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RESENHAS DE LIVROS/MÍDIA

MORAES, A. C. R. Território na Geografia de Milton Santos. São Paulo: Annablume, 2013. 126

Dos mais notáveis intelectuais brasileiros, Milton Santos, ao longo de sua vida acadêmica contribuiu ativamente para a construção de uma ciência geográfica renovada, capaz de produzir um entendimento da sociedade e do mundo de seu tempo. Sua empreitada intelectual se deu a partir da geografia, mas sua contribuição teórica certamente extrapolou os limites deste campo disciplinar, possibilitando à ciência geográfica um diálogo aberto com a filosofia, a sociologia, a história, o urbanismo e a economia. Milton, empenhou-se na busca pela produção de um corpus teórico que conferisse à sua disciplina identidade e autonomia enquanto província do saber, através da elaboração de um sistema de categorias e conceitos que atribuísse à ela coerência interna e, ao mesmo tempo, permitisse a mesma participar ativamente do desafio maior que é a construção de uma teoria crítica da sociedade. Desse modo, Milton ofereceu uma vasta e densa obra que contribuiu muito para o avanço teórico e epistemológico da ciência geográfica, todavia, a dinâmica de evolução do seu pensamento é algo que precisa ainda ser desvendado e compreendido plenamente.

Tendo esse propósito como pano de fundo, o livro Território na geografia de Milton Santos, de autoria do ilustre Professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, Antônio Carlos Robert de Moraes, falecido em 2015, constitui-se numa obra que desde já assume grande importância para os estudos de epistemologia, história e teoria da geografia. Com o objetivo inicial de analisar o(s) sentido(s), a relevância e o conteúdo do conceito de território no seio do sistema teórico formulado por Santos, Moraes alcança, e mesmo ultrapassa este seu propósito, oferecendo ao leitor uma possibilidade de interpretação dos caminhos tomados pelo autor em tela, ao longo do desenvolvimento da sua produção intelectual.

A partir de uma ampla e minuciosa análise dos livros redigidos por Milton; identificando as principais referências bibliográficas e argumentativas assumidas pelo autor; respeitando a sequência cronológica de redação dos trabalhos; e, tomando o conceito de território como fio condutor da investigação, Moraes nos oferece interessante periodização e classificação das fases metodológicas do pensamento miltoniano, na qual destaca autores e correntes filosóficas mais influentes nos seus trabalhos em cada época; apresenta momentos de ruptura metodológica e reformulação teórica das bases de seu pensamento; e evidencia temas privilegiados pelo autor e transformações ocorridas em sua concepção do conceito de território, ao longo do seu esforço de construção de uma “teoria da geografia”.

Logo após a introdução, na extensa segunda parte do seu livro, intitulada O uso do conceito de território na teoria da geografia de Milton Santos: uma leitura ‘internalista’ e alguns comentários metodológicos, propondo-se a fazer uma leitura sequencial (do ponto de vista da época da redação da versão original dos livros) e, sobretudo, uma “interpretação rigidamente internalista” das obras de Santos (isto é, realizar uma interpretação atinente às influências teóricas e filosóficas básicas e ao sentido e importância atribuída ao conceito de território em seus trabalhos), Moraes afirma que num primeiro momento, correspondente, em linhas gerais, às décadas de 1950 e 1960 - anos da formação e produção inicial do autor em questão - o conceito de território aparece apenas de forma marginal nos escritos de Milton, assumindo por vezes um caráter coloquial, sem que tivesse centralidade na construção dos esquemas explicativos de suas pesquisas. Segundo Moraes, esse “alheamento” seria facilmente justificado em função da forte e explícita filiação metodológica de Milton Santos à época aos postulados clássicos da geografia regional francesa, na qual a “abordagem territorial” teria pequena relevância face às “perspectivas paisagística e regional”.

Já, sobretudo a partir da década de 1970, conforme avançavam os estudos de Milton Santos sobre a urbanização e a dinâmica de conformação das redes urbanas, o debate político e a atenção em relação à dimensão territorial começam a se apresentar de forma mais explícita em seus trabalhos, através de discussões acerca do papel da integração territorial no processo de organização do espaço dos países do terceiro mundo e, especialmente, através da incorporação, em seus escritos, de discussões sobre os processos de modernização, subdesenvolvimento e as práticas do planejamento territorial. Neste período, como alerta Moraes, mesmo que o termo território (stricto sensu) se apresentasse ainda de maneira rara nas obras do autor, isso não significava que a preocupação política estivesse ausente de suas reflexões; já que a considerava variável de grande relevância para a compreensão das transformações e da configuração do espaço. Da mesma forma, as dinâmicas correspondentes ao espaço e à escala nacional, bem como as referências ao papel central do Estado-nação se faziam cada vez mais presentes em seus esquemas interpretativos dos processos de urbanização, configuração de redes urbanas e constituição dos circuitos da economia urbana nos países subdesenvolvidos.

