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Histórias da Arquitetura ou Arquiteturas da História: uma leitura de Austerlitz, de W. G. Sebald

Histories of Architecture or Architectures of History: reading Austerlitz, by W. G. Sebald

Resumos

Na tradição literária do século XIX, as imagens romanescas da arquitetura e da decoração de interiores estavam ligadas a uma tentativa de cópia fiel do real, sob pretexto de um pretenso apagamento do caráter representativo da própria linguagem. No entanto, W. G. Sebald, no romance Austerlitz, faz um diferente uso dessas metáforas, com grande rendimento ético e estético: nas linhas arquitetônicas e nas construções civis, a personagem Austerlitz, especialista em arquitetura capitalista, entrevê a estrutura de um massacre de proporções abissais, que culminou na shoah. Por trás da racionalidade instrumental e do fascínio do iluminismo, a cidade capitalista carrega em sua imanência - tal qual na página do romance escrito por Sebald - um olhar oblíquo para a destruição perpetrada em nome de um suposto ideal de pureza, racionalismo e ordem. Assim, o romance de Sebald, por meio da metáfora arquitetônica, revela o horror do massacre contra os judeus na Alemanha no século XX, mas sem recorrer a uma estetização do mal que comprometeria a própria reflexão acerca dos descaminhos humanos.

arquitetura; Austerlitz; shoah; Nazismo


In the literary tradition of the nineteenth century, romanesque images of architecture and interiors design were related to an attempt to copy reality directly, supposedly to elude the representative matter of language. However, in his novel entitled Austerlitz, W. G. Sebald uses these metaphors differently, with great ethical and aesthetical gains: from architectural lines and urban buildings, the character called Austerlitz, an expert on capitalist architecture, infers the structure of a horrid carnage, which grew to the catastrophic shoah. Behind instrumental reason and fascination for Enlightenment to its highest point, the capitalist city, like the pages of Sebald’s novel, immanently offers an oblique look at the destruction in the name of supposed purity, rationalism and order. Therefore, Sebald’s novel, by means of the architectural metaphor, reveals the horrid onslaught against German Jews in the twentieth century, but it does not provide readers with an aesthetics of evil, which would disturb the reflection against the astray path of humanity.

architecture; Austerlitz; shoah; Nazism


LITERATURA

Histórias da Arquitetura ou Arquiteturas da História: uma leitura de Austerlitz, de W. G. Sebald

Histories of Architecture or Architectures of History: reading Austerlitz, by W. G. Sebald

Vinícius Carvalho Pereira

Professor Msc. do IFMT e doutorando em Ciência da Literatura na UFRJ. E-mail: viniciuscarpe@ig.com.br.

ABSTRACT

In the literary tradition of the nineteenth century, romanesque images of architecture and interiors design were related to an attempt to copy reality directly, supposedly to elude the representative matter of language. However, in his novel entitled Austerlitz, W. G. Sebald uses these metaphors differently, with great ethical and aesthetical gains: from architectural lines and urban buildings, the character called Austerlitz, an expert on capitalist architecture, infers the structure of a horrid carnage, which grew to the catastrophic shoah. Behind instrumental reason and fascination for Enlightenment to its highest point, the capitalist city, like the pages of Sebald’s novel, immanently offers an oblique look at the destruction in the name of supposed purity, rationalism and order. Therefore, Sebald’s novel, by means of the architectural metaphor, reveals the horrid onslaught against German Jews in the twentieth century, but it does not provide readers with an aesthetics of evil, which would disturb the reflection against the astray path of humanity.

Keywords: architecture, Austerlitz, shoah, Nazism

RESUMO

Na tradição literária do século XIX, as imagens romanescas da arquitetura e da decoração de interiores estavam ligadas a uma tentativa de cópia fiel do real, sob pretexto de um pretenso apagamento do caráter representativo da própria linguagem. No entanto, W. G. Sebald, no romance Austerlitz, faz um diferente uso dessas metáforas, com grande rendimento ético e estético: nas linhas arquitetônicas e nas construções civis, a personagem Austerlitz, especialista em arquitetura capitalista, entrevê a estrutura de um massacre de proporções abissais, que culminou na shoah. Por trás da racionalidade instrumental e do fascínio do iluminismo, a cidade capitalista carrega em sua imanência – tal qual na página do romance escrito por Sebald – um olhar oblíquo para a destruição perpetrada em nome de um suposto ideal de pureza, racionalismo e ordem. Assim, o romance de Sebald, por meio da metáfora arquitetônica, revela o horror do massacre contra os judeus na Alemanha no século XX, mas sem recorrer a uma estetização do mal que comprometeria a própria reflexão acerca dos descaminhos humanos.

Palavras-chave: arquitetura, Austerlitz, shoah, Nazismo

1 Introdução

Nos romances realistas do século XIX, ou mesmo nos neorrealistas do século XX – entendendo-se o termo realista em sua acepção mais canônica adotada pela Teoria da Literatura –, as referências arquitetônicas e urbanísticas não eram incomuns. Frequentemente, autores como Dostoievski, Charles Dickens, Flaubert e Machado de Assis, para citar apenas alguns nomes do cânone ocidental, valeram-se, em suas obras, de descrições minuciosas da fachada ou do interior de prédios, bem como de explanações pormenorizadas sobre estruturas de cidades, com vistas a garantir a verossimilhança tão cara à estética realista. Aliás, o detalhamento obsessivo dessas descrições tinha mesmo uma função paradoxal: tentar, por meio de determinadas técnicas discursivas, apagar o caráter representativo da própria linguagem, simulando uma possibilidade de acesso direto ao real, sem mediação pelas palavras.

Por outro lado, segundo uma lógica de composição radicalmente distinta, o romance Austerlitz, publicado por W. G. Sebald pela primeira vez em 2001, também revisita continuamente a arquitetura e a imagem da urbe, mas não para simular um acesso imediato ao mundo histórico e social. O livro de W. G. Sebald é construído – palavra do campo semântico da engenharia civil – em torno de uma metáfora arquitetônica, constantemente abordada pela personagem que dá nome ao romance, porém a presença dessa esfera do saber não tem por fim uma simples ilusão hiper-realista ou o rebuscamento da erudição. Muito pelo contrário, em Austerlitz a referência à arquitetura pode ser lida a partir de duas grandes linhas exegéticas, ambas relacionadas a uma interpretação crítica da história e da sociedade moderna, enfatizando o caráter mediador da linguagem na compreensão do real.

