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Uso do Território e Valorização Financeira: O Grupo Cosan e o Setor Sucroenergético Brasileiro

Resumo

As mudanças estruturais ocorridas no capitalismo contemporâneo trouxeram novas condicionantes para os usos do território no Brasil. Nesse sentido, observa-se a inserção de novos agentes da esfera financeira, notadamente fundos de investimentos diversos, investidores corporativos e indivíduos de alta renda, que passam a participar, e em grande medida controlar, direta ou indiretamente, processos produtivos dos mais diferentes setores no território brasileiro. Este processo foi por nós avaliado, tomando como situação empírica o Grupo Cosan S.A., principal controlador do setor sucroenergético brasileiro (produção de cana-de-açúcar e derivados), analisada a partir de dados secundários sobre a produção agrícola e agroindustrial do referido grupo, bem como estratégias e características ligadas à financeirização da empresa (abertura de capital, comportamento dos investidores, dentre outras), a partir de informações obtidas em bancos de dados públicos e privados. A análise do uso do território pelo Grupo Cosan permite identificarmos transformações associadas a inserção do referido agente no atual contexto de financeirização da economia global e as implicações territoriais que lhe são inerentes. As estratégias de uso do território praticadas pelo Grupo Cosan, no atual contexto de acumulação financeira, foram pautadas principalmente pela necessidade de valorização financeira, o que ocorreu fundamentalmente pelo acionamento de fundos públicos e pela expansão territorial das atividades produtivas.

Palavras-chave:
Financeirização da economia; Uso do território; Setor sucroenergético; Cosan S.A.

Abstract

The structural changes that have occurred in contemporary capitalism, brought new conditions for the use of territory in Brazil. Consequently, it can be observed the insertion of new agents from the financial sphere, notably investment funds, corporate investors, and high net-worth individuals, who started to participate, directly and indirectly, in the productive processes in various sectors that take place in the Brazilian territory. This process was evaluated in this paper, through the empirical situation of Cosan Group, the main controller of the Brazilian sugar-energy sector (production of sugarcane and sugarcane derivatives). Our analysis was based on secondary data on the agricultural and agro-industrial production of this group, as well as the strategies and characteristics related to the financialization of the company (such as initial public offering, investor behaviour, among others) and financial issues, using information obtained from public and private databases. The analysis of the use of territory by the Cosan Group makes it possible to identify the transformations associated with the insertion of this agent into the current dynamics of financialization of the economy and the inherent territorial implication of this process. The strategies of the use of territory adopted by the Cosan Group, in the current context of financial accumulation, were mainly guided by the need for financial valuation, which occurred fundamentally through the mobilization of public funds and the territorial expansion of productive activities.

Keywords:
Financialization of the economy; Use of territory; Sugar-energy sector; Cosan S.A.

INTRODUÇÃO

Ao passo em que as relações de produção capitalistas apresentam características distintas em cada momento histórico, parece correto indicar que assim também o é para cada formação socioespacial (SANTOS, 2012SANTOS, M. Natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012 [1996].). Deste modo, uma análise do quadro geral do modo de produção indica que mudanças estruturais e conjunturais foram capazes de estabelecer profundas transformações no capitalismo mundial após a segunda metade do século XX, com amplas implicações no nível das economias centrais e periféricas, tal como ocorreu no Brasil.

Tais transformações se acentuaram após a década de 1970, notadamente a partir do esgotamento do modelo fordista e da emergência do chamado regime de acumulação flexível. No entanto, a flexibilidade e a hipermobilidade do capital em suas diferentes formas, características centrais desse regime (HARVEY, 1989HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1989.; BENKO, 1999BENKO, G. Economia, espaço e globalização na aurora do século XXI. São Paulo: Hucitec, 1999.; ARRIGUI, 2008ARRIGUI, G. A lógica territorial do capitalismo histórico. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2008. ; SASSEN, 2017SASSEN, S. Territory, authority, rights: from Medieval to Global Assemblages. Princeton University Press. 2017.), somente foram possíveis em um meio geográfico denso em técnica, ciência e informação, no âmbito das transformações sociais referidas (SANTOS, 2012SANTOS, M. Natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012 [1996].; CONTEL, 2020CONTEL, F. B. The financialization of the Brazilian territory: from global forces to local dynamisms. Springer, 2020. https://doi.org/10.1007/978-3-030-40293-8
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). Foi a partir desses processos e no âmbito da acumulação flexível que se estabeleceu a atual dominância da valorização financeira, característica central do capitalismo contemporâneo.

