Acessibilidade / Reportar erro

Fundamentos kantianos da filosofia da linguagem de Walter Benjamin

The Kantian foundations of Walter Benjamin’s philosophy of language

Resumo

Partindo de considerações sobre os escritos precoces que Benjamin dedicou à questão da linguagem - sem descuidar de outros escritos do mesmo período -, pretendemos sugerir a importância que a reflexão de Kant teve para a formulação de seu pensamento linguístico. Nesse sentido, voltamo-nos principalmente para a Segunda Parte da Crítica da Faculdade de Juízo, na qual é desenvolvido e trabalhado o importante conceito de “Zweckmässigkeit” (“conformidade a fins”), sobretudo a partir de uma reflexão sobre a perfeição da natureza, em sua dimensão teleológica. Benjamin retoma esse conceito e - elaborando uma série de imagens sobre a dimensão natural da linguagem, na linha do que propunha um pensador como Humboldt - desenvolve uma filosofia da linguagem a um só tempo natural e teológica. Depois de demonstrar textualmente a existência dessa relação entre a Faculdade do Juízo Teleológica de Kant e a filosofia da linguagem do jovem Benjamin, pretendemos sugerir que este último cede àquilo que o filósofo de Königsberg considerava a ilusão natural da razão, pois, ao postular uma “afinidade meta-histórica entre as línguas”, fundamentada no conceito suprassensível de “die reine Sprache” (“a língua pura”), Benjamin aborda algo que escapa à possibilidade de experiência humana e propõe desdobramentos dogmáticos a partir daí.

Palavras-chaves:
Benjamin; Kant; filosofia da linguagem; teoria da tradução

Abstract

Departing from considerations about the early texts that Benjamin dedicated to the question of language - without neglecting other texts of this period -, we intend to suggest the importance that Kant’s reflection had to the formulation of his linguistic thought. In this sense, we turn mainly to the Second Part of The Critique of Judgment, in which the important concept of “Zweckmässigkeit” (“adequacy of purpose”) is developed, especially reflecting on nature’s perfection, in its teleological dimension. Benjamin reviews this concept and - elaborating a series of images about the natural dimension of language, in line with the propositions of a thinker like Humboldt - develops a philosophy of language at the same time natural and theological. After having demonstrated textually the existence of this relation between the Teleological Faculty of Judgment in Kant and the philosophy of language in the young Benjamin, we intend to suggest that this one gives in to what the philosopher of Königsberg considered the natural illusion of reason, because, in postulating a “metahistorical affinity between the languages”, based on the supersensible concept of “die reine Sprache” (“the pure language”), Benjamin approaches something that escapes the possibility of human experience and proposes dogma from this point on.

Keywords:
Benjamin; Kant; Philosophy of language; Theory of translation

I

Em 1917, Walter Benjamin desiste de propor como tema para sua tese de doutoramento um estudo sobre Immanuel Kant, preferindo a opção de trabalhar um aspecto do Romantismo Alemão, tal como desenvolvido principalmente a partir de Friedrich Schlegel e Novalis, e compôs então a obra que viria a ser chamada de Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik (O conceito de crítica de arte no Romantismo Alemão).2 2 Para mais detalhes acerca dessa obra, cf. a nova edição proposta por Uwe Steiner da tese de Benjamin (2008), que reúne documentos fundamentais para que se compreenda essa aparente mudança com relação ao ponto principal dos seus interesses filosóficos. Para uma contextualização do pensamento do autor nesse período, em sua relação com a filosofia de Kant, cf. Steiner (2004: 21-51); Fenves (2011); Witte (2017: 21-34). Tendo se esforçado nos últimos anos para resgatar o pensamento kantiano do que lhe parecia uma guinada fatal para o positivismo científico - nas mãos dos neokantianos de seu tempo -, Benjamin toma uma decisão que não pode, contudo, ser considerada uma mudança arbitrária e abrupta de interesse (Comay 2004Comay, Rebecca. Benjamin and the ambiguities of Romanticism. In: Fᴇʀʀɪs, David (org.). The Cambridge Companion to Walter Benjamin. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 134-51.: 134). Muito antes, pelo contrário, veremos ao longo deste artigo que certas premissas do filósofo de Königsberg, ainda que pareçam ter sido “oficialmente” deixadas de lado, continuarão a influenciar as reflexões de Benjamin dos próximos anos, mesmo num campo tão importante do seu pensamento quanto a filosofia da linguagem.3 3 Seligmann-Silva (1999: 79), defendendo a tese de que Benjamin permaneceu fiel aos seus primeiros trabalhos sobre a filosofia da linguagem ao longo de toda a sua vida, afirma que a reflexão sobre esse tema percorre praticamente toda a extensão dos escritos benjaminianos.

No mesmo ano em que havia mudado de opinião com relação ao tema de sua tese, Benjamin escreve o texto “Über das Programm der kommenden Philosophie” (“Sobre o programa de uma filosofia vindoura”).4 4 Maurice de Gandillac, tradutor francês da obra de Benjamin, anota que esse texto, publicado pela primeira vez numa recolta de homenagens a Theodor Adorno (Zeugnisse. Theodor W. Adorno zum 60. Geburtstag. Frankurt am Main: Europäische Verlagsanstalt, 1963), era apresentado por Gershom Scholem como datando do início de 1918. É dito que Scholem, porém, voltaria atrás com relação a essa datação: o texto teria sido escrito até novembro de 1917, e somente o “Apêndice” em março de 1918. Cf. Benjamin (2000: 179). Levando em conta a preferência acadêmica manifestada por ele, poderíamos achar estranhos os termos com que Benjamin inicia tal texto: “A tarefa5 5 Benjamin fala de uma “Aufgabe” da filosofia vindoura. O mesmo termo aparece no título de um importante texto onde trata da “Aufgabe” do tradutor. Para a compreensão desse termo, citamos aqui de uma nota editorial de Gagnebin (Benjamin 2013: 101): “O verbo aufgeben, do qual provém o substantivo Aufgabe, significa ‘entregar’, no duplo sentido do termo: ‘dar’ (geben) algo a alguém para que cuide disso (por exemplo, entregar uma carta ao correio), mas também dar algo a alguém, abrindo mão da posse do objeto (por exemplo, entregar uma cidade ao inimigo). A segunda acepção é mais forte no uso intransitivo do verbo: ich gebe auf - ‘renuncio’, ‘desisto’, ‘me entrego’. Essa ambivalência está presente no substantivo Aufgabe, entendido como ‘proposta’, ‘tarefa’, ‘problema a ser resolvido’, mas no qual ressoam também as ideias de ‘renúncia’ e ‘desistência’.” central da filosofia vindoura é permitir que as noções mais profundas que ela extrai de sua época e do pressentimento de um grande porvir possam transformar-se em conhecimento, por meio da relação com o sistema kantiano.”6 6 Tradução nossa. No original: “Es ist die zentrale Aufgabe der kommenden Philosophie die tiefsten Ahnungen die sie aus der Zeit und dem Vorgefühle einer großen Zukunft schöpft durch die Beziehung auf das Kantische System zu Erkenntnis werden zu lassen.” (Benjamin 1991: 157) Ora, essas palavras deixam claro que Benjamin não preteria Kant pura e simplesmente, mas que propunha reestabelecer um criticismo ao qual haveria de ser associada certa noção de experiência como fundamento para uma filosofia mais consciente do seu próprio tempo e da sua própria história (Matos 1999Matos, Olgária. O iluminismo visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant. São Paulo: Brasiliense, 1999.: 131).