Conforme assinala Moraes, a partir dos anos 1980 e durante os anos 1990 o conceito de território vai ganhando centralidade como “unidade básica de análise geográfica” na teoria da geografia de Milton. Isso se tornaria evidente sobretudo em livros como O espaço do cidadão (1987), Metrópole corporativa fragmentada (1990), A urbanização brasileira (1993), Por uma economia política da cidade (1994) e O Brasil: território e sociedade do início do século XXI (2001) obras, segundo Moraes, em que o conceito de território é mobilizado como “instrumento de interpretação” e “eixo articulador” das argumentações desenvolvidas pelo autor. Em que pese os objetivos próprios de cada uma dessas obras, nelas o território é entendido como base para a construção de um modelo cívico; quadro geral e referência fundamental para compreensão do fenômeno de urbanização e conformação da rede urbana brasileira; totalidade e dimensão privilegiada para a construção de uma teoria explicativa do Brasil.

Com a intensificação do processo de globalização, a difusão do fenômeno das redes, a constituição de um meio técnico-científico-informacional e a emergência de novas formas de regulação territorial, Milton propõe a revisão do conceito de território e atribui a ele papel fundamental para a compreensão do mundo contemporâneo. Diferentemente das abordagens pós-modernas que apregoavam a construção de um mundo crescentemente “sem fronteiras”, o “fim dos Estados”, e a preponderância dos processos de “desterritorialização” como marcas essenciais do atual período histórico, Milton afirma que o território e o Estado nacional assumem papel fundamental para o entendimento da nova fase de internacionalização do capitalismo, destacando que as variáveis-chaves do período atual: a técnica, a ciência, a informação, as finanças e o consumo são responsáveis por atribuir uma nova complexidade e novos conteúdos aos territórios nacionais. Segundo Santos, a difusão do meio técnico-científico-informacional seria a própria “expressão geográfica” do processo de globalização, enquanto a chamada globalização total do espaço se constituiria numa ilusão, já que existiriam, na verdade, espaços da globalização, que por sua qualidade e funcionalidade poderiam, sob uma determinada perspectiva, ser vistos como espaços “luminosos”, enquanto as demais frações do espaço não incorporadas às ações e aos fluxos dominantes, constituir-se-iam em espaços “opacos”.

Nesse sentido, o atual fenômeno das redes se constituiria num elemento que aprofundaria a dialética do território, na medida em que, por um lado, intensificaria a articulação em escala planetária entre lugares distantes, exigiria uma redefinição do papel regulador do Estado e, por conseguinte, promoveria uma crescente fragmentação dos territórios nacionais. Milton propõe o uso de duas categorias como sendo fundamentais para a compreensão das dinâmicas territoriais hoje: as verticalidades, domínio das redes, um espaço de pontos articulados organizacionalmente por fluxos; e as horizontalidades, domínio das contiguidades espaciais, das relações fundadas na proximidade, na vizinhança e na interdependência mútua entre lugares e pessoas. Admitindo que nem todos os agentes detêm a mesma escala de ação e a mesma força para usar os recursos do território, e considerando ainda a existência de diferentes lógicas que regem a dinâmica de uso e apropriação dos lugares, Milton propõe que o objeto de análise social seja revisto, não sendo atribuído ao território em si tal valor, mas ao território usado pela sociedade. Reformulando e atribuindo nova densidade e novo conteúdo ao conceito de território, este assume, então, papel central na teoria da geografia de Milton Santos, ao passo em que os conceitos de região e lugar assumem a posição de dimensões subordinadas à escala nacional, conforme assinala Moraes.

Assim, de um sentido essencialmente demarcatório, isto é, de designação de unidades político-administrativas que possuía nos seus escritos iniciais, aos poucos Milton Santos acrescenta maior conteúdo e densidade ao conceito de território, atribuindo a ele qualidades como a de compartimento do espaço definido pelo domínio Estatal; espaço de circulação de fluxos materiais e imateriais; dimensão historicamente constituída; campo de forças e arena de oposição entre o Estado e o mercado; totalidade e unidade de análise geográfica; fator, estrutura e instância social; formação socioespacial; fonte de identidade e condição para a reprodução da vida social; recurso e abrigo para diferentes agentes sociais; dimensão que guarda diferentes lógicas de uso e apropriação; espaço de todos agentes sociais.

