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A gestão da noite urbana carioca: entre discursos sobre ordem urbana e práticas socioeconômicas

Urban Night Policies in Rio de Janeiro: between discourses of urban order and socio-economic practices

Resumos

Este artigo trata de alguns apontamentos sobre a noite urbana da cidade do Rio de Janeiro nos últimos trinta anos. Neste sentido, procuramos discutir a ideia de noite urbana e economia noturna a partir da análise de planos, projetos e programas que de alguma maneira tentaram lidar com o problema da vida noturna. Os resultados preliminares apontam para a concentração do interesse sobre a vida noturna nos centros urbanos, seja a partir do olhar dos cientistas sociais, seja através das medidas de planejamento local. Isto coloca a necessidade de uma visão decentralizada da noite urbana, especialmente no que se refere às formas de uso dos espaços públicos durante a noite, algo relegado a um papel secundário nas perspectivas atuais sobre o fenômeno urbano.

economia noturna; política urbana; projeto urbano


This article deals with some concerns about the Rio de Janeiro’s urban nightlife in the last thirty years. In that way, we discuss the idea of urban night and nighttime-economy through urban plans, projects and policies. Preliminary conclusions points out that planners and social scientists are overthinking about urban centers when they are looking for nightlife activities. So we propose a decentered view about urban night. It is especially true when we argue about the appropriation of public spaces at night, which has been put aside in urban planning initiatives.

nighttime economy; urban policy; urban project


INTRODUÇÃO

O geógrafo Yi-Fu Tuan (2004)TUAN, Y. Cultural Geography: Glances Backward and Forward. Annals of the Association of American Geographers, online, v. 94, n. 4, p. 729–733, dez. 2004., ao tratar sobre a tradição e o futuro da geografia cultural, notou que esta era praticamente uma geografia diurna. Dessa forma, um grande esforço intelectual teria sido empregado na compreensão da ocupação territorial e no domínio humano sobre a natureza através da conversão das áreas florestais em campos de agricultura ou das transformações que o capitalismo tem inserido na organização e na produção do espaço. Na verdade, a noite urbana ainda permanece como um tema fechado a um círculo restrito de pesquisadores. Para ser razoável, podemos admitir que o primeiro estudo sobre o tema surgiu com o artigo de Murray Melbin (1978)MELBIN, M. Night as Frontier. American Sociological Review, Nashville, U.S., v. 43, n. 1, p. 3–22, fev. 1978. sobre a relação entre a fronteira espacial (ocupação territorial americana através da marcha para o Oeste) e a fronteira temporal (ampliação das atividades sociais para o período noturno). Após este estudo, abriu-se um campo temático que parece a cada ano absorver mais o interesse dos pesquisadores das ciências sociais, incluindo geógrafos como Gwiazdzinski (2005)GWIAZDZINSKI, L. La Nuit, Dernière Frontière de la Ville. La Tour-d’Aigues: Éd. de l’Aube, 2005., que propõem uma geografia da noite urbana.

A espacialidade da noite urbana não tem sido, no entanto, pensada exclusivamente por geógrafos, visto que são produzidos projetos e planos no urbanismo que tem procurado realçar a articulação entre tecnologia, práticas sociais e zoneamento urbano (NARBONI, 2004NARBONI, R. Lighting the Landscape: art design technologies. Basel, Switzerland; Boston, U.S.: Birkäuser, 2004.). Arquitetos, engenheiros, planejadores e urbanistas têm pensado a noite urbana e o espaço em seu aspecto material, talvez com maior ênfase que os geógrafos, ainda que o espaço social permaneça definido como um continente das intervenções técnicas ou como um substrato para as ações sociais. Nos melhores casos, a variedade dos comportamentos humanos é considerada como um elemento na construção de um projeto de iluminação, mesmo quando as práticas são compreendidas como elementos de constrangimento que limitam o planejamento sistemático e a imposição de regras e padrões.

Historiadores, sociólogos e economistas, por seu lado, têm dado grande ênfase aos processos sociais e ao imaginário sobre a noite urbana (SCHIVELBUSCH, 1995SCHIVELBUSCH, Wolfgang. Disenchanted Night: the industrialization of light in the nineteenth century. Los Angeles: The University of California Press, 1995.; EKIRCH, 2006EKIRCH, A. R. At Day’s Close: night in times past. New York: W.W. Norton & Co., 2006.; BALDWIN, 2012BALDWIN, P. In the Watches of the Night: life in the nocturnal city, 1820-1930. Chicago and London: The University of Chicago Press, 2012.). Em alguns casos, a história social da noite urbana pode ser confundida com a história da tecnologia, envolvendo o tema da iluminação artificial em enredos políticos e relações de produção. Na maioria dos casos, entretanto, a espacialidade é explorada de forma acessória, sendo incorporada como o resultado do processo social de conquista da noite urbana.

Os geógrafos, de forma similar, têm se conformado, em geral, apenas com a atualização das informações ressaltadas por historiadores e sociólogos, especialmente no que diz respeito à centralidade que as questões sobre ordem e desordem possuem na discussão sobre o tema da noite urbana (OTTER, 2008OTTER, C. The Victorian Eye: a political history of light and vision in Britain, 1800–1910. Chicago and London: University of Chicago Press, 2008.). Com isto queremos dizer que, de um lado, observamos uma dedicação às formas materiais que compõem a paisagem; e que, por outro, notamos uma preocupação com os fatores sociais que impulsionam os processos de constituição da vida urbana.

O exame das pesquisas realizadas sobre a noite urbana mostra certa carência de investigações que se preocupem com o aspecto espacial da paisagem noturna. Equipes de pesquisa e de planejamento também têm se ocupado de questões que absorvem o interesse geográfico. Porém, a espacialidade do processo atual de investimento nas atividades noturnas tem sido ainda pouco estudada. Os caminhos abertos pelo urbanismo luminoso na arquitetura da paisagem e pela economia noturna nas ciências sociais são duas estradas para o problema. Desejamos uni-las para compreender a produção e a organização do espaço urbano para as noites, urdindo materialidade e significado em uma matriz geográfica de interpretação dos projetos e planos urbanos.

As práticas do governo local, dos empreendedores privados e da população carioca foram observadas segundo uma perspectiva diacrônica, comparando as mudanças e as continuidades ocorridas desde o fim da década de 1980 na cidade do Rio de Janeiro. Em um primeiro momento será apresentada a discussão sobre as formas de gestão da cidade noturna e em que sentido esta discussão se apresenta de forma diferenciada em relação aos problemas da cidade diurna. Em um momento posterior voltaremos nossas questões ao caso da cidade do Rio de Janeiro, evidenciando os primeiros resultados de uma pesquisa de doutorado ainda em andamento.

