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Cinco mitos sobre a pesquisa científica em turismo

Five myths about scientific research in tourism

Cinco mitos sobre la investigación científica en turismo

A pesquisa é uma das atividades fundamentais da universidade (Moraes, 1998Moraes, R. C. C. de. (1998). Universidade hoje - Ensino, pesquisa, extensão. Educação & Sociedade, 19(63), 19–37. https://doi.org/10.1590/S0101-73301998000200003
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) e uma das principais fontes de desenvolvimento econômico e melhoria da qualidade de vida no longo prazo (Lucas, 2002Lucas, R. E. (2002). Lectures on economic growth. Harvard University Press.). Contudo, a pesquisa científica é uma prática pouco conhecida do público em geral, característica que dá origem a uma série de problemas (Allchin, 2022Allchin, D. (2022). Ten competencies for the science misinformation crisis. Science Education, no prelo. https://doi.org/10.1002/sce.21746
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; Osborne & Pimentel, 2022Osborne, J., & Pimentel, D. (2022). Science, misinformation, and the role of education. Science, 378(6617), 246–248. https://doi.org/10.1126/science.abq8093
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). Um exemplo recente e alarmante da falta de conhecimento popular acerca da ciência é a proliferação de movimentos antivacina fundamentados na desconfiança sobre a pesquisa (Prasad, 2021Prasad, A. (2021). Anti-science Misinformation and Conspiracies: COVID–19, Post-truth, and Science & Technology Studies (STS). Science, Technology and Society, 27(1), 88–112. https://doi.org/10.1177/09717218211003413
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). A escassez de conhecimento do público em geral sobre a pesquisa científica gera problemas também para a atração de recursos financeiros e humanos de qualidade para o desenvolvimento dessa atividade. Em particular, o desconhecimento sobre a realidade da pesquisa científica pode dificultar a atração de candidatos para os cursos de pós-graduação e a adaptação dos ingressantes nesse universo tão particular.

A pesquisa científica no turismo não foge a essa realidade mais ampla. O propósito da pesquisa científica em turismo parece ser amplamente desconhecido do público em geral. As práticas e os resultados desse esforço também são essencialmente ignorados fora da academia. Reconhecendo essa problemática, o presente trabalho visa identificar e caracterizar mitos sobre a pesquisa científica em turismo. Desta forma, pretende-se promover o conhecimento acerca dessa atividade, favorecendo seu adequado tratamento perante a sociedade.

Mitos envolvendo o turismo e a academia já foram tema de pesquisa realizada por Bob McKercher e Bruce Prideaux (McKercher & Prideaux, 2014McKercher, B., & Prideaux, B. (2014). Academic myths of tourism. Annals of Tourism Research, 46, 16–28. https://doi.org/https://doi.org/10.1016/j.annals.2014.02.003
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). Contudo, naquele caso, o foco estava nos mitos que a academia sustenta acerca da atividade do turismo. No presente trabalho, o objeto de estudo e discussão é distinto, constituindo-se dos mitos que diferentes grupos sociais sustentam sobre a atividade de pesquisa científica em turismo.

O sentido comum de mito é o de uma crença falsa, uma descrição que não é consistente com a realidade, uma narrativa que não se sustenta frente aos fatos. Esse significado se diferencia daquele atribuído ao termo por antropólogos, sociólogos e alguns outros cientistas sociais, como Bronislaw Malinowski, Sigmund Freud, Joseph Campbell, Claude Lévi-Strauss e Mircea Eliade (Faubion, 2006Faubion, J. D. (2006). Myth. In B. S. Turner (Ed.), The Cambridge Dicionary of Sociology (pp. 409–410). Cambridge University Press.). Adotando o sentido mais geral e popular, a discussão de mitos envolve necessariamente três partes: a crença, a verdade e o confronto de ambas. A discussão de mitos acerca da pesquisa em turismo apresentada adiante segue essa estrutura. Ao todo, são discutidos cinco mitos.

