aderência à imprevisibilidade semântica. São perfis artísticos que, na música aqui discutida, absorvem tradições locais e gêneros musicais globalizados para propor outras representações, por entremeios semióticos e culturais. Enquanto o gênero como forma cultural mais ou menos estável tem codificação dentro de possibilidades, a música de fronteiras culturais mais instáveis gera tensões na memória da música pop (VARGAS; CARVALHO, 2019______. Música de fronteira, música de memória: o experimentalismo de DJs pela Semiótica da Cultura. Galáxia, n. 41, p. 140-153, mai./ago. 2019.). A Semiótica da Cultura trabalhada por Iuri Lotman (1996)LOTMAN, I. La semiosfera I. Semiótica da cultura y del texto. Madri: Ediciones Frónesis Cátedra Universitat de Valencia, 1996. possibilita entender a dinâmica do uso de diferentes elementos sônicos como fenômeno artístico cujo modo de ser é o das instabilidades fronteiriças, e que, apesar de dialogar com os núcleos mais estáveis, tanto dos gêneros musicais globalizados como dos sons e ritmos de culturas locais, não se resolve em nenhum deles. Aqui, uma das principais regras do world music é anulada, o critério do vínculo exclusivamente local, uma vez que transita pelas fronteiras e limítrofes estéticos.

Assim, seria possível afirmar que a universalização sobre a qual a música pop está constituída demanda outro conceito histórico midiático? Walter Benjamin (2020, p. 225)BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. São Paulo: Alameda, 2020., certa vez, observou: “assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”. Podemos identificar na transmissão da cultura midiática, notadamente a da música pop nas mídias, desigualdades nos paradigmas de circulação e consumo? Há relações entre as narrativas da música pop e o cenário geopolítico das relações entre norte e sul? Com base no arcabouço teórico apresentado, buscamos caminhos para responder a essas questões por meio da análise semiótica de canções assinadas por M.I.A., Joe Strummer e Bantu Continua Uhuru Consciousness (BCUC).

Singularidades, diferenças e fronteiras semióticas

A cantora M.I.A., britânica de ascendência tâmil (Sri Lanka), assume em suas canções vertentes sonoras plurais, para além das padronizações. O que está em jogo no ethos da cantora, sua presença e agência inerente à obra, é um desencaixe em relação ao pop globalizado. No vídeo da faixa “Double bubble trouble”7 7 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=v9AKH16--VE>. Acesso em: 25 jan. 2020. , imagens mostram drones e câmeras, símbolos do progresso ocidental, seus dispositivos de vigilância e repressão, enquanto, em outra frente, elementos não ocidentais atravessam o aparato repressivo, são eles corpos, danças e roupas diasporizadas. Fabrício Silveira (2017)SILVEIRA, F. Música pop e guerra aérea. In: MELLO, J. G.; CONTER, M. B. A(na)rqueologias das mídias. Curitiba: Appris, 2017. p. 77-92. estabelece uma interessante diferenciação entre a obra de M.I.A. e a de divas pop como Madonna, Nicki Minaj, Lady Gaga, Beyoncé e Jennifer López, que para o autor são divas globais pelo fato de internacionalizarem a cultura anglo-americana — mesmo quando utilizam outras vertentes, o fazem nas mediações ocidentais dominantes. M.I.A. integra uma frente artística8 8 No mesmo texto, o autor se refere também ao grupo inglês The Clash e à banda colombiana Bomba Estereo — artistas que teriam perfil semelhante ao de M.I.A. que deseja refundar a música popular em outros termos, notadamente pela valorização de estéticas do sul global. Daí a necessidade de repensar a universalidade da música pop, suas limitações, diante das multiplicidades que compõem os fluxos da produção cultural popular.

