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Do (in)traduzível ao transmissível em Freud: um debate em torno do livro "Versões de Freud" de Pedro Heliodoro Tavares

From the (un)translatable to the transmissible in Freud: a debate over the book Versões de Freud, by Pedro Heliodoro Tavares

RESENHA

Do (in)traduzível ao transmissível em Freud: um debate em torno do livro "Versões de Freud" de Pedro Heliodoro Tavares

From the (un)translatable to the transmissible in Freud: a debate over the book Versões de Freud, by Pedro Heliodoro Tavares

Maurício Eugênio Maliska

Doutor, Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). E-mail: mmaliska@yahoo.com.br

TAVARES, P. H. M. B. Versões de Freud: breve panorama crítico das traduções de sua obra. Rio de Janeiro, 7Letras, 2011.

Acaba de ser lançado o livro Versões de Freud: breve panorama crítico das traduções de sua obra de autoria de Pedro Heliodoro TAVARES, pela Editora 7 Letras do Rio de Janeiro. A obra surge em um momento muito oportuno do debate brasileiro em torno das traduções de Freud. Assim como faltava uma tradução de Freud direta do alemão para o português, tal como o autor comenta no início de seu livro, pode-se também dizer que no Brasil se carecia de uma obra crítica que ponderasse e orientasse o leitor frente às celeumas e controvérsias das traduções de Freud. O livro de TAVARES (2011) cumpre com esse requisito sem concessões, pois trata-se de uma obra crítica que comenta com muito rigor e critério técnico, conceitual, clínico, linguístico, literário e estilístico as recentes traduções da obra de Freud, não sem antes fazer um panorama mundial e histórico sobre sua obra e suas versões.

Nesse livro, TAVARES (2011) se lança a comentar as três traduções da obra de Freud realizadas do alemão para o português, sem o atravessamento de outras línguas, como ocorreu em traduções anteriores. A partir de 2009, a obra de Freud entrou em domínio público e vimos surgir no Brasil as traduções de Luiz Alberto HANNS (Editora Imago), Paulo César de SOUZA (Cia. das Letras) e Renato ZWICK (Editora L&PM). TAVARES (2011) faz uma análise crítica e criteriosa de cada uma das versões, mostrando suas diferenças, seus pontos fortes e fracos e também comentários sobre as opções dos tradutores frente ao estilo literário, técnico, erudito etc. Esse foco central é introduzido com capítulos que comentam a escrita de Freud, sua intenção em dar um estatuto conceitual às palavras ordinárias da língua alemã, as questões relativas à psicanálise e tradução; também há comentários muito pertinentes sobre as mais influentes traduções estrangeiras da obra de Freud, em especial, as traduções inglesa, francesa e castelhana.

Com uma escrita suave no estilo e densa nos conceitos, TAVARES (2011) nos conduz a várias reflexões clínicas, conceituais, históricas, linguísticas e críticas. Quanto ao aspecto clínico, o livro nos faz pensar a língua para além do idioma, quando toca em certo aspecto intraduzível da alíngua, tal como pensa Roberto HARARI (2004) em seu livro Intraducción del psicoanálisis: acerca de L'insu..., de Lacan (Madrid, Editorial Sintesis). Tomando por base o conceito lacaniano de alíngua [lalangue], o autor mostra que, a rigor, em psicanálise sempre há uma "língua" estrangeira que habita o sujeito e o faz falar, ou seja, o sujeito fala em outra língua, mesmo quando utiliza o seu idioma "materno". Há, no mínimo, duas línguas que falam no sujeito, uma é o idioma e outra a alíngua, enquanto uma lalação do cantarolar materno que constitui o sujeito em seus aspectos psíquicos. A este propósito, HARARI (2008) - na obra: O Psicanalista, o que é isso? (Rio de Janeiro, Cia. de Freud) - sustenta que o sujeito é bífido, pois fala duas línguas, a língua idioma e alíngua própria da sua constituição enquanto sujeito. Esse ponto parece interessante, pois traduzir Freud não é somente uma proposta no campo linguístico, no sentido de trabalhar com certa transposição de uma língua a outra, mas metalinguístico, na medida em que se faz necessário encontrar em outra língua uma forma que dê (parcialmente) conta dessa transposição. Ainda que LACAN (1991: 68) tenha dito, no Séminaire 17, que "não há metalinguagem", o que Freud opera e que é comentado com rigor no livro em destaque é a maneira singular que este ancora linguagem e inconsciente, dando condições para LACAN (1991) mostrar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Isso faz com que o trabalho de traduzir Freud não se reduza a uma simples passagem de uma língua a outra, mas o quanto há de assimilação da teoria psicanalítica, afinal, como afirma TAVARES (2011: 25): "Freud nunca é difícil de se entender, é certamente difícil de se assimilar e aceitar" e a tradução pode ser fundamental nessa aceitação/assimilação. Por essa via toca-se no ponto de resistência frente à Psicanálise, em que o trabalho de tradução certamente se defronta com as próprias resistências do tradutor à Psicanálise. Essas resistências marcam a (o)posição do tradutor que talvez, mesmo sendo psicanalista, não está isento das resistências, muito pelo contrário, é nesse caso que ela pode tomar corpo e dimensão. FREUD (1914), em A história do movimento psicanalítico, já advertia que a resistência frente à Psicanálise vinha do próprio psicanalista e não de um elemento externo, afinal, a resistência é um mecanismo intrapsíquico, que vem de dentro e não do exterior. Exemplo disso pode ser encontrado no próprio livro em resenha, quando o autor apresenta a lista de estilos de Freud elencada pelos tradutores (psicanalistas) franceses; LAPLANCHE, COTET & BOURGUIGNON (apud TAVARES 2011: 29): "o filósofo e didata da metapsicologia; o dialético da Psicologia das Massas; o ensaísta da Recordação de Infância de Leonardo da Vinci; o orador de Recordações atuais sobre a Guerra e a Morte; [...]"; enfim, uma série de estilos que não incluem o Freud psicanalista, que, em minha opinião, é o que mais prepondera em sua obra; nem filósofo, nem dialético, nem ensaísta, nem orador..., mas um psicanalista.