No romance, a arquitetura está presente não só no plano do conteúdo, relacionando as edificações capitalistas e a barbárie nazista, mas também na forma, pois o projeto da narrativa como memória e não como linearidade é uma arquitetura de palavras que dialoga diretamente com uma filosofia da História e a maneira como esta deve ser entendida e contada. Entremeando ambas as linhas de interpretação, a metáfora da arquitetura devolve uma relação inextricável entre forma e conteúdo como recursos expressivos de uma relação mediada – e, portanto, política – com o real. Mais ainda, uma obra arquitetônica e a sociedade que a produz são absolutamente indissociáveis, e refletem-se mutuamente, uma vez que todo edifício, para além de obra de arte, é também abrigo ou moradia, objeto estético e funcional que põe o homem em relação consigo mesmo, sua cidade, seu espaço, seu olhar e seus semelhantes.

Nesse sentido, pretende-se investigar neste ensaio como as imagens da arquitetura e do urbanismo presentes em Austerlitz revelam um para além de si que permite entrever as estruturas sociais que engendraram o horror da shoah, contexto espaçotemporal em que o romance de Sebald foi concebido como memória, denúncia e filosofia, documentado por fotos de cidades e prédios que testemunharam o massacre dos judeus europeus no século XX.

2 A metáfora da arquitetura em Austerlitz

Austerlitz é um romance cheio de "tremeluzências”, em que a narrativa não segue uma progressão linear, refletindo a própria tese contra a visão capitalista do tempo que Sebald advoga em todas as suas obras. Para o autor, a entronização do tempo como coordenada constante e matematizável é produto histórico e localizado da sociedade neoliberal, o que desumaniza o homem e deve ser combatido na própria imanência da obra de arte, com narrativas que se orientam pelo fluxo de consciência do narrador, e não por referenciais como horas, dias ou anos.

A história, cheia de saltos no tempo e no espaço, é composta por alguns encontros em distintas cidades entre o narrador e um homem misterioso, chamado Austerlitz, um estudioso da arquitetura e do urbanismo da era capitalista. Esses coincidentes encontros, que contam com inimagináveis acasos, estão marcados por uma estrutura narrativa reduplicada, em que o narrador reconta ao leitor a história da vida de Austerlitz, o qual, por sua vez, lhe narrara os fatos mais marcantes de sua sofrida infância e juventude, como menino judeu durante a Segunda Guerra Mundial.

Como relação especular, a destruição que o menino Austerlitz vê perpetrada em sua vida, em uma dimensão pessoal e particular, se dá também em um plano macroestrutural, metonimizada pela arquitetura e pelo urbanismo capitalistas. Assim, muito mais do que enormes prédios, cidades demolidas e pretensamente reurbanizadas, cujas fotografias integram e ressignificam o relato do narrador, Austerlitz nos leva a ver o arraso de populações inteiras na Alemanha do século XX, sob o hórrido nome da shoah. Porém, em vez de uma descrição sanguinolenta da barbárie nos campos de concentração, Sebald optou por, em seu romance, valer-se de uma imagem que nos permita um olhar refratado sobre o mal, como o escudo que Perseu usa para mirar a Górgona.

Portanto, fazendo de sua obra de arte literária – e das obras arquitetônicas de que fala – também uma obra política, Sebald coaduna-se com a célebre posição defendida pela Escola de Frankfurt no que diz respeito aos estudos de Estética. Para os pensadores filiados a essa corrente teórica, a arte é formada por substância e estrutura sempre em relação dialética, como as forças que interagem na História, entendida aqui não como progresso, mas como tensão com que a obra mantém uma relação mediada. Desse modo, segundo Theodor Adorno (1982: 16),

[...] que as obras de arte, como mônadas sem janelas, "representem” o que elas próprias são, só se pode compreender pelo fato de que a sua própria dinâmica, a sua historicidade imanente enquanto dialética da natureza e do domínio da natureza não é da mesma essência que a dialética exterior, mas se lhe assemelha em si, sem a imitar [...]. Mas são reais enquanto respostas à forma interrogativa do que lhes vem ao encontro a partir do exterior. A sua própria tensão é significativa na relação com a tensão externa. Os extratos fundamentais da experiência, que motivam a arte, aparentam-se com o mundo objetivo perante o qual retrocedem. Os antagonismos não resolvidos na realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes da sua forma.

A partir dessa preocupação dialética entre forma e conteúdo, Sebald, em busca de um procedimento estético e, sobretudo, ético que permita a narração de uma matéria tão brutal e inenarrável quanto a shoah, opta por utilizar a arquitetura como metáfora que permeia todo o romance, permitindo um olhar oblíquo sobre o mal que não se pode encarar de frente. No entanto, tal opção de imagem central não é gratuita, uma vez que se trata da "única arte que não espelha diretamente o homem, mas o seu produto; não o aspecto do indivíduo, mas o seu impacto no mundo; não o seu ser, mas o seu modo de ser. A arquitetura reflete o homem pelo avesso” (Puls 2006: 16). No romance, essa metáfora funciona, pois, como uma forma de permitir que se fale do horror, mediando e protegendo o homem de um "espelhamento direto” ou de um confronto com o que há de mais hórrido na própria condição humana.

Analisando a história europeia pela perspectiva – termo também caro à arquitetura – das construções urbanas, Sebald dá a essa metáfora um rendimento crítico ainda mais intenso, na medida em que conjuga dois polos aparentemente irreconciliáveis: construção e destruição, tema reincidente nos escritos dos pensadores frankfurteanos, que, como muitos filósofos da arquitetura, tentaram investigar o homem pelo avesso e tudo o que as ideologias tentaram encobrir.

Em princípio, construir e destruir são palavras com significado antitético, não podendo ser unidas em uma mesma imagem senão por meio de um paradoxo. Enquanto construir se refere à produção de uma estrutura a partir de elementos inicialmente disjuntos, destruir implica a desintegração das relações coesivas entre os mesmos. Trata-se, portanto, de movimentos epistemológicos diametralmente opostos, como síntese e análise.