M.I.A. é um rastro identitário aberto a diferentes agenciamentos culturais e subverte a função de gênero fonográfico do world music, pois, além das imagens contra-hegemônicas de seus videoclipes, a linguagem musical hibridizada de suas canções é construída com base em sampleamentos9 9 Uso do sampler, ferramenta que permite reutilizar trechos sonoros pré-gravados, que podem inclusive ser extraídos de fonogramas, programas de rádio e tevê e games. que simulam sons de instrumentos de culturas locais, fragmentos sônicos de um sul global em contra-ataque. Uma reflexão acerca das materialidades expressivas no projeto audiovisual Matahdatah scroll 01 broader than a border10 10 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=SJuFdkMOP20>. Acesso em: 25 jan. 2020. , composto pelas faixas “Swords” e “Warriors”, cujas imagens foram gravadas na Índia e na Costa do Marfim (respectivamente), revela não apenas as hibridizações geradas dos encontros entre sons (textos) locais e globais, mas também uma experiência comunicacional radicalmente aberta à alteridade. Ao mesclar sons locais a recursos de produção da música trap e do hip-hop, elementos não ocidentais na linguagem de seus videoclipes pop, a artista supera o enquadramento11 11 Algumas menções à obra da artista na web usam o termo world music para rotular de maneira homogênea a diversidade de seu trabalho que escapa às classificações de gênero fonográfico, como sua descrição na Wikipedia. world music. A semiótica da obra de M.I.A. é a das relações fronteiriças, uma vez que os gêneros musicais que aparecem em seu trabalho são atualizados por textos culturais de outras semiosferas, como sons de regiões asiáticas e africanas. Para Lotman (1996, p. 30)LOTMAN, I. La semiosfera I. Semiótica da cultura y del texto. Madri: Ediciones Frónesis Cátedra Universitat de Valencia, 1996., a semiótica dos espaços periféricos é organizada de “maneira menos rígida”. Essa abertura percebida no trabalho da cantora somente é possível porque os espaços periféricos estão distantes dos núcleos e suas formas mais rígidas. E a escolha de estar nas periferias semióticas e suas fronteiras culturais é, sobretudo, política.

O álbum Global a go-go (2001), segundo trabalho de estúdio da banda Joe Strummer & Mescaleros12 12 O grupo foi fundado por Joe Strummer (ex-Clash) em 1999, seu nome é inspirado em uma etnia indígena nativa da América Central. , é marcado por referências transcontinentais. No título do disco, a menção ao global enuncia proposta estética que traz ao contexto da música pop britânica outras matrizes sonoras, de regiões fora do Ocidente. A faixa “Bhindi bhangee”13 13 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bI7UCJN-mu8>. Acesso em: 25 jan. 2020. oferece essa fuga territorial e cultural de um contexto estável associado ao gênero rock — ou, numa leitura mais precisa, à identidade do rock britânico. O violino tocado por Tymon Dogg, por exemplo, utiliza escalas indianas geralmente executadas por violinistas locais14 14 A exemplo do trabalho do violinista Jayadevan. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wtxXhxrZcGo>. Acesso em: 25 jan. 2020. , cujo som desloca uma identidade exclusivamente inglesa do grupo. À proposta instrumental soma-se uma letra que celebra a diversidade cosmopolita de uma Londres atravessada por muitas culturas, num agenciamento decolonial que permite estabelecer “relações com o centro imperial” ocidental sem efetivamente ser parte dele (HALL, 2003HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003., p. 117). Trata-se de possibilitar uma situação de limite, mas um limite que possibilita um sentido de entremeio — para além de binarismos —, diferente das políticas de fechamento e de manutenção de identidade nacional — como o recente Brexit15 15 O Brexit, nome dado à saída do Reino Unido da União Europeia, ocorreu em janeiro de 2020. . É um enunciado de diferenciação no âmbito da linguagem diante da discursividade trabalhada nas representações midiáticas de subgêneros como o britpop e seus vínculos identitários com o ser britânico.

