Acessibilidade / Reportar erro

Sobre um retrato vivo de Kleist

On Kleist's alive portrayal

Resumos

O objetivo deste artigo é apresentar algumas das principais características do conto Kleist in Thun, de Robert Walser, na tentativa de refletir sobre como o texto literário é capaz de estabelecer um diálogo com a tradição, através da ficcionalização da figura de um autor, especificamente através de um gênero narrativo praticado por Walser, o retrato.

Heinrich von Kleist; Robert Walser; Literatura Alemã; Intertextualidade


The purpose of this paper is to present a discussion of some of the main characteristics of Robert Walser's short story Kleist in Thun, in an attempt to reflect on how the literary text can establish a dialogue with tradition. This is achieved by the fictionalisation of the character of a real author, more specifically by the narrative genre often used by Walser: the portrayal.

Heinrich von Kleist; Robert Walser; German Literature; Intertextuality


LITERATURA

Sobre um retrato vivo de Kleist

On Kleist's alive portrayal

Douglas PompeuI

IMestrando em Literatura Alemã na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. E-mail: glaspom@me.com

Abstract

The purpose of this paper is to present a discussion of some of the main characteristics of Robert Walser's short story Kleist in Thun, in an attempt to reflect on how the literary text can establish a dialogue with tradition. This is achieved by the fictionalisation of the character of a real author, more specifically by the narrative genre often used by Walser: the portrayal.

Keywords: Heinrich von Kleist; Robert Walser; German Literature; Intertextuality

RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar algumas das principais características do conto Kleist in Thun, de Robert Walser, na tentativa de refletir sobre como o texto literário é capaz de estabelecer um diálogo com a tradição, através da ficcionalização da figura de um autor, especificamente através de um gênero narrativo praticado por Walser, o retrato.

Palavras-chave: Heinrich von Kleist; Robert Walser; Literatura Alemã; Intertextualidade.

A celebração do ano da morte de um autor implica não apenas recordá-lo por meio de monumentos e epitáfios, mas também trazê-lo ao presente, ao mundo dos vivos, por meio da linguagem e da própria literatura. Povoado por fantasmas e determinado pelos mortos[1] [1] Parto aqui do princípio de que o ingresso no cânone literário depende de uma competição constante com a obra de autores mortos. Nesse jogo, os autores do presente não querem apenas superar os seus mortos, mas posicionar-se no campo da cultura tão bem quanto eles souberam fazer. , o universo literário celebra a morte com mais frequência do que se imagina. Considere-se, por exemplo, que uma das exigências do campo literário para que uma pessoa se torne autor seja não apenas criar uma imagem da própria tumba, mas também exumar precursores durante o processo para que, novamente presentes e vivos, eles não só assombrem o jovem autor, mas sirvam-lhe agora de primeiros leitores. Nesse sentido, as comemorações do ano de celebração dos 200 anos de morte de Heinrich von Kleist (1777-1811) também podem ajudar a trazer ao presente a obra e os gestos de outros mortos célebres que, em contextos distintos, ao tentar fabricar uma imagem duradoura de si mesmos, embalsamaram ao longo do tempo a obra e a imagem do dramaturgo alemão.

Na história de recepção de uma obra de Kleist, o exemplo mais próximo dessa dinâmica do campo literário seria ninguém menos que Franz Kafka. Dificilmente se pode separar parte da recepção da obra de Kleist da consagração da obra de Kafka como clássico da literatura moderna. Sabe-se que em vida Kleist foi visto como um talento perdido. Apesar de ter despertado a atenção de autores como Nietzsche, segundo Hans Ulrich Gumbrecht (2008), o primeiro momento de importância na recepção do escritor dentro do cânone se deu no início do século XX – momento que a crítica literária norte-americana denominou High Modernism – e está fortemente relacionado com a publicação dos romances de Kafka. Ao assumir um lugar na tradição, a obra de Kafka não só permitiu a redescoberta da modernidade dos textos de Kleist, como também determinou a leitura de sua obra, estabelecendo a comparação entre Kleist e Kafka como motivo crítico quase convencional nos estudos kafkianos (Cf. Gumbrecht 2008: 28). No caso de Kafka, o fantasma de Kleist ronda os entornos de sua obra: suas cartas, seus diários, suas leituras públicas e privadas. E sua aparição, em vez de tomar lugar no centro das narrativas, interrompe-as como uma paralisia da escrita que só pode ser retomada depois da leitura: pouco antes de escrever O processo, Kafka realizou ainda três leituras públicas e privadas de Kleist, como atesta a biografia escrita por Klaus Wagenbach (2006); em carta escrita entre os dias 9 e 10 de fevereiro de 1913, Kafka diz a Felice Bauer que não pudera continuar escrevendo na noite anterior, pois ficara até muito tarde lendo Michael Kohlhaas (Cf. Kafka 2003: 291-292).