A GESTÃO DA NOITE URBANA: CRISE E ORDEM

Atividades noturnas são comuns à vida urbana há bastante tempo, porém a ocupação pública e o uso democrático do espaço urbano à noite são acontecimentos bem mais recentes, talvez localizados na segunda metade do século XIX e nas cidades mais populosas, como sugere Baldwin (2012)BALDWIN, P. In the Watches of the Night: life in the nocturnal city, 1820-1930. Chicago and London: The University of Chicago Press, 2012.. A iluminação artificial, o patrulhamento policial, as atividades de lazer e entretenimento, as mudanças na jornada de trabalho e a globalização da economia criaram a necessidade de cidades que não dormem. A noite se tornou um período útil para o trabalho, o aprendizado, o lazer e o ócio (OTTER, 2008OTTER, C. The Victorian Eye: a political history of light and vision in Britain, 1800–1910. Chicago and London: University of Chicago Press, 2008.). Ao mesmo tempo, atividades e serviços passaram a funcionar durante 24 horas como, por exemplo, supermercados, postos de gasolina, caixas eletrônicos, transportes públicos, academias de ginástica e lanchonetes se tornaram comuns (GWIAZDZINSKI, 2005GWIAZDZINSKI, L. La Nuit, Dernière Frontière de la Ville. La Tour-d’Aigues: Éd. de l’Aube, 2005.). Além disso, as grandes cidades tendem a também concentrar os conflitos pelo espaço durante a noite (HOLLANDS E CHATTERTON, 2003HOLLANDS, R.; CHATTERTON, P. Urban Nightscapes: youth cultures, pleasure spaces and corporate power. London: Routledge, 2003.), tornando-se áreas com maior dispersão de projetos e de práticas noturnas, realçando as desigualdades e assimetrias comuns à cidade como um todo (TALBOT, 2006TALBOT, D. The Licensing Act 2003 and the Problematization of the Night-time Economy: Planning, Licensing and Subcultural Closure in the UK. International Journal of Urban and Regional Research, v. 30, n. 1, p. 159–171, 2006. DOI: http://dx.doi.org/10.111/j.1468-2427.2006.00642.x
https://doi.org/10.111/j.1468-2427.2006....
).

Ainda que as atividades noturnas nas grandes cidades não sejam um fenômeno tão recente, somente a partir da década de 1990 começamos a observar uma profusão de pesquisas sobre as noites urbanas. A preocupação central de tais estudos se concentrou em torno da economia urbana, dos processos de gentrificação e dos conflitos entre os grupos sociais, incorporando o discurso marxista dos anos 1970, mas segundo uma reorientação pós-modernista em voga no fim dos anos 1980. Ao seguirem este caminho, os autores renovaram o temário das pesquisas sobre o urbano, ainda que depositando suas conclusões sobre matrizes um tanto quanto contraditórias.

Dentro desse contexto, a ideia de crise é fundamental. Em primeiro lugar, uma crise econômica que desacelerou o ritmo de crescimento dos países desenvolvidos nos anos 1970 e que arrefeceu o investimento privado nas cidades. Em segundo lugar, uma crise política, verificada pelo novo papel do Estado e pelo surgimento de novas instituições políticas, ligadas a interesses de grupos minoritários (feministas, étnicos, GLBT, entre outros). Em terceiro lugar, uma crise urbana, na qual um acelerado processo de suburbanização ocorre ao mesmo tempo em que há um relativo esvaziamento dos centros urbanos. Segundo este ponto de vista, as cidades no pós-guerra enfrentaram um processo de decadência caracterizado pela precarização das condições de moradia nas áreas centrais, pelo escapismo das elites urbanas e pelo recuo do espaço público, esvaziado de sua dimensão política. Ao mesmo tempo, a popularização dos bens de consumo, especialmente das tecnologias de telecomunicação, ligadas ao lazer privado, parece ter levado as pessoas a saírem menos de casa e adotado outras formas de interação social (LOVATT; O’CONNOR, 1995LOVATT, A.; O’CONNOR, J. Cities and the Night-time Economy. Planning Practice and Research, v. 10, n. 2, p. 127–134, 1995.).

O resultado desse amplo processo parece ter sido o abandono dos centros urbanos e a sua ocupação por uma população empobrecida, em um clássico processo de invasão-sucessão, examinado pela Escola de Ecologia Humana (CORRÊA, 1989CORRÊA, R. L. O Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Editora Ática, 1989.). Dessa forma, os centros das grandes cidades se tornaram os lugares que concentraram imageticamente o medo urbano:

Thus the liminality of nightlife turned into the pathologisation of city centres, riven by those residual groups who used the city - youth, prostitutes, drug addicts etc. Survey after survey found that the majority of women and the elderly did not go into the centre through fear of (male) violence. In this context the police increasingly saw the situation as one of crime and (drunken) disorderly behaviour, especially by young working-class males (LOVATT; O’CONNOR, 1995LOVATT, A.; O’CONNOR, J. Cities and the Night-time Economy. Planning Practice and Research, v. 10, n. 2, p. 127–134, 1995., p. 132).

Crime e violência parecem ter sido associados, nas décadas de 1960 e 70, a um momento (a noite), a um lugar (o centro) e a um tipo de público (os jovens pobres). Melbin (1978)MELBIN, M. Night as Frontier. American Sociological Review, Nashville, U.S., v. 43, n. 1, p. 3–22, fev. 1978. indica que há uma visão negativa em relação aos jovens ao analisar a percepção de outros usuários da noite urbana em relação a lugares e públicos. O medo de estar na área central durante a noite parece, no entanto, ter alimentado um subsetor da economia urbana, com atividades marginais como bares ilegais, prostituição, alojamentos em squatters, e espaços para o consumo de drogas. Aparentemente o uso dos espaços públicos foi reduzido, especialmente com a diminuição da presença de mulheres, crianças e idosos (TALBOT, 2006TALBOT, D. The Licensing Act 2003 and the Problematization of the Night-time Economy: Planning, Licensing and Subcultural Closure in the UK. International Journal of Urban and Regional Research, v. 30, n. 1, p. 159–171, 2006. DOI: http://dx.doi.org/10.111/j.1468-2427.2006.00642.x
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).

As pesquisas sobre a economia noturna retomam a ideia de crise, explicando que a sua superação foi em parte garantida pelo investimento em atividades de lazer e de entretenimento no centro das cidades e especialmente à noite, reagrupando os interesses das corporações, do governo local e da classe média urbana (HOLLANDS; CHATTERTON, 2003HOLLANDS, R.; CHATTERTON, P. Urban Nightscapes: youth cultures, pleasure spaces and corporate power. London: Routledge, 2003.). Dessa forma, a partir do início da década de 1990, a economia noturna teria se transformado em uma linha de pesquisas bem sucedida principalmente nos países de língua inglesa. Segundo Lovatt e O’Connor (1995)LOVATT, A.; O’CONNOR, J. Cities and the Night-time Economy. Planning Practice and Research, v. 10, n. 2, p. 127–134, 1995., a saída encontrada por algumas cidades foi o reinvestimento nos aspectos relacionados à cultura local, como a patrimonialização e a conversão das formas antigas a novas funções:

The 1980s saw the gradual recognition of this changing role of culture in the city (and elsewhere). Local government, arts organisations, business people, both companies and umbrella groups such as the Chamber of Commerce, community groups, training organisations and, of course, local artists began to create fluid, often informal coalitions around the elaboration of (formal and informal) cultural strategies aimed at the ‘regeneration’ of the city centre and (hopefully) the city as a whole. (LOVATT; O’CONNOR, 1995LOVATT, A.; O’CONNOR, J. Cities and the Night-time Economy. Planning Practice and Research, v. 10, n. 2, p. 127–134, 1995., p.129).