De caráter polissêmico, o fenômeno da financeirização se caracteriza sobretudo pela dominância da valorização financeira nos processos de acumulação. Isso se deve não só pela materialidade do período (desenvolvimento das técnicas de informação que permite a hipermobilidade dos capitais), mas também pela desregulamentação e abertura dos mercados financeiros nacionais (concernente ao universo das normas), o que coloca a finança como elo cada vez mais central nas decisões e intenções políticas, sociais e econômicas das instituições e dos indivíduos (CHESNAIS, 2005CHESNAIS, F. A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo , 2005. , 2010CHESNAIS, F. A proeminência da finança no seio do “capital em geral”, o capital fictício e o movimento contemporâneo de mundialização do capital. In: BRUNHOFF, S., et al. (org.). A finança capitalista. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010. p. 95-183.; LAPAVITSAS, 2009 LAPAVITSAS, C. Financialised Capitalism: crisis and financial expropriation. Historical Materialism, 17(2):114-148, 2009. https://doi.org/10.1163/156920609X436153
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, 2011LAPAVITSAS, C. Theorizing financialization. Work Employment Society. 25:611, 2011. https://doi.org/10.1177/0950017011419708
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).

A dominância da valorização financeira, no entanto, não deve ser medida, necessariamente, pela sua importância quantitativa frente a esfera produtiva, mas sim por um caráter qualitativo. Assim, pode-se aferir inúmeras mudanças nas novas relações entre a esfera produtiva e a financeira. São transformações no âmbito das relações e da gestão do trabalho, e na própria organização do processo produtivo (CHESNAIS, 2005CHESNAIS, F. A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo , 2005. , 2010CHESNAIS, F. A proeminência da finança no seio do “capital em geral”, o capital fictício e o movimento contemporâneo de mundialização do capital. In: BRUNHOFF, S., et al. (org.). A finança capitalista. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010. p. 95-183.; PAULANI, 2009PAULANI, L. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos avançados. n. 23, v. 66, 2009. https://doi.org/10.1590/S0103-40142009000200003
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). Nesse sentido, podemos questionar - como essas transformações aparecem e se materializam no território?

Dessa forma, observamos que, ao passo em que as transformações do capitalismo contemporâneo levam à centralidade da valorização financeira para a acumulação, o próprio território é acionado a participar do processo de financeirização, notadamente como plataforma de valorização. Ao considerar tal situação, o artigo propõe compreendê-la a luz de um exemplo empírico, a nosso ver muito elucidativo de como a valorização financeira é permitida, em última análise, por processos de acumulação que ocorrem no âmbito do território usado.

O exemplo tomado se refere ao comportamento do capital financeiro no bojo do agronegócio brasileiro, especificamente no setor sucroenergético, cuja articulação aos agentes e capitais internacionais se intensificou após a virada do século XXI. Fomentada por condições estruturais do capitalismo contemporâneo, mas também por questões conjunturais da política econômica brasileira, a financeirização do agronegócio tem reforçado a inserção dependente e subordinada da economia e do território brasileiros na divisão internacional do trabalho.

O agente analisado é o Grupo Cosan S.A., que se inseriu de modo contundente na valorização financeira após o ano 2000, com a abertura de capital em bolsa de valores no Brasil e no exterior. Esse processo levou ao aumento da participação de agentes e capitais financeiros em sua composição acionária (sobretudo fundos de investimentos, agentes corporativos e indivíduos de alta renda) e ao direcionamento das estratégias empresariais para a necessidade de remuneração do capital financeiro investido. De modo a suprir essa necessidade, o crescimento econômico do Grupo Cosan alcança, necessariamente uma nova escala territorial, representada pela expansão da produção e do controle do setor, amplamente suportada por fundos públicos e às custas de endividamento.

O artigo se divide em duas partes, além da introdução e das considerações finais. Em um primeiro momento, nos detemos a delimitar alguns conceitos e proposições teóricas que orientam a análise. No momento seguinte, focamos em aspectos empíricos do exemplo estudado, ao demonstrar a dimensão territorial da valorização empreendida pelo Grupo Cosan, no âmbito do setor sucroenergético brasileiro.

TERRITÓRIO E FINANCEIRIZAÇÃO

Diversos trabalhos e pesquisadores têm discutido as bases epistemológicas da financeirização, termo polissêmico e abrangente, que designa um processo complexo e recente de transformação do regime de acumulação capitalista (CHESNAIS, 2005CHESNAIS, F. A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo , 2005. , 2010CHESNAIS, F. A proeminência da finança no seio do “capital em geral”, o capital fictício e o movimento contemporâneo de mundialização do capital. In: BRUNHOFF, S., et al. (org.). A finança capitalista. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010. p. 95-183.; LAPAVITSAS, 2009 LAPAVITSAS, C. Financialised Capitalism: crisis and financial expropriation. Historical Materialism, 17(2):114-148, 2009. https://doi.org/10.1163/156920609X436153
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, 2011LAPAVITSAS, C. Theorizing financialization. Work Employment Society. 25:611, 2011. https://doi.org/10.1177/0950017011419708
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; PIKE, POLLARD, 2010PIKE, A; POLLARD, J. Economic Geographies of Financialization. Economic Geography. Clark University, v. 86, n. 1, 2010. p. 29-52. https://doi.org/10.1111/j.1944-8287.2009.01057.x
https://doi.org/10.1111/j.1944-8287.2009...
; CHRISTOPHER, 2015 CHRISTOPHERS, B. The limits of financialization. Dialogues in human geography. 2015, n.5 v.2, 183-200. https://doi.org/10.1177/2043820615588153
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).