Versões de Freud... também traz um percurso histórico, pois mostra, de certo modo, a história da Psicanálise contada via traduções; uma história que aponta desde as primeiras traduções de Jones e Strachey até a Convergência: movimento lacaniano para a psicanálise freudiana e as Reuniões Lacanoamericanas de Psicanálise - movimentos recentes da Psicanálise atual que a fazem progredir enquanto teoria e prática. A obra não se limita a esse percurso histórico, há também uma importante contribuição de terminologias, etimologias, que mostram um amplo conhecimento linguístico, literário e cultural, com posicionamentos críticos, inclusive acerca de política linguística, tal como o momento em que o autor crítica claramente a resistência dos franceses frente aos estrangeirismos de modo geral e como isso afetou as traduções da obra de Freud para o francês.

O texto de TAVARES (2011) não é somente um debate em torno da tradução de Freud, mas uma crítica precisa e rigorosa diante da complexidade que é a Psicanálise. Para mim, a obra traz à tona, através da tradução, todo o debate, que não é pequeno no meio psicanalítico, em torno da transmissão em psicanálise, o que paradoxalmente não é possível de se alcançar inteiramente pela própria tradução. Em outras palavras, por mais adequada que possa ser uma tradução de Freud ela não dá inteiramente conta da discursividade sobre o inconsciente que ele inaugura, pois o inconsciente só mostra seus verdadeiros efeitos em uma análise. Isso é efetivamente passível de uma transmissão, no divã, no exercício mesmo da psicanálise, e não em uma tradução. Isso toca num ponto intraduzível da Psicanálise, esse ponto que a língua não alcança enquanto simbolização, na medida em que numa análise entra em cena um real da língua, algo que a própria língua, enquanto simbolização, não alcança.

As tentativas de tradução da obra de Freud parecem que, de certo modo, sempre estarão imersas em um impossível: colocar a clínica e o ato inaugurar do inconsciente em outras palavras. Há algo que é da própria clínica e que as palavras não dão conta, é o que faz LACAN (2008) preferir, no Seminário 16, um discurso sem palavras. Um discurso que se passa na experiência clínica com o inconsciente, em que as palavras, apesar de serem necessárias, são insuficientes. Diante disso parece louvável e trágico o trabalho do tradutor/ "traidor" que busca não somente na tradução, mas na transposição, na translinguisticidade colocar Freud em palavras.

O gesto de TAVARES (2011) é particularmente ousado e surpreendente, pois ele consegue avaliar as traduções e tecer comentários que levam em conta aspectos técnicos, conceituais e teóricos da Psicanálise por um lado, e aspectos literários e relativos às teorias da tradução por outro. Sem tomar um posicionamento tendencioso frente às recentes traduções brasileiras, o autor não deixa de mostrar sutilmente a sua preferência e a sua posição em relação às traduções. Desse modo, o texto não é tendencioso, mas também não é isento de posicionamentos, como se buscasse uma suposta neutralidade, na medida em que é possível depreender a posição do autor e a sua crítica face às traduções de Freud.

Recebido em 10/08/2012

Aprovado em 20/08/2012

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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