Nesse mesmo texto, Benjamin argumenta que a filosofia vindoura - aquela cujo programa ele pretende traçar aí - deve dar conta de uma experiência muito mais rica e diversa do que aquela que fora característica da época de Kant, ou seja, a do Iluminismo [Aufklärung]. Segundo o autor, para isso far-se-ia imprescindível uma grande correção no conceito de conhecimento - previamente orientado de modo unilateral para as matemáticas e a mecânica - por meio de sua relação com a linguagem (tal como Hamann havia anteriormente delineado e tentado). Ele afirma que, quando Kant tomara o conhecimento filosófico por absolutamente certo e apriorístico, como se filosofia e matemática estivessem do mesmo lado, ele perdeu inteiramente de vista que todo conhecimento filosófico encontra o seu único meio de expressão na linguagem, e não nas fórmulas e nos números.7 7 Parafraseamos o seguinte trecho do original: “Die große Umbildung und Korrektur die an dem einseitig mathematisch-mechanisch orientierten Erkenntnisbegriff vorzunehmen ist, kann nur durch eine Beziehung der Erkenntnis auf die Sprache wie sie schon zu Kants Lebzeiten Hamann versucht hat gewonnen werden. Über dem Bewußtsein daß die philosophische Erkenntnis eine absolut gewisse und apriorische sei, über dem Bewußtsein dieser der Mathematik ebenbürtigen Seiten der Philosophie ist für Kant die Tatsache daß alle philosophische Erkenntnis ihren einzigen Ausdruck in der Sprache und nicht in Formeln und Zahlen habe völlig zurückgetreten.” (Benjamin 1991: 168). Cf. Steiner (2004: 38-41).

Os estudiosos da obra de Benjamin reconhecem nela unanimemente a influência da filosofia da linguagem característica da primeira geração dos românticos alemães (como, na passagem anterior, a menção a Hamann - uma figura cara ao movimento do Sturm und Drang - já indica bem). Por outro lado, normalmente não se concede atenção suficiente à influência kantiana, ou antes, ao fato de que Benjamin tenta desenvolver o sistema kantiano a partir de novas reflexões sobre a linguagem com o intuito de abarcar, crítica e reflexivamente, o campo da experiência do seu tempo. Ainda que os livros de Steiner (2004Steiner, Uwe. Walter Benjamin. Stuttgart/Weimar: J. B. Metzler, 2004.) e Fenves (2011Fenves, Peter. The messianic reduction: Walter Benjamin and the shape of time. Stanford: Stanford University Press, 2011.) ofereçam uma série de considerações importantes sobre os precursores filosóficos da abordagem benjaminiana - inclusive com uma considerável atenção voltada para o papel que a filosofia de Kant aí desempenha -, acreditamos que um aspecto fundamental dessa retomada não tenha sido suficientemente explicitado nesses estudos. Tentaremos esboçar aqui, brevemente, um outro caminho de leitura - ainda não notado - para o qual parecem convergir os pensamentos desses dois autores.

O principal trabalho de filosofia da linguagem desenvolvido por Benjamin encontra-se num texto escrito em 1916, “Über die Sprache überhaupt und über die Sprache des Menschen” (“Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”). A importância das concepções desse texto sobre toda a reflexão posterior de Benjamin tem sido amplamente reconhecida, como demonstra Seligmann-Silva (1999Seligmann-Silva, Márcio. Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: Romantismo e Crítica Poética. São Paulo, Iluminuras, 1999.: 80), mas as considerações que mais nos interessam aqui são sobretudo duas: (I) a linguagem como fator determinante para o domínio humano da natureza; (II) a linguagem humana como integrante dessa mesma natureza.8 8 As duas teses encontram-se maravilhosamente reunidas nesta breve frase do mesmo texto: “Sprachlosigkeit: das ist das große Leid der Natur (und um ihrer Erlösung willen ist Leben und Sprache des Menschen in der Natur, nicht allein, wie man vermutet, des Dichters).” (Benjamin 1991: 155)

(I) Benjamin afirma que o homem é o senhor da natureza justamente na medida em que essa natureza se deixa falar por ele (ou seja, na medida em que o homem é quem a nomeia, podendo vir a conhecê-la).9 9 Parafraseamos o original: “Alle Natur, sofern sie sich mitteilt, teilt sich in der Sprache mit, also letzten Endes im Menschen. Darum ist er der Herr der Natur und kann die Dinge benennen.” (Benjamin 1991: 144). Pouco antes disso, ele já chamara atenção para o duplo sentido da palavra λóγος (lógos), que reúne em si uma essência espiritual (geistige Wesen) e linguística (sprachliche). Na medida dessa dupla acepção da palavra grega evocada por Benjamin, sentimo-nos autorizados a fazer uma comparação com aquilo que para Kant é o fator decisivo da supremacia humana na Terra. No Apêndice da Segunda Parte de sua Kritik der Urteilskraft (Crítica da Faculdade de Juízo), Kant defende que

temos razões suficientes para ajuizar o homem, não simplesmente enquanto ser da natureza como todos os seres organizados, mas também, aqui na Terra, como o último fim [als den letzten Zweck] da natureza, em relação ao qual todas as restantes coisas naturais constituem um sistema de fins, segundo princípios da razão [...] (KU, AA V: 429, CFJ 305).

Ou seja, a partir de princípios da razão (relacionados ao conceito de liberdade), fundamenta-se a prevalência do homem como fim da natureza. Atentando para o duplo sentido da palavra λóγος (lógos), notamos que Benjamin vale-se - ambiguamente - das considerações kantianas para fundamentar a sua própria visão (de matiz religioso, uma vez que ele parte de uma análise dos primeiros capítulos do Gênese a fim de tecer as suas reflexões mais gerais sobre a linguagem).10 10 Para uma compreensão do deslocamento das primeiras concepções de Benjamin sobre a linguagem (em sua relação com questões lógicas e matemáticas), desenvolvidas em suas conversas com Scholem ao longo de 1916, para uma abordagem teológica (de exegese do Gênese), cf. Fenves (2011: 125-151). Vale comentar que, apesar da primazia concedida por ambos os filósofos ao ser humano, enquanto racional e lógico, o pensamento de Benjamin apresenta nuances típicas de uma visão dúbia a respeito da razão humana. É nesse sentido que uma estudiosa como Beatrice Hanssen se permite afirmar que:

Combinando o seu misticismo com uma filosofia romântica da natureza, o precoce ensaio de Benjamin, de 1916, introduzia assim outro motivo central que seria recorrente em seu trabalho como um todo: a linguagem da natureza, sempre sob o risco de ser silenciada, alienada, objetificada e suprimida na linguagem humana e por ela. Em face de tamanha super-nomeação promovida pelo homem, a natureza se abandonaria ao silêncio da melancolia.11 11 Tradução nossa. No original: “Combining his mysticism with a Romantic philosophy of nature, Benjamin’s early 1916 essay thus introduced yet another central motif that would recur in his work as a whole: the language of nature, always at a risk of being silenced, alienated, objectified, and suppressed in and through human language. In the face of so much man-made over-naming, nature relinquished itself to the silence of melancholy.” (Hanssen 2004: 64)

(II) A linguagem humana é compreendida por Benjamin numa chave de interpretação abertamente orgânica. Ainda que, na sua leitura dos primeiros capítulos do Gênese, ele não pretenda nem uma reconstrução histórica nem uma resposta à questão metafísica da origem das línguas (Steiner 2004Steiner, Uwe. Walter Benjamin. Stuttgart/Weimar: J. B. Metzler, 2004.: 48), o pensador acaba por estabelecer uma reflexão aguda sobre a natureza das diferentes linguagens: a de Deus, a dos homens e a das coisas. Segundo Gagnebin (1989: 292), trata-se

de uma reflexão sobre a dialética entre as dimensões da Palavra criadora e divina (Wort) e do nome humano que (re)conhece (Name), dialética que funda a linguagem humana, mas que a profusão das línguas nos faz esquecer, ocupados e preocupados que somos em encontrar um significado único a tantos significantes diversos.