Aqui, a ideia proposta por Joe Strummer & Mescaleros não adere a um lugar oferecido pela historicidade da música pop nas mídias, mas articula diferenças e alteridade para além dos limites das comunidades musicais. Ou seja, se a identidade musical do rock britânico tem seu núcleo — suas regras de forma cultural, endereçamento e identidades estabelecidas, das quais participam públicos e indústrias midiáticas —, a obra dos Mescaleros, ao posicionar-se nas fronteiras culturais, força atualizações nos paradigmas de reconhecimento e identificação. O álbum Global a go-go tensiona a música pop justamente por colocar em xeque uma das funções do termo world music: a de rotular obras nascidas fora do Ocidente. A vivência singular16 16 Filho de pai diplomata, Joe viveu em diferentes regiões do sul global na infância e pré-adolescência, como Cairo e Cidade do México. de Joe Strummer é também agenciamento minoritário capaz de embaralhar classificações maiores, pois o músico nascido em Ancara (Turquia) e radicado em Londres integrou o The Clash e o movimento punk, mas ajudou a construir obras17 17 Lançado em 1980, o álbum Sandinista!, do Clash, representou um afastamento radical em relação à estética sonora do punk rock, movimento musical do qual o grupo fez parte, no final dos anos 1970. Sobre essa mudança semântica, conduzida por meio de fronteiras culturais, ver Autor 1 e Autor 2 (2017). hibridizadas que valorizam contatos com diferentes matrizes sonoras. Não à toa, Global a go-go recebeu críticas18 18 Hartley Goldstein escreveu uma resenha no site da revista Pitchfork sobre o disco Streetcore (2003), que sucede Global a go-go, e celebrou o fato de que “felizmente [Strummer e banda] evitam as armadilhas influenciadas pela world music”. Disponível em: <https://pitchfork.com/reviews/albums/7540-streetcore/>. Acesso em: 25 jan. 2020. na imprensa especializada, muitas delas com associação do disco ao exótico ou à vanguarda de difícil compreensão, como se Joe devesse trabalhar constantemente na manutenção de uma identidade roqueira, britânica e punk.

O grupo sul-africano Bantu Continua Uhuru Consciousness (BCUC) é inspirado pela filosofia bantu — que valoriza a oralidade e a ancestralidade (CUNHA JR, 2010CUNHA JR; H. NTU: Introdução ao pensamento filosófico Bantu. Educação em Debate, ano 32, v. 1, n. 59, p. 25-40, 2010.), uma noção de tempo e cultura radicalmente alargada. O trabalho do coletivo propõe instrumentação que consiste em uma potente combinação de percussão (congas, bumbos e outros), apitos indígenas, como o imbombu19 19 Instrumento de sopro, inspirado na trombeta narrada em trechos bíblicos. , e linhas de baixo que remetem à soul music e ao reggae. Em outra frente sonora, aparecem menções ao hip-hop e ao blues em uma configuração desterritorializada de letras anti-Apartheid e tradição de tambores regionais. Sobre o regime de segregação, o BCUC canta sobre uma herança de lutas e desigualdades que, no cenário atual de seu país20 20 Ver, por exemplo, a série de reportagens da Folha de S. Paulo sobre desigualdades globais. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=My0HlKZqyXc>. Acesso em: 29 jan. 2020. , ganha novos contornos. As faixas “Yinde indlela” e “In my blues”, do álbum Our truth (2016)21 21 Disponível em: <https://open.spotify.com/artist/5CGnQOjeOoZW4a4FoPhUxW/discography/all?pageUri=spotify:album:2mxtmcQNiEczuP1trMkKg5>. Acesso em: 25 jan. 2020. , lançado pela gravadora francesa Nyami Nyami Records, exibem uma forma sonora que desliza sentidos para diferentes pontos de fuga dos regimes midiáticos, o que não pode ser considerado uma origem ou representação final de significado, uma classificação de mercado, mas um ponto de contato que viabiliza hibridizações entre instrumentação local, timbres e ritmos regionais e referências de música pop. Assim, ao propor essas misturas, o BCUC questiona a circularidade do signo que marca a leitura dos gêneros musicais mais centrados em grandes categorias globais — a exemplo da função exercida pela world music. Durante show22 22 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wXoGLlcXKdo>. Acesso em: 25 jan. 2020. realizado no festival Glastonbury 2019, o grupo levou sua hibridez de forte traço local para um ambiente em que a música pop é oferecida em seus formatos mais reconhecíveis e estáveis nos imaginários midiáticos, presença que força atualizações nesses núcleos, semelhante à descrição de Lotman (1996)LOTMAN, I. La semiosfera I. Semiótica da cultura y del texto. Madri: Ediciones Frónesis Cátedra Universitat de Valencia, 1996. sobre a função das fronteiras nas semioses que traduzem diferenças externas nas semiosferas.