No entanto, assim como o paroxismo das luzes da razão instrumental desemboca em um ofuscamento e uma cegueira irracionais, a arquitetura e o urbanismo do século XX, erigindo construções monumentais, culminam em espetáculos de destruição da esfera humana, no que diz respeito à supressão do espaço do fortuito e do pessoal. Em ocorrências mais graves, tais construções engendram a ruína de grupos sociais inteiros, como no caso de fortalezas de guerra, prisões, asilos etc. – referências frequentes em Austerlitz –, conforme a história da civilização não cansou de mostrar.

Tal visão dialética de construção e destruição é claramente expressa por Walter Benjamin em sua célebre análise sobre a obra de Baudelaire, em cujo poema sobre o projeto iluminista de modernização de Paris, vê-se que "[a história], como ruína, se fundiu sensorialmente no cenário. Sob essa forma, a história não constitui um processo de vida eterna, mas de inevitável declínio” (Benjamin 1994: 200). Assim, a partir do texto do poeta francês, Benjamin produz uma reflexão que o transcende, enxergando em Les fleurs du mal (Baudelaire 1968) um fenômeno paradoxal em que construção e destruição se confundem, o que pode ser visto em toda grande obra citadina da modernidade, segundo a proposta de leitura que aqui se alinhava. Portanto, a análise acerca da reforma de Paris serviria de paradigma de leitura para outros projetos arquitetônicos e urbanísticos modernos que, a cada bloco de concreto, vergalhão ou saco de argamassa, destruíram em alguma medida a dimensão humana daqueles que jamais gozariam as supostas benesses de tais construções imponentes.

Tais quais restos e escombros, esses indivíduos arruinados só podem ser reincorporados à cidade pelo chiffonnier (Baudelaire 1968: 78-79), o qual os recolhe da sarjeta para imortalizá-los na arte. Tal figura poética, geralmente traduzida como "trapeiro”, ficou eternizada pelo modernista francês como um artista coletor de dejetos das ruas: "os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heroico” (Benjamin 1994: 78). Assim, passando de flâneur a glaneur ["coletor”], o poeta recolhe os restos de uma humanidade, produzida como sombra de destruição dos grandes monumentos ao capital.

No contexto de Austerlitz, a referência a essa dialética entre construção e destruição, cara ao tema da arquitetura moderna e pensada por Adorno e Benjamin, é apresentada de forma contundente logo no início do romance, quando o narrador e o personagem Austerlitz se conhecem na Centraal Station de Antuérpia, na Salle des pas perdus. Em um primeiro nível de leitura, o nome do ambiente onde se dá o encontro pode ser traduzido como "sala dos passos perdidos”, sugerindo a destruição das vidas dos milhares de judeus encaminhados à chacina pelos trilhos de trem que cortavam a Europa. Tal proposta de interpretação se apoia em passagens frequentes na narrativa, que associam as linhas férreas a sentimentos de dor e sofrimento, como se percebe a seguir:

Austerlitz falou ainda longamente sobre as marcas de sofrimento que, como ele dizia saber, atravessam a história com inúmeras linhas delgadas. Em seus estudos sobre a arquitetura das estações de trem, disse ele quando nos achávamos sentados na frente de um bistrô no Mercado de Luvas no final da tarde, cansados de tanta caminhada, ele nunca conseguia tirar da cabeça os pensamentos da aflição da despedida e do medo de lugares estranhos, embora tais emoções obviamente não façam parte da história da arquitetura. Mas talvez justamente nossos projetos mais ambiciosos traiam da forma mais patente o grau da nossa insegurança (Sebald 2008: 18).

Chaga indelével na história, a condução das vítimas aos campos de concentração pelos trens da morte deixou como cicatriz visível no solo europeu as linhas férreas. Se, como afirma o narrador, esses passos perdidos "não fazem parte da história da arquitetura”, eles recontam, por outro lado, a arquitetura da história referente ao massacre.

Porém, em um segundo nível de leitura, a expressão Salle des pas perdus pode ser traduzida como "sala dos não perdidos”, visto que pas, em francês, é o substantivo que designa o deslocamento de alguém a pé, mas também um advérbio negativo. Assim, o trabalho do autor como chiffonnier, que recolhe os restos das ruínas da sociedade para construir sua obra literária, garante que os vitimados ne soient pas perdus. Afinal, na enunciação do romance, o artista garante que os sofrimentos dessas pessoas sejam sempre presentes "não perdidos”, com os quais nos defrontamos, ressignificando a história à guisa de um "tempo saturado de agoras” (Benjamin 1996: 229), sempre presentes e sobredeterminantes, e não como uma simples sucessão linear de acontecimentos, a qual reificaria o sujeito histórico. O romance é escrito, pois, como memória do narrador, mas serve fundamentalmente como construção de uma memória social para o leitor, o qual, lendo as histórias dos sujeitos vitimados que o chiffonnier recolheu dos escombros, fica impedido de esquecer o massacre ou encará-lo como mero elemento alienado no continuum da história.

Vale lembrar que essa posição acerca da narrativa e da memória como subversões contra o alienante tempo linear está presente nas teses benjaminianas Sobre o conceito de história (Benjamin 1996), as quais

não são apenas uma especulação do devir histórico enquanto tal, mas uma reflexão crítica sobre nosso discurso a respeito da história (das histórias), discurso esse inseparável de uma certa prática. Assim, a questão da escrita da história remete às questões mais amplas da prática política e da atividade da narração. É esta última que eu gostaria de analisar: o que é contar uma história, histórias, a História? (Gagnebin in Benjamin 1996: 229).

Prova de que a teoria da História de Benjamin vale também como teoria das histórias em geral, isto é, da narração, é a coerência interna de Austerlitz: a arquitetura do romance garante que os sujeitos aguilhoados pelo horror se mantenham pas perdus, graças à ação do autor chiffonnier Sebald, que recolhe em seu texto os destroços de uma humanidade devastada pela shoah. Nesse sentido, uma narrativa que se escreve como memória, desestabilizando a concepção linear do tempo, traz de volta as reminiscências que o projeto iluminista quis fazer perder, substituindo seus delicados traços mnêmicos por uma cidade de brutas linhas férreas e prédios monumentais.