Uma aparição distinta de Kleist é a que ocorre na obra de Robert Walser, autor contemporâneo de Kafka que, guardadas as devidas proporções, tem uma história de recepção análoga à do autor de A Marquesa de O. .[2] [2] Tema de um brilhante ensaio de Walter Benjamin (1929) e razão da admiração de autores como Kafka, Robert Musil, Christian Morgenstern e Herman Hesse, após mais de cinquenta anos, a obra de Walser foi descoberta pela crítica literária. Hoje, depois que autores consagrados da cena contemporânea como Peter Handke, Max Goldt, Enrique Vila-Matas e W. G. Sebald, não só assumiram a influência do escritor suíço em suas obras, mas o apresentaram como figura central de suas narrativas, ela parece encontrar um lugar na tradição, que aos poucos se reorganiza. No caso de Walser, Kleist surge como figura central em dois de seus contos ainda pouco conhecidos no Brasil: Kleist in Thun e Kleist in Paris. Sua primeira aparição encontra-se em Kleist in Thun, texto escrito durante a estada de Walser em Berlim e publicado na revista Die Schaubühne, em 1907. O texto trata da passagem de Kleist pela comuna suíça de Tune, onde viveu cerca de um ano, habitando um chalé nas costas da ilha de Aar, batizada depois como Kleist-Inseli. A narrativa de Walser vale-se do desaparecimento dos rastros do autor na comuna para dar vida a seu retrato: ele começa com o que não se sabe, com a falta de pistas, numa lacuna que vai sendo preenchida pela imagem fictícia de Kleist:

Kleist hat Kost und Logis in einem Landhaus auf einer Aareinsel in der Umgebung von Thun gefunden. Genau weiß man ja das heute, nach mehr als hundert Jahren, nicht mehr, aber ich denk mir, er wird über eine winzige, zehn Meter lange Brücke gegangen sein und an einem Glockenstrang gezogen haben. Darauf wird jemand die Treppen des Hauses herunterzueidechseln gekommen sein, um zu sehen, wer da sei. „Ist hier ein Zimmer zu vermieten?" Und kurz und gut, Kleist hat es sich jetzt in den drei Zimmern, die man ihm für erstaunlich wenig Geld abgetreten hat, bequem gemacht. „Ein reizendes Bernermeitschi führt mir die Haushaltung." Ein schönes Gedicht, ein Kind, eine wackere Tat, diese drei Dinge schweben ihm vor. Im übrigen ist er ein wenig krank. „Weiß der Teufel, was mir fehlt. Was ist mir? Es ist so schön hier." (Walser 1972: 174)[3] [3] „Kleist encontrou comida e abrigo em uma casa de campo numa das ilhas do rio Aar, nos arredores de Tune. Decorridos mais de cem anos, hoje não se sabe exatamente como isso se deu. Mas penso que ele atravessou uma ponte minúscula de uns dez metros de comprimento e puxou o cordão de uma campainha. Então alguém deve ter rastejado feito um réptil escada abaixo para ver quem havia chegado à casa. "Há um quarto para alugar?” E então Kleist se alojou nos três cômodos que lhe ofereceram por um preço surpreendentemente baixo. "Uma moça encantadora, vinda de Berna, cuida da casa.” Um bom poema, uma criança, um gesto honrado: ele sonha com essas três coisas. De resto, ele está um pouco adoentado. "Sabe lá o diabo aquilo que me falta. O que se passa comigo? É tão bonito aqui.” [Tradução de Douglas Pompeu, D. P.]

Por meio de uma hipótese expressa no "mas eu penso que” e no emprego do futuro do perfeito, o retrato de Kleist salta da imaginação do narrador de modo espontâneo e despretensioso. Cerca de cem anos separam Walser de Kleist, cem longos anos promoveram o apagamento dos rastros do poeta em Tune, no entanto a vitalidade alcançada através da oralidade e do ritmo do texto constitui um retrato vivo, presente e original de Kleist. No texto de Walser, o movimento, seja da língua, do personagem ou da natureza, é um elemento fundamental[4] [4] Até mesmo a criação do neologismo herunterzueidechseln parece se justificar no texto por uma estética de movimento e dinamicidade da língua. . Kleist caminha sem rumo pela comuna de Tune, observa a constante efervescência da natureza; um fluxo de pensamentos e de sensações transitórios o assalta e o desloca, e depois ele parte em um coche com a irmã para, na obra de Walser, reaparecer novamente em Paris.

Toda essa dinâmica confere verossimilhança incomum a esse retrato, pois mesmo sem conhecê-lo, o leitor é convencido de que pode identificar a figura do escritor pelas mãos de Walser. Para produzir esse efeito, Walser orienta seu texto segundo remissões factuais da biografia de Kleist durante a estadia em Tune. Como se sabe, o poeta não deixou de exercer seu ofício na ilha nem de se corresponder com a irmã. No conto de Walser, ele escreve seus textos e os lê em encontro com amigos, inicia a comédia A bilha quebrada e o drama sobre Robert Guiskard, "escreve com furor.” (1972: 177). Até mesmo as falas iniciais do poeta são trechos da carta de Kleist à irmã. Mas nenhuma dessas remissões são precisas e exatas, elas apenas produzem certo efeito de realismo na narrativa, substituindo a ausência dos rastros de um Kleist "original” pelos de um Kleist fictício. Em primeiro de maio de 1802, Kleist escreve à irmã: "Der Vater hat mir von zwei Töchtern eine in mein Haus gegeben, die mir die Wirtschaft führt: ein freundlich-liebliches Mädchen, das sich ausnimmt, wie ihr Taufnamen: Mädeli”[5] [5] „O pai me cedeu uma de suas duas filhas para administrar a casa: uma moça gentil e amável que se comporta de acordo com seu nome de batismo: Mädeli." [Tradução D. P.] (Kleist 1977: 724), mas a passagem é traduzida por Walser como uma fala autêntica de Kleist consigo mesmo, reescrevendo as palavras do poeta, marcando-as com as particularidades do dialeto Berndeutsch e transformando "Mädeli” em "Bernermeitschi”[6] [6] Respectivamente: „moça", no alemão falado na Suíça, e „moça de Berna", no dialeto da cidade. : "Ein reizendes Bernermeitschi führt mir die Haushaltung”.