Alguns autores defendem a ideia de que, dentro do processo de renovação dos centros urbanos, as intervenções urbanísticas teriam sido realizadas adotando um padrão comercial voltado para o consumo dos jovens de classe média (HOLLANDS; CHATTERTON, 2003HOLLANDS, R.; CHATTERTON, P. Urban Nightscapes: youth cultures, pleasure spaces and corporate power. London: Routledge, 2003.). O pano de fundo para estas ações seria composto por novos projetos de zoneamento e novas normas urbanas que buscariam limitar as alterações particulares nos prédios que continham algum valor patrimonial. Ao mesmo tempo, business centers e zonas comerciais teriam sido estimulados pelo governo local com a contrapartida da iniciativa privada, o que teria feito surgir prédios mistos com salas comerciais e apartamentos de alto padrão na área central.

O exemplo de Barcelona também se tornou um modelo de renovação urbanística, sendo aplicado em outras cidades como Baltimore, São Francisco e Buenos Aires. As cidades teriam assim se tornado centros de entretenimento para visitantes e as suas imagens tenderiam a sugerir prazer através do lazer, especialmente relacionado à vida noturna (LOVATT; O’CONNOR, 1995LOVATT, A.; O’CONNOR, J. Cities and the Night-time Economy. Planning Practice and Research, v. 10, n. 2, p. 127–134, 1995.). Em resumo, a imagem da cidade precisaria fazer crer que a crise tinha sido superada, que a estética tinha sido recuperada e que os comportamentos tinham sido organizados.

A ideia de ordem teria percorrido as ações realizadas, pois visava garantir a promoção de uma cidade “festiva”. O aparato institucional, estrategicamente ajustado ao interesse das elites locais, mesclaria a vigilância policial e a aplicação de novas regras para o uso do espaço. Em boa medida este novo regime de controle teria se baseado em algumas ações como, por exemplo, o estabelecimento das horas de funcionamento do comércio, as restrições ao consumo de drogas lícitas no espaço público, a repressão ao consumo das drogas ilícitas, a criação de sistemas de monitoramento por câmeras, entre outros (HOLLANDS; CHATTERTON, 2003HOLLANDS, R.; CHATTERTON, P. Urban Nightscapes: youth cultures, pleasure spaces and corporate power. London: Routledge, 2003.). Tais medidas parecem não só terem reorganizado as noites das cidades como também promovido o controle e a manutenção da ordem urbana que teria como principal objetivo manter os comportamentos indesejados sob a vigilância policial (TALBOT, 2006TALBOT, D. The Licensing Act 2003 and the Problematization of the Night-time Economy: Planning, Licensing and Subcultural Closure in the UK. International Journal of Urban and Regional Research, v. 30, n. 1, p. 159–171, 2006. DOI: http://dx.doi.org/10.111/j.1468-2427.2006.00642.x
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).

Para Deborah Talbot (2006)TALBOT, D. The Licensing Act 2003 and the Problematization of the Night-time Economy: Planning, Licensing and Subcultural Closure in the UK. International Journal of Urban and Regional Research, v. 30, n. 1, p. 159–171, 2006. DOI: http://dx.doi.org/10.111/j.1468-2427.2006.00642.x
https://doi.org/10.111/j.1468-2427.2006....
, este processo atingiu um ponto extremo, no qual a cidade noturna teria sido pensada segundo um modelo de controle que pretendia expulsar classes, raças e gêneros indesejados da convivência noturna. O modelo de centro noturno, inspirado nos anseios da classe média, teria, assim, convertido a história de cada cidade em mercadoria, ou ainda, em ambiente para o consumo urbano, segundo uma agenda neoliberal de incentivo público ao crescimento de atividades de lazer privadas. Segundo este ponto de vista, a noite seria um momento de exclusão que tenderia a reproduzir e a acirrar os preconceitos já presentes na cidade diurna:

In particular, despite nightlife being historically a site for ‘outsider’ cultures (as well as of mainstream drinking cultures), in Southview the combined forces of culture, economic development, licensing and policing were productive of an imported, non-organic night-time economy, which exemplifies the sanitizing forces of middleclass consumerism that dominate the landscape of the inner city (TALBOT, 2006TALBOT, D. The Licensing Act 2003 and the Problematization of the Night-time Economy: Planning, Licensing and Subcultural Closure in the UK. International Journal of Urban and Regional Research, v. 30, n. 1, p. 159–171, 2006. DOI: http://dx.doi.org/10.111/j.1468-2427.2006.00642.x
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, p. 168).

Apesar de entendermos este processo como sintomático da busca por valorização da economia urbana através do controle do espaço e dos comportamentos; acreditamos que o seu sucesso em criar “culturas estrangeiras” ou “forças sanitaristas” é raramente comprovado. Mesmo nas cidades onde o processo de gentrificação foi conduzido com extrema rapidez – e os casos tratados pelos pesquisadores ingleses são explícitos em relação a isso –, os grupos chamados “alternativos” possuem ainda grande visibilidade na área central, como, por exemplo, as populações em situação de rua, os comerciantes informais, os grupos punks e grunges etc. (HOLLANDS; CHATTERTON, 2003HOLLANDS, R.; CHATTERTON, P. Urban Nightscapes: youth cultures, pleasure spaces and corporate power. London: Routledge, 2003.).

Acreditamos que há razões que servem para corroborar estas conclusões, especialmente no que diz respeito ao processo de gentrificação. No entanto, achamos que as justificativas se remetem ao demasiado foco que é dado ao centro urbano como lócus da vida noturna. Neste sentido, analisamos os projetos urbanos e os planos diretores para observarmos a espacialidade da vida noturna na cidade do Rio de Janeiro. Isto significa que tentaremos “decentrar” o foco para compreender as diferentes formas de se intervir na cidade e de se apropriar da noite urbana.

PLANEJAMENTO E DIAGNÓSTICO DA NOITE URBANA CARIOCA

As ações de planejamento da noite na cidade do Rio de Janeiro se inserem a partir da década de 1990 em um contexto de reinvestimento nas áreas centrais da cidade. Este processo pode ser observado em outras cidades com pelos menos uma década de antecedência, como no caso de cidades inglesas e americanas. Entretanto, o caso carioca possui peculiaridades no que diz respeito à geografia e à história da cidade, bem como em relação ao papel do espaço público e ao potencial econômico para produzir projetos de (re)urbanização.

O modelo de urbanismo luminoso, assimilado de arquitetos franceses como Narboni (2004)NARBONI, R. Lighting the Landscape: art design technologies. Basel, Switzerland; Boston, U.S.: Birkäuser, 2004. - e que sugere a criação de um zoneamento urbano diferenciado para a noite - foi inspirador de algumas ações vinculadas ao uso noturno do espaço público (MIGUEZ, 2001MIGUEZ, José Canosa. L’Urbanisme Lumière: uma nova luz para as cidades. Revista Lumière, n.42, p.62-71, 2001.). Ainda assim, soluções funcionalistas mais tradicionais permaneceram sob o foco das ações do poder público local, especialmente no que implica à iluminação artificial e ao policiamento.