Moraes também identifica, em linhas gerais, obras que qualifica como sendo de “ruptura” em relação às matrizes teóricas e filosóficas as quais Milton recorria até determinado momento para realizar seus estudos, e obras de natureza metodológica “propositiva”, onde o geógrafo brasileiro apresentaria claramente um esforço de esquematização de seu pensamento e de teorização do objeto de estudo da geografia. Como exemplos de obras que representariam momentos de ruptura metodológica, Moraes cita o livro O trabalho do geógrafo no terceiro mundo (1971), obra em que Milton “(...) explicita seu afastamento dos postulados da geografia regional clássica francesa”, e Economia espacial (1979), livro em que o autor “(...) apresenta uma crítica incisiva a várias formulações teóricas de ampla aceitação nas ciências humanas da época (tais como as teorias dos pólos de crescimento, da difusão de inovações, e da relação centro-periferia, entre outras)” (p. 13). Por sua vez, segundo Moraes, os livros O espaço dividido (1973), Por uma geografia nova (1978) e A natureza do espaço (1994) representariam, claramente, obras de natureza propositiva, pois sintetizariam “(...) teorizações completas do ponto de vista epistemológico”, sendo ainda obras em que Milton Santos “(...) desenvolve uma teoria da geografia, com explicitação de seus supostos lógicos e com justificativa de seus procedimentos analíticos” (p. 13).

Além das obras destacadas, outras são também classificadas distintamente por Moraes, quando este avalia os significados que a elas se pode atribuir diante do processo de evolução do pensamento de Milton. Sendo assim, se para Moraes obras como Por uma Geografia Nova, publicada no final dos anos 1970, assume caráter de “obra propositiva”, outros trabalhos, como Economia Espacial, Pensando o Espaço do Homem e, Espaço e Sociedade - todos compostos por conjunto de artigos redigidos antes ou durante a redação da obra de referência citada acima - podem ser considerados como estudos “preparatórios”, já que buscaram, por vezes: esclarecer ideias que posteriormente nortearam as reflexões miltonianas; reunir textos críticos à teorias consagradas em temas de interesse do autor; e, expor a avaliação das leituras realizadas por Milton e dos posicionamentos metodológicos ao qual o autor chegou; tudo isso como um esforço analítico necessário para formular e definir seu posicionamento teórico e metodológico apresentado sistematicamente em obras posteriores. Além destas, para Moraes, obras como Metamorfoses do Espaço Habitado, publicado em 1988, e Técnica, Espaço, Tempo. Globalização e Meio técnico-científico informacional, de 1994, teriam o propósito de elucidar as bases teóricas e conceituais do sistema de pensamento elaborado por Milton, já que buscariam esclarecer o entendimento feito pelo autor de categorias e conceitos basilares à análise geográfica, assim como, acrescentaríamos, explicitar as articulações existentes entre aqueles instrumentos de análise no interior da “teoria da geografia” proposta pelo autor.

Ao analisar sequencialmente o conjunto das obras de Milton Santos, Moraes sugere ser possível identificar, em linhas gerais, fases onde existiria a preponderância de determinadas posturas teóricas e filosóficas, ainda que a convivência entre correntes e posturas metodológicas “díspares” fosse uma constante ao longo de toda a produção intelectual do autor. Assim, em pese essa miríade de influências presentes em toda a obra de Milton, no início da sua produção intelectual, como já foi dito, nota-se uma clara influência da tradicional geografia francesa de orientação possibilista, e autores como Michel Rochefort, Max Sorre, Etienne Julliard e Pierre George são também referências constantes nas obras de perspectiva “regionalista” produzidas pelo autor nos anos 1960. Posteriormente, nos anos de 1970, Moraes nota que começam a surgir nas discussões propostas por Milton referências ao existencialismo, através da incorporação das ideias de autores como Jean Paul Sartre e Franz Fanon, influências estas que vão se tornar cada vez mais frequentes ao longo de outras obras elaboradas posteriormente por Milton. Com o aprofundamento de seus debates acerca da organização do espaço, a economia das cidades e a urbanização dos países subdesenvolvidos nos anos setenta, as influências do pensamento marxista se tornaram cada vez mais constantes nas obras de Milton, sendo que os livros Espaço e Método e, Espaço e Sociedade seriam, segundo Moraes, dois momentos em que o marxismo (método materialista histórico) de inspiração estruturalista se apresentaria de forma mais contundente. Também, neste período, é ampliado o diálogo de Milton com autores de outros campos disciplinares, tais como a economia, a sociologia, o urbanismo e a história, interlocução notada através de suas revisões bibliográficas e referências que abarcaram autores como, Gunnar Myrdal, Wright Mills, Émile Durkheim, François Perroux, Manuel Castells, Fernand Braudel, Adam Smith, entre outros. Para Moraes, “é lícito considerar que foi por meio da discussão do urbanismo que Milton Santos se apropriou das teorias da economia espacial, da sociologia do desenvolvimento, da antropologia, (...) [foi] (...) através dos temas urbanos que ele se aproxima tanto da discussão marxista quanto da teoria dos sistemas” (p. 29). Aliás, a teoria dos sistemas vai ter, segundo Moraes, um papel de destaque crescente na linguagem adotada por Milton, sobretudo a partir dos anos 1980, momento em que, também, as referências a autores como Adorno, Marcuse e Horkheimer - expoentes da escola de Frankfurt - vão se tornar cada vez mais presentes em seus escritos. Para Moraes, nos anos 1990, seria inclusive possível notar a presença mais marcante de perspectivas de cunho fenomenológico nas obras derradeiras de Milton.