O limiar indicado, no âmbito da circulação da música nas mídias, é o deslocamento do sentido do termo world music, sua tentativa de homogeneização como escritura de origem. Esses artistas articulam um contraponto aos sentidos majoritários e não se posicionam em um campo semântico específico, mas dão expressão a diversidades, desconstruindo o world music com fronteiras culturais borradas23 23 Alguns artistas assumem posturas mais vinculadas a culturas locais ou a tradições, aspecto usado pelos estereótipos que os encerram em termos como world music, música étnica ou artista tribal. Mesmo obras mais hibridizadas e com fortes traços de gêneros musicais globalizados, muitas vezes, acabam sendo rotuladas nesse termo genérico. . Para além de operar dentro dos parâmetros alinhados às noções majoritárias que organizam a música nas mídias, as obras de M.I.A., Joe Strummer e BCUC colocam radicalmente em questão a universalidade das classificações mercadológicas, ao demonstrarem pelo som a “força de um certo lado de fora” (DERRIDA, 2001______. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001., p. 93), que indica mudanças de posições — ou que um fenômeno indica que certas leituras devem ser repensadas em outros termos. Nesse sentido, a arte aqui analisada emerge de polifonias, uma espécie de entre, que Julia Kristeva (1980, p. 139)KRISTEVA, J. Desire in language: a semiotic approach to literature and art. New York: Columbia University Press, 1980. chama de intermediário permanente de uma identidade para outras. BCUC, nascido em território africano e portador de traços culturais locais, indígenas, está aberto às misturas com gêneros musicais globais. Joe Strummer sugere uma indeterminação identitária (um espaço semiótico borrado) ao oscilar entre o punk, o rock britânico e referências caribenhas e de outras regiões do sul global. Já M.I.A., radicada em solo britânico, exibe suas marcas diasporizadas e perfis artísticos que, por estéticas do sul, questionam as grandes narrativas da música pop — por isso não pode ser considerada uma diva nos moldes de Beyoncé ou Madonna. Cada qual à sua maneira, os artistas citados produzem significados hibridizados, borrados e decolonizantes — pois o norte global não é mais o centro, mas uma parte a ser considerada como busca de referenciais.