A década de 1990 é o momento no qual as formas mais tradicionais de urbanismo são colocadas em discussão com alternativas de planejamento. A criação de diretrizes constitucionais e a obrigação da instituição de Planos Diretores para as cidades acima de vinte mil habitantes foram iniciativas que incentivaram o investimento público e privado na cidade, o que acreditamos ter importantes reflexos sobre a noite. A legislação urbana e os projetos urbanísticos também tiveram um papel importante no fortalecimento da noite como cenário para o lazer. Além disso, os planos estratégicos e os planos de governo nos fornecem também visões sobre a noite urbana dentro da política pública. Sobre estes instrumentos produzimos uma análise quantitativa e qualitativa do conteúdo dos textos e da iconografia, no intuito de compreendermos o papel da noite na política urbana da cidade do Rio de Janeiro.

Nos Planos Diretores, a iluminação pública, por exemplo, tem ganhado espaço, sendo vinculada especialmente à ideia de infraestrutura, ao lado de saneamento, abastecimento e asfalto. No entanto, no plano diretor de 1992 não há menções diretas às funções ou às estratégias de organização da noite urbana. A vida noturna fica praticamente subsumida dentro de um planejamento global da cidade.

No Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro (2011)PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. LEI COMPLEMENTAR DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO N° 111 de 1° de Fevereiro de 2011. Dispõe sobre a Política Urbana e Ambiental do Município, institui o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro e dá outras providências. Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, n° 21, p. 3 - 38, de 12 de Abril de 2011. a noite torna-se uma questão e é desenvolvida em relação ao termo iluminação, sendo mencionado em nove artigos do plano, recebendo em um deles, o artigo 229, um tratamento exclusivo. Neste caso, parece que a noite urbana começa a receber um tratamento diferenciado, sendo incorporada ao interesse mais geral apresentado pelo Plano Diretor e em relação com os usos turísticos e patrimoniais.

De modo similar, ao se comparar os textos dos dois planos estratégicos mais recentes do governo municipal do prefeito Eduardo Paes (2009-2012 e 2013-2016) nota-se que há uma mudança na forma e na intensidade com a qual se lida com o problema da iluminação. Os principais projetos de infraestrutura do novo plano estratégico possuem em alguma parte uma preocupação com a iluminação pública; enquanto que no plano anterior esta preocupação era secundária, absorvendo poucos projetos de governo. No novo plano, inclusive, há uma parte exclusivamente dedicada à modernização da rede de iluminação pública, incluindo a proposta de criação de um plano diretor de iluminação pública para o ano de 2013. Parece que com isso, a atual gestão da prefeitura considera a iluminação um elemento estruturante de seus projetos, concedendo um lugar especial para sua análise e reforçando a importância da vida urbana noturna. Algo que se encontrava menos detalhado na proposta anterior.

O tema da noite urbana ou da iluminação pública não era mencionado nos planos estratégicos dos governos anteriores, porém no detalhamento dos projetos urbanos eles eram aspectos estruturais de diagnóstico e gestão. Os projetos urbanos dos períodos de governo dos prefeitos Cesar Maia (1993-1996) e Luiz Paulo Conde (1997-2000) vinham quase sempre acompanhados de relatórios da RioLuz (Companhia Municipal de Energia e Iluminação do Rio de Janeiro) e projetos de iluminação específicos. Os relatórios de uso das áreas recorrentemente faziam menção à apropriação dos espaços noturnos durante a noite, incluindo recomendações de iluminação e de mobiliário urbano.

Durante este período, foi criado o Plano Diretor de Iluminação Pública da cidade (PDIP, 1993PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Plano Diretor de Iluminação Pública da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IplanRio, 1993.), um dos instrumentos orientadores das intervenções espaciais na noite da cidade. As metas principais na época estavam voltadas para a adequação da tecnologia aos usos e funções urbanas dos logradouros, com redução de consumo energético. Tais metas visavam alcançar alguns objetivos mais gerais, como a promoção de conforto e segurança para as atividades noturnas; a distribuição espacial mais justa dos investimentos; e a expansão da área de cobertura do sistema em toda a cidade (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1993PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Rio Cidade: caderno de elaboração de projetos. Rio de Janeiro: IplanRio, 1997.). A estratégia para se alcançar tais objetivos estariam ligadas a uma padronização dos serviços, dos equipamentos, dos materiais empregados e do treinamento de pessoal, dentro de uma modelo de gestão centralizada pela RioLuz (autarquia responsável pela modernização do sistema de iluminação pública da cidade).

O diagnóstico da situação da iluminação pública na cidade demonstrou que na cidade havia uma desigual distribuição espacial do serviço de iluminação na cidade. As Áreas de Planejamento 1 (AP1 - Centro) e 2 (AP2 - Zona Sul) apresentavam em 1993 uma demanda constante por iluminação, resultado do pouco crescimento populacional das áreas no período. A Área de Planejamento 3 (AP3 - Zona Norte) possuía uma demanda reprimida, especialmente vinculada à manutenção dos pontos de luz. As áreas de expansão da cidade – Áreas de Planejamento 4 (AP4 - Jacarepaguá e Barra da Tijuca) e 5 (AP5 - Zona Oeste) – sofriam com a carência de equipamentos de iluminação nos seus principais bairros. Ao mesmo tempo, na AP1, especialmente na zona portuária, bairros da Gamboa, Caju e Saúde, os problemas no serviço de iluminação pública eram considerados graves. Estas três áreas (AP’s 1, 4 e 5) deveriam estar sob o foco dos investimentos entre 1993 e 2003, concentrando cerca de 70% do capital investido pela RioLuz.

No entanto, durante os últimos vinte anos houve um incremento populacional em toda Zona Oeste, o que superou as estimativas traçadas pelos criadores do Plano Diretor de Iluminação Pública do município. Entre 1991 e 2000 a população da área de planejamento 4 (Barra da Tijuca, Jacarepaguá e outros bairros) cresceu de 525 mil para 682 mil habitantes; enquanto que a população da área de planejamento 5 (Campo Grande, Santa Cruz e outros bairros) aumentou de 1290 mil para 1550 mil habitantes; entre 2000 e 2010, o número de habitantes da AP4 chegou a cerca de 900 mil, e da AP5 a mais de 1700 mil habitantes. Em resumo, em toda região cerca de 800 mil pessoas passaram a ocupar novos logradouros ou antigas áreas em pouco menos de vinte anos. Esta ampliação da demanda deve ter tido impacto na qualidade do serviço e deve ter gerado, ao mesmo tempo, uma expansão do problema da iluminação para toda a cidade. Ao observarmos a distribuição do consumo de energia elétrica na cidade, notamos que nas áreas de ocupação consolidada (AP1 e AP2) o processo de verticalização e de ampliação dos serviços tende a concentrar o consumo de energia elétrica (Figura 1).