A partir dessa concepção não linear e antipositivista da história, o narrador faz de sua enunciação um ato político, por meio da metáfora da arquitetura, para além de um ato de fala meramente declarativo. Por meio desse recurso discursivo, especialmente relacionado às constantes referências ao caráter opressor dos relógios de estações e catedrais nos relatos do protagonista, denuncia-se a fetichização do tempo e sua apreensão como coordenada linear newtoniana, que, junto com o espaço, formaria um plano cartesiano no qual todo movimento ou fenômeno poderia ser compreendido de forma pretensamente objetiva e falsamente naturalizada como única. Essa supremacia da espaçotemporalidade tradicional apagaria a subjetividade do observador, fundando uma perspectiva supostamente neutra, mas profundamente ideológica, em que uma única forma de apreensão e significação – a da História oficial – superaria e calaria as histórias individuais de cada sujeito que viveu a shoah.

Ainda no início do romance, a descrição da Centraal Station de Antuérpia sugere esse esmagamento do homem, pela descrição minuciosa da monumentalidade do prédio, semelhante às catedrais góticas. Porém, se estas eram construídas com formas e proporções opressoras para indicar a pequenez humana diante de Deus, as desmedidas obras urbanas capitalistas estudadas por Austerlitz haviam sido erguidas com vistas a explicitar a insignificância do homem diante de outras divindades, mais afeitas ao projeto capitalista, entre elas o próprio tempo como coordenada linear e opressora, como se percebe na passagem a seguir:

[...] ao ingressarmos no pátio de entrada, somos invadidos pela sensação de que nos achamos, para além de toda a esfera profana, em uma catedral consagrada ao comércio e ao transporte mundiais. Delacenserie tomou emprestados aos palácios do Renascimento italiano os principais elementos do seu edifício monumental, disse Austerlitz, embora houvesse também ecos bizantinos e mouriscos, e talvez eu próprio tivesse notado ao chegar os torreões circulares de granito branco e cinza, cujo único propósito era despertar no passageiro associações medievais (Sebald 2008: 14).

Observa-se, nessa descrição, a utilização de palavras de um campo semântico aparentemente estranho ao da estação ferroviária: "profana”, "catedral” e "consagrada” são termos caros ao discurso religioso, aqui aplicados ao prédio da Centraal Station. Templo sacrílego, a estação é consagrada em locus divinus, dedicado a um panteão de deuses pagãos, louvados pelo liberalismo como forças cronológicas lineares, em oposição a outras divindades e mitologias pré-capitalistas, em que o eterno retorno do ritual reeditava circularmente os sacrifícios divinos (Bruni 1991). Tais observações se confirmam no desenrolar dessa cena no romance:

Em si mesmo ridículo, o ecletismo de Delacenserie, ao unir passado e futuro na Centraal Station com sua escadaria de mármore no átrio e o telhado de aço e vidro que recobria as plataformas, era na verdade um meio estilístico coerente com a nova época, disse Austerlitz, e com isso condizia também, continuou, que, nos pontos elevados dos quais no Panteão romano os deuses observam de cima os visitantes, na estação de Antuérpia fossem exibidas em ordem hierárquica as divindades do século XIX – a mineração, a indústria, o transporte, o comércio e o capital (Sebald 2008: 14).

Divinizados na arquitetura da estação os elementos de ordem da modernidade capitalista, abre-se espaço para uma legitimação do horror sob chancela divina, uma vez que o massacre judeu não pode ser dissociado da lógica do capital e da modernidade iluminista. Substitui-se, assim, uma instância divina superior a que não se pode dar nome ou rosto, como na tradição judaico-cristã, pelas diversas faces de um mesmo demônio sem rosto, a que chamamos Chronos, o tempo concebido como linearidade.

E entre todos esses emblemas, disse Austerlitz, aquele que ocupa o vértice é o tempo, representado pelos ponteiros e pelo mostrador. Uns vinte metros acima do único elemento barroco em todo o complexo, a escadaria em forma de cruz que liga o átrio às plataformas, lá onde no Panteão se podia ver a imagem do imperador em prolongamento direto do portal, exatamente ali se encontra o relógio; na condição de governador da nova onipotência, ele foi posto acima até mesmo das armas reais [...] (Sebald 2008: 16).

O poder de tal divindade entronizada na catedral é tamanho que passa a prescrever, à guisa de evangelho apócrifo de Greenwich, uma ordenação que cobre a esfera planetária. A partir de cálculos, fusos horários e meridianos, a vida é controlada em escala planetária, não sendo mais o sol – medida que o olho humano alcançava – aquele que determina o tempo. Em vez disso, alienou-se a contagem das horas, atribuindo-a a uma máquina infensa ao poder do sujeito, o qual tem de obedecer a ela, embora seja seu criador. A esse respeito, Austerlitz faz uma sagaz observação, enquanto contempla o projeto arquitetônico do relógio endeusado na estação, metonímia de um processo muito maior de desumanização experimentado nas cidades europeias:

Até que fossem sincronizados os horários dos trens, os relógios de Lille ou Liège não marcavam a mesma hora que os de Gand ou Antuérpia, e só depois que ocorreu a padronização, por volta de meados do século XIX, é que o tempo reina supremo sobre o mundo (Sebald 2008: 16).

Tal metáfora, que denuncia a alienação do homem, tem seu poder estético e crítico amplificado na cena em que o narrador do romance e Austerlitz visitam o observatório de Greenwich, cuja semelhança com uma prisão ou masmorra é indicada mais uma vez pela arquitetura do prédio, que exibia "janelas excepcionalmente altas, cada qual dividida em cento e vinte e duas vidraças quadradas emolduradas por chumbo” (Sebald 2008: 102).