Justamente tratando sobre a questão da passagem de “tantos significantes diversos” a “um significado”, Benjamin evidencia o caráter orgânico da linguagem quando afirma: “A tradução é a passagem de uma língua para outra por uma série contínua de metamorfoses” (Benjamin 2013: 64).12 12 Valemo-nos da tradução de Susanna Kampf Lages. No original: “Die Übersetzung ist die Überführung der einen Sprache in die andere durch ein Kontinuum von Verwandlungen.” (Benjamin 1991: 151) Com isso, afirma-se a equivalência das mais diversas línguas humanas - equivalentes na medida mesma de que tal diversidade lhes é essencialmente constitutiva (Fenves 2011Fenves, Peter. The messianic reduction: Walter Benjamin and the shape of time. Stanford: Stanford University Press, 2011.: 149) - em sua subordinação geral à linguagem divina. Ademais, é de se notar que essa concepção orgânica da linguagem, tão reforçada em outros textos (como veremos), é imprescindível para que Benjamin aproxime suas considerações linguísticas do que é afirmado na Segunda Parte da já mencionada Crítica da Faculdade de Juízo, onde Kant justamente vai tratar sobre juízos relativos à biologia13 13 Aqui vale lembrar a precisão terminológica para a qual atenta Santos (2012: 20-21): “Nem ‘Biologia’, nem ‘pensamento biológico’, nem sequer o adjetivo ‘biológico’ eram termos de uso corrente, no século XVIII. As reflexões e doutrinas a respeito daquilo que hoje se designa por essas expressões eram, na época, englobadas numa disciplina cientificamente frágil, chamada ‘História Natural’ (Histoire naturelle, Naturgeschichte) [...].”. e aos fenômenos orgânicos.

Antes de avançarmos, contudo, vale remeter mais uma vez aqui às palavras de Hanssen (2004Hanssen, Beatrice. Language and mimesis in Walter Benjamin’s work. In: Ferris, David (org.). The Cambridge Companion to Walter Benjamin. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 54-72.: 62) a fim de nos precavermos contra possíveis críticas negativas a uma leitura que se volte para o sentido literal de algumas passagens dos textos de Benjamin:

Embora não seja impossível nem necessariamente imprudente fazer uma leitura retórica dos escritos precoces de Benjamin, ilustrando de que modo o trabalho da linguagem desfaz as reivindicações abertamente orgânicas do seu texto, de uma perspectiva histórico-filosófica, parece importante reconhecer que o jovem Benjamin incontestavelmente abraçou uma linguagem orgânica e pura que clamava não ser nem metafórica nem alegórica, mas - se algo nesse sentido - simbólica. 14 14 Tradução nossa. No original: “Thus, while it is not impossible or necessarily ill-advised to do a rhetorical reading of Benjamin’s early writings illustrating how the work of language undoes the text’s overt organic claims, from a historico-philosophical perspective it seems important to acknowledge that the early Benjamin unambiguously embraced an organic, pure language that claimed to be neither metaphorical nor allegorical but if anything was symbolical.” (Hanssen 2004: 62)

II

Em sua terceira Crítica, Kant tece inúmeras reflexões crítico-epistemológicas acerca das condições, possibilidades e limites do que ele chama “adequação a fins” (“Zweckmässigkeit”) em seres da natureza. Esse termo técnico, de profunda aplicação para toda a obra (sobretudo para a Segunda Parte), é apresentado já na Introdução da seguinte forma:

Ora, porque o conceito de um objeto, na medida em que ele ao mesmo tempo contém o fundamento da efetividade deste objeto, chama-se fim e o acordo de uma coisa com aquela constituição das coisas que somente é possível segundo fins se chama conformidade a fins da forma dessa coisa, o princípio da faculdade do juízo é então, no que respeita à forma das coisas da natureza sob leis empíricas em geral, a conformidade a fins da natureza na sua multiplicidade. O que quer dizer que a natureza é representada por este conceito, como se um entendimento contivesse o fundamento da unidade do múltiplo das suas leis empíricas. (KU, AA V: 180 f., CFJ 12).

A atenção especial de Kant dirige-se para aquelas coisas naturais que mostram ter uma “forma interna” (“innere Form”)15 15 Cf. KU, AA V: 378, CFJ 244. Citamos aqui uma nota de Zöller (2012: 102), cujo estudo foi muito profícuo para essas primeiras considerações: “O termo [no texto kantiano “innern Form”], que se encontra mais desenvolvido em Wilhelm von Humboldt, para caracterizar a espiritualidade viva da linguagem (“innere Sprachform”), é em Kant hapax legomenon. Cf. também Wilhelm von Humboldt, ‘Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues’, 463-473.”. Para a tradução de alguns desses escritos, cf. a edição brasileira organizada por Werner Heidermann e Markus J. Weininger da obra de Humboldt (2006). peculiar, ou seja, para cada um dos “seres organizados” (“organisierte Wesen”), conforme o seguinte princípio que os define: “um produto organizado da natureza é aquele em que tudo é fim e reciprocamente meio. Nele nada é em vão, sem fim ou atribuível a um mecanismo natural cego” (KU, AA V: 376, CFJ 242).

O mesmo termo “Zweckmässigkeit” (“conformidade a fins”) seria retomado posteriormente por Benjamin com profundas implicações sobre a sua filosofia da linguagem. Em 1923, ele publica como prefácio a sua tradução de alguns poemas dos Tableaux Parisiens [Quadros parisienses], do poeta francês Charles Baudelaire, o texto “Die Aufgabe des Übersetzers” (“A tarefa16 16 Para maiores detalhes sobre o termo “Aufgabe”, constante nesse título, cf. a nota 4 do presente artigo. do tradutor”) no qual aparece o termo.17 17 Esse texto, contudo, foi escrito originalmente em 1921 (Steiner 2004: 49). Partindo de uma concepção linguística muito próxima daquela já esboçada no ensaio de 1916, ele tece numerosos paralelos que “testemunham o constante cuidado de Benjamin em fundar uma teoria do nome contra uma concepção de linguagem reduzida a uma teoria exclusiva da comunicação” (Gagnebin 1989: 292). Em ambos esses textos encontra-se entre as línguas humanas uma espécie de “parentesco” (ou “afinidade”, conforme queira traduzir-se “Verwandtschaft”), responsável por uni-las com relação àquilo que elas querem dizer e que remontaria a uma “língua pura” (“reine Sprache”).18 18 Seligmann-Silva (1999: 88), depois de citar justamente o trecho em que Benjamin fala da relação entre as línguas diversas e a “língua pura”, afirma que “dificilmente se poderia expor de modo mais claro as teses de W. Humboldt sobre a diferença entre as línguas, a saber, sobre o jogo de diferenças como essencial à estruturação das línguas”.