Figura 1
Consumo de Energia Elétrica no Município do Rio de Janeiro (2009)

O diagnóstico presente no Plano Diretor de Iluminação Pública de 1993 demonstrou, no entanto, um problema social que vinha sendo construído desde os anos 1970, em virtude da expansão urbana e da decadência da vida noturna nas áreas de ocupação mais antiga da cidade, como a zona central (MENDONÇA, 2004MENDONÇA, L. Reflexos da Cidade: a iluminação pública no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no Brasil, 2004.). Aparentemente dois caminhos foram tomados. Para as áreas de expansão da cidade foram criadas iniciativas para resolver o problema das noites através da instalação de material iluminante novo, produzido pela empresa RioLuz e seguindo um rígido modelo de construção e de manutenção que deveria ser garantido pela municipalidade (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1993PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Plano Diretor de Iluminação Pública da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IplanRio, 1993.). Para as áreas de ocupação consolidada, optou-se pelo modelo de urbanismo luminoso, com a substituição de antigos postes e sistemas elétricos da LIGHT S.A. por modelos mais modernos e esteticamente mais belos, incorporados aos projetos de reurbanização que foram criados pela prefeitura da cidade (MIGUEZ, 2001MIGUEZ, José Canosa. L’Urbanisme Lumière: uma nova luz para as cidades. Revista Lumière, n.42, p.62-71, 2001.). Em ambos os casos, o estímulo à vida noturna e à utilização dos espaços públicos foram reforçados pela criação de projetos que valorizaram os centros de bairro como locais comerciais, o que remete aos programas criados na gestão do prefeito César Maia (1993-1996 e 2001-2008).

As ações criadas ao longo da década de 1990 tiveram, pelo menos, um impacto direto no que se refere à noite urbana. Com a criação do Plano Diretor de Iluminação Pública (1993)PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Plano Diretor de Iluminação Pública da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IplanRio, 1993. e a parceria com o Governo Federal através dos Programas Procel e Reluz, a prefeitura do Rio de Janeiro conseguiu realizar obras de urbanização às áreas rapidamente ocupadas ao longo das décadas de 1980, 90 e 2000. Como um dos pontos centrais das obras da prefeitura, a iluminação pública foi um dos problemas que recebeu maior atenção no período. Esta afirmação pode ser verificada ao observamos os dados de crescimento dos pontos de luz nos últimos vinte anos (Figura 2), os quais nos indicam um aumento considerável das áreas atendidas por iluminação pública na cidade e uma melhoria da eficiência energética por ponto de luz, resultado da modernização de todo o sistema de iluminação pública do município entre 1992 e 2010.

Figura 2
: Pontos de luz e consumo anual de energia – Rio de Janeiro (1992-2010)

Desde o início da década de 1990, o uso dos espaços públicos durante a noite tem sido um tema que percorre os projetos de intervenções na cidade. Nas diretrizes dos projetos notamos a presença de normas específicas dirigidas à iluminação pública e à manutenção da segurança durante a noite. Alguns projetos são referências neste aspecto, já que procuraram desenvolver economicamente regiões que até a década de 1980 estavam em franco processo de decadência ou sem aproveitamento econômico. No entanto, tentaremos aqui traçar um panorama dos projetos que tentaram pensar a forma e o uso da cidade também durante a noite.

Os projetos escolhidos foram selecionados a partir de dados sobre a dimensão física e social do projeto e através de uma análise qualitativa dos textos que os apresentavam. Dentre os projetos estudados para o período entre 1993 e 2000 (correspondente ao período de governo de Cesar Maia e Luiz Paulo Conde) foram selecionados dois projetos urbanos que foram criados anteriormente e desenvolvidos na gestão do período: Corredor Cultural e Rio Orla; e um projeto criado e colocado em prática durante as gestões de Cesar Maia e de Luiz Paulo Conde: Rio Cidade. Para o segundo período, entre 2001 e 2013, foi selecionado um projeto da segunda gestão do prefeito Cesar Maia: Rio Ruas Comerciais, atualmente Polos do Rio; e um projeto da gestão de Eduardo Paes: Lapa Legal.

No total são cinco projetos que parecem exibir a variada forma de atuação segundo os planos de governo de cada gestor, mas mais do que isso, demonstram como há diferenças no tratamento do período noturno em relação às áreas da cidade. Cada projeto urbano apresentou uma forma de lidar com o uso noturno dos espaços públicos. As soluções encontradas previam transformações em relação ao público, às atividades e aos níveis de visibilidade das áreas afetadas.

O programa Corredor Cultural Carioca, por exemplo, teve uma longa duração e passou por diversas fases dentro da gestão local da área central. O programa foi pensado ao longo dos anos 1970 e 80 e visava fornecer benefícios fiscais aos proprietários dos imóveis com a contrapartida da reforma dos prédios e da valorização da fachada (LIMA, 2007LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Corredor Cultural do Rio de Janeiro: uma visão teórica sobre as práticas da preservação do patrimônio cultural. Revista Fórum Patrimônio, Belo Horizonte, v.1, n.1, set./dez., 2007.). A melhoria estética dos prédios habilitaria a área para o uso social e comercial, incentivando o turismo e estimulando o “retorno ao centro” de jovens trabalhadores da área central. Uma das consequências do processo de recuperação da área central foi permitir através de uma reforma urbana e arquitetônica que os usuários se apropriassem dessas áreas em horários que anteriormente a área permanecia pouco ocupada. As atividades nas áreas da Praça XV e da Lapa aumentaram significativamente nos últimos 30 anos, especialmente atraindo trabalhadores da área central e turistas (MACEDO, 2004MACEDO, Mirela Arcangelo da Motta. A concepção do projeto corredor cultural do Rio de Janeiro: a participação de técnicos e intelectuais no processo de planejamento urbano. Seminário de História da Cidade e do urbanismo, v.8, n.4, p.1-15, 2004.).

No caso do projeto Rio Orla, desenvolvido ao longo do período de redemocratização, no início da década de 1990, a ideia geral era promover o uso dos calçadões das praias também durante o período noturno através da criação de mobiliário urbano para a prática esportiva ou da construção de bares e quiosques com iluminação cênica. A convivência de usos seria uma das consequências da reforma urbanística, tendo implicações estéticas para a morfologia da paisagem (ANDREATTA, CHIAVARI e REGO, 2009ANDREATTA, V.; CHIAVARI, M.; REGO, H. O Rio de Janeiro e a sua orla: história, projetos e identidade carioca. Coleção Estudos Cariocas, Rio de Janeiro, n.9, p.1-16, dez., 2009.). As expectativas do projeto têm sido satisfeitas especialmente na praia de Copacabana, onde a construção de novos quiosques e a manutenção do calçadão tem permitido o uso do espaço público e dos bares durante a noite e nos finais de semana por turistas e moradores de toda a cidade.