Dentro desse simulacro de prisão, o ponto mais alto, onde eram instalados os telescópios para investigar as estrelas e os planetas, em muito se parece com a torre do panóptico (Foucault 2002), de onde se avista toda a prisão e para onde todos os presos são compelidos a fitar. Disciplina do olhar, a torre panóptica é um ponto privilegiado de vigilância e fascínio, como previu o pensador francês, sendo aplicada em larga escala em penitenciárias, escolas e sanatórios. Trata-se, nesse caso, de:

uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista [...], ou para vigiar o espaço exterior [...], mas para permitir um controle interior articulado e detalhado — para tornar visíveis os que nela se encontram; mais geralmente, uma arquitetura que seria um operador para a transformação de indivíduos: agir sobre aqueles que abriga, dar domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos de poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los (Foucault 2002: 144).

Desse modo, a arquitetura do observatório astronômico, em um ponto mais elevado, torna-se um panóptico de dimensões planetárias, uma vez que a noção capitalista de tempo passa a reinar, como na decoração da Centraal Station da Antuérpia, sobre todo o planeta. De um ponto de observação privilegiado, o tempo liberal, que padroniza as ações humanas e as encadeia em uma sucessão linear inescapável, é um deus tirano que não permite insurreições ou libações em troca de clemência.

Diante de tal divindade, cabe apenas ao homem o direito da heresia de Sebald, desafiando na própria arquitetura de seu discurso o tempo cronológico. Assim, o autor não compactua com o eterno sacrifício de vítimas reclamado pelo impiedoso deus do capital, sendo a mais ignominiosa imolação em seu nome chamada de Holocausto pela história ocidental. Muitos dos sobreviventes desse evento, porém, negam-se a lê-lo como um holocausto, visto que tal termo designa uma morte ritualizada, com fins teológicos de purificação transcendental. Nesse sentido, seria improcedente chamar de holocausto um sacrifício a um deus negativo (como o que faz da Centraal Station seu altar), sem qualquer ritual, cuja conotação purificadora só pode ser entrevista – a partir de uma ironia extremamente dolorida – na morte em câmaras de gás que imitavam banheiros, cujos falsos chuveiros eliminavam Zyclon-B, veneno para matar piolhos. Assim, muitos preferem chamar ao massacre judeu de Shoah, palavra que em iídiche quer dizer catástrofe ou calamidade, sem conotação religiosa.

Independente da designação que se lhe dê – até por ser virtualmente impossível nomear o inominável –, o massacre em nome do tempo deificado, como denunciam as descrições arquitetônicas no romance, faz lembrar que "a exceção, para a jurisprudência, é análoga ao milagre na teologia” (Schmitt 1985: 36). Assim, se um milagre é a suspensão da ordem comum do mundo, como a exceção suspende o estado de direito, as divindades liberais instalam, tal qual milagre hórrido, um estado de exceção em escala planetária, que se eleva ao paroxismo na shoah.

A partir dessas breves reflexões, pode-se perceber que as descrições da Centraal Station e do observatório real de Greenwich servem, na obra, a um propósito de especulação acerca da filosofia da história e da compreensão humana do tempo. Afinal, enquanto as divindades liberais (a mineração, a indústria, o transporte, o comércio e o capital), na estação ferroviária, estavam atreladas a uma versão moderna de Chronos, o cruel deus grego do tempo mensurável e linear, com seu panóptico altar em Greenwich, a narrativa de Sebald aponta para um olhar em direção diametralmente oposta. Assim, a personagem especialista em arquitetura capitalista se questiona, constantemente, onde estariam as construções urbanísticas de outra ordem, que respeitassem os limites e as necessidades humanas.

Tais indagações culminam na busca por ambientes de convivência fraternal, imersa em um tempo qualitativo, que se desdobre para dentro de si mesmo, e não em progressão roaz. A descrição de construções dessa ordem pode ser identificada no romance em tênues reflexões melancólicas, provocadas pela visão das monumentais obras arquitetônicas, enormes e impiedosas como o titã Cronos, que comeu os próprios filhos, para evitar a primeira revolução – de classe? – na teogonia grega. Nesse contexto, vale lembrar que, para muitos mitólogos, o titã Cronos e o deus Chronos são releituras distintas do mesmo arquétipo do tempo como ceifador de vidas, tal qual filicidas prontos para devorar seus pequenos (Bulfinch 2001: 353). Assim, o monumental e o temporal se confundem no romance, em uma indiferenciação que revela que as construções megalomaníacas e o tempo do capital deixaram juntos um rastro de destruição por onde passaram, como se "a história da arquitetura e da civilização da era burguesa [...] apontasse na direção da catástrofe que então já se delineava” (Sebald 2008: 141).

Em uma proposta de leitura mais imanente, pode-se dizer que o horror à arquitetura titânica do capitalismo e a melancolia diante da ausência de edificações mais humanas ficam claros no romance quando Austerlitz se põe a refletir sobre as aves. Estas, segundo o personagem, constroem ninhos sempre do mesmo tamanho, sem desejar expandir, de modo megalômano, seus domínios, como se percebe neste trecho:

Seria preciso, disse ele ainda, fazer um catálogo de nossos edifícios, ordená-los segundo suas dimensões, e então ficaria imediatamente óbvio que os edifícios domésticos aquém das dimensões normais – a cabana nos campos, a ermida, o casebre do guarda da eclusa, o pavilhão do belvedere, a casinha de crianças no jardim – são aqueles que nos acenam ao menos com um vislumbre de paz, ao passo que ninguém em sã consciência diria que lhe agrada um edifício enorme, como o Palácio de Justiça de Bruxelas, sobre a antiga colina do patíbulo. No máximo, a pessoa o admira, e essa admiração já é um prenúncio de terror, porque sabe como por instinto que os edifícios superdimensionados lançam previamente a sombra de sua própria destruição e são concebidos desde o início em vista de sua posterior existência como ruínas (Sebald 2008: 23).

Nessa passagem, construção e destruição retomam sua relação dialética inextricável, como se a primeira palavra incorporasse como contraface o significado da segunda. Tal fenômeno semiótico já havia sido explicado por Freud, com referência à tessitura do sonho, âmbito em que a negação não existe. Se a sintaxe do inconsciente desconhece o "não”, dois significados opostos podem ser fundidos em um mesmo significante, sem que esse paradoxo obstrua a semiose onírica. "Não há, assim, maneira de decidir, num primeiro relance, se determinado elemento que se apresenta por seu contrário está presente nos pensamentos do sonho como positivo ou negativo” (Freud 1976: 90).