Para discutir as diferentes crenças, foi realizado um levantamento de informações sobre artigos científicos recentes. Foram analisados 300 artigos publicados em seis periódicos científicos de turismo. Em âmbito internacional, foram selecionados três periódicos científicos de turismo que tradicionalmente ocupam a liderança nos principais rankings: Tourism Management (TM), Journal of Travel Research (JTR) e Annals of Tourism Research (ATR). No Brasil, foram selecionados três dos principais periódicos científicos da área: Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo (RBTUR), Turismo Visão e Ação (TVA) e Revista Turismo em Análise (RTA). Em cada periódico, foram analisados os 50 artigos mais recentes publicados até setembro de 2022. Os artigos selecionados foram classificados em quatro grandes áreas temáticas: negócios, destinos, turistas, e pesquisa/educação. Essa classificação espelha as atuais divisões científicas do Seminário ANPTUR, com exceção da divisão de hospitalidade. A classificação dos 300 artigos foi realizada por dois avaliadores independentes. A comparação das classificações sugeridas por ambos revelou uma taxa de concordância de 93%. Adicionalmente, foram também analisadas algumas informações do banco de dados do site Publicações de Turismo (Santos, 2023Santos, G. E. de O. (2023). Publicações de Turismo. http://www.each.usp.br/turismo/publicacoesdeturismo
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), o qual se propõe a reunir referências de todos os artigos publicados por periódicos científicos de turismo do Brasil. Por fim, é importante reconhecer que a presente análise se pauta não apenas nas informações obtidas a partir dos levantamentos mencionados, mas também no conhecimento e experiência por mim acumulado ao longo de 25 anos de atuação profissional, estudo, pesquisa e docência no turismo. A seguir são apresentados e discutidos os cinco mitos selecionados.

1 MITO 1: HÁ POUCA PESQUISA CIENTÍFICA EM TURISMO

A crença de que há pouca pesquisa científica em turismo é frequentemente sustentada por pessoas que estão afastadas dos ambientes onde esse tipo de pesquisa é realizado. Incluem-se, neste conjunto, os gestores e profissionais do turismo que estão afastados da academia, bem como pessoas que trabalham e estudam em outras áreas que não o turismo. Essa crença também é mantida por muitos que estão ingressando no universo da pesquisa científica em turismo. Neste caso, a crença está usualmente associada a um grande interesse por determinados aspectos ou temas do turismo, acompanhado de um pequeno conhecimento sobre a literatura já existente na área. Um elemento que pode ampliar essa crença é a falta de domínio de idiomas estrangeiros, sobretudo do inglês, já que a literatura mundial sobre diversos temas é muito mais numerosa, e frequentemente mais aprofundada, do que a nacional.

Quadro 1
Lista de periódicos científicos brasileiros de turismo ativos

Embora a crença na escassez de pesquisas científicas em turismo seja frequente, a realidade é bastante diferente. A pesquisa em turismo cresceu de forma extraordinária a partir dos anos 1990 e hoje acumula uma enorme quantidade de conhecimento. Ademais, esse estoque de conhecimento segue crescendo em um ritmo formidável. No mundo, existem atualmente mais de 400 periódicos científicos (McKercher, 2022McKercher, B. (2022). Dedicated Tourism, Hospitality and Events Journals. http://www.tourismscholars.org/journals.php
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). Em um estudo recente, a análise de 272 desses periódicos resultou na contagem de mais de 10750 artigos publicados anualmente (McKercher & Dolnicar, 2022McKercher, B., & Dolnicar, S. (2022). Are 10,752 journal articles per year too many? Annals of Tourism Research, 94, 103398. https://doi.org/https://doi.org/10.1016/j.annals.2022.103398
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). No Brasil, existem atualmente 25 periódicos científicos de turismo em funcionamento, conforme apresentado no Quadro 1.