As gestões dos prefeitos Cesar Maia e Luiz Paulo Conde, entre 1993 e 2008, mudaram a direção dos projetos urbanos, deslocando o interesse das intervenções das áreas nobres da cidade para outros centros comerciais da cidade. A política de acupuntura urbana, com intervenções pontuais nas áreas centrais dos bairros, através do programa Rio Cidade permitiu o surgimento de novas atividades de lazer e de comércio nestes bairros. Isto foi possível devido à visão do programa, o qual previa realizar reformas urbanas com o intuito de desenvolver o comércio local e valorizar o uso dos espaços públicos nestas áreas. No marco dos projetos e nas diretrizes de intervenção em cada área foram idealizados planos de melhoria das condições ambientais dos espaços públicos com novo mobiliário urbano que permitisse o melhor uso da área durante a noite, algo que se relacionava à proposta do Plano Diretor de Iluminação Pública, voltado especialmente para as áreas comerciais dos bairros (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1997PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Rio Cidade: caderno de elaboração de projetos. Rio de Janeiro: IplanRio, 1997.).

A associação entre iluminar e ordenar aparece em vários momentos discriminando as ações necessárias para cada área. A partir de 1997, a Prefeitura do Rio de Janeiro criou manuais e instrumentos dedicados exclusivamente ao tratamento de problemas relativos à iluminação, sinalização e paisagismo (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1997PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Rio Cidade: caderno de elaboração de projetos. Rio de Janeiro: IplanRio, 1997.). Estes instrumentos visavam orientar os procedimentos de construção e manutenção das obras da prefeitura e tinham aspectos dedicados exclusivamente ao uso noturno. As medidas de planejamento da noite urbana foram incorporadas em outros programas, como, por exemplo, o Favela Bairro ou o Urbe Cidade, os quais também foram organizados a partir de manuais de intervenção, desenhados pelos órgãos da prefeitura.

Ao mesmo tempo em que reformas urbanísticas foram produzidas nos centros dos bairros, modificações na legislação e políticas de incentivo comercial foram criadas. O programa Rio Ruas Comerciais, instituído em 2004, aderiu de forma similar ao modelo de obras da prefeitura, ainda que a partir de dispositivos legislativos diferentes, especialmente no que se refere ao papel central da iniciativa privada no processo (Decreto Municipal n°24608, de 09 de setembro de 2004PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. DECRETO N° 24608 DE 09 DE SETEMBRO DE 2004. Institui o Programa “Rio Ruas Comerciais” da Cidade do Rio de Janeiro e Cria a Comissão para a sua Implementação. Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, 10 de setembro de 2004.). O programa foi uma estratégia econômica, muito comum na escala regional, tradicionalmente ligada ao setor industrial, mas que tem sido aplicada ao espaço urbano como alternativa para as crises econômicas. Os polos comerciais são iniciativas especialmente dedicadas ao setor terciário para a promoção da cidade e o desenvolvimento de potencialidades locais. No entanto, são também medidas de oficialização do processo de coesão espacial (CORRÊA, 1989CORRÊA, R. L. O Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Editora Ática, 1989.), no qual a localização de empresas de um mesmo subsetor da economia em uma área reduzida gera ganhos pela concentração de consumidores.

A partir de 2009, o programa foi redenominado como Polos do Rio, mantendo, no entanto, os objetivos do programa Rio Ruas Comerciais (Decreto Municipal n°31473, de 07 de dezembro de 2009PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. DECRETO N° 31473 DE 07 DE DEZEMBRO DE 2009. Dispõe sobre o Programa POLOS DO RIO de revitalização econômica local e dá outras providências. Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, 09 de dezembro de 2009.). Em ambos os casos, os decretos reafirmam o interesse da prefeitura em prover as condições urbanas, com revitalização do espaço, em benefício das atividades privadas, e em respeito aos planos e projetos que por ventura estivessem sendo conduzidos na área.

De forma geral, os polos possuem uma oferta bem variada de serviços, onde predominam as atividades de alojamento e de comércio de bebidas e alimentos (cerca de 44%). As metas de alguns polos e a oferta de serviços de seus estabelecimentos criam um discurso sobre a interface com o espaço público e com os equipamentos noturnos, especialmente no que diz respeito à iluminação, ao ordenamento e à segurança (POLOS DO RIO, 2011POLOS DO RIO. Projeto Censo dos Polos 2011. Rio de Janeiro: Narcisa Santos, 2011.).

Estas preocupações em relação ao ordenamento das atividades noturnas também são encontradas nas linhas mestras do planejamento do projeto Lapa Legal, criado em 2009 para a área do atual bairro da Lapa, no centro da cidade. As operações da Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP) através das ações chamadas “Choque de Ordem” sustentaram o projeto Lapa Legal através de intervenções para o controle de atividades, comportamentos e usos dos espaços públicos.

As decisões atuais sobre o investimento estatal em áreas da cidade estão relacionadas ao desenvolvimento da imagem da cidade e a sua preparação para os grandes eventos que a cidade abrigará nos próximos anos. O imperativo da ordem urbana nutre as ações do Choque de Ordem e as iniciativas pontuais que devem absorver a área central da cidade até 2016. Os centros turísticos e as áreas comerciais da área central serão aquelas que mais diretamente sofrerão o impacto das ações, o que coloca novamente a Lapa como um centro do processo, reforçando medidas tomadas em projetos anteriores.

As intervenções no espaço físico da Lapa previam um conjunto de mudanças no que se refere a temas como acessibilidade e segurança dos cidadãos, além de garantir ordenamento do uso comercial do espaço público, com a definição de localizações e da abrangência das áreas comerciais no bairro (Decreto Municipal n°30798, de 10 de junho de 2009). O projeto Lapa Legal previa, além disso, mudanças na organização da segurança e do fluxo de transportes, com fechamento de ruas em horários de concentração de usuários. Nas linhas gerais do projeto, a iluminação pública teve um tratamento especial, no qual se buscou reformular o material iluminante para os usos do local (no total, 350 pontos de luz foram modernizados). As medidas de fechamento de ruas (entre 22 e 05 horas nas sextas e sábados), de regularização dos comerciantes informais (criação de padrões de barracas e de regras de funcionamento), e de incentivo à abertura de novos estabelecimentos (isenção de imposto em prédios na área do Corredor Cultural) foram ações importantes para manter e até mesmo elevar o uso do local durante a noite, enfatizando a vocação da Lapa como centro de lazer noturno.

Em resumo, podemos considerar que os projetos urbanos parecem demonstrar o interesse no desenvolvimento da vida noturna e da transformação da paisagem urbana para o uso durante a noite. Poderia ser dito também que outros projetos tiveram participação importante na configuração da paisagem noturna da cidade, mas os projetos aqui muito resumidos ajudam a esclarecer algumas transformações na forma de se pensar a cidade à noite. Particularmente, os projetos nos ajudam a compreender as mudanças relativas à política urbana e a expressão espacial deste processo.

A partir da análise das pesquisas, dos planos e dos projetos sobre a noite na cidade tentamos reconstruir a dispersão das atividades noturnas e a abrangência de cada área no que diz respeito às suas ofertas e demandas de serviços. Os projetos nos forneceram as bases para a compreensão do modo como a noite na cidade tem sido observada pelo planejamento; as diretrizes exibiram as possibilidades de intervenção na cidade; e a teoria sobre a noite nos forneceu um ponto de reflexão para a crítica. Devemos agora voltar para as áreas da cidade no intuito de compreender as semelhanças e as descontinuidades do processo de planejamento da noite urbana na cidade do Rio de Janeiro em relação às pesquisas realizadas em outros países.

