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Franz Biberkopf está de volta

Franz Biberkopf está de volta

Elcio Loureiro Cornelsen

Doutor em Estudos Germânicos pela Freie Universität Berlin; Professor Adjunto da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais; membro da Internationale Alfred-Döblin-Gesellschaft desde 1994; endereço eletrônico: cornelsen@letras.ufmg.br

Döblin, Alfred. Berlin Alexanderplatz. trad. Irene Aron. São Paulo: Martins, 20091 1 Os números entre parênteses após as citações correspondem aos números das páginas da edição supracitada.

"Franz Biberkopf ist wieder da" - essa frase do romance Berlin Alexanderplatz, do escritor alemão Alfred Döblin (1878-1957), marca o momento em que o protagonista, recém-liberto da Penitenciária de Tegel, estupra Minna, irmã de Ida, sua antiga namorada e prostituta, que Biberkopf espancara até a morte. Estar "de volta" para o ex-detento é se sentir "homem" de novo, após ter cumprido pena de quatro anos de reclusão por "homicídio culposo, agressão seguida de morte" (18). Primeiramente, tenta ir com prostitutas, mas sem sucesso. Só com Minna, num ato quase que de tentar reviver Ida, Biberkopf adquire ânimo para recomeçar vida nova em Berlim, mesmo que esse recomeço seja marcado por mais um crime. O protagonista do romance, designado pelo narrador-autoral como "nosso bom homem" (9), encerra em si um leque de contradições. A promessa de se manter "decente" após sair da prisão se esvai em atitudes como essa, mais parece uma promessa "vazia", da qual o leitor tem de desconfiar. Mas, aqui, extraímos essa frase do romance e lhe emprestamos outro sentido: "Franz Biberkopf está de volta" (41), numa bela tradução de Irene Aron para a editora Martins.

Esse "brutamonte", um misto de rompantes de violência e momentos de extrema docilidade ou mesmo ingenuidade, que cativa o leitor desde o início, pois parece tão humano, demasiado humano em seus defeitos e virtudes, por assim dizer, é uma "cobaia" posta a prova pelo Dr. Döblin, médico neurologista. Longe de ser um romance psicológico - Döblin, aliás, privilegiava a psiquiatria em detrimento da psicanálise emergente na época e escreveu vários de seus romances usando pranchetas de prontuários médicos, nos intervalos de seus plantões em clínicas, hospitais e manicômios, e desses prontuários nasceu o esboço para o protagonista -, Berlin Alexanderplatz é a história de um anti-herói, desajustado socialmente, que, literalmente "luta" para conquistar o seu espaço nas ruas de Berlim - o linguajar do boxe e da guerra é recorrente ao longo do romance -, após permanecer fora de circulação por longos quatro anos. Pouco sabemos sobre seu passado, deduzimos que o espancamento seguido de morte de Ida ocorrera no ano de 1923, fatídico ano da hiperinflação na República de Weimar, pois o tempo do narrado comporta o período de 1927 a 1929, exatamente o período em que o romance foi escrito. Supomos também que Biberkopf tomara parte como soldado na Primeira Guerra Mundial. O seu jargão é perpassado constantemente por expressões que remetem à guerra, além da canção militar Die Wacht am Rhein - "A Guarda do Reno" - ter sido cantada por ele após sair da prisão, como forma de, pela primeira vez, articular sua voz fora dos muros da Penitenciária de Tegel. A saída da prisão é um renascer de Biberkopf; um renascer fadado à morte.

Berlin Alexanderplatz é a obra que conferiu a Alfred Döblin reconhecimento tanto na Alemanha como no cenário internacional. Traduzido em vários idiomas, esse romance sempre é associado ao nome do autor, principalmente por se reconhecer que, nele, Döblin conseguiu transpor com maestria na prática, aspectos teóricos que postulara anteriormente.

O aspecto inovador em Berlin Alexanderplatz é a forma de expressão do mundo narrado, a Berlim no final dos anos 1920. A maneira de representação tradicional do romance do século XIX tornou-se inadequada para o processo de representação da grande cidade em transformação. A velocidade com que se apresentavam as mudanças exigia uma nova forma de linguagem. Através do princípio estilístico da montagem, que tem suas raízes na técnica do filme e da simultaneidade a partir de diversas perspectivas, além da técnica de colagem dos mais variados textos, presente também no Dadaísmo, Döblin oferece ao leitor um quadro múltiplo de imagens e planos que, em um primeiro momento, podem transmitir a idéia de caos e de desconexão, mas que, todavia, relacionam-se entre si.