Na verdade, o procedimento empregado por Walser ao citar ou dialogar com a obra e os textos de Kleist, ao contrário da citação precisa ou da tentativa de reproduzir o estilo de Kleist, consiste em seguir um parâmetro baseado na fluência, na distensão e na dinâmica da linguagem oral, características que, aliás, refletem a condição errante do personagem e seu constante fluxo de pensamentos.

Diante do conto de Walser, pode-se dizer que o autor parte então de um fato da história de vida do poeta – a passagem de Kleist por Tune –, não para reconstruir as caminhadas e o roteiro da vida do poeta na comuna, mas para representar um universo que não pode ser mensurado pela precisão de uma citação, ou seja, seu próprio estado de espírito. Para prover um espírito a seu personagem, a estratégia narrativa de Walser envolve, portanto, o emprego de um narrador onisciente, do discurso indireto livre e de uma oralidade que procura simular a espontaneidade com que pensamentos e sensações assaltam o poeta em seu monólogo interior. Nessa estratégia, o comentário do narrador, presente já no primeiro parágrafo, de que o poeta está um pouco adoentado, parece abrir o caminho não para uma biografia mas para uma espécie de biografema de Kleist, que, valendo-se de rastros factuais, dá forma a um retrato fluido da vida e da obra do poeta.

Nesse procedimento, a descrição da natureza exerce papel fundamental na narrativa. Se inicialmente ela permite ao leitor perceber o nítido contraste existente entre um mundo interior e outro exterior, é também por meio dela que o texto sugere o desejo do escritor em abandonar seu ofício para ir ao encontro do mundo natural. Pois, de que vale tudo isso se lá fora a primavera exala e vibra e zune e se esparrama vagarosa? Seria preferível ser um homem do campo:

Er dichtet natürlich. Ab und zu fährt er per Fuhrwerk nach Bern zu literarischen Freunden und liest dort vor, was er etwa geschrieben hat. Man lobt ihn selbstverständlich riesig, findet aber den ganzen Menschen ein bisschen unheimlich. Der Zerbrochene Krug wird geschrieben. Aber was soll alles das? Es ist Frühling geworden. Die Wiesen um Thun herum sind ganz dick voller Blumen, das duftet und summt und macht und tönt und faulenzt, es ist zum Verrücktwerden warm an der Sonne. Es steigt Kleist wie glühendrote betäubende Wellen in den Kopf hinauf, wenn er am Schreibtisch sitzt und dichten will. Er hat Bauer werden wollen, als er in die Schweiz gekommen ist. Nette Idee das. In Potsdam lässt sich so etwas leicht denken. Überhaupt denken die Dichter sich so leicht ein Ding aus. Oft sitzt er am Fenster. (Walser 1972: 174)[7] [7] „Ele escreve, obviamente. De vez em quando, toma um coche para Berna, onde lê para amigos literatos algo do que andou escrevendo. Ele é muito elogiado, evidentemente, mas as pessoas acham-no um pouco esquisito. A bilha quebrada é escrita. Mas de que vale tudo isso? A primavera chegou. Os campos ao redor de Tune estão repletos de flores, a natureza exala seus perfumes e zune e faz acontecer e vibra e se torna preguiçosa. Sob o sol, o calor é enlouquecedor. Quando ele se senta à escrivaninha e quer escrever, ondas atordoantes e de um vermelho ardente sobem-lhe à cabeça. Ao chegar à Suíça quisera tornar-se camponês. Que boa ideia. Potsdam é um lugar propício a esse tipo de ideias. Escritores, de uma forma geral, acalentam esses planos. Com frequência, ele se senta à janela." [Tradução D. P.]

Chegando à Suíça, Kleist prefere a janela à escrivaninha. A janela define os limites do mundo do escritor em relação à natureza, ela é um símbolo na imagística do romantismo, um requisito da melancolia[8] [8] Como escreve Wolfgang Hildesheimer: "[ ] Fernster, die unentberhlichen Requisiten der Melancholie [...]” (Hildesheimer 1971: 74). , a fronteira que separa a civilização de uma inocência original e que permite a nostalgia do primitivo. Kleist, ciente disso, não pode escrever. É preciso que a lâmpada em sua mesa ofusque a imagem exuberante de Tune para que ele escreva (Id.: 177). Como escreve o próprio Kleist em Sobre o teatro de marionetes, a partir do momento que o homem se olhou pela primeira vez no espelho, lançou um olhar sobre si mesmo e, ao se reconhecer, desejou retornar ao estado de inocência. É, portanto, diante da natureza, locus da experiência espiritual do poeta, e não diante da escrivaninha que ele quer se sentar.