As narrativas midiáticas maiores, marcadas por identificações mercadológicas que valorizam um centro econômico, cultural e político, tendem a produzir subjetividades e identidades globais voltadas para o norte global. Mas, com a intensificação dos fluxos comunicacionais, há cada vez mais brechas para agenciamentos menores forçarem reconfigurações nas percepções sobre a produção musical nas mídias. Por isso, tal enfrentamento é também de ordem epistêmica, pois reconfigura a experiência comunicacional e nossas relações com a memória midiática. Mas não apenas isso, uma vez que os artistas citados representam outras possibilidades sonoras, ampliam também visões acerca do mundo, das culturas e das existências para além da razão instrumental de um pop ocidental oferecido como etiqueta da globalização. A escuta das obras analisadas questiona, assim, o saber sobre o que constitui a leitura da música nas mídias e sugere um desaprender à luz da ecologia proposta por Boaventura de Sousa Santos (2018, p. 223)SANTOS, B. S. Construindo as epistemologias do Sul: antologia essencial. v. I. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Clacso, 2018., que reivindica outra episteme, cujo mobilizador das modificações é o sul. Tal mudança, no entanto, é levada a uma rearticulação sensorial por influência de ambientes midiáticos, por narrativas menores que coincidem com outra historicidade — o som, portanto, opera como diferenciações nos paradigmas das mídias, como a imagem dialética trabalhada por Walter Benjamin (2020)BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. São Paulo: Alameda, 2020. e sua relação com a história. Em reflexão semelhante, Giorgio Agamben (2017, p. 36) observa que história e gramática coincidem com a nossa condição histórica. Para o autor, caberia encontrar palavras e imagens inauditas, um devir capaz de mudar a herança do vivido até aqui — em diálogo com o pensamento benjaminiano. Evitar reduções a termos genéricos, apaziguadores, e valorizar a experiência comunicacional do som em si abre caminho para tarefa semelhante, um experimento que suspende as mediações dominantes na historicidade para uma compreensão mais complexa sobre a circulação das culturas, bem como a percepção de certa seletividade que, por vezes, tenta reduzir suas aparições.

Considerações finais

O presente artigo sugeriu uma revisão crítica do termo world music, seu uso como gênero musical e identidade global imaginada nos moldes da captura do outro pelo ocidente. O objetivo foi também notar como singularidades são reduzidas nas desigualdades entre norte e sul globais. O world music mostra-se como elemento histórico e escritura (BENJAMIN, 2020BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. São Paulo: Alameda, 2020.; DERRIDA, 2013DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2013.), herança epistêmica do pensamento ocidental, como parte de uma lógica de produção de subjetivação coletiva (na mídia, publicidade, indústria da música etc.) e seus modelos subjetivos (LAZZARATO, 2014LAZZARATO, M. Signos, máquinas e subjetividades. São Paulo: N1 Edições, 2014.). Por esse motivo, a análise semiótica de M.I.A. e BCUC se centrou em sons, corpos e instrumentos, agenciamentos menores, para além dos regimes de identificação da música pop nas mídias, com contribuições pós-estruturalistas e decoloniais.

A leitura eurocêntrica de produções emergentes de certos locais representa barreiras para experiências comunicacionais de alteridade. Mas os espaços semióticos entre as fronteiras culturais (LOTMAN, 1996LOTMAN, I. La semiosfera I. Semiótica da cultura y del texto. Madri: Ediciones Frónesis Cátedra Universitat de Valencia, 1996.) borram os limites semânticos impostos e anulam o significante, pois demandam um deslocamento das representações imaginadas. O resultado sônico é a imagem dialética de Walter Benjamin (2020)BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. São Paulo: Alameda, 2020. que questiona as leituras majoritárias. Esse tangenciar pela diferença é sensorial e estimula a produção de outras subjetividades.

Somente com uma superação das delimitações que autorizam ou não o pertencimento à música pop contemporânea é que as singularidades poderão ser efetivamente experimentadas — e a circulação da música é apenas uma frente entre as mudanças necessárias no âmbito dos processos comunicacionais e das relações sociais de nosso tempo. Se a música pop tem como pretensão ser uma categoria universal, é preciso que nela exista lugar para essas produções de fronteiras semióticas e entremeios culturais. A resposta que buscamos aqui é menos a reivindicação de uma nova classificação do que a anulação da captura dos regimes semânticos.

