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Impedimento na Cultura

Impediment in culture

MOREIRA, R.; SPADA, L.. O fim do Ministério da Cultura. : reflexões sobre as políticas públicas culturais na era pós-MinC. Santos, SP: Imaginário Coletivo, 2021. 270 p.

Resumo

No dia 1º de janeiro de 2019, dia da posse do presidente Jair Bolsonaro, foi publicada no Diário Oficial da União uma medida provisória que impactaria diretamente artistas, produtores culturais e pesquisadores da área da cultura do país. A MP instituiu a extinção do Ministério da Cultura, o seu rebaixamento de status à Secretaria Especial de Cultura, vinculada, primeiramente, ao Ministério da Cidadania e, posteriormente, ao Ministério do Turismo. Existente há 37 anos, o Ministério da Cultura figurou no período de redemocratização do país, findo o Regime Militar, quando também foi instituída a nova Constituição, em 1988, considerada a Constituição Cidadã. Foi para refletir sobre o impacto que a extinção do MinC teve para o setor cultural que o doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Rafael Moreira, e o jornalista e ator, Lincoln Spada, que também possui experiência em gestão cultural em cidades do interior de São Paulo, decidiram escrever o livro O fim do Ministério da Cultura: reflexões sobre as políticas culturais na era pós-MinC, publicado em 2021 pela editora Imaginário Coletivo (Santos, São Paulo) e aqui resenhado. Além de contextualizar a criação e extinção do Ministério da Cultura, o livro é constituído por entrevistas com artistas, pesquisadores, produtores e gestores culturais, e um ex-ministro da Cultura, que falam sobre o papel do MinC na construção de políticas públicas para o setor.

Palavras-Chave
Ministério da Cultura; extinção; política; cultura

Abstract

On the 1st January of 2019, the day when Jair Bolsonaro assumed the presidency of Brazil, it was published in the Federal Register a provisional measure which impacted Brazilian artists, cultural producers, and cultural researchers, because it caused the extinction of the Culture Ministry. Transformed into a Special Bureau subordinated, first, to the Citizenship Ministry and, later, to the Tourism Ministry, the Culture Ministry existed for 37 years. It was created in the democratization period of Brazil, after the Military Regime, when the new Constitution, from 1988, was created and was considered the Citizenship Constitution. To reflect about the impact caused by the extinction of Culture Ministry for the cultural sector, the PhD and master in Policy Science, by São Paulo University, Rafael Moreira, and the journalist and actor, Lincoln Spada, who has experience in cultural management in cities from the state of São Paulo, decided to write the book The end of Culture Ministry: reflections about cultural policy in the post-MinC age, published in 2021 by Imaginário Coletivo publisher (Santos, São Paulo), and reviewed here. Besides making a saying about the creation and the extinction of Culture Ministry, the book presents interviews with artists, researchers, producers, cultural managers, and with an ex-culture minister, who reflect about the play of MinC in the construction of public policy for the cultural sector.

Keywords
Culture Ministry; extinction; policy; culture

Dentre tantas mudanças drásticas e arbitrárias promovidas pelo governo de Jair Bolsonaro (Partido Liberal) logo no início de sua gestão à frente do Executivo, uma delas trouxe consequências diretas para os artistas e produtores culturais do país: o fim do Ministério da Cultura.

Instituído no dia 15 de março de 1985 pelo Decreto número 91.144, dia da posse do presidente José Sarney (PMDB), o Ministério da Cultura (MinC) foi fruto da reconquista da democracia, findo o Regime Militar, em que novas estruturas e estratégias de governo foram criadas. Exemplo disso foi a Constituição Federal de 1988, considerada a “Constituição Cidadã”, que defendeu, por exemplo, pela primeira vez, direitos e interesses das populações indígenas; que estabeleceu parâmetros de defesa do meio ambiente e de defesa dos direitos dos trabalhadores (LENZA, 2013LENZA, P. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2013.), entre outros aspectos que lhe conferem tom democrático.