De acordo com dados do site Publicações de Turismo, os periódicos nacionais da área publicaram 660 artigos em 2022. Ao todo, desde a criação do primeiro periódico científico nacional de turismo em 1990, já foram publicados mais de 9,5 mil artigos. Desta forma, pode-se afirmar com segurança que a crença de que há pouca pesquisa científica em turismo não passa de mito.

2 MITO 2: A MAIORIA DAS PESQUISAS EM TURISMO É TEÓRICA

A crença de que a maioria das pesquisas em turismo é teórica também é frequentemente sustentada por pessoas afastadas da academia, bem como por alguns recém ingressados nesse universo. A ideia de que as pesquisas são essencialmente teóricas está geralmente associada a uma busca por respostas para questões de relevância prática e aplicabilidade imediata. Essa perspectiva conflita com o próprio propósito da pesquisa científica, que busca desenvolver conhecimento sem compromisso imediato com sua utilidade (Stokes, 2005Stokes, D. E. (2005). O quadrante de Pasteur: a ciência básica ea inovação tecnológica. Unicamp Campinas.). Por outro lado, deve-se levar em consideração as críticas existentes à pesquisa descompromissada com a sociedade e com seus grandes desafios. Quando as pesquisas se afastam demasiadamente dos interesses correntes da sociedade, a percepção de seu valor fica seriamente ameaçada.

A análise do conjunto de 300 artigos recentes selecionados sugere que o foco das pesquisas científicas não é puramente teórico. Cerca de 86% dos artigos reportam os resultados de pesquisas empíricas, baseadas em observações da realidade (Figura 1). Os 14% de pesquisas classificadas como teóricas incluem não apenas ensaios propriamente teóricos, mas também revisões da literatura científica. Portanto, não é verdade que a maioria das pesquisas em turismo seja teórica, o que permite classificar essa asserção como mito.

Figura 1
Incidência de pesquisas empíricas, por origem do periódico

No entanto, é importante fazer uma ressalva relativa à natureza da contribuição da pesquisa científica. Embora a grande maioria dos artigos de turismo publicados recentemente tenha natureza empírica, isso não significa que suas contribuições sejam pontuais e estritamente práticas. Na verdade, ainda que partam da observação direta da realidade, a maioria dos trabalhos efetivamente traz contribuições que excedem os limites das observações realizadas. As conclusões de grande parte das pesquisas trazem ensinamentos acerca de casos que não foram diretamente estudados à medida em que teorizam e generalizam elementos e relações. Essa capacidade de generalizar o conhecimento a partir de observações específicas constitui a essência da teorização e uma característica típica e desejável da pesquisa científica. Desta forma, ainda que os dados permitam refutar o mito acerca da maioria de pesquisas teóricas, deve-se reconhecer que grande parte das principais contribuições das pesquisas científicas em turismo é efetivamente teórica. Entretanto, essa observação não deve ser encarada como uma crítica. Muito pelo contrário, é justamente aí que reside a fortaleza da pesquisa científica.

Existem importantes diferenças entre o Brasil e o resto do mundo quanto à incidência de pesquisas teóricas. Um indicador perspicaz da natureza contextual ou teórica da pesquisa é a presença de referências geográficas no título do trabalho (Moital, 2015Moital, M. (2015). Writing dissertations & theses: What you should know but no one tells you. YACO Publish-Ing.). Trabalhos que mencionam lugares, regiões ou países em seus títulos são suspeitos de terem um foco contextual ao invés de teórico. A análise dos 300 artigos selecionados revela que as pesquisas são mais contextualizadas no Brasil do que no exterior (Figura 2).

Figura 2
Incidência de referências geográficas nos títulos dos artigos de turismo

Ao todo, 62% dos artigos de turismo no Brasil trazem alguma referência geográfica no título, sendo 41% de referências a locais ou regiões e 21% de referências a países. No exterior, esses números são muito menores. Apenas 11% dos artigos de turismo publicados nas principais revistas científicas internacionais têm referências geográficas no título. Desta forma, pode-se inferir que a natureza teórica das pesquisas de turismo é mais realidade no exterior do que no Brasil. Contudo, é importante ressaltar que, embora a maior contextualização da pesquisa brasileira possa ser lida como uma vantagem por alguns grupos sociais, o menor foco nas contribuições teóricas afasta a pesquisa nacional do propósito da ciência.