No entanto, no conto de Walser, ele não só a contempla, como também, na tentativa de reencontrar sua inocência, amaldiçoa sua pátria e sua família, lança-se ao encontro da paisagem para nela encontrar um outro lugar de origem, quer fundir-se a ela, quer ser beijado pelo sol:

Die Vögel singen unter all der Sonne und unter all dem Licht so matt. Sie sind selig und schläfrig. Kleist stützt seinen Kopf auf den Ellbogen, schaut und schaut und will sich vergessen. Das Bild seiner fernen, nordischen Heimat steigt ihm auf, er kann das Gesicht seiner Mutter deutlich sehen, alte Stimmen, verflucht das – er ist aufgesprungen und in den Garten des Landhauses hinabgelaufen. Dort steigt er in einen Kahn und rudert in den offenen morgendlichen See hinaus. Der Kuß der Sonne ist ein einziger und fortwährend wiederholter. Kein Lüftchen. Kaum eine Bewegung. (Id.:175)[9] [9] O sol e a luz tornam débil o canto dos pássaros. Eles estão felizes e sonolentos. Kleist apoia a cabeça no cotovelo, contempla e contempla e quer se esquecer. Acode-lhe a imagem de sua terra nórdica e distante; pode ver claramente o rosto da mãe, ouve velhas vozes, amaldiçoa-as – ergue-se de um pulo e desce ao jardim da casa. Sobe a um bote e, remando, cruza o amplo lago matinal. O beijo do sol constitui um gesto único que se repete indefinidamente. Nenhuma brisa. Nada se move." [Trad. D. P.]

Esse salto na paisagem, esse abandono da reclusão em si mesmo exigida pelo ofício de escritor pode ser interpretado não somente como uma representação do romantismo de Kleist, mas também, considerando o ensaio de Benjamin sobre Walser, como um caminho em direção à cura. Pois, como ocorre com quase todos os personagens de Walser, Kleist é também um convalescente: "Er ist ein wenig krank” (Walser 1972: 174). Nesse sentido, não só a contemplação, mas também o salto a partir da noite escura de sua enfermidade – não ser mais inocente – é uma tentativa de purificar seu estado de espírito, torná-lo mais ativo, como se ele pudesse encontrar "o fluxo do seu sangue renovado no murmúrio dos riachos, e sua respiração mais vigorosa no farfalhar das árvores” (Benjamin 1996: 53). E essa mudança de espírito e esse desfrutar ingênuo do convalescente, dignos de um conto de fadas, são expressos formalmente na escrita de Walser:

Die Vorberge am Ufer des Sees sind so halb und halb grün und so hoch, so dumm, so duftig. La, la, la. Er hat sich ausgezogen und wirft sich ins Wasser. Wie namenlos schön ihm das ist. Er schwimmt und hört Lachen von Frauen vom Ufer her. Das Boot macht träge Bewegungen im grünlich-bläulichen Wasser. Die Natur ist wie eine einzige große Liebkosung. Wie das freut und zugleich so schmerzen kann. (Walser 1972: 175-176)[10] [10] „As montanhas à margem do lago ficaram tão verdes e são tão altas, tão tolas, tão perfumadas. La-la-la. Ele se despe e se joga na água. Não encontra palavras para tanta beleza. Nada e ouve o riso de mulheres que estão às margens do lago. O bote faz movimentos preguiçosos na água azul-esverdeada. A natureza é um único e grande afago. Como isso conforta e dói ao mesmo tempo." [Trad. D. P.]

O curioso é que nessa passagem a euforia expressa na repetição dos adjetivos, como o que qualifica estranhamente as montanhas por um halb und halb grün, ou mesmo expressa na escolha de palavras que podem soar kitsch e fora do lugar como em uma linguagem infantil, ou ainda expressa na onomatopeia de um cantarolar, no riso de mulheres e no movimento das águas, essa euforia parece estancar-se na última frase pela presença da dor. Ao longo do texto, o misto de dor e alegria é uma constante no estado de espírito de Kleist, como uma febre oscilante que o conduz, por fim, ao total esgotamento de suas forças. O salto em direção à paisagem, em direção à cura, sugere também um salto em direção a seu próprio fim. Ao aproximar os personagens de Kleist aos personagens dos contos de fadas, Benjamin comenta que a narrativa de Walser começa onde os contos de fadas terminam (Cf. 1996: 53). Para Benjamin, o leitor dos contos de fadas perde de vista os personagens depois que eles se livraram do sofrimento, enquanto Walser mostraria o modo como – se não morreram, depois de uma aparente saída – eles continuam incessantemente tentando se livrar da dor. Na representação de Kleist não é diferente: o salto de Kleist em direção ao lago parece representar uma tentativa de um salto maior, um salto definitivo. Em uma noite de verão, Kleist senta-se no alto do muro de uma igreja, abre a camisa para deixar o peito livre e contempla a paisagem a seus pés:

Unten, wie von einer mächtigen Gotteshand in die Tiefe geworfen, liegt der gelblich und rötlich beleuchtete See, aber die ganze Beleuchtung scheint aus der Wassertiefe heraufzulodern. Es ist wie ein brennender See. Die Alpen sind lebendig geworden und tauchen ihre Stirnen unter fabelhaften Bewegungen ins Wasser. [...] Ihm ist der ganze dunkelglänzende See das Geschmeide, das lange, auf einem schlafenden großen, unbekannten Frauenkörper. [...] Er sitzt da, vorgebeugten Antlitzes, als müsse er zum Todessprung in das Bild der schönen Tiefe bereit sein. Er möchte in das Bild hineinsterben. Er möchte nur noch Augen haben, nur noch ein einziges Auge sein. Nein, ganz, ganz anders. Die Luft muss eine Brücke sein und das ganze Landschaftsbild eine Lehne, zum Daranlehnen, sinnlich, selig, müde. Es wird Nacht, aber er mag nicht hinuntergehen, er wirft sich an ein unter Sträuchern verborgenes Grab, Fledermäuse umschwirren ihn, die spitzen Bäume lispeln mit leise daherziehenden Windzügen. Das Gras duftet so schön, unter dem die Skelette der Begrabenen liegen. Er ist so schmerzlich glücklich, zu glücklich, deshalb so würgend, so trocken, so schmerzlich. So allein. Warum kommen die Toten nicht und unterhalten sich auf eine halbe Stunde mit dem einsamen Manne? In einer Sommernacht muss einer doch eine Geliebte haben. Der Gedanke an weisslich schimmernde Brüste und Lippen jagt Kleist den Berg hinunter, ans Ufer, ins Wasser, mit den Kleidern, lachend, weinend. (Walser 1972: 181)[11] [11] „Lá embaixo, como que arremessado às profundezas por uma poderosa mão divina, repousa o lago tingido por tons de amarelo e vermelho, mas toda a luz parece brotar de chamas que emergem das profundezas da água. É como um lago ardente. Os Alpes ganharam vida e, com movimentos assombrosos, mergulham a fronte na água. [...] Para ele, todo o lago escuro e reluzente é um longo ornamento sobre o corpo de uma grande e desconhecida mulher que dorme. [...] Ele está sentado ali, com a face inclinada, como se devesse estar preparado para o salto mortal na imagem da bela profundeza. Gostaria de morrer na imagem. Gostaria de ter olhos ainda, de ser ainda um único olho. Não, não é nada disso. O ar deve ser uma ponte e toda a paisagem uma encosta para se apoiar com volúpia, alegria, cansaço. Anoitece, mas ele não quer descer. Joga-se numa cova encoberta por arbustos; morcegos esvoaçam à sua volta, as árvores pontudas sussurram à passagem do vento que sopra ternamente. Tem bom cheiro a grama sob a qual repousam os esqueletos dos corpos enterrados. Ele está dolorosamente feliz, demasiadamente feliz e, por isso, está tão sufocado, tão sóbrio, tão dolorido. Tão sozinho. Por que os mortos não retornam e conversam por meia hora com o homem solitário? Numa noite de verão é preciso ter uma amante. A ideia de uns lábios e de um peito alvo e reluzente persegue Kleist morro abaixo, persegue-o às margens do lago, na água, ainda vestido, rindo, chorando." [Trad. D. P.]

Essa é a única alegria possível a esse Kleist convalescente: uma alegria sufocante e dolorosa. A passagem, aliás, é um grande exemplo da narrativa imagética de Walser, de suas qualidades de retratista que dialogam com a narrativa imagética do próprio Kleist: não através da conhecida sintaxe intrincada do escritor alemão, mas através de uma sintaxe, por assim dizer, plana, que permite a ele interromper e facilmente reconstruir, reorganizar sua pintura. Walser compõe uma paisagem fantástica e cria novamente uma atmosfera externa que reflete o estado angustiado do personagem – o lago em chamas e a fronte tremulante dos alpes – em uma língua corrente, pode-se dizer fluvial. Além disso, o modo como a composição se assemelha ao desejo de morte real de Kleist expresso em suas cartas, torna o espírito de Kleist mais presente e mais verossímil do que em uma biografia, dependente demasiadamente dos fatos. Em conferência sobre Kleist, em 2007, Hans Ulrich Gumbrecht (2008) comenta como a morte do escritor deixou algo suspenso no ar. Grumbrecht afirma que o desejo de morte de Kleist era um desejo de uma morte compartilhada: não queria morrer sozinho. No texto de Walser a solidão de Kleist é de fato sempre dolorosa. E essa dor sempre evoca a ausência de outro corpo: "Er ist so allein. Er wünscht sich eine Stimme herbei, was für eine? Eine Hand, nun, und? Einen Körper, aber wozu?”[12] [12] „Ele está tão sozinho. Deseja que uma voz chegue até ele, mas de que tipo? Uma mão, agora, e? Um corpo, mas para quê?" [Trad. D. P.] (Walser 1972: 175) Finalmente, no ano de 1811, após enviar várias cartas aos amigos, como conta Gumbrecht, Kleist encontra uma senhora burguesa que, sofrendo de uma doença incurável, decide acompanhar o escritor. Os dois corpos são encontrados juntos, abraçados à margem do lago Wannsee, em Potsdam. Seria esse o sentido da solidão sentida pelo personagem de Walser, deitado sobre o túmulo, desejoso de uma conversa com os mortos, dos seios e dos lábios de uma amante que abraçasse com ele a morte? Gumbrecht comenta como o suicídio de Kleist foi burocraticamente programado: ele e sua cúmplice queimaram manuscritos, escreveram cartas aos amigos. O autor diz que há motivos para pensar que até mesmo o abraço dos dois corpos foi planejado, pois esse abraço sem sentido aparente é o que tornou esse desfecho ainda mais kleistiano. (Cf. Gumbrecht 2008: 18-19) É difícil precisar as fontes de Walser. Teria ele lido as cartas de Kleist para tornar seu personagem ainda mais verossímil? A pista talvez se encontre no próprio Walser, ao dizer em um de seus „microgramas" [Mikrogramme] que tudo o que ele retira de outros textos parte de leituras desatentas e superficiais. Feito ou não de meias leituras, o conto de Walser parece valer-se justamente dessa suspensão, implicada não só na morte, mas também na vida de Kleist, que, como sua obra, resiste à integração a uma cosmologia, a uma tradição previamente estabelecida. "Ele quer o inconcebível, o incompreensível”, diz o narrador de Kleist in Thun, Er will Unfassliches, Unbegreifliches. (Walser 1972: 181)