Um dos primeiros e importantes ministros da Cultura foi o economista Celso Furtado, que esteve no cargo de 1986 até 1988, durante o governo de Sarney. Foi ele quem criou a Lei número 7.505, conhecida como Lei Sarney, que, anos depois, em 1991, durante o governo de Fernando Collor de Mello (PRN), seria reformulada e receberia o nome de Lei Rouanet, pioneira na criação de uma legislação de incentivos fiscais à cultura1 1 Com a Lei Rouanet, surgiram três formas possíveis de incentivo à cultura no país: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e o Incentivo a Projetos Culturais por meio da renúncia fiscal (mecenato) (MOREIRA; SPADA, 2021). , e foi transformada, durante o governo Bolsonaro, em Lei Federal de Incentivo à Cultura2 2 Bolsonaro reduziu em 98% o valor máximo para projetos beneficiados pela Lei de Incentivo à Cultura, de R$60 milhões para R$1 milhão. A justificativa foi a de democratizar e distribuir os recursos de patrocínio. .

Para Furtado, a autonomia da cultura possibilitaria a adoção de uma política cultural que seria estratégica e estruturadora para o desenvolvimento do país e romperia com sua dependência cultural em relação a países europeus, estabelecida em consequência da dinâmica colonial que constituiu o país. Para ele, o papel do Estado não era o de produzir cultura, mas de apoiar iniciativas autônomas da sociedade.

Durante a gestão do cientista político Francisco Weffort, que foi o mandatário mais longevo no MinC de maneira ininterrupta, durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), de 1995 a 2002, a cultura foi considerada em seu vínculo com o consumo de bens e formação de um mercado. Não à toa, a publicação mais impactante de sua gestão foi a brochura intitulada Cultura é um bom negócio (1995). Em suas palavras: “[...] hoje é impossível deixar de reconhecer a relevância do mercado no campo da cultura, assim como a da cultura na economia” (WEFFORT, 2000, in MOREIRA; SPADA, 2021MOREIRA, R.; SPADA, L. O fim do Ministério da Cultura: reflexões sobre as políticas públicas culturais na era pós-MinC. Santos, SP: Imaginário Coletivo, 2021., p. 35).

Em 2003, tivemos outro destaque no MinC: o músico e compositor baiano Gilberto Gil, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) (2003-2007). Pela primeira vez, um artista assumia o cargo de ministro da Cultura. Tendo como secretário executivo Juca Ferreira, que, posteriormente, assumiu o cargo de ministro da Cultura durante o segundo mandato de Lula e durante o segundo mandato de Dilma Rousseff (PT), Gil esteve à frente da implantação de importantes políticas públicas para o setor, que seriam apropriadas por países da América Latina e se instalariam em países da Europa. Foram elas: o Programa Cultura Viva, que apoiou a produção cultural de base comunitária; o Programa Mais Cultura, com investimentos na infraestrutura do setor, visando promover um aumento no acesso a equipamentos e serviços de cultura; e o Plano Nacional da Cultura (Lei n. 12.343/2010), que serviu como marco regulatório para as políticas do setor.

Durante o governo Lula, a cultura faria parte, pela primeira vez, de acordos multilaterais, como os do MERCOSUL, por exemplo, que, até então, havia assumido caráter exclusivamente econômico e social. Também, internacionalmente, foi histórico o patamar a que foi elevada a imagem da cultura quando o ministro Gilberto Gil fez a assembleia da Organização das Nações Unidas, em Nova York (EUA), romper com a formalidade em show realizado por ele, que contou com o secretário-geral da ONU da época, o ganês Kofi Annan, tocando atabaque. A apresentação homenageou as vítimas de um ataque ao prédio das Nações Unidas em Bagdá (Iraque), em que o Alto Comissário para Direitos Humanos da ONU, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, veio a falecer. Durante a cerimônia, Annan declarou: “Já tivemos muito luto nessa casa. Agora é tempo de seguir adiante. Sérgio não gostaria de nos ver tristes” (CARDOSO, 2003CARDOSO, C. Gil faz show nas Nações Unidas em homenagem a Vieira de Mello. Folha de S. Paulo, 20 set. 2003. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2009200331.htm>. Acesso em: 10 jul. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustr...
). A alegria da música lavou a tristeza provocada pelo acontecimento intempestivo.