Como frisado anteriormente, o protagonista do romance pode ser considerado uma espécie de anti-herói, uma personificação da autêntica individualidade humana. Tal qual uma cobaia, Biberkopf é observado nas mais diversas situações vivenciadas entre os anos de 1927 e 1929. Médico de profissão, Döblin põe à prova sua cobaia sob o efeito de "golpes", "algo imprevisível e que mais parece com um destino" (9), como formula o próprio narrador-autoral. A saída de Biberkopf da penitenciária de Berlim-Tegel marca o início da experiência. A tentativa de uma "vida nova" significa ao mesmo tempo a redescoberta da grande cidade através dos olhos daquele que, por anos, não conheceu outra realidade senão aquela vivida atrás dos muros da prisão. Desempregado, sem pertences e sem ter para onde ir, Biberkopf é observado em suas tentativas de integrar-se à sociedade: de forma ingênua, o ex-presidiário tenta impor-se pela força, recebe um golpe, cai em depressão e, por fim, recobra os ânimos para tentar outra vez. Esta "via crucis" se repete por três vezes: primeiramente, Biberkopf é enganado por um companheiro de comércio ambulante e deixa de tirar proveito financeiro de sua nova relação amorosa com uma viúva; depois acaba por ter o seu braço direito amputado após um "acidente" durante a fuga de um assalto, do qual participara a contragosto; o terceiro e último golpe se concretiza com o assassinato de sua namorada, Mieze. A cobaia, assim como a sua vontade de impor-se através da força, não sobrevive a esse último golpe. Com isso, a experiência chega ao fim. Esse momento marca o "nascimento" de um "novo" Franz Biberkopf, o qual recebe o nome adicional "Karl", para ser melhor diferenciado do falecido. Por assim dizer, Döblin contempla os leitores com uma paródia do romance de formação. Pois o cabeça-dura nada aprende, precisa "renascer" para ser dotado de consciência. Poderíamos falar de um "romance de transformação", ou mesmo "anti-romance de formação". E isso, sem dúvida, tem a ver com o momento crítico que atravessava a República de Weimar.

Não obstante suas especificidades, a história de Franz Biberkopf demonstra situações típicas, as quais podem atingir qualquer um, indiscriminadamente. No contexto dos contratempos que o acometem espelham-se diversas tendências da República de Weimar: crise econômica, alto índice de desemprego, a crescente influência de discursos nacionalistas e racistas sobre o instável cenário político, a luta da camada proletária pela sobrevivência, além de uma vida apática e humilhante em uma sociedade cujos traços marcantes são o poder, a violência e a concorrência. A Berlim dos anos 1920 não é apenas uma cidade de proprietários de fábrica, de acionistas da Bolsa de Valores, de pequenos comerciantes, funcionários públicos, operários e artífices, mas também o mundo daqueles excluídos pela sociedade, dos pauperizados pela Primeira Guerra Mundial e pela hiperinflação do ano de 1923, dos desempregados, também dos proxenetas, ladrões e vigaristas. Aos inúmeros excluídos pertence Franz Biberkopf. Sua trajetória representa a vida daqueles que se decepcionaram profundamente com a República de Weimar, uma vez que a transformação social após 1918 não correspondeu às expectativas de grande parte da sociedade.

Em vários aspectos o romance impõe dificuldades a seus tradutores, a começar pelo princípio estilístico da montagem e da colagem, mas também por se tratar de um romance aqui-e-agora. Para um leitor alemão contemporâneo, não é tarefa nada fácil ler a obra-prima de Döblin nos dias de hoje, e o que dirá para vertê-lo para outra língua e outra cultura. São várias as marcas da época. Hoje, o leitor alemão menos familiarizado com o contexto sócio-histórico de emergência do romance, com certeza, tem dificuldade de entendê-lo na íntegra. Certa vez, perguntei a um leitor alemão: ─ Quem é esse tal de "Jolly na redoma de vidro", mencionado por Biberkopf no romance Berlin Alexanderplatz? E a resposta foi imediata: ─ "Keine Ahnung!" - "Não tenho a mínima ideia!". Mais tarde, em uma de minhas "incursões investigativas" sobre Berlim, quando já pensava em realizar um estudo sobre o romance, me deparei com um livro usado, ali, numa pequena banca de um livreiro, em frente a uma modesta lojinha, no bairro de Schöneberg: Berlin: Schicksal einer Groβstadt, de Walther Kiaulehn (München: C. H. Beck, 1958). Gostei do preço: 5 marcos. E do volume: 595 páginas. Mal sabia que, naquele livro, tempos depois, eu encontraria a resposta para minha pergunta:

A luz viva dos anos 1920 produziu sombras bem negras. Como o esporte não é pensado sem recorde, os recordes se tornaram populares. Os parvos confundiram, ao final, toda espécie de recorde com o esporte, e os expertos fizeram negócios com isso. No restaurante 'Krokodil', na alta Friedrichstrasse, famoso por joelhos-de-porco e bifes com ovos fritos, 'Jolly' bateu o recorde de fome. Ele ficou numa grande gaiola de vidro lacrada, barba por fazer, com o copo d'água numa das mãos e o cigarro na outra, enquanto se exibia para os degustadores de joelho-de-porco. [...]2 Berlin 2 Kiaulehn, Walther. : Schicksal einer Groβstadt. München: C. H. Beck, 1958, p. 550. (tradução própria)

Aparentemente, um exemplo banal. Entretanto, ele nos dá a dimensão exata do que significa um romance aqui-e-agora. Uma sensação da época, como deve ter sido a "performance" de Jolly no restaurante "Krokodil" não passou despercebida a Döblin, e tampouco faltam no romance sucessos musicais da época, hoje em dia desconhecidos pelas gerações mais jovens, ou mesmo músicas típicas, dessas cantadas em cervejarias, como "Trink, trink, Brüderlein trink..."

Mais uma vez: "Franz Biberkopf está de volta" (41), numa tradução que não apenas se junta à tradução portuguesa, de autoria de Sara Seruya e Teresa Seruya (Lisboa: Dom Quixote, 1992) e à primeira tradução brasileira, de Lya Luft (Rio de Janeiro: Rocco, 1995). Indo além, a "cobra naja" (143) - "Kobraschlange" - está de volta em grande estilo, ao mesmo tempo, tão alemão e tão brasileiro. "Nosso" Biberkopf não exige "da vida mais do que pão com azeitonas", como na tradução portuguesa, pois, agora, suas paragens interculturais são outras. Fazendo jus ao "Butterbrot", ele "exige mais do que um simples pãozinho com manteiga" (10). E quando ele deixa a Penitenciária de Tegel, uma frase lapidar anuncia: "A pena começa" (13), ou mesmo "Começa agora a pena", na tradução do além-mar. Ambas, aquém e além-mar se irmanam no gesto de tentar reduzir a polissemia do termo "Strafe" - "castigo", "pena", "sanção penal", "punição". E tal gesto implica uma escolha. Escolha acertada, essa, pois Biberkopf acaba de deixar um instituto prisional, ganha novamente as ruas de Berlim, mesmo que titubeante, mas sua pena, de fato, começa com sua libertação, a pena de viver à sua maneira num contexto em crise. E essa voz narrativa - ou seriam "vozes"? - que inverte o sentido esperado da libertação para a punição pela liberdade não fala, de modo algum, de "castigo", como outrora a história de Franz Biberkopf foi apresentada ao leitor brasileiro. São esses pequenos detalhes que nos fazem reconhecer não só as dificuldades derivadas do processo de tradução, mas também revelam a competência tradutológica com que fomos, finalmente, brindados. Nós e Alfred Döblin. Infelizmente, um autor ainda a se descobrir aquém-mar, um autor ofuscado por sua própria obra-prima, mas que vivenciou e retratou como poucos, muito poucos, a mentalidade da sociedade e a vida cotidiana no Kaiserreich, na República de Weimar, na fuga-exílio-pela-vida, na zona-ocupada-e-dividida, e, por fim, na ex-zona-ocupada-chamada-BRD. Aliás, não se trata aqui de ressuscitar velhos fantasmas da teoria da tradução literária, longe de se falar de "fidelidade" ou da tradução como texto "devedor" ao "original". A questão vai muito além, pois o texto, por si só, vai muito além. Verdadeiro desafio para qualquer tradutor. Mas não estamos diante de uma tradução qualquer, essa, com a qual Irene Aron e a Editora Martins nos contemplam neste ano de 2009, 80 anos após o lançamento do original. O princípio estilístico da montagem e da colagem, destacado por Walter Benjamin na mais célebre resenha do romance - "Krisis des Romans" -, é tratado com muita percepção e sentido aguçado. Tarefa nada fácil para a tradutora, que se vê diante do paradoxo postulado por Benjamin em outro célebre ensaio - "Die Aufgabe des Übersetzers" -, entre a "tarefa" e a "desistência", encerradas no termo "Aufgabe", com as quais o tradutor se defronta. Movendo-se com maestria, deixa-nos marcas textuais que irmanam original e tradução, pois há um sopro de Berlim nas linhas de Berlin Alexanderplatz. Impossível reproduzir um dialeto - o Berlinerisch -, ou mesmo difícil diferenciar textualmente entre os diversos socioletos presentes no texto, mas muito da "destreza" no lidar com o par alemão-português, irmanados pelo sentimento, e não só pelo sentido, faz com que Biberkopf, não obstante seus rompantes de brutalidade, deslize diante do leitor brasileiro, numa Berlim-Babilônia fascinante.