3 MITO 3: A MAIORIA DAS PESQUISAS EM TURISMO É VOLTADA PARA O MERCADO

A crença de que a maioria das pesquisas em turismo é voltada para o mercado é usualmente sustentada por parte de acadêmicos. Essa crença é mais comum entre os pesquisadores, docentes e discentes que subscrevem às filosofias de pesquisa interpretativista, crítica e pós-moderna. Pesquisadores nessas linhas geralmente têm propósitos que se afastam, em alguma medida, da aplicação mais prática e imediata dos conhecimentos produzidos. Dessa forma, as pesquisas desenvolvidas no âmbito dessas escolas se distanciam do mercado e da gestão. Como defensores de pesquisas menos relacionadas aos interesses do mercado e críticos dos trabalhos que visam apresentar implicações gerenciais, pesquisadores dessas linhas sustentam com frequência a crença no grande número de pesquisas voltadas ao mercado.

Figura 3
Distribuição dos artigos por grandes temas

Os dados observáveis contradizem essa crença. Os resultados da análise dos 300 artigos selecionados apontam que apenas 34% dos artigos podem ser classificados no conjunto associado aos negócios. Além disso, apenas 11% dos artigos se referem aos negócios e não mantêm nenhuma relação significativa com as demais temáticas. Os outros 23% tratam dos negócios em associação direta com os destinos turísticos (7%), os turistas (11%) ou ambos (5%).

É interessante notar que a incidência da associação aos negócios é bastante semelhante no Brasil (35%) e no exterior (33%) (Figura 3). Por outro lado, a pesquisa científica em turismo no Brasil apresenta uma concentração de artigos relacionados aos destinos turísticos (69%) muito maior do que o observado no exterior (40%). Essa diferença é compensada por uma discrepância no sentido contrário da incidência de temáticas relacionadas aos turistas (27% no Brasil e 63% no exterior).

Figura 4
Incidência de grandes temas, por origem do periódico
Figura 5
Incidência de temas relacionados a questões éticas, por grandes temas

É também relevante notar que as questões relacionadas à ética1 1 Questões fortemente associadas às necessidades e ao bem-estar do outro, tais como ética animal, imperialismo, sustentabilidade, educação ética, bem-estar, comportamentos desviantes, turismo de base comunitária, desigualdade econômica, gênero, raça, hospitalidade e deficiências físicas e mentais. aparecem com uma frequência não desprezível entre os artigos de negócios (25%) (Figura 5). Embora essa frequência seja maior entre os artigos sobre turistas (33%) e destinos (40%), pode-se dizer que os trabalhos que tratam dos negócios em associação a questões éticas não são o que tipicamente se espera de artigos relacionados ao mercado. Em suma, pode-se afirmar que a crença de que a maioria das pesquisas em turismo é voltada para o mercado não corresponde à realidade. As pesquisas com esse viés são minoria.

4 MITO 4: A MAIORIA DAS PESQUISAS EM TURISMO É QUANTITATIVA

Outra crença comum é a de que a maioria das pesquisas em turismo é quantitativa. Esse pensamento também parece estar especialmente associado a um grupo específico de pesquisadores, nomeadamente aqueles que conhecem, desenvolvem e valorizam as pesquisas qualitativas. Essa crença também vem usualmente acompanhada de julgamentos críticos, sugerindo que esse suposto predomínio dos métodos quantitativos representaria uma característica indevida e indesejável da pesquisa em turismo.