Com o esgotamento físico e mental do escritor, sua irmã vem buscá-lo em Tune. A aparência do poeta é descrita como sendo a de um cadáver, e seus versos ressoam em sua cabeça como o gralhar de corvos; ele se desespera. Seus manuscritos ficam por fim no chão do quarto, como crianças impiedosamente abandonadas pelos pais (Cf. Id.: 183) A narrativa termina em movimento. Atônito, no fundo do coche, Kleist sonha com nuvens e belas mãos, não mira a paisagem, que aos poucos vai ficando para trás. O ritmo do texto cria o movimento da progressiva desaparição de Tune: "Weiter. Alles fliegt und sinkt vor den Seitenblicken nach rückwärts, alles tanzt, kreist und schwindet”[13] [13] „Adiante. Tudo voa e fica para trás nesse olhar de esguelha; tudo dança, rodopia e entra em vertigem." [Trad. D. P.] . Junto com a paisagem vai sumindo novamente a dor. E por fim a imagem do próprio Kleist:

Weiter, hei hei, ist das eine Wagenfahrt. Aber zu guter Letzt wird man ihn laufen lassen müssen, den Postwagen, und zu allerletzt kann man sich ja noch die Bemerkung erlauben, dass an der Front des Landhauses, das Kleist bewohnt hat, eine marmorne Tafel hängt, die darauf hindeutet, wer da gelebt und gedichtet hat. Reisende mit Alpentourenabsichten können’s lesen, Kinder aus Thun lesen und buchstabieren es, Ziffer für Ziffer, und schauen einander dann fragend in die Augen. Ein Jude kann’s lesen, der Christ auch, wenn er Zeit hat und nicht etwa der Zug schon im Abfahren begriffen ist, ein Türke, eine Schwalbe, inwiefern sie Interesse daran hat, ich auch, ich kann’s gelegentlich auch wieder einmal lesen. (Id.: 184)[14] [14] "Adiante, eia, eia, isto é uma viagem de coche! Finalmente, deixa-se partir o veículo, o coche dos correios, e seja-me finalmente permitido observar que, na fachada da casa de campo onde Kleist morou, há uma placa de mármore informando o nome de quem ali viveu e escreveu. Viajantes que desejam explorar os Alpes podem lê-la, crianças de Tune leem-na e soletram-na, sílaba por sílaba, e se entreolham interrogativas. Um judeu pode lê-la, o cristão também – se houver tempo e ele não estiver prestes a perder o trem –, um turco, uma andorinha – caso ela se interesse – podem vê-la e também eu, também eu posso eventualmente lê-la mais uma vez.” [Trad. D. P.]

Em 1899, Walser trabalhou como funcionário numa cervejaria em Tune: "Ich kann die Gegend ein bisschen kennen, weil dort Aktionsbierbrauereiangestellter gewesen bin” (Id.: 185) [15] [15] „Conheço um pouco a região, pois trabalhei lá como empregado de uma cervejaria." [Trad. D. P.] , diz o narrador no fim do texto. Onze anos mais tarde, em 1911, o centenário da morte de Kleist seria celebrado. E por uma obra do acaso, que parece envolver uma lógica interna surpreendente, onze anos antes do bicentenário celebrado neste ano de 2011, publicou-se a segunda edição de Logis in einem Landhaus: conjunto de ensaios de W.G. Sebald (2000), que, ao se aproximar do procedimento poético de Walser, intitulou seu livro usando a primeira frase de Kleist in Thun. Ele se apropriou, sem citar diretamente a fonte, de uma das descrições que Walser fez dos Alpes[16] [16] A passagem é retirada do início do conto de Walser (1972: 175): "Die Berge sind wie die Mache eines geschickten Theatermalers, oder sie sehen so aus, als wäre die ganze Gegend ein Album, und die Berge wären von einem feinsinnigen Dilettanten der Besitzerin des Albums aufs leere Blatt eingezeichnet worden, zur Erinnerung, mit einem Vers.” [„As montanhas são como o trabalho de um hábil pintor cenográfico, ou pelo menos se parecem assim, como se toda a região fosse um álbum e as montanhas tivessem sido desenhadas numa página em branco por um diletante sutil e oferecidas como lembrança, juntamente com um verso, à sua dona."] Essa mesma passagem aparece como se segue no conto Dr. K.’s Badereise Nach Riva, de Sebald: "Die Felswände erheben sich aus dem Wasser in das schöne Herbstlicht, so halb und halb grün, als wäre die ganze Gegend ein Album und die Berge wären von einem feinsinnigen Dilettanten der Besitzerin des Albums aufs leere Blatt hingezeichnet worden, zur Erinnerung.” (Sebald 1990: 180) [„Sob a luz do outono, as escarpas erguem-se da água; tornaram-se tão verdes, como se toda a região fosse um álbum e as montanhas tivessem sido desenhadas sobre a página em branco por um diletante sutil e oferecidas como lembrança à sua dona."] Traduções de D. P. e ainda reproduziu, nas páginas de seu ensaio sobre o escritor suíço, aquela que é provavelmente a única fotografia preservada do romântico chalé em Tune, onde Kleist viveu e escreveu. O chalé e a placa não existem mais. De modo irônico, a "ilha de Kleist” tornou-se propriedade privada, cercada e inacessível. O tempo, enfim, levou consigo os rastros materiais de Kleist em Tune, inclusive o mármore.