Caracterizado sobretudo pela predominância da valorização financeira no âmbito das relações de produção capitalistas, a atual financeirização somente foi possível pela desregulamentação e abertura dos mercados nacionais, inicialmente nos países centrais e posteriormente nos países periféricos, o que facilitou a hipermobilidade dos fluxos internacionais de capitais (CHESNAIS, 2005CHESNAIS, F. A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo , 2005. ; PAULANI, 2009PAULANI, L. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos avançados. n. 23, v. 66, 2009. https://doi.org/10.1590/S0103-40142009000200003
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). Foram amplas as suas consequências, tanto para os setores produtivos quanto para os indivíduos, uma vez que as finanças passaram a permear as tomadas de decisões no âmbito político, socioeconômico e até mesmo na escala da vida cotidiana (LAPAVITSAS, 2009 LAPAVITSAS, C. Financialised Capitalism: crisis and financial expropriation. Historical Materialism, 17(2):114-148, 2009. https://doi.org/10.1163/156920609X436153
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; DARDOT, LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo , 2016. ). Arroyo (2006ARROYO, M A vulnerabilidade dos territórios nacionais Latino-americanos: o papel das finanças. In: LEMOS, A. I. G.; SILVEIRA, M. L.; ARROYO, M. (org). Questões territoriais na América Latina. Buenos Aires, São Paulo: USP, Clacso, 2006. p.177-190. ) aponta que o principal problema decorrente de tal processo seria sobretudo o seu caráter rentista, a partir de operações meramente baseadas em lucros especulativos.

Para o setor produtivo, que nos interessa especialmente pela dimensão do uso do território que efetiva, o processo de financeirização ampliou a capacidade de grupos e setores inteiros de captar recursos sem a ajuda dos bancos, através do aumento da participação das instituições que se especializaram na acumulação pela via das finanças. Esse é o caso de fundos de investimentos diversos, fundos de pensão, fundos soberanos, seguradoras e até mesmo os próprios bancos na função de administradores desses ativos (PAULANI, 2009PAULANI, L. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos avançados. n. 23, v. 66, 2009. https://doi.org/10.1590/S0103-40142009000200003
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). A partir de tais posturas do capital financeiro, se destacam duas implicações importantes.

Uma primeira implicação é o redirecionamento das atividades bancárias a partir de 1970, que passaram a se ocupar, destacadamente, do fornecimento de serviços financeiros voltados para o consumo doméstico, constituindo uma importante esfera de expropriação financeira, bem demonstrada por Lapavitsas (2009 LAPAVITSAS, C. Financialised Capitalism: crisis and financial expropriation. Historical Materialism, 17(2):114-148, 2009. https://doi.org/10.1163/156920609X436153
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, 2011LAPAVITSAS, C. Theorizing financialization. Work Employment Society. 25:611, 2011. https://doi.org/10.1177/0950017011419708
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). Outra implicação importante, é a possibilidade da exterioridade da propriedade do capital em relação à produção em si (CHESNAIS, 2005CHESNAIS, F. A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo , 2005. , 2010CHESNAIS, F. A proeminência da finança no seio do “capital em geral”, o capital fictício e o movimento contemporâneo de mundialização do capital. In: BRUNHOFF, S., et al. (org.). A finança capitalista. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010. p. 95-183.). Assim, os títulos e as ações (que se multiplicam no contexto da financeirização) se apresentam para quem os detêm como um capital capaz de “produzir” um fluxo de renda regular, que se origina a partir de uma acumulação que não se importa por quem ou como foi produzida (CHESNAIS, 2010CHESNAIS, F. A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo , 2005. , p. 98). Em concordância, Paulani (2009PAULANI, L. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos avançados. n. 23, v. 66, 2009. https://doi.org/10.1590/S0103-40142009000200003
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, p. 27) indica como a financeirização impôs ao capital produtivo a prioridade da maximização do capital acionário.

Essa necessidade tornou-se um imperativo para as empresas financeirizadas que passaram a adequar suas estratégias com o intuito de maximização do valor acionário e da remuneração dos ativos investidos. Tudo isso às custas muitas vezes de superexploração do trabalho e de recursos naturais (PAULANI, 2009PAULANI, L. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos avançados. n. 23, v. 66, 2009. https://doi.org/10.1590/S0103-40142009000200003
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; DELGADO, 2012DELGADO, G. C. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: UFRGS, 2012.).

Assim, na medida em que é a produção em si que remunera a acumulação financeira, uma análise totalizadora pela ótica da Geografia não deve perder de vista o fato de que, ao final, a remuneração do capital financeiro está diretamente vinculada aos processos produtivos que se concretizam a partir do uso do território, com suas dinâmicas de circulação, de controle e de organização. Desse modo, como colocou Souza (2016SOUZA, J. G. Local-global: território, finanças e acumulação na agricultura. In: LAMOSO, L. P. (ORG). Temas do desenvolvimento econômico brasileiro. Curitiba: Íthala, 2016. p. 55 - 97.), pode-se entender o capital produtivo como base de potencialização e de realização da acumulação financeira.