NOITES CARIOCAS: CENTRALIDADES E APROPRIAÇÕES

A maioria dos olhares sobre a noite urbana está geograficamente localizada nos centros de grandes cidades. Neste caso, os processos de crise e de revitalização acompanham os contextos econômicos de cada país ou região na definição do papel do centro na economia local. Os projetos urbanos aparecem como soluções dentro de um contexto competitivo entre cidades e os centros adquirem a função de lugares de lazer e de entretenimento, voltados para a função turística e residencial de classe média, dentro do processo de gentrificação, como sugerido inicialmente por Neil Smith (1996)SMITH, N. The New Urban Frontier: gentrification and the revanchist city. New York and London: Routledge, 1996..

A crise econômica que repercutiu gravemente nos centros urbanos europeus e americanos no período pós-guerra, especialmente ao longo da década de 1960 e 1970, deslocou o interesse imobiliário, industrial e comercial para as áreas suburbanas. No caso das cidades brasileiras, notamos que o processo adquiriu características diferentes. No mesmo período, nota-se o adensamento metropolitano em torno das grandes cidades. As metrópoles nacionais passaram então por um processo de acelerado crescimento urbano das periferias e um adensamento da zona periférica do centro por trabalhadores pobres.

No fim da década de 1960 e início da década de 1970, o controle central do governo autoritário garantiu a ordem sobre um regime de contenção do comportamento social. Além disso, através de uma política econômica conservadora, o regime militar garantiu que no período o país tivesse taxas de crescimento econômico superiores aos países do centro, ainda que a gestão dos recursos econômicos não tenha se transformado em ações de recuperação da economia urbana.

Se observarmos o caso da cidade do Rio de Janeiro veríamos que a área central da cidade passou por um processo semelhante ao notado pelos pesquisadores ingleses e americanos. Contudo, o esvaziamento da área central da cidade do Rio de Janeiro é um processo anterior, estimulado pelas reformas urbanísticas como a Reforma Pereira Passos (1900s), a construção da Avenida Presidente Getúlio Vargas (1940s) e o Plano Doxiadis (parcialmente implementado ao longo da década de 1970). A construção de corredores de ligação da cidade com o centro tomou áreas habitadas pela população e reduziu o interesse residencial pela área. Além disso, a abertura de áreas no cordão litorâneo da cidade (Copacabana, Ipanema e Barra da Tijuca) estimulou a migração da elite urbana para as áreas marginais da cidade (ABREU, 2006ABREU, Maurício de Almeida. A Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos, 2006.). Bairros como Lapa, Saúde, Gamboa, Glória e São Cristóvão, na periferia do centro, passaram por um processo de acelerada decadência nos anos 1970, concentrando em sua maioria homens solteiros e famílias pobres em cortiços ou casarios do século XIX (CORRÊA, 1989CORRÊA, R. L. O Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Editora Ática, 1989.).

O processo de “retomada dos centros” foi sendo construído aos poucos ao longo dos anos 1980 em países como Inglaterra, Estados Unidos e Itália (BIANCHINI, 1995BIANCHINI, F. Night Cultures, Night Economies. Planning Practice and Research, online, v.10, n.2, p.121-126, 1995.). No caso brasileiro o percurso foi mais lento e ainda se encontra em fase de conclusão. Acreditamos que a “retomada do centro carioca” seguiu três caminhos: a abertura de empreendimentos habitacionais nas periferias do centro, ainda caracterizado pela ocupação de famílias de classe média-baixa; o incentivo à construção de centros empresariais e comerciais na core area através de isenções tarifárias; e a revitalização dos centros de bairros periféricos próximos a partir do investimento de empresários locais.

No caso da zona periférica do centro tratou-se de uma abertura para o investimento privado, através de projetos de renovação urbana e de recuperação de casarios (LIMA, 2007LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Corredor Cultural do Rio de Janeiro: uma visão teórica sobre as práticas da preservação do patrimônio cultural. Revista Fórum Patrimônio, Belo Horizonte, v.1, n.1, set./dez., 2007.). Projetos como o Quadra da Cultura, o Corredor Cultural e o Lapa Legal tiveram papel importante na redefinição das funções econômicas em bairros periféricos. Em muitos casos, porém, esses projetos foram construídos em parcerias comerciais, sem o estímulo estatal, o qual tratou de apenas garantir a conservação dos espaços públicos e manter a ordem através da fiscalização das atividades noturnas ao longo dos anos 1980 e 90.

Nos casos apresentados pelos pesquisadores europeus e norte-americanos o termo gentrificação é utilizado como um processo explicativo para a transformação social das áreas centrais revitalizadas (HOLLANDS; CHATTERTON, 2003HOLLANDS, R.; CHATTERTON, P. Urban Nightscapes: youth cultures, pleasure spaces and corporate power. London: Routledge, 2003.). No caso carioca, no entanto, vemos limitações comparativas em relação ao uso do termo como fator explicativo. Em primeiro lugar, porque não encontramos correspondência diacrônica nos eventos e nem mesmo semelhanças no que diz respeito às bases sociais da gentrificação, se comparadas aos países onde este processo foi notado. Neste sentido, observamos que a população da área central continua sendo de classe média-baixa (78% dos domicílios são ocupados por famílias com rendimento mensal per capita entre meio e cinco salários mínimos segundo dados do IBGE para o Censo Demográfico de 2010), algo ainda inferior às áreas nobres da cidade. Além disso, poucos empreendimentos imobiliários residenciais foram criados para o público de classe média e média-alta, com a exceção ao condomínio Cores da Lapa, no bairro de mesmo nome. Da mesma forma, a conversão em patrimônio da área de casario do século XIX não garantiu o domínio de funções comerciais para uma nova gentry carioca, já que podemos observar a ocupação de prédios por movimentos sociais, organizações não-governamentais, movimentos de sem-teto e ainda moradores antigos da região.

Acreditamos, no entanto, que a gentrificação no caso carioca pode estar ainda em fase de configuração, especialmente se termos em conta as modificações que ocorrerão na área portuária nos próximos anos. Neste caso, o projeto urbano e a gestão da área parecem corroborar os elementos descritos por Smith (1996)SMITH, N. The New Urban Frontier: gentrification and the revanchist city. New York and London: Routledge, 1996. e discutidos por Hollands e Chatterton (2003)HOLLANDS, R.; CHATTERTON, P. Urban Nightscapes: youth cultures, pleasure spaces and corporate power. London: Routledge, 2003. em relação à vida noturna. No entanto, deveremos compreender este processo seguindo orientações próprias em relação aos lugares onde ocorrem. Isto significa que adotar a ideia de gentrificação implica em certa dose de adaptação aos problemas sociais que encontramos nas cidades brasileiras.

No caso das pesquisas inglesas há uma ideia recorrente de uso do centro à noite por um segmento da sociedade: a classe média, branca e jovem. No caso do Rio de Janeiro, no entanto, a caracterização deve conter outros elementos, realçando questões como a mobilidade e as infraestruturas de trabalho como variáveis explicativas. Assim, o papel da renda e da escolaridade pode ser relacionado aos problemas da infraestrutura urbana da cidade, algo que adquire um peso importante no que se refere à vida noturna na cidade.