A característica do texto posterior, contudo, para a qual pretendemos chamar atenção é justamente o caráter orgânico da concepção linguística (de viés humboldtiano) expressa nele. Ao que tudo indica, o paralelo entre esse texto e a Crítica da Faculdade do Juízo parece ter sido engendrado de forma deliberada pelo próprio Benjamin, na medida em que ele acentua e dissemina a importância de imagens orgânicas relativas à linguagem ao longo de toda a sua argumentação. Para ficarmos apenas em alguns exemplos, a conexão entre o texto original e a sua tradução é chamada natural, ou antes, uma conexão de vida (Benjamin 2013: 104),19 19 Citaremos a tradução de Susana Kampff Lages. No original: “Er darf ein natürlicher genannt werden und zwar genauer ein Zusammenhang des Lebens.” (Benjamin 1923: VIII) numa passagem em que se fala de uma “sobrevida” (“Überleben”) e de uma “pervivência” (“Fortleben”) das obras de arte. A seguir, ele é categórico ao defender que essa “ideia da vida e da pervivência” das obras de arte deve ser entendida em sentido inteiramente objetivo, não metafórico (Benjamin 2013: 104).20 20 No original: “In völlig unmetaphorischer Sachlichkeit ist der Gedanke vom Leben und Fortleben der Kunstwerke zu erfassen.” (Benjamin 1923: VIII) Além disso, essas e outras passagens em que o autor recorre a imagens vegetais são efetivamente importantes para o rumo da argumentação, tal como no caso daquela onde proclama que teor e língua, no original, “formam certa unidade, como casca e fruto [...]” (Benjamin 2013: 111).21 21 No original: “Bilden nämlich diese [Gehalt und Sprach] im ersten [in Original] eine gewisse Einheit wie Frucht und Schale […].” (Benjamin 1923: XII)

Esses poucos exemplos talvez já fossem o bastante para evidenciar o esforço do autor em traçar imagens orgânicas da linguagem que lhe permitissem tratar dos fenômenos linguísticos de uma perspectiva biológica, tal como a que foi esboçada por Kant na Segunda Parte da terceira Crítica. Embora um estudioso como Paul De Man pareça se contrapor a essa interpretação, acreditamos que os elementos textuais já aludidos (e explicitados, em larga medida, pelo próprio estudioso belga) sugiram de forma inquestionável o jogo que acreditamos existir entre as proposições benjaminianas e aquelas que destacamos de Kant.22 22 Num texto dedicado especificamente à interpretação de “Die Aufgabe des Übersetzers”, o estudioso belga afirma o seguinte: “The text constantly uses images of seed, of ripening, of harmony, it uses the image of seed and rind [l’écorce et le noyau] - which seem to be derived from analogies between nature and language, whereas the constant claim is constantly being made that there are no such analogies.” (De Man 2000: 30)

Esse entendimento é reforçado ainda quando se evoca aquilo que comenta Ribeiro dos Santos (1994______. Metáforas da razão - economia poética do pensar kantiano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.: 437), atentando para certa dubiedade da representação dos produtos mecânicos (quando comparados aos produtos naturais) nos escritos de Kant - embora o mesmo pudesse ser afirmado também com relação a certas passagens e imagens dos textos de Benjamin -, na medida que:

As imagens mecânicas têm em Kant, de um modo geral, uma conotação negativa, não só na Moral e na Política, mas também na Estética e na Filosofia. Exprimem a passividade, a instrumentalização, a mera imitação, a cedência aos preconceitos. Numa palavra, a incapacidade de ‘pensar por si’ e de usar as próprias faculdades. Pelo contrário, as imagens orgânicas exprimem a autonomia, a liberdade, o princípio originário da vida, a ação e criação determinadas por princípios internos próprios.

Kant relaciona a “Zweckmässigkeit” (“conformidade a fins”) da natureza à faculdade de juízo reflexiva. Ainda que se trate de um conceito a priori, ele só pode ser desenvolvido e aplicado para que se reflita sobre os fenômenos da natureza, não para que se lhes determine ou prescreva algo (como no caso da conformidade a fins prática, que é válida para os costumes). Os seres humanos, refletindo sobre as intuições que recebem dos mais diversos fenômenos da natureza, são capazes de dispor as mais variadas intuições sob um mesmo conceito (conforme a faculdade do entendimento) e organizar os diferentes conceitos num sistema (conforme os princípios da razão). De acordo com o que se lê no Apêndice à Dialética Transcendental, da Kritik der reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura), três são os princípios da razão para o entendimento: o da homogeneidade do diverso sob os gêneros superiores; o da variedade do homogêneo sob espécies inferiores; e o da afinidade de todos os conceitos, princípio que ordena uma passagem contínua de cada espécie para a outra através de um crescimento gradativo das diferenças (KrV, AA III: 435, CRP 499).

A precaução de Kant com relação a um possível uso determinante da razão, uso que ele chama ilusório (no original, “Schwärmerei”) - ao contrário do uso meramente regulativo para o entendimento, como no caso do que acabamos de expor - vai desde as considerações do Apêndice à Dialética Transcendental (da primeira Crítica) até o Apêndice da Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica (ao fim da terceira Crítica). Embora Kant já desde o Apêndice à Dialética Transcendental relacionasse a subsunção de conceitos a leis mais gerais com a faculdade da razão (em sua função heurística), apenas no final da Crítica da Faculdade de Juízo ele vai explicitar a forma como a razão - prática - poderia ser compreendida como o caminho para a fundamentação subjetiva (e meramente regulativa) de um fim definitivo (Endzweck), por meio do recurso à causa incondicionada, i.e., à liberdade. Isso demonstra a incessante preocupação kantiana de tentar evitar o que ele enxergava como uma propensão natural da razão humana a ultrapassar os limites da experiência possível (KrV, AA III: 426, CRP 490).

A forma como Benjamin emprega o termo “Zweckmässigkeit” (“conformidade a fins”), no texto “A tarefa do tradutor”, parece indicar que ele também o entenda em conexão a uma atitude reflexiva. Segundo ele, cada “modo de visar” (“die Art des Meinens”) - apesar de manifestar um caráter sui generis em cada uma das diferentes línguas humanas - visa sempre um mesmo e único “visado” (“das Gemeinte”). Essa constatação, que ele considera uma das leis mais fundamentais da filosofia da linguagem (Benjamin 2013: 109),23 23 No original: “Dieses Gesetz, eines der grundlegenden der Sprachphilosophie [...].” (Benjamin 1923: XI) é o que lhe conduz a uma série de conclusões importantes:

  • i) a tradução de um “modo de visar” original para outro diverso é possível, ainda que sob pena de certa inadequação entre o teor (Gehalt) e a língua naquilo que constitui o novo “modo de visar”;

  • ii) deve existir algo que oriente essa tendência de que os mais diversos “modos de visar” convirjam para um mesmo “visado” - sendo que este “algo” vem a ser chamado por Benjamin de “língua pura” (“reine Sprache”), enquanto a tendência engendrada por ela recebe justamente o nome de “conformidade a fins” (“Zweckmässigkeit”).