Ainda segundo o psicanalista austríaco, tal comportamento da linguagem nos sonhos "é idêntico a uma peculiaridade das línguas mais antigas que conhecemos” (Freud 1976: 91). Com base em pesquisas acerca da gramática e da escrita em línguas arcaicas, especialmente os hieróglifos egípcios, o pai da psicanálise descobriu que, em tempos faraônicos, uma mesma palavra podia significar uma coisa e seu oposto, a depender do contexto de uso ou do emprego de algum diacrítico.

Se isso parece absurdo diante de nossos sistemas linguísticos atuais, Freud justifica que esse é um processo natural não só na filogênese (história da humanidade), mas também na ontogênese (história de cada indivíduo):

É claro que tudo neste planeta é relativo e tem uma existência independente apenas na medida em que se diferencia quanto a suas relações com as outras coisas. De vez que todo conceito é dessa maneira o gêmeo de seu contrário, como poderia ele ser de início pensado e como poderia ser ele comunicado a outras pessoas que tentavam concebê-lo, senão pela medida de seu contrário? [...] O homem não foi, de fato, capaz de adquirir seus conceitos mais antigos e mais simples a não ser como os contrários dos contrários, e só gradativamente aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a pensar em um deles sem a comparação consciente com os outros (Freud 1976: 91).

Assim, com o passar do tempo e o desenvolvimento dos sistemas de escrita, os sentidos contrários foram sendo desmembrados em palavras distintas, a fim de tornar mais clara a comunicação. Do mesmo modo, no desenvolvimento infantil, a criança no início da aquisição da linguagem usa um mesmo som para nomear diferentes entidades, ainda que contrárias, o que só se dissolve com o aumento do repertório vocabular.

Tais considerações nos levam a ler a construção que engendra em si mesma a ruína, típica da arquitetura capitalista revisitada em Austerlitz, como uma regressão. Afinal, o retorno a instâncias em que uma mesma palavra designa coisas opostas consiste, essencialmente, em um processo regressivo: o sonho, na teoria freudiana, é desde sempre uma regressão aos desejos e traumas infantis, que não se permitem enunciar em vigília; por sua vez, a lógica paradoxal do vocabulário egípcio denota uma regressão a um passado de violência semiológica aos limites do significante. Desse modo, construir e destruir se fundem em uma mesma imagem nas construções civis de hoje, como no sonho ou nos hieróglifos, a qual pode ser expressa pelas seguintes palavras ambíguas, designadoras da regressão hodierna à barbárie: capital, liberalismo, razão instrumental.

Essa reflexão pode ainda ser lida na obra de Walter Benjamin, que evidencia uma relação especular entre essas regressões onírica e linguística, de que fala Freud, e uma regressão à barbárie travestida de progresso, denunciada no romance de Sebald. Segundo o pensador frankfurtiano, "nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura” (Benjamin 1996: 225).

Tal semelhança entre cultura e barbárie, construção e destruição, é retomada por uma metáfora da arquitetura da cidade em outro ponto crucial do romance analisado neste ensaio: a visita à propriedade de Iver Grove, nos arredores do observatório de Greenwich. No que diz respeito a essa cena, chama a atenção do leitor, inicialmente, a arguta observação de Austerlitz, o qual afirma que, no pós-guerra, todas as construções daquelas cercanias estavam sendo demolidas em ritmo avassalador, alterando drasticamente a paisagem urbana.

Ainda me lembro perfeitamente, disse Austerlitz, de como em uma dessas excursões, depois de vagar longamente num parque coberto de bordos e bétulas, topamos com uma dessas casas abandonadas, das quais, segundo cálculos que fiz então, uma era demolida a cada dois ou três dias em média nos anos 50. Naquele tempo, vimos um bom número de casas das quais se tinha subtraído praticamente tudo, as prateleiras de livros, os lambris e a balaustrada, os canos de aquecimento de latão e as lareiras de mármore; casas de telhados desmoronados e cheias até o joelho de entulho, lixo e escombros, de excremento de ovelhas e aves e do gesso que esfacelara do teto, amontoado em grandes torrões argilosos (Sebald 2008: 105).

Tentativa de apagar a memória? Eliminar as provas do crime? A destruição das casas judaicas – previamente saqueadas –, ainda que sob pretexto de reconstrução, não pode ser vista de forma ingênua. Assim como a reurbanização parisiense é analisada por Benjamin, em sua leitura de Les fleurs du mal, com desolação, repleta de "tristeza pelo que foi e a desesperança pelo que virᔠ(Benjamin 1994: 81), a demolição dos arredores de Iver Grove é uma malograda tentativa de apagar à força as lembranças do horror da guerra, que só torna o futuro ainda mais temível. Porém, a força narrativa do romance evita esse recalque da memória – individual e coletiva – defrontando as personagens e o leitor com a devastação da vila saqueada, perpetrada pela ação silenciadora estatal. Nesse sentido, é absolutamente plausível a aplicação de outra fala benjaminiana acerca de Paris, sendo preciso apenas trocar o nome da cidade para atualizar o poder crítico dessa reflexão: "Aquilo que sabemos que, em breve, já não teremos diante de nós torna-se imagem. Provavelmente isso ocorreu com as ruas de Paris daquele tempo” (Benjamin 1994: 85a).

A imagem, nesse contexto, ganha contornos de memória óptica, que se inscreve na psique do observador a partir de um olhar que tenta apreender o que fulgura, por um último instante, antes de evanescer. Para partilhar desse átimo com o leitor, antes que se perca na voraz demolição da vila de Iver Grove, o narrador tira uma foto do interior da casa visitada com Austerlitz, a qual é apresentada na página 106 do romance. Tal imagem, diferentemente das demais que integram a obra de Sebald, é margeada por uma moldura, o que não pode ser negligenciado em uma proposta de leitura mais imanente.