A realidade da pesquisa científica em turismo com respeito à natureza quantitativa é variada. Entre os 300 artigos analisados, 54% utilizam algum tipo de método quantitativo. Incluem-se neste grupo trabalhos que utilizaram desde técnicas de estatística descritivas elementares, como tabelas e gráficos de frequência, até aqueles que empregaram técnicas avançadas de estatística multivariada, como a modelagem de equações estruturais. Esse conjunto também inclui artigos que utilizaram métodos mistos, ou seja, que, além dos métodos quantitativos, empregaram também métodos qualitativos. Portanto, embora a incidência de artigos que fazem uso de algum método quantitativo esteja um pouco acima da metade, destaca-se que essa estatística foi elaborada da forma mais favorável possível para evitar a rejeição indevida da crença de que a maioria de pesquisas é quantitativa.

Figura 6
Incidência de métodos quantitativos, por origem do periódico

Além do mais, essa maioria de 54% de artigos que empregam métodos quantitativos é formada pela média entre Brasil e exterior. Contudo, esses dois universos apresentam realidades muito distintas. No exterior, a incidência de artigos quantitativos é de 72%, enquanto no Brasil esse número é de apenas 36%. Isso quer dizer que a incidência do uso de algum método quantitativo nos periódicos internacionais é o dobro da incidência observada no Brasil. Logo, a crença de maioria quantitativa é verdadeira para os periódicos internacionais analisados, mas se revela um mito no Brasil.

Por fim, é importante destacar que, embora o uso de métodos quantitativos seja minoritário na pesquisa em turismo no Brasil, a tendência das últimas décadas é de redução dessa desvantagem. A análise de todos os mais de 9,5 mil resumos de artigos científicos de turismo publicados em periódicos de turismo no Brasil sugere que a utilização de métodos quantitativos têm crescido, ainda que vagarosamente. A análise dessa questão foi realizada considerando os resumos disponíveis no site Publicações de Turismo e que utilizaram termos com os radicais “quantitativ” e “qualitativ”2 2 Os termos com o radical “quantitativ” incluem “quantitativo”, “quantitativa”, “quantitativos” e “quantitativas”. Os termos com o radical “qualitativ” também incluem os dois gêneros no singular e no plural. (Figura 7).

Figura 7
Incidência de termos nos resumos dos artigos publicados no Brasil, por década

Os resultados mostram que a incidência de termos associados aos métodos quantitativos cresceu de 18% na década de 2000 para 26% na década de 2020. Isso não quer dizer propriamente que a incidência de termos associados aos métodos qualitativos tenha caído substancialmente. Na verdade, a maior parte do espaço adicional ocupado pela pesquisa quantitativa foi liberado pelos métodos mistos. Contudo, é fundamental ressaltar que o ritmo de crescimento da pesquisa quantitativa é pequeno, de apenas 4% a cada década. Se uma tendência linear fosse traçada, os métodos quantitativos chegariam a 50% do total apenas na década de 2080.

5 MITO 5: A PESQUISA SOBRE O TURISMO É DIVERSA EM RAZÃO DAS DIFERENTES PERSPECTIVAS FILOSÓFICAS E METODOLÓGICAS

A crença em destaque neste item tem uma natureza distinta das demais já discutidas neste trabalho. Neste caso, a crença não se refere a elementos diretamente observáveis da realidade, mas sim a uma possível explicação para a realidade observada. A diversidade da pesquisa em turismo parece ser um ponto pacífico (Tribe, 1997). Os trabalhos desenvolvidos na área são extraordinariamente variados (Kirilenko & Stepchenkova, 2018Kirilenko, A. P., & Stepchenkova, S. (2018). Tourism research from its inception to present day: Subject area, geography, and gender distributions. PLOS ONE, 13(11), e0206820. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0206820
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).