Se compararmos os dois esquemas teleológicos que acabamos de esboçar, poderemos evidenciar até que ponto Benjamin se valeu do sistema kantiano para fundamentar a sua própria teoria linguística. A pedra-de-toque para a exposição de Kant é o que ele chama de “causalidade incondicionada, isto é, a liberdade” (“unbedingte Causalität, d. i. Freiheit”) (KU, AA V: 403, CFJ 273). Esse é o pressuposto sem o qual toda a estrutura arquitetônica desenvolvida na Segunda Parte da Crítica da Faculdade do Juízo não seria possível, ou seja, trata-se de um conceito fundamental e inquestionável (sob pena de fazer ruir todo o argumento moral da possibilidade de existência de Deus). Algo análogo existe no texto de Benjamin. A sua pedra-de-toque, contudo, é a “traduzibilidade” (“Übersetzbarkeit”) e esse conceito parece tão fundamental para o seu sistema quanto a “liberdade” já se revelara para o de Kant, na medida em que ele afirma que: “A traduzibilidade de composições de linguagem deveria ser levada em consideração, ainda que elas fossem intraduzíveis para os homens” (Benjamin 2013: 103).24 24 No original: “Entsprechend bliebe die Übersetzbarkeit sprachlicher Gebilde auch dann zu erwägen, wenn diese für die Menschen unübersetzbar wären.” (Benjamin 1923: VIII) A liberdade é um conceito apodítico da definição de ser moral, da mesma forma como a traduzibilidade é apodítica da definição de uma obra original. Vale notar que é o próprio Benjamin (1923: VIII; 2013: 102) quem retoma de forma direta e explícita esse mesmo termo - apodiktisch - para caracterizar a ligação existente entre toda obra original e sua tradução, ou antes, entre toda obra original e a exigência de que ela venha a ser traduzida.

É de se notar que Jacques Derrida, em seu texto “Des tours de Babel” (“Torres de Babel”, ou ainda, levando em conta certa homofonia com relação à palavra détours, “Desvios de Babel”), já notara o caráter apodítico do que Benjamin chama de “traduzibilidade”. A esse respeito, o estudioso faz o seguinte comentário:

A tradutibilidade pura e simples é aquela do texto sagrado no qual o sentido e a literalidade não se discernem mais para formar o corpo de um acontecimento único, insubstituível, intransferível, “materialmente a verdade”. Apelo à tradução: a dívida, a tarefa, a atribuição não são nunca mais imperiosas. (Derrida 2012: 69).25 25 Na tradução de Junia Barreto. No original: “La traductibilité pure et simple est celle du texte sacré dans lequel le sens et la littéralité ne se discernent plus pour former le corps d’un événement unique, irremplaçable, intransférable, « matériellement la vérité ». Appel à la traduction : la dette, la tâche, l’assignation ne sont jamais plus impérieuses.” (Derrida 1998: 234)

Deixando um pouco de lado as considerações transcendentais inerentes ao fundamento de cada um desses sistemas, contudo, podemos nos voltar às reflexões que ambos os autores desenvolvem a partir de intuições acerca do mundo dos fenômenos contingentes da natureza. Nos dois casos, o conceito de “conformidade a fins” (“Zweckmässigkeit”) é imprescindível para a compreensão dessas intuições. Kant fala da admiração (“Bewunderung”) sentida pelos homens diante do que lhes surge como certa organização da natureza. Segundo ele,

[...] a admiração é um efeito perfeitamente natural daquela conformidade a fins [Zweckmässigkeit] observada na essência das coisas (enquanto fenômenos) e que não pode desse modo ser censurada, pois que a possibilidade de unificar aquela forma da intuição sensível (a que chamamos espaço) com a faculdade dos conceitos (o entendimento) não só nos é inexplicável pelo fato de aquela forma ser precisamente esta e não outra, mas além disso é ainda um alargamento para o ânimo, como que para este pressentir algo que se situa acima daquelas representações sensíveis, algo em que se pode encontrar, ainda que nos seja desconhecido, o fundamento último desse acordo. (KU, AA V: 365, CFJ 230).

Benjamin encontra essa mesma “conformidade a fins” (“Zweckmässigkeit”) em cada um dos desdobramentos oferecidos à obra original - ou antes, à “vida do original” (“Leben des Originals”) - por cada uma das suas sucessivas traduções (Benjamin 2013: 105). Ele observa ainda que essas traduções são todas diferentes com relação ao original e, na medida em que submetidas ao processo de evolução das línguas, historicamente contingenciais e finitas.26 26 No original: “Ja, während das Dichterwort in der seinigen überdauert, ist auch die größte Übersetzung bestimmt in das Wachstum ihrer Sprache ein -, in der erneuten unterzugehen.” (Benjamin 1923: X)

Assim sendo, do que expusemos, evidencia-se que tanto as considerações transcendentais, por um lado, quanto as considerações fenomênicas, por outro, tal como desenvolvidas no texto “A tarefa do tradutor”, seguem bem de perto as que haviam sido delineadas pelo sistema kantiano. Com isso, Benjamin desenvolve um organon para a sua filosofia da linguagem - organon a partir do qual suas considerações sobre o conhecimento poderão ser estendidas a fim de abarcar alguns dos domínios que não foram tratados por Kant. Esse era o programa já previsto por Benjamin em suas considerações para uma “filosofia vindoura” em 1917:

Um conceito de conhecimento desenvolvido por uma reflexão sobre a sua essência linguística plasmará um conceito de experiência correspondente, que abarcará também domínios [Gebiete] com os quais Kant não obteve verdadeiramente sucesso em sua ordenação sistemática. Entre tais domínios, o que deve ser chamado de mais elevado é o da religião. Assim, deixa-se resumir a exigência à filosofia vindoura na fórmula seguinte: sobre o fundamento do sistema kantiano, plasmar um conceito de conhecimento ao qual corresponda o conceito de uma experiência - conceito ao qual o conhecimento seja a doutrina [Lehre].27 27 Tradução nossa. No original: “Ein in der Reflexion auf das sprachliche Wesen der Erkenntnis gewonnener Begriff von ihr wird einen korrespondierenden Erfahrungsbegriff schaffen der auch Gebiete deren wahrhafte systematische Einordnung Kant nicht gelungen ist umfassen wird. Als deren Oberstes ist das Gebiet der Religion zu nennen. Und damit läßt sich die Forderung an die kommende Philosophie endlich in die Worte fassen: Auf Grund des Kantischen Systems einen Erkenntnisbegriff zu schaffen dem der Begriff einer Erfahrung korrespondiert von der die Erkenntnis Lehre ist.” (Benjamin 1991: 168). Para interessantes considerações sobre a importância que o conceito de experiência adquire nas discussões benjaminianas sobre religião e história, cf. Steiner (2004: 40-41); Lavelle (2005).

III

Até o ponto aonde conduzimos a comparação, os dois sistemas teleológicos parecem guiados por uma reflexão de caráter crítico bastante estrito. Benjamin, contudo, abandona as precauções kantianas (para as quais já tínhamos atentado) e cede à tentação de encarar como determinantes os juízos que deveriam restringir-se a um uso regulativo (meramente heurístico). No que se segue, veremos justamente em que pontos ele ultrapassa os limites impostos pela faculdade de conhecimento, tal como Kant os delineia, e cede à ilusão natural da razão.