Nesse sentido, Pike e Pollard (2010PIKE, A; POLLARD, J. Economic Geographies of Financialization. Economic Geography. Clark University, v. 86, n. 1, 2010. p. 29-52. https://doi.org/10.1111/j.1944-8287.2009.01057.x
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) indicam a importância da Geografia para a compreensão do processo contemporâneo de financeirização da economia. Para os autores, analisar o fenômeno da financeirização isolado da esfera produtiva pode levar a um entendimento equivocado de que o capitalismo financeiro global não possui “lugar” ou é “desespacializado”. De tal modo, os autores denominam de “espaços da financeirização” a materialidade da produção necessária à remuneração dos capitais especulativos, bem como a dos serviços financeiros (PIKE, POLLARD, 2010PIKE, A; POLLARD, J. Economic Geographies of Financialization. Economic Geography. Clark University, v. 86, n. 1, 2010. p. 29-52. https://doi.org/10.1111/j.1944-8287.2009.01057.x
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, p. 36).

Deste modo, pode-se dizer que de um lado existem espaços centrais, caracterizados pela função de centros financeiros e de controle da dinâmica financeira global. Nestes lugares se originam agentes também centrais que controlam, via instrumentos financeiros, parte significativa da produção mundial (DOWBOR, 2017DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Outras Palavras, 2017. ; PESSANHA, 2019PESSANHA, R. M. A “indústria” dos fundos financeiros: potência, estratégias e mobilidade no capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência , 2019.). E de outro lado, existem também os espaços subordinados que participam passivamente na dinâmica financeira, tornando-se ainda mais dependentes, uma vez que não participam dos centros de decisão, notadamente concentrados nos países centrais da economia capitalista (AMARAL, 2013AMARAL, M. S. Breves considerações acerca das teorias do imperialismo e da dependência ante a financeirização do capitalismo contemporâneo. Pensata., v. 3, p. 80-96, 2013.). Esse é o caso dos países latino-americanos, como o Brasil, vistos agora como “mercados emergentes” aos olhos de investidores, tornados mera plataforma de valorização e muito mais vulneráveis, porque submetidos aos interesses do mercado financeiro (ARROYO, 2006ARROYO, M A vulnerabilidade dos territórios nacionais Latino-americanos: o papel das finanças. In: LEMOS, A. I. G.; SILVEIRA, M. L.; ARROYO, M. (org). Questões territoriais na América Latina. Buenos Aires, São Paulo: USP, Clacso, 2006. p.177-190. , p.178).

É nesse contexto que observamos, a partir do uso do território pelo Grupo Cosan, como a valorização financeira empreendida a partir dos anos 2000 (quando ocorreu a abertura do capital do Grupo) se estabeleceu a partir de uma relação dialética entre fatores e variáveis que possuem uma dimensão global, própria do contexto de financeirização, mas também uma dimensão local, própria do território nacional. Tal mecanismo é aqui compreendido como fundamental para o processo de acumulação que remunera, em última análise, os agentes e capitais investidos no Grupo.

O GRUPO COSAN: DINÂMICAS RECENTES DE USO DO TERRITÓRIO E RELAÇÃO COM A VALORIZAÇÃO FINANCEIRA

A formação do Grupo Cosan remonta à década de 1930, com a chegada da família Ometto ao Brasil e o início da aquisição de terras pela mesma (GUEDES et al. 2016GUEDES, S. et. al. Trajetórias e indicadores econômico-financeiros na agroindústria canavieira: o caso do grupo Cosan. In: SANTOS, G. R. Quarenta anos de etanol em larga escala no Brasil: desafios, crises e perspectivas. Brasília: IPEA, 2016. p. 83-112.). Desde o início do século XX, a Irmãos Ometto e Cia. (denominação inicial do que posteriormente se tornaria o Grupo Cosan) se articulou junto ao Estado brasileiro para a garantia de ampla sustentação à produção de cana-de-açúcar e derivados, desenvolvendo suas atividades e ampliando sua atuação através da compra de terras e usinas no estado de São Paulo (BOECHAT, PITTA, 2020BOECHAT, C. A.; PITTA, F. T. Flex crops e a mobilidade do capital da Cosan/Raízen. In: BOECHAT, C. A. (Org). Geografia da crise no agronegócio sucroenergético: land grabbing e flex crops na financeirização recente do campo brasileiro. Rio de Janeiro: Consequência, 2020. p. 83-125. ).

Ao fim do século XX, houve uma reconfiguração das ações estatais de fomento das atividades da cana-de-açúcar. Elas passaram a funcionar como políticas “indutoras” por meio do financiamento do capital produtivo sucroenergético, da construção de modais de transporte, da ampliação de mercados, de incentivos à pesquisa, entre outras ações. Essa reconfiguração se insere em um contexto nacional e internacional (Quadro 1) favorável à expansão da produção de cana-de-açúcar no Brasil.