A variedade de influências e tamanha disposição em rever conceitos e posturas teóricas e filosóficas fizeram de Milton Santos um autor que escapa a uma classificação tradicional e um enquadramento rígido de pensador pertencente estritamente a uma determinada corrente filosófica ou escola de pensamento (seja ela o marxismo, a fenomenologia, a abordagem estruturalista, sistêmica, etc.). Resguardando uma postura filosófica eclética e original, sendo um pensador genuinamente criativo e inovador, longe de qualquer postura ortodoxa e aberto a rever frequentemente seu pensamento, debater ideias novas e oferecer uma interpretação própria e coerente às questões que se propunha discutir, Milton assume – podemos então dizer - uma postura de intelectual livre e independente.

A terceira parte do livro, intitulada ‘O retorno do território’: um comentário crítico e algumas ilações contextuais é dedicada especialmente a analisar o texto denominado “O retorno do território”, redigido por Milton e publicado no ano de 1994, na coletânea Território, Globalização e Fragmentação, organizada pelo mesmo. Moraes, conforme a interpretação que apresenta, considera este um escrito até certo ponto “desviante (ou estranho) no percurso de construção da geografia (...)” (p. 115) proposta por Santos na fase final de sua vida. Para Moraes, o texto guardaria certa incoerência em relação a outros trabalhos publicados pelo autor na mesma época, tais como Por uma Economia Política da Cidade, Técnica, Espaço e Tempo, A Urbanização Brasileira e A Natureza do Espaço, porque apresentaria uma visão até certo ponto “simpática” a abordagem pós-moderna acerca do conceito de território e, nele, seria também abandonada a alusão ao Estado e a escala nacional como referências delimitadoras do território.

Moraes justifica a importância dada à análise crítica do referido escrito em razão da “relevância atribuída posteriormente a esse texto no círculo de pesquisadores filiados (...)” (p.116), ou simpáticos à teoria da geografia proposta por Milton. Para Moraes, na medida em que o texto em tela permitia reconciliar a proposta miltoniana com as “(...) perspectivas que se tornaram hegemônicas na geografia brasileira (...)” (p. 116) nas últimas décadas – notadamente de “postura metodológica pós-modernista” – se tornou possível “operar com a teoria de Milton Santos (...) pelo ideário pós-moderno” (p. 116), acobertando, ou simplesmente desconsiderando, o vínculo inapelável que a “formulação mais sofisticada” do conceito de território elaborado pelo autor teria com as “noções modernas de nação e de Estado” na fase derradeira de sua produção (p. 117).

Admitindo, por sua vez, uma intenção deliberada de Santos em absorver elementos afeitos à abordagem pós-moderna do território, Moraes, a partir de uma interpretação classificada por ele mesmo como “especulativa”, apresenta um caminho contextual e de cunho sociológico que poderia, talvez, explicar a eventual posição assumida pelo autor naquele texto. Oferecendo um itinerário de pesquisa que consideraria, especialmente, eventos de natureza política e contextual vivenciados por Milton (como o golpe militar de 1964, sua prisão e exílio), influências e posturas políticas e ideológicas incorporadas por Milton ao longo de sua formação intelectual (como por exemplo, sua provável afinação com o pensamento cosmopolita, com pensamento de esquerda terceiro-mundista, e seu engajamento na luta anti-imperial), bem como sua inquietação investigativa frente às novas proposições teóricas emergidas no último quartel do século XX (reforçada através das participações do autor em eventos onde a literatura pós-modernista era amplamente discutida), Moraes sugere elementos e variáveis de natureza “externalista” que poderiam ter influenciado Milton na reformulação do seu conceito de território, supostamente presente no texto “O retorno do território”, bem como sugere que seja possível avaliar em investigações futuras que abordem o pensamento de Milton Santos “(...) o quanto seus fins práticos determinavam suas formulações, ou o quanto suas ideias e teorias comandavam sua atuação política” (p. 118).