Depois de constatar a traduzibilidade das obras originais, a partir da reflexão sobre as suas mais diversas traduções, Benjamin indaga-se a respeito do ponto em que deve ser buscada a afinidade entre as línguas - ainda que rejeite a ideia de uma “identidade de proveniência” (“Gleichheit der Abstammung”). Pouco depois, ele responde a tal indagação com as seguintes palavras:

Toda afinidade meta-histórica entre as línguas repousa sobre o fato de que, em cada uma delas, tomada como um todo, uma só e a mesma coisa é visada; algo que, no entanto, não pode ser alcançado por nenhuma delas, isoladamente, mas somente na totalidade de suas intenções reciprocamente complementares: a pura língua. (Benjamin 2013______. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). 2. ed. Org., apres. e notas de Jeanne Marie Gagnebin. Trad. de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2013. : 109).28 28 No original: “Vielmehr beruht alle überhistorische Verwandtschaft der Sprachen darin, daß in ihrer jeder als ganzer jeweils eines und zwar dasselbe gemeint ist, das dennoch keiner einzelnen von ihnen, sondern nur der Allheit ihrer einander ergänzenden Intentionen erreichbar ist: die reine Sprache.” (Benjamin 923: XI)

Ora, essa constatação demonstra a primeira das suposições ousadas de Benjamin. Afinal, a partir de uma reflexão acerca de fenômenos contingentes (qual seja, o de que as traduções pareçam ser conformes a determinados fins), ele proclama a existência de uma dimensão suprassensível: “die reine Sprache” (“a língua pura”).29 29 Segundo Steiner (2004: 49): “In der Aufgabe des Übersetzers geht es allerdings nicht so sehr um Sprache überhaupt, sondern um konkrete Sprachformen im historischen Kontext. Dennoch setzt der Essay die mediale oder: magische Auffassung der Sprache ebenso voraus wie den in dieser Auffassung fundierten universalen Übersetzungsbegriff.” Essa expressão, que já estava presente em seu primeiro texto sobre a linguagem (de 1916),30 30 Conforme Seligmann-Silva (1999: 88): “Já a ‘linguagem pura’, que está na base de todas as línguas e que é visada como a tarefa do tradutor, corresponde àquela ‘linguagem pura do nome’, tal como vimos no Sprachaufsatz.” é abertamente relacionada à ideia de uma origem divina e, portanto, suprassensível daquilo que viria a constituir a multiplicidade dos fenômenos linguísticos. Kant estava ciente do perigo apresentado pela tentação de se saltar por cima das fronteiras de cada domínio e de se fazer com que um juízo regulativo fosse encarado de forma determinante. Por isso ele foi enfático na condenação de tal atitude desde a Analítica da Faculdade de Juízo Teleológica:

Quando se traz o conceito de Deus para a ciência da natureza e para o seu contexto, com o objetivo de explicar a conformidade a fins da natureza e seguidamente se utiliza esta conformidade para provar que existe um Deus, então não há consistência interna em nenhuma destas ciências e um dialeto enganador envolve-as em incerteza, pelo fato de deixarem confundir as respectivas fronteiras. (KU, AA V: 381, CFJ 248).

Kant é bastante claro na recomendação de que se respeitem os limites de cada um dos domínios das faculdades humanas a fim de que não ocorram saltos inadvertidos na construção de um argumento filosófico bem embasado. Ao longo de toda a Segunda Parte da terceira Crítica, encontramos essa mesma precaução, mas aqui de forma tanto mais enfática quanto mais se avança para questões de ordem teológica. Kant resguarda-se justamente contra o risco de que certo dogmatismo desrespeite os limites impostos pela faculdade de conhecimento, seja desenvolvendo uma teologia físico-teleológica,31 31 Embora Kant rechace de modo geral as tentativas físico-teleológicas de se provar a existência de Deus (veja-se a ironia com que ele interpela o leitor a esse respeito em: KU, AA V: 480, CFJ 364), as palavras que encerram o Apêndice da Segunda Parte apresentam a teologia física podendo “servir ao menos como propedêutica para a verdadeira teologia, na medida em que possibilita, através da consideração dos fins da natureza - dos quais apresenta uma rica matéria - a ideia de um fim terminal que a natureza não pode apresentar [...].” (KU, AA V: 485, CFJ 370) seja aplicando de forma determinante princípios regulativos. Ele garante que

os objetos das meras ideias da razão que, para o conhecimento teórico, não podem de modo nenhum serem expostos numa qualquer experiência possível não são nessa medida de modo nenhum coisas conhecíveis e, por conseguinte, nem se pode opinar a seu respeito; pretender pois opinar a priori é já em si absurdo e o caminho mais curto para a mera fantasia [Hirngespinste]. (KU, AA V: 467, CFJ 349).

Benjamin, depois de defender que a alegada “afinidade meta-histórica entre as línguas” fundamenta-se no fato de que exista algo (a “língua pura”) sempre visado por elas, tece uma série de considerações acerca desse conceito suprassensível. Kant, como acabamos de ver, fora enfático na condenação de qualquer tentativa de se opinar acerca de coisas das quais não se tem uma experiência efetiva. Benjamin, contudo, avança justamente na direção dos apontamentos de caráter mais dogmático tal como definidos por sua teoria da linguagem, opinando sobre algo para o qual não é possível haver nenhuma intuição humana. Falando sobre a “língua pura”, ele afirma que:

Essa língua, porém, em que as frases, obras e juízos isolados jamais se entendem - razão pela qual permanecem dependentes de tradução - é aquela na qual, entretanto, as línguas coincidem entre si, completas e reconciliadas no seu modo de visar. No entanto, se, ao contrário, existir uma língua da verdade [Sprache der Wahrheit], na qual os segredos últimos, que o pensamento se esforça por perseguir, estão guardados sem tensão [spannungslos] e mesmo tacitamente [schweigend], então essa língua da verdade é: a verdadeira língua [die wahre Sprache]. (Benjamin 2013______. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). 2. ed. Org., apres. e notas de Jeanne Marie Gagnebin. Trad. de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2013. : 113).

A partir do ponto em que essas considerações se infiltram na arquitetura do seu sistema filosófico, Benjamin sente-se autorizado inclusive a tecer uma série de prescrições para os tradutores de modo geral. Ele qualifica a “finalidade da tradução” como “expressão do mais íntimo relacionamento das línguas entre si” (Benjamin 2013: 106),32 32 No original: “So ist die Übersetzung zuletzt zweckmäßig für den Ausdruck des innersten Verhältnisses der Sprachen zueinander.” (Benjamin 1923: IX) cuja tarefa consistiria em “encontrar na língua para a qual se traduz a intenção a partir de onde o eco do original é nela despertado” (Benjamin 2013: 112),33 33 No original: “Sie besteht darin, diejenige Intention auf die Sprache, in die übersetzt wird, zu finden, von der aus in ihr das Echo des Originals erweckt wird.” (Benjamin 1923: XIII) pois “a tarefa do tradutor” seria “redimir, na própria, a pura língua, exilada na estrangeira, liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação” (Benjamin 2013: 117).34 34 No original: “Jene reine Sprache, die in fremde gebannt ist, in der eigenen zu erlösen, die im Werk gefangene in der Umdichtung zu befreien, ist die Aufgabe des Übersetzers.” (Benjamin 1923: XVI) E, para coroar a parte dogmática da sua teoria, ele prescreve a “literalidade” (“Wörtlichkeit”) na “transposição da sintaxe” como a modalidade de tradução mais apta a servir à “língua pura”, sugerindo e defendendo que justamente “a palavra, e não a frase” constituiria o “elemento originário da tarefa de todo tradutor” (Benjamin 2013: 115).35 35 No original: “Das vermag vor allem Wörtlichkeit in der Übertragung der Syntax und gerade sie erweist das Wort, nicht den Satz als das Urelement des Übersetzers.” (Benjamin 1923: XV) Ou seja, Benjamin parte de um esquema teleológico kantiano, mas - ao invés de limitar sua aplicação a juízos reflexivos - cede à ilusão de aplicá-lo também a juízos determinantes, indo além do que seria permitido pela aplicação dos princípios do criticismo. Nesse sentido, Benjamin “ultrapassa Kant” - cumprindo aquilo que projetara no seu “programa de uma filosofia vindoura” (Steiner 2004Steiner, Uwe. Walter Benjamin. Stuttgart/Weimar: J. B. Metzler, 2004.: 39) -, embora o faça de uma maneira evidentemente dogmática.36 36 Um(a) parecerista anônimo(a) da Pandaemonium Germanicum sugeriu que a ausência de sistematicidade na escrita ensaística de Benjamin - ainda mais em oposição à sistematicidade kantiana - deveria ser levada em conta antes de se propor uma avaliação como essa. Ainda que de fato se possa detectar uma tensão contraditória nas concepções que Benjamin esboça sobre a relação entre a pluralidade das línguas humanas e a unidade da linguagem divina - levando em conta tanto o seu “Sprachaufsatz” quanto a sua “Aufgabe des Übersetzers” -, tal como sugerido por Fenves (2011: 149), parece-nos inegável que Benjamin postula uma dimensão divina da linguagem como a instância de algum modo responsável por fundamentar a traduzibilidade das várias línguas humanas. Nesse sentido, discordamos da ideia de Fenves (2011: 149), segundo a qual, para Benjamin, a tradução não deveria ser entendida primariamente em termos de línguas inferiores conduzindo a superiores. Segundo o nosso entendimento, o arranjo proposto pelo pensador alemão é precisamente este: uma interpretação teológica fundamenta e ilustra a sua compreensão das próprias estruturas e relações entre as línguas humanas (Steiner 2004: 48-50).