Quadro 1
Síntese dos fatores internos e externos indutores da expansão das atividades sucroenergéticas no Brasil após 2000

Conformada uma conjuntura favorável ao setor sucroenergético, o Grupo Cosan passou por um crescimento expressivo a partir dos anos 2000, adquirindo usinas e firmando parcerias internacionais (GUEDES et al, 2016GUEDES, S. et. al. Trajetórias e indicadores econômico-financeiros na agroindústria canavieira: o caso do grupo Cosan. In: SANTOS, G. R. Quarenta anos de etanol em larga escala no Brasil: desafios, crises e perspectivas. Brasília: IPEA, 2016. p. 83-112.; BOECHAT, PITTA, 2020BOECHAT, C. A.; PITTA, F. T. Flex crops e a mobilidade do capital da Cosan/Raízen. In: BOECHAT, C. A. (Org). Geografia da crise no agronegócio sucroenergético: land grabbing e flex crops na financeirização recente do campo brasileiro. Rio de Janeiro: Consequência, 2020. p. 83-125. ; SILVA, 2022SILVA, L. R. Agronegócio globalizado e uso do território no contexto de financeirização: o Grupo Cosan e o setor sucroenergético brasileiro. 2022. 252 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2022. http://doi.org/10.14393/ufu.te.2022.5313.
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). No entanto, a inserção contundente às dinâmicas da financeirização se deu, ainda na primeira década do século, a partir da abertura do capital do Grupo, com duas IPOs (Ofertas Públicas Iniciais) importantes: a primeira em 2005, quando a Cosan S.A. abriu seu capital na B3 (Bolsa de Valores e Mercado Futuro de São Paulo), arrecadando US$ 403 milhões; e outra em 2007, com a criação da holding Cosan Limited e o início da comercialização de seus papéis na NYSE (New York Stock Exchange) arrecadando aproximadamente US$ 1 bilhão (REUTERS, 2007REUTERS. Brazil Cosan IPO raises $1 bln, less than planned. Reuters. 2007. Disponível em: https://www.reuters.com/article/brazil-cosan-ipo/brazil-cosan-ipo-raises-1-bln-less-than-planned-idUSN1636429620070816. Acesso em: 9 jun. 2021.
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).

A abertura de capital em bolsa de valores representou a consolidação das demandas de valorização acionária para o Grupo Cosan, em um processo difícil de ser revertido. Destaca-se que a própria dinâmica dos mercados bursáteis tem a capacidade de acelerar a concentração e centralização do capital, como indicou Chesnais (2010CHESNAIS, F. A proeminência da finança no seio do “capital em geral”, o capital fictício e o movimento contemporâneo de mundialização do capital. In: BRUNHOFF, S., et al. (org.). A finança capitalista. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010. p. 95-183., p. 132), a partir de sua capacidade de controle patrimonial emancipado da gestão da produção, o que estabelece, também, estratégias específicas por parte dos agentes financeiros e produtivos.

Dessa forma, a abertura de capital do Grupo Cosan permitiu a entrada de capitais estrangeiros que buscavam se valorizar a partir de suas atividades, o que ocorreu através da diversificação de atividades e expansão territorial da atuação do Grupo Cosan.

Essa expansão, vale ressaltar, ocorreu principalmente a partir da aquisição de unidades sucroenergéticas já existentes (brownfields). Essa é uma característica central das estratégias do Grupo Cosan, que expande sua capacidade produtiva sem criar novos ativos fixos e, portanto, sem contribuir de forma significativa para o aumento da capacidade produtiva do setor sucroenergético como um todo.

Quanto à entrada de novos agentes nas atividades empreendidas pelo Grupo Cosan, destaca-se a criação da Raízen, uma joint venture entre a Cosan S.A. e a Royal Dutch Shell. Desde sua criação, é a Raízen que comanda o capital produtivo sucroenergético do Grupo Cosan, atuando diretamente sobre a produção de cana-de-açúcar e derivados no território brasileiro. Em 2020, a empresa alcançou uma receita líquida de R$ 119,7 bilhões, o que a colocou em 4º lugar no ranking das maiores empresas do Brasil em faturamento (COSAN, 2023COSAN. Prêmios e reconhecimentos. 2023. Disponível em: https://www.cosan.com.br/comunicacao-e-imprensa/premios-e-reconhecimentos/. Acesso em: 13 abr. 2023.
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). No mesmo ano, a Raízen contava com 26 unidades industriais sucroenergéticas (Figura 1), distribuídas nos estados de São Paulo (24 unidades), Goiás (uma unidade) e Mato Grosso do Sul (uma unidade). Somadas, detinham capacidade de moagem anual de 73 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, o que a consolidou como a maior empresa do setor sucroenergético (RAÍZEN, 2020RAÍZEN. Sobre a Raízen. 2020. Disponível em: https://www.raizen.com.br/sobre-a-raizen. Acesso em 14 mar. 2020.
https://www.raizen.com.br/sobre-a-raizen...
).

Podemos afirmar que a abertura do capital foi um marco para a gestão do Grupo Cosan. A empresa passou de uma organização familiar de capital fechado, para uma “S.A.”, com gestão corporativa complexa e adoção de estratégias cada vez mais inseridas em um esquema atualizado de valorização financeira global. Do mesmo modo, essas mudanças estabeleceram a centralidade do papel dos acionistas, que passaram a orientar, através da demanda pela valorização de seus ativos, as estratégias de uso do território efetivadas pelo processo produtivo.