Certa vez, num de seus vários ensaios de Teoria da Literatura - a serem descobertos por nossos editores -, especificamente em Der Bau des epischen Werks ("A construção da obra épica"), de 1929, Döblin fez a seguinte conjectura em relação à recepção: "O leitor realiza, portanto, o processo de produção juntamente com o autor".3 Die Neue Rundschau 3 Döblin, Alfred. Der Bau des epischen Werks. . ano 40, n. 4, Berlim, p. 527-551, abr. 1929. Quando a instância de recepção é mais do que um leitor, é um leitor-tradutor, isso se torna mais complexo ainda. Pois este não vai atrás apenas do "sentido" do texto, mas também do "estilo" do autor. O texto surge como um construto. Como uma última ilustração a esse respeito, gostaríamos de mencionar uma passagem singular do romance de Döblin, uma paráfrase de Gênesis 1-3 - uma dentre várias outras paráfrases e citações bíblicas ao longo da obra -, especificamente em relação ao Paraíso e à vida harmoniosa que reinava antes da "Queda", a qual precede um fragmento citado da ópera infantil Hänsel und Gretel (1893; "Joãozinho e Maria"), de Engelbert Humperdinck:

Certa feita, viveram no paraíso duas pessoas, Adão e Eva. Haviam sido colocadas ali pelo Senhor, que também criara animais e plantas e o céu e a terra. E o paraíso era o esplêndido Jardim do Éden. Flores e árvores cresciam aqui, os animais brincavam, ninguém atormentava ninguém. O sol nascia e se punha, a lua fazia o mesmo, era essa a única alegria durante todo o dia no paraíso.

Comecemos assim alegremente. Vamos cantar e girar: palma, palma, palma, pé, pé, pé, roda roda roda, para lá, para cá, não é difícil. (51)

No início do Segundo Livro, de um total de nove livros que compõem o romance, a ingenuidade de Biberkopf em acreditar que a grande cidade, do mesmo modo que a prisão, orientar-se-ia por uma "ordem", que ele deveria observar a fim de evitar problemas, é expressa metaforicamente por meio dessa seqüência de textos montados. No entanto, na medida em que os contratempos vão surgindo, o quadro da harmonia paradisíaca e da alegria infantil desfaz-se textualmente de modo fragmentário: "Palma, palma, palma, pé, pé, pé, peixes, pássaros, o dia todo, paraíso" (107). Aliás, é interessante notar que, nas três traduções para a língua portuguesa, as tradutoras interferiram no texto ao manterem o início do verso da canção infantil inalterado, amenizando a radicalidade com que Döblin estilhaça a imagem metafórica construída pela junção da paráfrase bíblica e do trecho da ópera infantil, pois literalmente, teríamos: "palma, palma, pé, peixes, pássaros, dia todo, paraíso" ("Mit den Händchen, klapp, klapp, mit den Füβchen trapp, Fische, Vögel, ganzen Tag, Paradies"). Todavia, devemos lembrar que tradução é escolha. O tradutor é um "re-poetizador", como diria Walter Benjamin. E a tradução, como nos lembra Haroldo de Campos, é "transcriação ou transtextualização desmistificada".

Certamente, o romance de Döblin foi uma das obras que mais desafios impuseram a Irene Aron, detentora de uma longa e sólida carreira de tradutora que transpôs para nossa língua, entre outras, obras de Elias Canetti, Bertolt Brecht, Peter Schneider, Günter Grass, Walter Benjamin, Peter Handke, Victor Klemperer, e Ruth Klüger. Desafios vencidos com maestria, atestados por esse belíssimo texto que, agora, temos diante de nós. E a editora Martins, ao optar por manter o título alemão Berlin Alexanderplatz e por suprimir o subtítulo "Die Geschichte vom Franz Biberkopf" realiza um gesto que o escritor, sem dúvida, aprovaria. Pois assim era o seu desejo original. O subtítulo em alemão foi uma imposição do editor Samuel Fischer, em 1929. São por essas e outras, que não cansamos de anunciar, outra vez, a boa nova: Franz Bibekopf está de volta!

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    Os números entre parênteses após as citações correspondem aos números das páginas da edição supracitada.
  • Berlin

    2 Kiaulehn, Walther. : Schicksal einer Groβstadt. München: C. H. Beck, 1958, p. 550.
  • Die Neue Rundschau

    3 Döblin, Alfred. Der Bau des epischen Werks. . ano 40, n. 4, Berlim, p. 527-551, abr. 1929.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2012
    • Data do Fascículo
      2009
    Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/; Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, 05508-900 São Paulo/SP/ Brasil, Tel.: (55 11)3091-5028 - São Paulo - SP - Brazil
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