Mas a crença em questão trata das origens dessa diversidade. Segundo uma linha de pensamento muito presente, tal diversidade teria origem nas diferentes perspectivas filosóficas e metodológicas empregadas no estudo do turismo. Essa linha de argumentação sustenta que o turismo é um objeto que tem sido estudado a partir de diferentes tradições filosóficas da ciência, o que também se reflete em diferentes abordagens metodológicas. Com efeito, a pesquisa científica em turismo conta com trabalhos realizados sob diferentes cânones, incluindo o positivismo, o interpretativismo e a crítica (Ayikoru, 2009Ayikoru, M. (2009). Epistemology, ontology and tourism. In J. Tribe (Ed.), Philosophical issues in tourism (pp. 62–79). Channel View Publications Bristol. https://doi.org/10.21832/9781845410988-005
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). Esses diferentes pontos de partida filosóficos estão associados, ainda que imperfeitamente, a uma miríade de métodos de pesquisa (Dwyer et al., 2012Dwyer, L., Gill, A., & Seetaram, N. (2012). Handbook of research methods in tourism: quantitative and qualitative approaches. Edward Elgar Publishing.).

A crença de que a diversidade das pesquisas em turismo tem origem na filosofia da ciência não é falsa, mas extremamente incompleta. O complemento necessário para essa explicação destaca que a diversidade das pesquisas não é fruto apenas de diferentes perspectivas sobre o mesmo objeto, mas também da diversidade de objetos de estudo que são usualmente classificados como turismo. Em sua essência, turismo é uma atividade realizada por indivíduos que viajam (United Nations, 2010). Por metonímia, a palavra turismo também designa o fenômeno social que emerge desse conjunto de viagens.

Como toda atividade humana e todo fenômeno social, o turismo é complexo e diverso. Nas entrelinhas do discurso de alguns pesquisadores, pode-se ler que supostamente existiria uma essência que constituiria o objeto verdadeiro, máximo e último das pesquisas em turismo. O conteúdo dessa essência varia entre autores. Para alguns, a essência parece estar no turismo como atividade do indivíduo que viaja, para outros em sua essência cultural, no âmbito econômico, no caráter social do fenômeno, ou ainda em sua natureza espacial. É difícil precisar. Mais adequado parece ser o entendimento de que cada indivíduo potencialmente enxerga, se interessa e efetivamente pesquisa diferentes objetos associados à atividade ou ao fenômeno do turismo. As pesquisas em turismo tratam não de um mesmo objeto, mas sim de uma grande diversidade de possíveis objetos. O conjunto de pesquisas já realizadas e que potencialmente serão realizadas no futuro inclui objetos variadíssimos, da gestão de companhias aéreas aos significados da autenticidade no turismo, dos impactos econômicos da atividade turística à história do turismo na idade moderna, da escolha de destinos à sociologia da hospitalidade, da avaliação de políticas públicas à epistemologia do turismo. Os variados objetos das pesquisas em turismo não constituem um todo minimamente homogêneo e não podem ser considerados partes diferentes de um objeto único e totalizante. A unidade do turismo como objeto de pesquisa inexiste.

Além da diversidade de perspectivas e objetos, as pesquisas em turismo se diferenciam também em função de seus propósitos. A crença na existência de um objeto último das pesquisas na área está também intimamente associada com a premissa de que existe um propósito máximo a ser buscado pela pesquisa. Contudo, essa linha de pensamento é igualmente difícil de sustentar. A observação da realidade sugere que as pesquisas em turismo têm propósitos amplamente divergentes. O desenvolvimento sustentável e a melhoria da qualidade de vida, por exemplo, são propósitos muito comuns e defensáveis do ponto de vista ético (Fennell, 2006Fennell, D. A. (2006). Tourism ethics. Channel View Publications.). Entretanto, muitas pesquisas em turismo estão orientadas para propósitos e interesses privados. Enquanto a maioria das pesquisas busca o bem comum, uma parcela não desprezível busca benefícios particulares.

Em suma, a crença de que a pesquisa sobre o turismo é diversa em razão de suas diferentes perspectivas filosóficas e metodológicas é parcialmente mito. É verdade que tais perspectivas contribuem para a diversidade da pesquisa, mas a heterogeneidade deste conjunto é fundamentalmente causada pela variedade de objetos e objetivos dos estudos na área.