O empenho de emoldurar a fotografia na página, que não se repete em qualquer outra parte do livro, não é gratuito, visto que causa a ilusão óptica de uma janela na superfície do papel, que se abriria para dentro da casa capturada no flash. Ademais, esse recurso de diagramação garante ritmo visual à fotografia, a partir do jogo de espelhamento com as molduras das janelas, das portas, das cornijas e da tela que aparecem no segundo plano da foto. No entanto, é notável que tal espelhamento é significativamente imperfeito: ao passo que a falsa janela sobre a qual o leitor se debruça está aberta à contemplação do interior da casa, as demais estão fechadas – ou "cegas”, segundo a descrição do narrador –, como que para não enxergar o horror da destruição.

Quando nos detivemos na escada de pedra colonizada por samambaias língua-de-cervo e outras ervas silvestres e erguemos a vista para as janelas cegas, pareceu-nos que a casa fora tomada por um horror mudo pelo fim ignominioso que lhe era iminente. Lá dentro, em um dos grandes salões de recepção no andar térreo, encontramos grãos amontoados como em um celeiro. Em outra sala, decorada com uns estuques barrocos, centenas de sacos de batata apoiavam-se uns nos outros (Sebald 2008: 106).

Uma casa "colonizada” pelas ervas silvestres, de janelas "cegas” e "horror mudo” está inerte, perplexa diante da catástrofe, cujos efeitos se anunciam em sua própria estrutura abalada. Na foto, os sacos escuros de grãos e batatas fechados e amontoados podem ser lidos como metáfora de corpos humanos amortalhados e empilhados em cova rasa, sem sequer a dignidade de uma morte com nome. Argumento que sustenta tal leitura é o fato de a casa ter sido usada como asilo para convalescentes durante a guerra, tendo sua primeira função habitacional revertida em posto avançado durante o enfrentamento bélico.

Se o confisco desse lar acarretou, em uma esfera particular, a expulsão dos antigos donos, tal efeito pode ser lido em uma perspectiva mais ampla, que respalda a associação entre os sacos de mantimentos e corpos embalados em mortalhas rudes. Como argumento para tal hipótese de leitura, é importante acrescentar que Adorno, no aforismo "Asilo para os sem abrigo” – de título intimamente relacionado ao destino de Iver Grove –, afirma que:

o modo como hoje está a situação na vida privada mostra-se no seu cenário. Em rigor, já não é possível o que se chama habitar. As habitações tradicionais em que crescemos tornaram-se insuportáveis: cada sinal de conforto se paga nelas com a traição ao conhecimento [...]. As novas, que fizeram tabula rasa, são estojos fabricados por peritos para filisteus, ou alojamentos operários transviados na esfera do consumo, sem qualquer relação com quem os habita; fustigam na face o anelo, já inexistente, de uma existência independente. O homem moderno deseja dormir perto do chão como um animal, decretava com profético masoquismo uma revista alemã anterior a Hitler, e com a cama suprimia o limiar entre a vigília e o sonho. Quem se refugia nas habitações autênticas – mas também amontoadas – o que faz é embalsamar-se vivo (Adorno 2001: 33).

O próprio título do aforismo indica que a versão moderna do que se convencionou chamar de casa não serve mais de abrigo, dada sua desumanização, fazendo com que seus moradores busquem asilo alhures, embora jamais o encontrem na era do capital. Além disso, uma irônica semelhança se apresenta entre "o homem moderno [que] deseja dormir perto do chão como um animal” e o produto humano da modernidade que, morto e embalado em pano grosseiro, como cão, é lançado para dormir o sono eterno de forma ignominiosamente anônima, metaforizada pelos mantimentos abandonados em Iver Grove. E os que sobreviveram, como o personagem Ashman, dono da propriedade que se defronta diariamente com as ruínas de uma casa e um povo, perambulam muitas vezes como mortos-vivos – ou mortos embalsamados vivos – que não conseguem traduzir para a sintaxe de sua razão o horror dos escombros dos lares e cidades um dia habitáveis.

Percebe-se, pois, mais uma vez a importância do autor como chiffonnier, que recolhe os destroços – e algo que talvez tenha se salvado dos exícios – para restituir-lhes alguma dignidade na obra. Nesse sentido, é digno de nota o espaço que o narrador concede à memória, como possibilidade de conservar da ruína um instante, um detalhe, um traço – die Spur –, presentificando algo que, do contrário, se perderia no tempo linear.

Tal trabalho da memória como preservação da história está também metaforizado nas imagens arquitetônicas descritas por Austerlitz e pelo narrador, assim como as demais considerações filosóficas que permeiam o romance. Observe-se, nesse sentido, que a sala de bilhar e os quartos das crianças de Iver Grove, protegidos por paredes falsas levantadas no lugar de antigas portas, escondidas atrás de guarda-roupas, tornam-se locais infensos à ação do tempo, como a memória.

A esse respeito, é interessante notar que, embora Austerlitz seja uma obra de ficção com amplo lastro de realidade, as cenas que envolvem esses cômodos ocultados durante a guerra desafiam as regras mais pueris da natureza, pois

esse recinto, disse Austerlitz, ficara evidentemente sempre tão isolado do restante da casa que, no decorrer de um século e meio, mal se depositara uma camada de pó impalpável nas cornijas, nos ladrilhos de pedra preto e branca quadriculada e no tecido verde bem teso, que parecia um universo à parte. Era como se ali o tempo, que de resto escoa de forma tão irreversível, tivesse parado, como se os anos que deixamos para trás ainda estivessem por vir, e eu recordo, disse Austerlitz, que quando estávamos no salão de bilhar de Iver Grove com Ashman, Hilary fez um comentário sobre a singular confusão de sentimentos que assaltaria mesmo um historiador em um ambiente como aquele, isolado por tanto tempo do fluxo das horas e dos dias e da sucessão de gerações (Sebald 2008: 110).

Tal fenômeno de incolumidade à poeira, porém, não se revela um recurso narrativo de realismo fantástico, onde o maravilhoso se instalaria à revelia do real. Em vez disso, a presença desses cômodos recolhidos na arquitetura da casa, sobre os quais a destruição não se abateu, sugere o poder revolucionário da memória, que se opõe ao horror, a fim de salvar um instante, uma cena, um olhar.