Talvez Kant concordasse com a citação feita por Benjamin ao fim do seu texto, e extraído do início do Evangelho de João, segundo a qual: ἐν ἀρχῇ ῆν ὁ λóγος (“no começo era o lógos”), citada também na tradução de Lutero, “im Anfang war das Wort”. Mas o caráter dogmático desenvolvido pelas considerações de Benjamin acerca desse “lógos” (entendido como “Wort”, isto é, “palavra”) e da “literalidade” (“Wörtlichkeit”) que o autor acredita ser razoável exigir de toda tradução (compreendida doravante como intraduzível) parece extrapolar em muito tudo aquilo que certa atenção às premissas do sistema crítico kantiano prescreveria à razão (e à tradução) pela faculdade de conhecimento.37 37 O caráter dogmático dessas considerações é inclusive representado pela forma como Benjamin (retomando Lutero) propõe a tradução do vocábulo grego λóγος (lógos). Uma consulta rápida ao Gottwein: Griechisches Online-Wörterbuch mostra que optar por “Wort” e tirar daí conclusões precipitadas - sem sequer cogitar a possibilidade de traduções alternativas - é extremamente reducionista (até mesmo no interior de um argumento teológico, a partir da tradução de Lutero), pois deixa de lado ideias como as de: Erwägung, Erzählung, Gedanke, Gerücht, Gespräch, Grund, Mitteilung, Nachricht, Rede, Sinn, Unterredung, Verhandlung, Vernunft... Para uma representação dramática da dificuldade de se traduzir λóγος (lógos), nessa passagem do Evangelho de João, para o alemão (segundo um argumento que pode ser estendido a qualquer outra língua), cf. os vv. 1224-1237 da primeira parte do Fausto de Goethe (2004: 131).