Na última parte do livro, intitulada Epílogo: um uso do conceito de território de Milton Santos, tendo o intuito de contribuir com o enriquecimento das formulações teóricas propostas por Santos e, ao mesmo tempo, demonstrar a operacionalidade de seus conceitos, Moraes apresenta uma possibilidade de utilização do conceito de território usado, desenvolvido por Milton, sobretudo em seus últimos escritos. Em verdade, como admite o próprio Moraes, trata-se de uma incorporação acompanhada de um esforço de recriação do conceito face aos propósitos da problemática que Moraes abordou em sua própria pesquisa, a saber: “a formação territorial no contexto de independência do Brasil e de instalação do novo Estado” (p. 122). Levantando a hipótese de que a dimensão espacial assume papel altamente explicativo no processo de construção dos países periféricos, como o Brasil, a questão com a qual Moraes se depara era, resumidamente, a seguinte: em um território tão vasto, cujo processo de ocupação e uso era marcado por diferenças regionais tão significativas, como definir os lugares ocupados e construídos diretamente pelo colonizador, e como se referir (e pensar) as áreas cuja presença colonial era dispersa ou efêmera?

É, portanto, em busca do equacionamento de tal problema investigativo que Moraes propõe fazer então a distinção entre os conceitos de território e território usado. Para Moraes enquanto o conceito de território teria um caráter “essencialmente político”, referindo-se “(...) ao exercício da soberania sobre um âmbito espacial (...)”, respondendo assim “(...) ao domínio geopolítico, [porque] projetando a pretensão de controle político-territorial por parte do aparato estatal (...)” (p 123.), o conceito de território usado referir-se-ia “(...) ao habitat criado pelo colonizador, abrigando as instalações construídas pelo avanço da colonização nas novas terras (...)” (p. 123-124). Para Moraes, o conceito de território usado seria uma alusão a porção do território diretamente ocupada e transformada pelo processo de colonização, isto é, especialmente às manchas descontínuas do território incorporadas à economia colonial. Por outro lado, aquelas porções do território “não utilizadas” se constituiriam nos chamados “fundos territoriais”, entendidas como sendo “(...) áreas de pretensão de soberania, guardadas para uma ocupação produtiva futura”, ou ainda, “espaços de incorporação e conhecimentos tênues ou inexistentes (...) concebidos como patrimônio básico do país, sendo sua ocupação (...)” (p. 124) objeto central que animava a atuação do projeto do novo Estado. Deste modo, articulando os conceitos de território, território usado e fundos territoriais, Moraes propõe uma constelação de conceitos operacional à investigação do processo de formação territorial do Brasil, apresentando também um sentido e uma aplicação cabível ao conceito de território usado.

Constituindo-se numa proposta de interpretação da obra de Milton Santos a leitura apresentada por Moraes não é a única possível, permanecendo assim os escritos de Santos abertos a outras possibilidades de interpretação e compreensão dos seus sentidos e significados. Isso se aplica em especial ao entendimento distinto possível de ser realizado do texto “O retorno do território” e do conceito de “território usado”, explorados por Moraes a partir de determinada perspectiva em seu trabalho aqui apresentado.

Por fim, vale destacar que recorrendo a uma linguagem clara, objetiva e elegante, e apresentando uma metodologia de investigação frutífera quanto aos resultados possíveis de serem alcançados (neste e noutros trabalhos de temática semelhante), Moraes nos apresenta uma interpretação crítica e coesa da obra de Milton Santos. Obra seminal, suscita profunda reflexão sobre a evolução do pensamento de Milton: constata rupturas, lacunas e reformulações operadas em suas bases teóricas e filosóficas; identifica as origens e os avanços alcançados em seu esforço constante de formulação de um sistema teórico e de método próprios à investigação geográfica. Assim, considerando o intento inicial de Moraes de através de seu livro prestar um reconhecimento público à memória e ao legado teórico de Milton, podemos dizer que homenagem maior ao grande geógrafo brasileiro, certamente, não poderia ser oferecida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2015
  • Aceito
    23 Mar 2016
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