Mas, mesmo que o lago descrito por Walser seja realmente, "ainda uma vez mais azul, e o céu seja três vezes mais belo” (Cf. 1972:185), o retrato vivo composto por Walser, oposto à fixidez e à frieza de um epitáfio, de uma inscrição e do mármore, permite ao leitor, hoje, depois de 200 anos, entrever na representação da figura errante de Kleist um dos modos como a literatura exuma seus mortos, sugerido no texto tanto pelo coche – viajando no tempo através de mundos fictícios até chegar ao presente – quanto pela imagem furtiva de Walser em Tune, cansado depois de fazer uma longa caminhada, inclinando-se sobre os manuscritos abandonados por Kleist, mais de cem anos depois do dia em que ele partiu.


Recebido em 31/08/2011

Aprovado em 13/10/2011

  • Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política Săo Paulo: Brasiliense, 1996 (1. ed. 1985).
  • Gumbrecht, H. Ulrich. "A estética da suspensăo na encruzilhada de tempos históricos: tręs conferęncias sobre Heinrich von Kleist. In: Floema Ano IV (4), 2008. http://periodicos.uesb.br/index.php/floema/article/view/115 (29.10.2011).
  • Hildesheimer, Wolfgang. Zeiten in Cornwall Mit 6 Zeichnungen des Autors, Frankfurt/Main 1971. S. 74.
  • Kafka, Franz. Briefe an Felice Orgs. Erich Heller; Jürgen Born. Frankfurt am Main: Fischer, 2003.
  • von Kleist, Heinrich. Sämtliche Werke und Briefe Vol. II. Org. Helmut Sembdner. München: Hanser, 1977.
  • Sebald, W.G. Logis in einem Landhaus Frankfurt am Main: Fischer, 2000 (1. ed. 1998).
  • ____________. Dr. K.s Badereise Nach Riva". In: Schwindel. Gefühle Frankfurt am Main: Fischer, 2009: pp. 180.
  • Wagenbach, Klaus. Franz Kafka Eine Biographie seiner Jugend 18831912. Erweiterte Neuausgabe: Wagenbach, Berlin 2006.
  • Walser, Robert. Kleist in Thun". In: Sämtliche Werke Vol. 1. Org. Jochen Greven. Zürich; Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972. pp. 174-185.
  • ____________. Aus dem Bleistiftgebiet. Vol. I. Orgs. Bernhard Echte; Werner Morlang. Frankfurt am Main: 1985.
  • [1]
    Parto aqui do princípio de que o ingresso no cânone literário depende de uma competição constante com a obra de autores mortos. Nesse jogo, os autores do presente não querem apenas superar os seus mortos, mas posicionar-se no campo da cultura tão bem quanto eles souberam fazer.
  • [2]
    Tema de um brilhante ensaio de Walter Benjamin (1929) e razão da admiração de autores como Kafka, Robert Musil, Christian Morgenstern e Herman Hesse, após mais de cinquenta anos, a obra de Walser foi descoberta pela crítica literária. Hoje, depois que autores consagrados da cena contemporânea como Peter Handke, Max Goldt, Enrique Vila-Matas e W. G. Sebald, não só assumiram a influência do escritor suíço em suas obras, mas o apresentaram como figura central de suas narrativas, ela parece encontrar um lugar na tradição, que aos poucos se reorganiza.
  • [3]
    „Kleist encontrou comida e abrigo em uma casa de campo numa das ilhas do rio Aar, nos arredores de Tune. Decorridos mais de cem anos, hoje não se sabe exatamente como isso se deu. Mas penso que ele atravessou uma ponte minúscula de uns dez metros de comprimento e puxou o cordão de uma campainha. Então alguém deve ter rastejado feito um réptil escada abaixo para ver quem havia chegado à casa. "Há um quarto para alugar?” E então Kleist se alojou nos três cômodos que lhe ofereceram por um preço surpreendentemente baixo. "Uma moça encantadora, vinda de Berna, cuida da casa.” Um bom poema, uma criança, um gesto honrado: ele sonha com essas três coisas. De resto, ele está um pouco adoentado. "Sabe lá o diabo aquilo que me falta. O que se passa comigo? É tão bonito aqui.” [Tradução de Douglas Pompeu, D. P.]
  • [4]
    Até mesmo a criação do neologismo
    herunterzueidechseln parece se justificar no texto por uma estética de movimento e dinamicidade da língua.
  • [5]
    „O pai me cedeu uma de suas duas filhas para administrar a casa: uma moça gentil e amável que se comporta de acordo com seu nome de batismo: Mädeli." [Tradução D. P.]
  • [6]
    Respectivamente: „moça", no alemão falado na Suíça, e „moça de Berna", no dialeto da cidade.
  • [7]
    „Ele escreve, obviamente. De vez em quando, toma um coche para Berna, onde lê para amigos literatos algo do que andou escrevendo. Ele é muito elogiado, evidentemente, mas as pessoas acham-no um pouco esquisito.
    A bilha quebrada é escrita. Mas de que vale tudo isso? A primavera chegou. Os campos ao redor de Tune estão repletos de flores, a natureza exala seus perfumes e zune e faz acontecer e vibra e se torna preguiçosa. Sob o sol, o calor é enlouquecedor. Quando ele se senta à escrivaninha e quer escrever, ondas atordoantes e de um vermelho ardente sobem-lhe à cabeça. Ao chegar à Suíça quisera tornar-se camponês. Que boa ideia. Potsdam é um lugar propício a esse tipo de ideias. Escritores, de uma forma geral, acalentam esses planos. Com frequência, ele se senta à janela." [Tradução D. P.]
  • [8]
    Como escreve Wolfgang Hildesheimer: "[ ] Fernster, die unentberhlichen Requisiten der Melancholie [...]” (Hildesheimer 1971: 74).
  • [9]
    O sol e a luz tornam débil o canto dos pássaros. Eles estão felizes e sonolentos. Kleist apoia a cabeça no cotovelo, contempla e contempla e quer se esquecer. Acode-lhe a imagem de sua terra nórdica e distante; pode ver claramente o rosto da mãe, ouve velhas vozes, amaldiçoa-as – ergue-se de um pulo e desce ao jardim da casa. Sobe a um bote e, remando, cruza o amplo lago matinal. O beijo do sol constitui um gesto único que se repete indefinidamente. Nenhuma brisa. Nada se move." [Trad. D. P.]
  • [10]