  • 1
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zLBvw50QQ7M>. Acesso em: 22 dez. 2019.
  • 2
    Como exemplo, ver depoimento da cantora beninense Angélique Kidjo. Disponível em: <https://newint.org/columns/finally/2014/04/01/angelique-kidjo-interview>. Acesso em: 24 jan. 2020.
  • 3
    Segundo Lotman (1996)LOTMAN, I. La semiosfera I. Semiótica da cultura y del texto. Madri: Ediciones Frónesis Cátedra Universitat de Valencia, 1996., trata-se de um espaço semiótico e comunicacional em que os textos das culturas produzem sentidos. Em seus núcleos, as relações são mais estáveis e nas fronteiras ocorrem contatos com outras semiosferas, atualizações e novos sentidos.
  • 4
    Aqui, a menção ao termo logos foi retirada de seu uso no pensamento filosófico dos estoicos com o objetivo de estabelecer proximidade com a ideia de um princípio ou marca fundadora.
  • 5
    Para Deleuze e Guattari (1995, p. 83)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 2. São Paulo: Editora 34, 1995., “cada regime de signos efetua a condição da linguagem”, para os autores, trata-se de um fenômeno que mobiliza relações incorpóreas e que detém certa circularidade.
  • 6
    O autor se refere aos samples usados pelo grupo francês Deep Forest, na faixa “Sweet lullaby”, e ao álbum Visible world, gravado pelo saxofonista norueguês Jan Garbarek, que usa canções populares de grupos pigmeus.
  • 7
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=v9AKH16--VE>. Acesso em: 25 jan. 2020.
  • 8
    No mesmo texto, o autor se refere também ao grupo inglês The Clash e à banda colombiana Bomba Estereo — artistas que teriam perfil semelhante ao de M.I.A.
  • 9
    Uso do sampler, ferramenta que permite reutilizar trechos sonoros pré-gravados, que podem inclusive ser extraídos de fonogramas, programas de rádio e tevê e games.
  • 10
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=SJuFdkMOP20>. Acesso em: 25 jan. 2020.
  • 11
    Algumas menções à obra da artista na web usam o termo world music para rotular de maneira homogênea a diversidade de seu trabalho que escapa às classificações de gênero fonográfico, como sua descrição na Wikipedia.
  • 12
    O grupo foi fundado por Joe Strummer (ex-Clash) em 1999, seu nome é inspirado em uma etnia indígena nativa da América Central.
  • 13
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bI7UCJN-mu8>. Acesso em: 25 jan. 2020.
  • 14
    A exemplo do trabalho do violinista Jayadevan. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wtxXhxrZcGo>. Acesso em: 25 jan. 2020.
  • 15
    O Brexit, nome dado à saída do Reino Unido da União Europeia, ocorreu em janeiro de 2020.
  • 16
    Filho de pai diplomata, Joe viveu em diferentes regiões do sul global na infância e pré-adolescência, como Cairo e Cidade do México.
  • 17
    Lançado em 1980, o álbum Sandinista!, do Clash, representou um afastamento radical em relação à estética sonora do punk rock, movimento musical do qual o grupo fez parte, no final dos anos 1970. Sobre essa mudança semântica, conduzida por meio de fronteiras culturais, ver Autor 1 e Autor 2 (2017).
  • 18
    Hartley Goldstein escreveu uma resenha no site da revista Pitchfork sobre o disco Streetcore (2003), que sucede Global a go-go, e celebrou o fato de que “felizmente [Strummer e banda] evitam as armadilhas influenciadas pela world music”. Disponível em: <https://pitchfork.com/reviews/albums/7540-streetcore/>. Acesso em: 25 jan. 2020.
  • 19
    Instrumento de sopro, inspirado na trombeta narrada em trechos bíblicos.
  • 20
    Ver, por exemplo, a série de reportagens da Folha de S. Paulo sobre desigualdades globais. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=My0HlKZqyXc>. Acesso em: 29 jan. 2020.
  • 21
  • 22
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wXoGLlcXKdo>. Acesso em: 25 jan. 2020.
  • 23
    Alguns artistas assumem posturas mais vinculadas a culturas locais ou a tradições, aspecto usado pelos estereótipos que os encerram em termos como world music, música étnica ou artista tribal. Mesmo obras mais hibridizadas e com fortes traços de gêneros musicais globalizados, muitas vezes, acabam sendo rotuladas nesse termo genérico.