Figura 1
Unidades produtivas da Raízen e área plantada com cana-de-açúcar (hectares), nos municípios de Goiás, Mato Grosso do Sul e São Paulo (2018)

Após a abertura do capital do Grupo Cosan houve uma reorganização do controle proprietário, com a inserção de novos agentes na figura de acionistas ordinários (com direito a voto nas decisões da empresa) e com controle escalonado a partir da Cosan Limited. Até sua dissolução e incorporação pela Cosan S.A., em 2021COSAN. Avisos, comunicados e fatos relevantes. 2021. Disponível em: https://www.cosan.com.br/publicacoes-cvm-e-sec/avisos-comunicados-e-fatos-relevantes/. Acesso em: 10 dez. 2021.
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, a Cosan Limited possuía sede em Bermudas (paraíso fiscal), território britânico ultramarino.

A composição dos acionistas, seja da Cosan S.A. seja da Cosan Limited, se altera constantemente devido à hipermobilidade que os capitais adquirem no contexto da própria financeirização. No entanto, estabelecido um recorte para análise, observa-se que há participação significativa de comando direto e indireto de agentes estrangeiros (Figura 2). O organograma considera o percentual de distribuição total das ações (ordinárias e preferenciais), mas destaca apenas os agentes que possuem controle de ações ordinárias. O restante das ações está em tesouraria (não comercializadas e sob comando da companhia) ou em free float, o que significa que são negociadas em bolsa no formato de ações preferenciais e estão no controle de investidores individuais, que majoritariamente atuam através de fundos financeiros.

Figura 2
Composição acionária da Cosan Limited e de suas principais subsidiárias (2018)

Ao considerar a composição da holding Cosan Limited em 2018 - recorte temporal estabelecido a partir da disponibilidade de dados da Economatica -, temos a presença de agentes nacionais - concentrados sobretudo no chamado “grupo controlador” - e de agentes estrangeiros. Nesse sentido, temos gestores de origem inglesa, como o M&G Investment Management Limited e o Eastspring Investment Singapore Limited, e gestores estadunidenses, com a Renaissance Technologies.

Além dos fundos presentes na Figura 2, destacamos que outros agentes já fizeram parte do controle acionário da empresa, como: Fidelity Investments, Wellington Management Company, Llp, Blackrock Inc, Janus Capital Management e Skagen AS (ECONOMÁTICA, 2020 ECONOMATICA. Disponível em: https://economatica.com/. Acesso em: 10 fev. 2020.
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; SILVA, 2022SILVA, L. R. Agronegócio globalizado e uso do território no contexto de financeirização: o Grupo Cosan e o setor sucroenergético brasileiro. 2022. 252 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2022. http://doi.org/10.14393/ufu.te.2022.5313.
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).

A partir da Figura 2 também é possível observar que a maior parte do controle acionário da Cosan S.A. (cujas ações são comercializadas na B3) pertencia a Cosan Limited, o que fazia parte da estratégia de controle por parte da holding. No entanto, sobretudo nos primeiros anos após a abertura de capital do Grupo, outros agentes, nacionais e estrangeiros, participaram do controle acionário da Cosan S.A., como: o Credit Suisse Hedging-Griffo C. V. S.A, Wellington Management Company, Llp, Lewington Pte. Ltd, Anniston Finance, entre outros (ECONOMÁTICA, 2020 ECONOMATICA. Disponível em: https://economatica.com/. Acesso em: 10 fev. 2020.
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; SILVA, 2022SILVA, L. R. Agronegócio globalizado e uso do território no contexto de financeirização: o Grupo Cosan e o setor sucroenergético brasileiro. 2022. 252 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2022. http://doi.org/10.14393/ufu.te.2022.5313.
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).

Ao reconhecer os movimentos de ingresso e saída de diferentes agentes, é possível constatar que há uma grande mobilidade de capitais, que se movimentam com maior fluidez através da esfera financeira, muito mais do que poderiam fazer na esfera material. Essa hipermobilidade dos capitais, característica do capitalismo financeiro contemporâneo, também ocorre no âmbito da atuação dos fundos de investimentos detentores de ações preferenciais. No que se refere a essas ações, tanto da Cosan Limited quanto da Cosan S.A., observou-se a presença predominante de fundos de investimento sob controle de grandes bancos nacionais e estrangeiros, além de seguradoras e gestoras de investimentos, como: BNP Paribas, Credit Suisse, Itaú Unibanco, Santander, BTG Pactual, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Porto Seguro, XP Investimentos, Órama, Az Quest, entre outros (ECONOMÁTICA, 2020 ECONOMATICA. Disponível em: https://economatica.com/. Acesso em: 10 fev. 2020.
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).

A entrada dos fundos de investimentos representou uma importante capitalização das atividades do Grupo Cosan e coincidiu com transformações territoriais da produção sucroenergética. Assim, é pelo território, por sua dimensão material e por seu uso, que, em última instância, o capital financeiro investido na empresa é remunerado.