Para Gil, o MinC deveria ser “como uma luz que revela, no passado e no presente, as coisas e os signos que fizeram e fazem, do Brasil, o Brasil”. Em 2021, em entrevista concedida a Rafael Moreira e Lincoln Spada, o ex-ministro da Cultura, Juca Ferreira, declarou que “O Brasil está vivendo um eclipse cultural e o Sol vai voltar a brilhar em algum momento” (MOREIRA; SPADA, 2021MOREIRA, R.; SPADA, L. O fim do Ministério da Cultura: reflexões sobre as políticas públicas culturais na era pós-MinC. Santos, SP: Imaginário Coletivo, 2021., p. 238). A extinção do MinC provocou esse obscurecimento.

O Ministério da Cultura já havia sofrido duas ameaças anteriores de extinção: a primeira foi durante o governo de Fernando Collor, que publicou uma série de medidas provisórias que o rebaixaram à condição de Secretaria Especial vinculada diretamente à presidência da República, condição que foi revertida com o seu impeachment. A segunda breve extinção ocorreu no governo de Michel Temer (PMDB), que o incorporou ao Ministério da Educação, por meio da MP 726, no dia 12 de maio de 2016, medida que foi revertida nove dias depois, em decorrência de pressões do setor cultural.

Mas foi no dia 1º de janeiro de 2019 que o MinC sofreu um impedimento maior. No primeiro dia do mandato de Bolsonaro, foi publicada a MP número 870, que rebaixou o status do Ministério ao de Secretaria Especial da Cultura, alocada dentro do Ministério da Cidadania e, meses depois, subordinada ao Ministério do Turismo. Desde então, além de perder autonomia, a pasta da cultura sofreu instabilidades em sua gestão. De 2019 até agora, seis pessoas já passaram pelo cargo máximo da Secretaria Especial da Cultura. Foram eles: Henrique Pires, que saiu após acusar o governo de tentativa de censura a um edital ligado à temática LGBTQIA+; José Paulo Martins; Ricardo Braga, titular por apenas dois meses; Roberto Alvim, afastado depois de fazer um discurso inspirado em Joseph Goebbels, o ministro alemão da propaganda nazista; Regina Duarte, afastada depois de interromper uma entrevista ao vivo para o canal CNN Brasil, após minimizar a ditadura militar no Brasil; e o ex-ator global Mário Frias.

A Secretaria Especial de Cultura conta, atualmente, com seis secretarias internas. São elas: Secretaria do Audiovisual (SAv), Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual (SDAPI), Secretaria da Diversidade Cultural (SDC), Secretaria da Economia Criativa (SEC), Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic) e Secretaria de Difusão e Infraestrutura Cultural (Seinfra). Além das secretarias internas, o setor cultural pertencente ao Ministério do Turismo é composto por três autarquias e quatro fundações: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Agência Nacional do Cinema (Ancine), Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), Fundação Cultural Palmares (FCP), Fundação Nacional de Artes (Funarte), e Fundação Biblioteca Nacional (FBN).

Já sem estrutura adequada, durante a pandemia de covid-19, que teve início em março de 2020 e perdura até os dias de hoje, a classe artística e os produtores e pesquisadores do setor cultural contaram com um respiro: a Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020, conhecida como Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural, que previu o pagamento de auxílio a artistas, produtores, técnicos e espaços culturais, que se viram impedidos de exercerem seus trabalhos em decorrência dos confinamentos. No dia 5 de julho de 2022, o Congresso Nacional derrubou os vetos presidenciais à Lei Paulo Gustavo3 3 A Lei homenageia o ator Paulo Gustavo, que faleceu no dia 4 de maio de 2021 em decorrência de infecção pelo vírus SARS-CoV-2. , que prevê o repasse de R$3,8 bilhões para ações emergenciais para o setor cultural em todo o país. Pela proposta, os recursos virão do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura (FNC) (BRANDÃO, 2022BRANDÃO, M. Congresso derruba veto às leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo: acordo permitiu que duas legislações possam ser promulgadas. Agência Brasil. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2022-07/congresso-derruba-veto-leis-aldir-blanc-e-paulo-gustavo>. Acesso em: 11 jul. 2022.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/politic...
).