    „As montanhas à margem do lago ficaram tão verdes e são tão altas, tão tolas, tão perfumadas. La-la-la. Ele se despe e se joga na água. Não encontra palavras para tanta beleza. Nada e ouve o riso de mulheres que estão às margens do lago. O bote faz movimentos preguiçosos na água azul-esverdeada. A natureza é um único e grande afago. Como isso conforta e dói ao mesmo tempo." [Trad. D. P.]
  • [11]

    „Lá embaixo, como que arremessado às profundezas por uma poderosa mão divina, repousa o lago tingido por tons de amarelo e vermelho, mas toda a luz parece brotar de chamas que emergem das profundezas da água. É como um lago ardente. Os Alpes ganharam vida e, com movimentos assombrosos, mergulham a fronte na água. [...] Para ele, todo o lago escuro e reluzente é um longo ornamento sobre o corpo de uma grande e desconhecida mulher que dorme. [...] Ele está sentado ali, com a face inclinada, como se devesse estar preparado para o salto mortal na imagem da bela profundeza. Gostaria de morrer na imagem. Gostaria de ter olhos ainda, de ser ainda um único olho. Não, não é nada disso. O ar deve ser uma ponte e toda a paisagem uma encosta para se apoiar com volúpia, alegria, cansaço. Anoitece, mas ele não quer descer. Joga-se numa cova encoberta por arbustos; morcegos esvoaçam à sua volta, as árvores pontudas sussurram à passagem do vento que sopra ternamente. Tem bom cheiro a grama sob a qual repousam os esqueletos dos corpos enterrados. Ele está dolorosamente feliz, demasiadamente feliz e, por isso, está tão sufocado, tão sóbrio, tão dolorido. Tão sozinho. Por que os mortos não retornam e conversam por meia hora com o homem solitário? Numa noite de verão é preciso ter uma amante. A ideia de uns lábios e de um peito alvo e reluzente persegue Kleist morro abaixo, persegue-o às margens do lago, na água, ainda vestido, rindo, chorando." [Trad. D. P.]
  • [12]

    „Ele está tão sozinho. Deseja que uma voz chegue até ele, mas de que tipo? Uma mão, agora, e? Um corpo, mas para quê?" [Trad. D. P.]
  • [13]

    „Adiante. Tudo voa e fica para trás nesse olhar de esguelha; tudo dança, rodopia e entra em vertigem." [Trad. D. P.]
  • [14]

    "Adiante, eia, eia, isto é uma viagem de coche! Finalmente, deixa-se partir o veículo, o coche dos correios, e seja-me finalmente permitido observar que, na fachada da casa de campo onde Kleist morou, há uma placa de mármore informando o nome de quem ali viveu e escreveu. Viajantes que desejam explorar os Alpes podem lê-la, crianças de Tune leem-na e soletram-na, sílaba por sílaba, e se entreolham interrogativas. Um judeu pode lê-la, o cristão também – se houver tempo e ele não estiver prestes a perder o trem –, um turco, uma andorinha – caso ela se interesse – podem vê-la e também eu, também eu posso eventualmente lê-la mais uma vez.” [Trad. D. P.]
  • [15]

    „Conheço um pouco a região, pois trabalhei lá como empregado de uma cervejaria." [Trad. D. P.]
  • [16]

    A passagem é retirada do início do conto de Walser (1972: 175): "Die Berge sind wie die Mache eines geschickten Theatermalers, oder sie sehen so aus, als wäre die ganze Gegend ein Album, und die Berge wären von einem feinsinnigen Dilettanten der Besitzerin des Albums aufs leere Blatt eingezeichnet worden, zur Erinnerung, mit einem Vers.” [„As montanhas são como o trabalho de um hábil pintor cenográfico, ou pelo menos se parecem assim, como se toda a região fosse um álbum e as montanhas tivessem sido desenhadas numa página em branco por um diletante sutil e oferecidas como lembrança, juntamente com um verso, à sua dona."] Essa mesma passagem aparece como se segue no conto
    Dr. K.’s Badereise Nach Riva, de Sebald: "Die Felswände erheben sich aus dem Wasser in das schöne Herbstlicht, so halb und halb grün, als wäre die ganze Gegend ein Album und die Berge wären von einem feinsinnigen Dilettanten der Besitzerin des Albums aufs leere Blatt hingezeichnet worden, zur Erinnerung.” (Sebald 1990: 180) [„Sob a luz do outono, as escarpas erguem-se da água; tornaram-se tão verdes, como se toda a região fosse um álbum e as montanhas tivessem sido desenhadas sobre a página em branco por um diletante sutil e oferecidas como lembrança à sua dona."] Traduções de D. P.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
    Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/; Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, 05508-900 São Paulo/SP/ Brasil, Tel.: (55 11)3091-5028 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: pandaemonium@usp.br