Dimensionada a participação de agentes permitida pela financeirização, é preciso observar como se comportou o crescimento que remunerou esse capital investido no período analisado. Como importa para análise a dimensão do uso do território, averiguamos o desempenho econômico da Cosan S.A. e da Raízen (Figuras 3 e 4), que se ocupam, precisamente, do processo produtivo sucroenergético no território brasileiro.

Figura 3
EBITDA e lucro líquido da Cosan S.A. entre 2005 e 2020, em milhares de R$

Figura 4
EBITDA e lucro líquido da Raízen S.A. entre 2013 e 2020, em milhares de R$

O crescimento do capital que remunera os investidores refletiu concomitantemente na valorização dos capitais investidos, seja através do aumento dos preços das ações, seja através da distribuição de dividendos. Para dimensionar essa valorização, pode-se observar, por exemplo, a distribuição de dividendos pela Cosan S.A: apenas entre 2011 e 2021, foram pagos aproximadamente R$ 6 bilhões aos acionistas (COSAN, 2022COSAN. Serviço aos investidores. 2022. Disponível em: https://www.cosan.com.br/servicos-aos-investidores/dividendos/. Acesso em: 25 set. 2022.
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). Uma análise ampla do crescimento econômico e da valorização dos capitais investidos indica que tal desempenho se relaciona com fatores externos e internos que influenciaram a dinâmica geral do setor sucroenergético nesse período.

Do ponto de vista externo, pode-se destacar o papel dos preços internacionais do açúcar e do petróleo como fatores de influência na demanda de açúcar e etanol nos mercados domésticos e internacionais, que orientam a estruturação do rol produtivo das empresas do setor. Assim, o aumento da produção de açúcar no Brasil, por exemplo, também acompanhou o aumento dos preços internacionais da commodity, com picos nas safras de 2010/2011 e 2016/2017, o que refletiu na dinâmica financeira do Grupo Cosan.

No entanto, o aumento dos preços internacionais por si só não explica a expansão das atividades que, como indicado, dependeram em muito da sustentação política do Estado e dos repasses de fundos públicos que viabilizaram a expansão do capital produtivo do Grupo Cosan, incluindo a aquisição de brownfields e a implantação de greenfields.

Nesse sentido, ao analisar a dinâmica de preço das ações do Grupo Cosan entre 2015 e 2020, Oliveira e Andrade (2020OLIVEIRA, S. C.; ANDRADE, A. G. Significant factors in the stock prices of the main companies in the sugar-energy sector in Brazil. Research, Society and Development, v. 9, n. 9, p. e241997117, 2020. https://doi.org/10.33448/rsd-v9i9.7117
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) destacaram a importância de variáveis ligadas diretamente ao processo produtivo como as que mais influenciaram os preços das ações.

Assim, uma vez que a expansão da infraestrutura produtiva é, em muito, financiada por fundos públicos, se conforma a importância dos repasses realizados pelo Estado - como os do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) - como fatores de influência na dinâmica de valorização do Grupo Cosan, sendo essenciais para dar vazão às demandas internacionais e domésticas.

Tal sustentação do Grupo via acesso aos fundos públicos pode ser observada a partir de seu desempenho antes da crise financeira de 2008 e depois, quando foram colocadas em prática uma série de políticas anticíclicas com impactos diretos no setor.

Assim, ao passo em que houve a necessidade do Grupo de expandir territorialmente suas atividades, estratégias foram colocadas em prática como a própria abertura do capital do Grupo e também o acionamento do Estado brasileiro no financiamento da empreitada, o que culminou na aquisição de 19 unidades produtivas após o ano 2000. Entre 2007 e 2009, por exemplo, quando os recursos disponíveis ao Grupo via BNDES passaram de R$ 71,2 milhões para um pouco mais de R$ 1,5 bilhões, a empresa adquiriu cinco unidades produtivas (SILVA, 2022SILVA, L. R. Agronegócio globalizado e uso do território no contexto de financeirização: o Grupo Cosan e o setor sucroenergético brasileiro. 2022. 252 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2022. http://doi.org/10.14393/ufu.te.2022.5313.
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). Esses fatos muito provavelmente influenciaram o desempenho econômico da empresa após 2010, que, em geral apresentou crescimento durante toda a década.

Desse modo, torna-se importante considerar a destinação de fundos públicos para o setor como um todo, bem como para o Grupo Cosan, especificamente, revelando o modo como o Estado oferece sustentação ao setor sucroenergético e à empresa. No caso do Grupo Cosan é possível observar a centralidade do financiamento para a expansão produtiva, que recebeu recursos através da Cosan S.A. e da Raízen S.A, com foco em projetos de expansão de capacidade produtiva, logística, reforma e plantio de canaviais e construção de infraestrutura de armazenagem (BNDES, 2021BNDES - Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social. Consulta operações. 2021. Disponível em https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/consulta-operacoes-bndes. Acesso em: 7 ago. 2021.
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; SILVA, 2022SILVA, L. R. Agronegócio globalizado e uso do território no contexto de financeirização: o Grupo Cosan e o setor sucroenergético brasileiro. 2022. 252 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2022. http://doi.org/10.14393/ufu.te.2022.5313.
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).