Foi considerando o impacto que a extinção do MinC teve para o setor cultural que o doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Rafael Moreira, e o jornalista e ator, Lincoln Spada, que também possui experiência em gestão cultural em cidades do interior de São Paulo, decidiram escrever o livro O fim do Ministério da Cultura: reflexões sobre as políticas culturais na era pós-MinC, publicado em 2021 pela editora Imaginário Coletivo (Santos, São Paulo).

Além de contextualizar a criação e extinção do MinC, desde o início da Nova República (1985), período de redemocratização do país, até os dias de hoje, momento em que vivemos sob o governo de Jair Bolsonaro (Partido Liberal), o livro é constituído por entrevistas com dez personalidades que atuam no setor cultural entre os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. São eles: Mateus Sartori, que foi secretário de cultura e turismo por oito anos em Mogi das Cruzes (SP); Antônia Regina Moura, pesquisadora, documentarista e produtora cultural na área do fandango caiçara; Claudinei Roberto da Silva, professor de arte, artista visual e curador, com produções voltadas para a cultura afro-brasileira; Luciara Ribeiro, curadora, pesquisadora e educadora; José Virgílio Leal, produtor cultural que esteve à frente de um Ponto de Cultura em uma região de vulnerabilidade social da cidade de Santos (SP); Mestra Joana D’arc, artista popular, música, mestra de Maracatu de Recife (PE); João Brant, consultor em políticas de comunicação e cultura e que foi secretário executivo do Ministério da Cultura durante o governo de Dilma Rousseff (PT); Gilma Rossafa, assistente social, ex-gestora do Centro de Artes e Esportes Unificados Camila da Silva Rossafa, em Osasco (SP); Bárbara Rodarte, produtora cultural, com experiência em gestão cultural; e Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura no governo de Lula (PT) e de Dilma Roussef (PT).

O fim do Ministério da Cultura: reflexões sobre as políticas culturais na era pós- MinC é uma contribuição para o debate público sobre políticas culturais no país. Espera-se que o impedimento de continuidade das políticas culturais seja, de fato, temporário, como um eclipse, imagem criada por Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura, durante entrevista concedida para este livro. “O sol há de brilhar mais uma vez4 4 Referência à música “Juízo final” (1973), de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares. ”.

  • 1
    Com a Lei Rouanet, surgiram três formas possíveis de incentivo à cultura no país: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e o Incentivo a Projetos Culturais por meio da renúncia fiscal (mecenato) (MOREIRA; SPADA, 2021MOREIRA, R.; SPADA, L. O fim do Ministério da Cultura: reflexões sobre as políticas públicas culturais na era pós-MinC. Santos, SP: Imaginário Coletivo, 2021.).
  • 2
    Bolsonaro reduziu em 98% o valor máximo para projetos beneficiados pela Lei de Incentivo à Cultura, de R$60 milhões para R$1 milhão. A justificativa foi a de democratizar e distribuir os recursos de patrocínio.
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    A Lei homenageia o ator Paulo Gustavo, que faleceu no dia 4 de maio de 2021 em decorrência de infecção pelo vírus SARS-CoV-2.
  • 4
    Referência à música “Juízo final” (1973), de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares.

Referências

  • BRANDÃO, M. Congresso derruba veto às leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo: acordo permitiu que duas legislações possam ser promulgadas. Agência Brasil Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2022-07/congresso-derruba-veto-leis-aldir-blanc-e-paulo-gustavo>. Acesso em: 11 jul. 2022.
    » https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2022-07/congresso-derruba-veto-leis-aldir-blanc-e-paulo-gustavo
  • CARDOSO, C. Gil faz show nas Nações Unidas em homenagem a Vieira de Mello. Folha de S. Paulo, 20 set. 2003. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2009200331.htm>. Acesso em: 10 jul. 2022.
    » https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2009200331.htm
  • LENZA, P. Direito constitucional esquematizado São Paulo: Saraiva, 2013.
  • MOREIRA, R.; SPADA, L. O fim do Ministério da Cultura: reflexões sobre as políticas públicas culturais na era pós-MinC. Santos, SP: Imaginário Coletivo, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2022
  • Aceito
    25 Jul 2022
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