Outro problema comum quando se tem como referência o trabalho dos pesquisadores ingleses e norte-americanos é a definição da vida noturna como um atributo do lazer jovem. No caso da área central do Rio de Janeiro observamos que a presença de jovens é majoritária, como é comum em dados sobre a faixa etária dos frequentadores das áreas de lazer dos centros. No bairro da Lapa, por exemplo, 72% dos frequentadores estão na faixa entre 12 e 30 anos, segundo Araújo (2009)ARAÚJO, V.J. Lapa Carioca, uma (Re)apropriação do Lugar. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.. No entanto, ainda há um número expressivo de pessoas acima desta faixa etária que frequentam a área. O centro, neste caso, parece ser menos um ponto de segregação do que em outras áreas nas quais há públicos mais bem definidos, onde a porcentagem de jovens pode chegar a quase 90%, como em algumas áreas da Barra da Tijuca, na Zona Oeste da cidade.

Empiricamente observamos situações bem distintas segundo a área da cidade no que diz respeito ao uso noturno dos espaços, especialmente através da comparação entre as áreas do Méier (Zona Norte), Barra da Tijuca (Orla da Zona Oeste) e da Lapa (no Centro). A partir dessa observação notamos o papel estruturante que o lazer noturno possui em cada uma das áreas. No caso do Baixo Méier percebemos que há uma grande concentração de pessoas nos finais de semana, especialmente de famílias que moram no entorno do bairro. Na Barra da Tijuca os bares são um ponto dentro de uma trajetória de jovens entre 20 e 30 anos que terminará nas casas de show e boates da região (ALMEIDA; TRACY, 2003ALMEIDA, M. I. M.; TRACY, K. M. A. Noites nômades: espaço e subjetividade nas culturas jovens contemporâneas. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.). Na Lapa, onde a diversidade de públicos e de ofertas de lazer deve ser ressaltada, a ocupação das ruas é o objetivo central que é coadunado à frequência aos ambientes privados, escolhidos em muitos casos pelo gênero de música (FELIX; SANCHEZ; GÓIS, 2013FELIX, A. S.; SANCHEZ, H. C; GÓIS, M. P. F. A Construção do Bairro da Lapa como Lugar Central para a Sociabilidade Noturna Carioca: uma análise dos projetos de espaços públicos. In: XIII SIMPÓSIO NACIONAL DE GEOGRAFIA URBANA, 2013, Rio de Janeiro. Anais do XIII SIMPURB. Rio de Janeiro: UERJ, 2013.).

Contudo, não devemos cristalizar a ideia de que a cidade do Rio de Janeiro possui somente vetores de vida noturna nas áreas centrais. Os projetos urbanos tenderam a reforçar as antigas centralidades, mas também dinamizaram centros urbanos que antes não apresentavam uma vida noturna tão intensa quanto atualmente, como o Méier, por exemplo, o qual teve a área central do bairro totalmente reformulada no programa Rio Cidade. O papel do setor privado (em parceria com o poder público) também foi importante e sua reunião através de polos de lazer, cultura e gastronomia demonstra a importância da noite na economia de serviços da cidade, o que pode ser aprofundado a partir do caso da Barra da Tijuca. Caberá futuramente aprofundar as características sociais de alguns desses lugares para que possamos identificar os modelos de lazer noturno que se apresentam na cidade e quem sabe extrapolá-los para outros casos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao relacionarmos os dados para a cidade do Rio de Janeiro com as reflexões e informações retiradas dos trabalhos de pesquisadores de outros centros urbanos notamos continuidades e diferenças importantes. A primeira e fundamental diz respeito ao efeito da crise econômica dos anos setenta na dinâmica social das grandes cidades. Nesse caso, compreendemos que a ideia de crise permeie os estudos mais dedicados sobre a economia urbana, deixando em exposição o problema da gestão das cidades. No Rio de Janeiro, o esvaziamento da área central tendeu a repetir o padrão, acelerando a degradação da paisagem urbana e tornando o centro um local pouco frequentado à noite. As medidas de superação desse problema começaram a ser levadas adiante a partir do fim da década de setenta, com a proposta que veio a ser concluída no programa Corredor Cultural. O setor privado, beneficiado pela redução das obrigações fiscais, acelerou o processo de “reconquista do centro”, criando atividades em casarios até então abandonados ou em estado precário. A consolidação desse processo somente veio a se instaurar na década de noventa, apoiado, então, no Plano Diretor de 1992 e na criação de projetos urbanos, os quais ajudaram na reconfiguração de espaços públicos.

Outro ponto importante diz respeito ao efeito desses projetos na configuração espacial da noite e da demanda por atividades noturnas. Seguramente houve um incremento do número e da qualidade dos pontos de luz na cidade, absorvendo áreas anteriormente consideradas marginais e criando cenários luminosos em lugares de valor patrimonial ou turístico. Os dados também parecem apontar para uma concentração dos serviços de lazer e de entretenimento nas áreas centrais da cidade. Ao mesmo tempo, outras áreas adquirem características específicas, o que pode ser notado pela criação do programa Polos do Rio. Os programas de reurbanização atuaram principalmente na transformação dos centros de bairros tradicionais da cidade, auxiliando no processo de dispersão espacial das atividades noturnas, ao mesmo tempo em que reforçaram as centralidades estabelecidas no período anterior.

Por fim, a abertura democrática, a descentralização política, o papel dos grupos sociais e políticos na reivindicação do direito à cidade, o investimento no espaço público em sua dimensão material, a criação de melhores sistemas de mobilidade, a disponibilidade de maior tempo livre, entre outras razões, criaram não a redução do espaço público, mas a sua extrapolação para além dos recortes sociais clássicos: a praça, o fórum e a câmara. A dimensão política – que é também cultural e econômica – do espaço público ganhou contornos que a ordem (e os choques de ordem) não conseguiram conter, se desdobrando em ruas, ônibus, galerias, casarios e aquedutos, expandindo para além dos limites da área central, o que, em geral, não esteve no escopo dos estudiosos da noite urbana nas ciências sociais.

Se observarmos as descrições presentes neste artigo, notaremos que na cidade do Rio de Janeiro há uma distribuição desigual das atividades, dos serviços e das demandas pela noite. A segunda etapa desta pesquisa será a análise do uso e da apropriação das áreas da cidade, em busca das relações entre às formas de sociabilidade e os locais de sua manifestação. A conclusão parcial é apenas uma nova entrada para um estudo que busque entender a vida noturna da cidade em lugares que usualmente não se observa sequer a possibilidade de circulação noturna. Isto é algo que permanece presente no planejamento e no imaginário sobre a noite urbana carioca, reforçando modelos antigos de organização sócio-espacial e visões restritivas sobre as potencialidades econômicas de algumas áreas da cidade.

AGRADECIMENTOS

A pesquisa da qual este artigo é um dos resultados recebeu o apoio da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). O artigo também contou com a colaboração de Paulo Cesar da Costa Gomes, Ana Marcela Ardila Pinto e de dois avaliadores anônimos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2014

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2013
  • Aceito
    27 Jan 2014
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