Observa-se então que, nesse início de século, o Grupo Cosan conheceu um expressivo crescimento econômico, amplamente fomentado por fundos públicos, que possibilitou a valorização financeira dos ativos investidos em seus negócios. Mas como isso se concretiza em termos de uso do território? Dois pontos, intrinsicamente relacionados, precisam ser destacados para responder a essa questão.

Um primeiro apontamento é que, no que se refere a atuação do Grupo Cosan no setor sucroenergético, o crescimento econômico teve como base a expansão territorial de suas atividades, representado pela expansão de sua capacidade produtiva e aumento do controle de processamento da cana-de-açúcar no território brasileiro, em muito ocorrida através de aquisição de novas unidades, sobretudo após a abertura de capital.

Nesse sentido, destaca-se que, no período analisado, a maior parte das aquisições feitas pelo Grupo Cosan ocorreu antes mesmo da criação da Raízen em 2011, e se intensificaram após abertura de capital em bolsa nacional e estrangeira: até 2020, das 26 unidades produtivas controladas pelo Grupo Cosan, 17 foram adquiridas após os processos de abertura de capital. Observa-se que a dimensão territorial dessa expansão (Figura 5) acompanhou a recente dinâmica de crescimento das atividades do setor como um todo (CASTILLO, 2015CASTILLO, R. Dinâmicas recentes do setor sucroenergético no Brasil: competitividade regional e expansão para o bioma cerrado. Geographia, Niterói, v. 17, n. 35, 2015, p. 95-119. https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2015.v17i35.a13730
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).

Figura 5
Área plantada com cana-de-açúcar (ha), e unidades da Raízen por microrregiões dos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul e São Paulo (anos selecionados)

Importante ressaltar que a expansão territorial das atividades dialoga diretamente com a necessidade de remuneração financeira, ou seja, na medida em que ocorre a abertura de capital da empresa a valorização do capital e a remuneração de acionistas se impõem como metas, ocorre concomitantemente o acesso sistemático a recursos de públicos, bem como a expansão territorial de atividades em busca de novos ganhos de escala e de mercado (ampliação do número de unidades agroindustriais e da área de cana-de-açúcar plantada no país).

Assim, trata-se de um processo direto de acionamento do território, ou seja, o território é mobilizado e torna-se plataforma de valorização do capital empregado no setor, mecanismo este fundamental para fornecer as bases de acumulação que remuneram, em última análise, os capitais investidos no Grupo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao considerarmos a financeirização como característica fundamental do capitalismo contemporâneo e ao partirmos do pressuposto de que a apreensão do território se dá através da compreensão de seus usos (SANTOS, 2014SANTOS, M. Espaço e método. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo , 2014[1985].; SANTOS, SILVEIRA, 2016SANTOS, M. Natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012 [1996].), a análise realizada buscou compreender como o território, intrinsicamente acionado durante o processo produtivo sucroenergético, aparece como uma condição para a produção de valor que, em última análise, e junto a outras formas de valorização fictícia, remuneram o capital financeiro investido no Grupo Cosan.

A análise indicou que o processo de financeirização das atividades sucroenergéticas realizadas pelo Grupo Cosan é, ao mesmo tempo, guiado por uma lógica global do capitalismo contemporâneo (a mundialização da finança) coordenado por demandas externas e especulação de mercados futuros, bem como por condições materiais e normativas estabelecidas no âmbito do território brasileiro.

Assim, o processo de valorização necessário à remuneração dos agentes e capitais que passaram a participar das atividades realizadas pelo Grupo Cosan, via acumulação financeira, acionou o território brasileiro, seja pela ampliação do número de unidades produtivas, seja pela expansão de áreas destinadas ao plantio de cana-de-açúcar, o que em muito foi feito a partir do acesso facilitado a recursos públicos.

Como considerações mais gerais, podemos observar como as condições materiais e normativas estabelecidas ao nível dos territórios nacionais - conformada principalmente e deliberadamente pelas ações do Estado - tornam os países periféricos e dependentes, como no caso do Brasil, verdadeiros atrativos para a dinâmica de acumulação financeira, por possibilitarem/permitirem uma extração facilitada - ou mais significativa - de mais valor. A ampla rede de sustentação fornecida pelo Estado brasileiro aos grandes grupos empresariais, como observado para o Grupo Cosan, constitui-se como fator fundamental às práticas do Grupo, viabilizando as estratégias de remuneração ao capital financeiro, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.

Ao fim, e a partir do exemplo analisado, observa-se como os espaços da financeirização se estabelecem a partir de características próprias que conformam também suas funções, indicando como territórios e economias dependentes possuem um papel central na dinâmica de acumulação financeira a nível mundial.

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  • FINANCIAMENTO

    A pesquisa que originou este artigo foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2023
  • Aceito
    19 Abr 2023
  • Publicado
    12 Jun 2023
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