Referências

  • AGAMBEN, G. Língua e história. In: AGAMBEN, G. A potência do pensamento: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 33-49.
  • BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história São Paulo: Alameda, 2020.
  • CAMPESATO, L.; IAZZETTA, F. Práticas locais, discursos universalizantes: relendo a música experimental. In: FIGUEIRÓ, C. Desobediência sonora: selos de música experimental e suas tecnologias de sustentabilidade. Salvador: EDUFBA, 2019. p. 15-72.
  • CONNELL, J.; GIBSON, C. World music: deterritorializing place and identity. Progress in Human Geography, v. 28, n. 3, p. 342-361, 2004.
  • CUNHA JR; H. NTU: Introdução ao pensamento filosófico Bantu. Educação em Debate, ano 32, v. 1, n. 59, p. 25-40, 2010.
  • DELEUZE, G. Diferença e repetição São Paulo: Paz e terra, 2018.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 2. São Paulo: Editora 34, 1995.
  • DERRIDA, J. Gramatologia São Paulo: Perspectiva, 2013.
  • ______. Posições Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
  • FELD, S. A sweet lullaby for world music. Public Culture, v. 1, n. 12, p. 145-171, 2000.
  • FRITH, S. The discourse of world music. In: BORN, G.; HESMONDHALGH, D. (ed.) Western music and its others: difference, representation, and appropriation in music. Berkeley: University of California Press, 2000. p. 305-322.
  • HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
  • KRISTEVA, J. Desire in language: a semiotic approach to literature and art. New York: Columbia University Press, 1980.
  • LAZZARATO, M. Signos, máquinas e subjetividades São Paulo: N1 Edições, 2014.
  • LOTMAN, I. La semiosfera I Semiótica da cultura y del texto. Madri: Ediciones Frónesis Cátedra Universitat de Valencia, 1996.
  • MBEMBE, A. Crítica da razão negra 2. ed. Lisboa: Antígona, 2017.
  • REGEV, M. Rock aesthetics and musics of the world. In: CATEFORIS, T (ed.). The rock history reader New York: Routledge, 2007. p. 303-308.
  • SANTOS, B. S. Construindo as epistemologias do Sul: antologia essencial. v. I. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Clacso, 2018.
  • SILVEIRA, F. Música pop e guerra aérea. In: MELLO, J. G.; CONTER, M. B. A(na)rqueologias das mídias Curitiba: Appris, 2017. p. 77-92.
  • SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
  • TROTTA, F. Gêneros musicais e sonoridade: construindo uma ferramenta de análise. Ícone, v. 10, n. 2, p. 1-12, 2008.
  • ______. Música e mercado: a força das classificações. Contemporânea, v. 3, n. 2, p. 181-195, jul./dez. 2005.
  • VARGAS, H.; BRUCK. M. S. Entre ruptura e retomada: crítica à memória dominante da bossa nova. Matrizes, v. 11, n. 3, p. 221-239, set./dez. 2017.
  • VARGAS, H.; CARVALHO, N. C. O álbum Sandinista!: agenciamentos e fronteiras musicais do grupo The Clash. Contemporânea, v. 15, n. 2, p. 511-525, maio/ago. 2017.
  • ______. Música de fronteira, música de memória: o experimentalismo de DJs pela Semiótica da Cultura. Galáxia, n. 41, p. 140-153, mai./ago. 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2022
  • Aceito
    01 Ago 2022
Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica - PUC-SP Rua Ministro Godoi, 969, 4º andar, sala 4A8, 05015-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3670 8146 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: aidarprado@gmail.com