6 A RBTUR E A PESQUISA EM TURISMO

Este editorial buscou trazer algumas informações e reflexões sobre crenças e realidades da pesquisa em turismo. Cinco crenças relevantes foram debatidas. Evidências diversas foram apresentadas. Concluiu-se que algumas delas não passam de mito, enquanto outras divergem parcialmente da realidade.

A atuação da RBTUR está essencialmente alinhada com as ideias aqui expostas. Em relação ao mito de que há pouca pesquisa em turismo, a RBTUR tem buscado oferecer espaço para a publicação de mais pesquisas. Com a mudança para o sistema de publicação contínua em 2022, o número de artigos publicados anualmente deixou de ser limitado. Passamos de 30 artigos por ano para 60 artigos em 2022.

Quanto aos mitos de maiorias de pesquisas teóricas e voltadas para o mercado, a RBTUR tem valorizado e buscado selecionar artigos que tragam contribuições teóricas consistentes, baseadas em observações da realidade, e com implicações práticas relevantes. Artigos puramente teóricos têm sido publicados apenas em casos especiais em que as contribuições apresentadas sejam amplamente destacadas. Já os artigos que reportam pesquisas puramente descritivas e contextuais, sem implicações para além do caso particular estudado, têm sido sistematicamente rejeitados. A RBTUR acredita que essencialmente toda pesquisa deva ter relevância teórica. É desejável que as conclusões de natureza teórica estejam fundamentadas em observações e dados, embora outras formas de construção do conhecimento sejam viáveis, como o processo dedutivo. A identificação de implicações práticas, aplicáveis a diferentes casos de natureza similar, também é desejável.

A RBTUR reconhece e valoriza a diversidade da pesquisa em turismo quanto às perspectivas filosóficas. Pesquisas positivistas, interpretativistas e críticas são igualmente bem recebidas. A mesma receptividade e interesse se aplica aos diferentes métodos e metodologias. Pesquisas qualitativas, quantitativas e mistas fazem parte igualmente do escopo e da prática editorial da RBTUR. A RBTUR também percebe e prestigia a variedade de objetos e propósitos da pesquisa em turismo. Uma estratégia recentemente adotada pela revista para fortalecer o reconhecimento e evidenciar a existência de espaço para pesquisas de naturezas distintas foi o desmembramento da seção principal da revista nas seções “Turismo e Sociedade” e “Gestão do Turismo”. Embora essa divisão seja obviamente incompleta e imperfeita, ela abre espaço para a diferenciação das pesquisas em turismo. Deve-se entender a criação dessas duas seções como um passo inicial, sendo que ajustes na delimitação e ampliações no número de categorias possivelmente farão parte do futuro da RBTUR.

Ao discutir os mitos sobre a pesquisa em turismo, espera-se que este editorial contribua para, ainda que de forma modesta, influenciar o pensamento e a prática da pesquisa em turismo e favorecer o alcance de melhores resultados no futuro.

  • 1
    Questões fortemente associadas às necessidades e ao bem-estar do outro, tais como ética animal, imperialismo, sustentabilidade, educação ética, bem-estar, comportamentos desviantes, turismo de base comunitária, desigualdade econômica, gênero, raça, hospitalidade e deficiências físicas e mentais.
  • 2
    Os termos com o radical “quantitativ” incluem “quantitativo”, “quantitativa”, “quantitativos” e “quantitativas”. Os termos com o radical “qualitativ” também incluem os dois gêneros no singular e no plural.
  • Como citar: Santos, G.E.O. (2023). Cinco mitos sobre a pesquisa científica em turismo. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 17, e-2750, 2023. https://doi.org/10.7784/rbtur.v17.2750

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo Rua Silveira Martins, 115 - cj. 71, Centro, Cep: 01019-000, Tel: 11 3105-5370 - São Paulo - SP - Brazil
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