Assim, ainda que o tempo capitalista roaz, divinizado na arquitetura da Centraal Station e do observatório de Greenwich, reine soberano e faça da razão instrumental e da guerra suas máquinas ceifadoras, o trabalho de narrar e rememorar, processos indissociáveis na produção de um romance e da própria História da humanidade, preservam pequenos detalhes de Iver Grove, como o veludo verde da mesa de bilhar e os brinquedos das crianças. Nesse sentido, a metáfora arquitetônica é mais uma vez potencializada, uma vez que esses objetos, elementos decorativos na composição dos interiores da casa, ganham função muito mais do que ornamental no romance. Do mesmo modo como um diminuto adorno pode se tornar o elemento mais importante na composição de um ambiente, a depender de sua interação com as demais peças, as imagens das miniaturas com que brincaram as crianças de Iver Grove no passado adquirem, na narrativa, grande valor simbólico dentro do contexto europeu que engendra a shoah, como se pode ver a seguir:

À simples visão do trenzinho de ferro com os vagões da Great Western Railway e da arca de Noé, da qual espreitavam os pares de valentes animais salvos do Dilúvio, foi como se o abismo do tempo se abrisse sob os seus pés, e quando ele correu os dedos pela longa fileira de talhos que, aos oito anos de idade, ele gravara com raiva surda na beirada da mesinha de cabeceira às vésperas de ser enviado à Preparatory School, lembrava-se Ashman, aquela mesma raiva subiu-lhe novamente e, antes de se dar conta do que estava fazendo, viu-se lá fora no pátio dos fundos, atirando várias vezes com a sua espingarda na torrezinha do relógio da cocheira (Sebald 2008: 110).

Ao se defrontar com miniaturas dos trens – que conduziram tantos judeus aos campos de concentração ou ao exílio – e da Arca de Noé – com seus poucos sobreviventes que testemunharam o horror –, Ashman relembra seu passado e sua condição de animal que viveu muito além da catástrofe, para narrar o inenarrável. Incapaz de exterminar ou esquecer esse passado, Ashman realiza um gesto desesperado em busca da liberdade, atacando não um soldado nazista, mera peça de uma engrenagem capitalista muito maior, mas o relógio, metáfora da ordenação e da barbárie que esse sistema econômico impôs, afogando todos os milhões de homens que não puderam embarcar em frágeis e parcas arcas de Noé.

Semelhante é a condição do próprio Austerlitz, que também viveu a separação dos pais e a fuga para o Reino Unido como única possibilidade de sobrevivência. No entanto, diferente dos bichos da Arca de Noé em miniatura, Austerlitz fê-lo sozinho, sem um par que lhe acompanhasse nas agruras e lhe permitisse perpetuar seu sangue. Assim, solitário e encurralado entre o imperativo moral de narrar e o desejo de esquecer o horror (Cf. Seligmann-Silva 2000: 84), o personagem escolhe uma forma oblíqua de construir seu próprio testemunho, valendo-se da metáfora arquitetônica como única opção ética e esteticamente viável para essa tarefa.

Dessa forma, na rememoração dos detalhes decorativos de Iver Grove, da edificação da Station Centraal de Antuérpia e do observatório real de Greenwich, apoiam-se mutuamente a filosofia da história e a arquitetura, como diferentes colunas de uma mesma obra que edifica a visão da cidade e a impossibilidade de habitá-la na era do capital. Nas linhas e fachadas dos prédios ou nos interiores das casas, o leitor, pelas descrições e fotografias, é convidado a enxergar muito mais do que concreto, tijolo ou tinta, mirando obliquamente, no poder da metáfora, a arquitetura do contexto europeu na primeira metade do século XX, que culmina na shoah.

Metáfora do homem e do mundo que este transforma em sua ação cotidiana – eminentemente destrutiva no cenário em que a narrativa se desenrola –, o conjunto das construções citadinas no romance "espelha o mundo humano – o mundo que o homem erigiu para si mesmo. [...] Não é, porém, o fundamento da beleza: uma edificação não é artística por ser útil, mas por espelhar a utilidade do mundo para o homem” (Puls 2006: 16).

Assim, para além de sua utilidade óbvia, gerando abrigos para o homem contra as adversidades do mundo, a cidade e seus prédios espelham a própria relação do homem com esse mundo, servindo de livro de pedra, onde lemos a arquitetura da história – e no caso de Austerlitz, a arquitetura de uma catástrofe. Tamanho poder dessa metáfora, porém, não se deve apenas a ela mesma, mas à forma como é tornada material estético dentro do romance, segundo uma arquitetura artística do discurso, que potencializa o alcance crítico do texto.

3 Considerações finais

Embora a análise efetuada neste trabalho não se pretenda exaustiva, pode-se dizer que, em Austerlitz, a arquitetura serve como fio discursivo – ou coluna central – em torno do qual se constroem as principais reflexões das personagens sobre a História, a memória, a humanidade e a própria escrita. Além disso, a arquitetura é revisitada também como imagem – ora verbal ora fotográfica – que permite um olhar oblíquo, qual escudo de Perseu, para a face mais hórrida da Górgona gestada no ventre do capitalismo europeu e engendradora da shoah. Da monumentalidade dos prédios ao apagamento do humano diante dos templos à razão instrumental e ao capital, as referências à construção de estações, observatórios, casas ou algo que o valha remetem, no romance de Sebald, sempre à aberrante criação dos Lager, sem, contudo, recorrer à carnificina como procedimento estético eticamente questionável.

Desse modo, a arquitetura capitalista, objeto de estudo de Austerlitz revisitado ao longo do livro por meio de descrições e fotos, serve como alicerce para a arquitetura da obra literária de Sebald, direcionando o olhar analítico, ao mesmo tempo, para a imanência do texto e o contexto sociopolítico de destruição europeia armado pela Alemanha nazista. Trata-se, assim, segundo a dialética benjaminiana, de uma leitura que orquestra construção e ruína, no plano da forma e do conteúdo. O próprio romance, nesse sentido, pode ser lido como uma construção a partir dos escombros, tentativa de edificar um locus humano com os destroços da catástrofe e os fragmentos da memória, recolhidos por um autor chiffonnier para não serem jamais esquecidos.

Recebido em 27/08/2011

Aprovado em 02/10/2011

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2011

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2011
  • Aceito
    02 Out 2011
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