Referências bibliográficas

  • Benjamin, Walter. Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik. Herausgegeben von Uwe Steiner. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 2008.
  • ______. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). 2. ed. Org., apres. e notas de Jeanne Marie Gagnebin. Trad. de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2013.
  • ______. Gesammelte Schriften: II · I. Herausgegeben von Rolf Tiedermann und Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991.
  • ______. Oeuvres: Tome I. Traduit de l’allemand par Maurice de Gandillac, Rainer Rochlitz et Pierre Rusch. Présenté par Rainer Rochlitz. Paris: Gallimard, 2000.
  • Comay, Rebecca. Benjamin and the ambiguities of Romanticism. In: Fᴇʀʀɪs, David (org.). The Cambridge Companion to Walter Benjamin. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 134-51.
  • De Man, Paul. “Conclusions” on W. Benjamin’s “The task of the translator”. Yale French Studies, n. 97, 50 Years of Yale French Studies: A Commemorative Anthology. Part 2: 1980-1998, 2000, p. 10-35.
  • Derrida, Jacques. Des tours de Babel. In: Derrida, Jacques. Psyché: Inventions de l’autre. Nouvelle édition augmentée. Paris: Éditions Galilée, 1998, p. 203-236.
  • ______. Torres de Babel. Trad. de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
  • Fenves, Peter. The messianic reduction: Walter Benjamin and the shape of time. Stanford: Stanford University Press, 2011.
  • Gagnebin, Jeanne Marie. Notas sobre as noções de origem e original em Walter Benjamin. Trad. de Ernani P. Chaves. 34 Letras, n. 5/6, 1989, p. 285-296.
  • Goethe, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia - Primeira parte. Trad. De Jenny Klabin Segall. São Paulo: Ed. 34, 2004.
  • Gottwein: Griechisches Online-Wörterbuch. Disponível em: <http://www.gottwein.de/GrWk/Gr00.php> Acesso em 25.03.2018.
    » http://www.gottwein.de/GrWk/Gr00.php
  • Hanssen, Beatrice. Language and mimesis in Walter Benjamin’s work. In: Ferris, David (org.). The Cambridge Companion to Walter Benjamin. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 54-72.
  • Humboldt, Wilhelm von. Humboldt: linguagem, literatura e bildung. Org. por Werner Heidermann e Markus J. Weininger. Florianópolis, UFSC, 2006.
  • Kant, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. de Valério Rohden e António Marques. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
  • ______. Crítica da razão pura. Trad. de Fernando Costa Mattos. 2. ed. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2013.
  • ______. Kritik der reinen Vernunft. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1974.
  • ______. Kritik der Urteilskraft. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1974.
  • Lavelle, Patricia. Religion et histoire: Sur le concept d’expérience chez Walter Benjamin. Revue de l’histoire des religions, n. 1. 2005, p. 89-117.
  • Matos, Olgária. O iluminismo visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant. São Paulo: Brasiliense, 1999.
  • Ribeiro dos Santos, Leonel. A formação do pensamento biológico de Kant. In: Marques, U. R. A. (org.). Kant e a Biologia. São Paulo: Barcarolla, 2012, p. 17-82.
  • ______. Metáforas da razão - economia poética do pensar kantiano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
  • Seligmann-Silva, Márcio. Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: Romantismo e Crítica Poética. São Paulo, Iluminuras, 1999.
  • Steiner, Uwe. Walter Benjamin. Stuttgart/Weimar: J. B. Metzler, 2004.
  • Witte, Bernd. Walter Benjamin: uma biografia. Trad. de Romero Freitas. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
  • Zöller, Günter. Uma Ciência Para Deuses - As Ciências da Vida na Perspectiva de Kant. Trad. de Tristan Torriani. Rev. Leonel Ribeiro dos Santos. In: Marques, U. R. A. (org.). Kant e a Biologia. São Paulo: Barcarolla, 2012, p. 83-108.
  • 2
    Para mais detalhes acerca dessa obra, cf. a nova edição proposta por Uwe Steiner da tese de Benjamin (2008), que reúne documentos fundamentais para que se compreenda essa aparente mudança com relação ao ponto principal dos seus interesses filosóficos. Para uma contextualização do pensamento do autor nesse período, em sua relação com a filosofia de Kant, cf. Steiner (2004: 21-51); Fenves (2011); Witte (2017: 21-34).
  • 3
    Seligmann-Silva (1999: 79), defendendo a tese de que Benjamin permaneceu fiel aos seus primeiros trabalhos sobre a filosofia da linguagem ao longo de toda a sua vida, afirma que a reflexão sobre esse tema percorre praticamente toda a extensão dos escritos benjaminianos.
  • 4
    Maurice de Gandillac, tradutor francês da obra de Benjamin, anota que esse texto, publicado pela primeira vez numa recolta de homenagens a Theodor Adorno (Zeugnisse. Theodor W. Adorno zum 60. Geburtstag. Frankurt am Main: Europäische Verlagsanstalt, 1963), era apresentado por Gershom Scholem como datando do início de 1918. É dito que Scholem, porém, voltaria atrás com relação a essa datação: o texto teria sido escrito até novembro de 1917, e somente o “Apêndice” em março de 1918. Cf. Benjamin (2000: 179).
  • 5
    Benjamin fala de uma “Aufgabe” da filosofia vindoura. O mesmo termo aparece no título de um importante texto onde trata da “Aufgabe” do tradutor. Para a compreensão desse termo, citamos aqui de uma nota editorial de Gagnebin (Benjamin 2013: 101): “O verbo aufgeben, do qual provém o substantivo Aufgabe, significa ‘entregar’, no duplo sentido do termo: ‘dar’ (geben) algo a alguém para que cuide disso (por exemplo, entregar uma carta ao correio), mas também dar algo a alguém, abrindo mão da posse do objeto (por exemplo, entregar uma cidade ao inimigo). A segunda acepção é mais forte no uso intransitivo do verbo: ich gebe auf - ‘renuncio’, ‘desisto’, ‘me entrego’. Essa ambivalência está presente no substantivo Aufgabe, entendido como ‘proposta’, ‘tarefa’, ‘problema a ser resolvido’, mas no qual ressoam também as ideias de ‘renúncia’ e ‘desistência’.”
  • 6
    Tradução nossa. No original: “Es ist die zentrale Aufgabe der kommenden Philosophie die tiefsten Ahnungen die sie aus der Zeit und dem Vorgefühle einer großen Zukunft schöpft durch die Beziehung auf das Kantische System zu Erkenntnis werden zu lassen.” (Benjamin 1991: 157)
  • 7
    Parafraseamos o seguinte trecho do original: “Die große Umbildung und Korrektur die an dem einseitig mathematisch-mechanisch orientierten Erkenntnisbegriff vorzunehmen ist, kann nur durch eine Beziehung der Erkenntnis auf die Sprache wie sie schon zu Kants Lebzeiten Hamann versucht hat gewonnen werden. Über dem Bewußtsein daß die philosophische Erkenntnis eine absolut gewisse und apriorische sei, über dem Bewußtsein dieser der Mathematik ebenbürtigen Seiten der Philosophie ist für Kant die Tatsache daß alle philosophische Erkenntnis ihren einzigen Ausdruck in der Sprache und nicht in Formeln und Zahlen habe völlig zurückgetreten.” (Benjamin 1991: 168). Cf. Steiner (2004: 38-41).
  • 8
    As duas teses encontram-se maravilhosamente reunidas nesta breve frase do mesmo texto: “Sprachlosigkeit: das ist das große Leid der Natur (und um ihrer Erlösung willen ist Leben und Sprache des Menschen in der Natur, nicht allein, wie man vermutet, des Dichters).” (Benjamin 1991: 155)
  • 9
    Parafraseamos o original: “Alle Natur, sofern sie sich mitteilt, teilt sich in der Sprache mit, also letzten Endes im Menschen. Darum ist er der Herr der Natur und kann die Dinge benennen.” (Benjamin 1991: 144).
  • 10
    Para uma compreensão do deslocamento das primeiras concepções de Benjamin sobre a linguagem (em sua relação com questões lógicas e matemáticas), desenvolvidas em suas conversas com Scholem ao longo de 1916, para uma abordagem teológica (de exegese do Gênese), cf. Fenves (2011: 125-151).
  • 11
    Tradução nossa. No original: “Combining his mysticism with a Romantic philosophy of nature, Benjamin’s early 1916 essay thus introduced yet another central motif that would recur in his work as a whole: the language of nature, always at a risk of being silenced, alienated, objectified, and suppressed in and through human language. In the face of so much man-made over-naming, nature relinquished itself to the silence of melancholy.” (Hanssen 2004: 64)
  • 12
    Valemo-nos da tradução de Susanna Kampf Lages. No original: “Die Übersetzung ist die Überführung der einen Sprache in die andere durch ein Kontinuum von Verwandlungen.” (Benjamin 1991: 151)
  • 13
    Aqui vale lembrar a precisão terminológica para a qual atenta Santos (2012: 20-21): “Nem ‘Biologia’, nem ‘pensamento biológico’, nem sequer o adjetivo ‘biológico’ eram termos de uso corrente, no século XVIII. As reflexões e doutrinas a respeito daquilo que hoje se designa por essas expressões eram, na época, englobadas numa disciplina cientificamente frágil, chamada ‘História Natural’ (Histoire naturelle, Naturgeschichte) [...].”.
  • 14
    Tradução nossa. No original: “Thus, while it is not impossible or necessarily ill-advised to do a rhetorical reading of Benjamin’s early writings illustrating how the work of language undoes the text’s overt organic claims, from a historico-philosophical perspective it seems important to acknowledge that the early Benjamin unambiguously embraced an organic, pure language that claimed to be neither metaphorical nor allegorical but if anything was symbolical.” (Hanssen 2004: 62)
  • 15
    Cf. KU, AA V: 378, CFJ 244. Citamos aqui uma nota de Zöller (2012: 102), cujo estudo foi muito profícuo para essas primeiras considerações: “O termo [no texto kantiano “innern Form”], que se encontra mais desenvolvido em Wilhelm von Humboldt, para caracterizar a espiritualidade viva da linguagem (“innere Sprachform”), é em Kant hapax legomenon. Cf. também Wilhelm von Humboldt, ‘Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues’, 463-473.”. Para a tradução de alguns desses escritos, cf. a edição brasileira organizada por Werner Heidermann e Markus J. Weininger da obra de Humboldt (2006).
  • 16
    Para maiores detalhes sobre o termo “Aufgabe”, constante nesse título, cf. a nota 4 do presente artigo.
  • 17
    Esse texto, contudo, foi escrito originalmente em 1921 (Steiner 2004: 49).
  • 18
    Seligmann-Silva (1999: 88), depois de citar justamente o trecho em que Benjamin fala da relação entre as línguas diversas e a “língua pura”, afirma que “dificilmente se poderia expor de modo mais claro as teses de W. Humboldt sobre a diferença entre as línguas, a saber, sobre o jogo de diferenças como essencial à estruturação das línguas”.
  • 19
    Citaremos a tradução de Susana Kampff Lages. No original: “Er darf ein natürlicher genannt werden und zwar genauer ein Zusammenhang des Lebens.” (Benjamin 1923: VIII)
  • 20
    No original: “In völlig unmetaphorischer Sachlichkeit ist der Gedanke vom Leben und Fortleben der Kunstwerke zu erfassen.” (Benjamin 1923: VIII)
  • 21
    No original: “Bilden nämlich diese [Gehalt und Sprach] im ersten [in Original] eine gewisse Einheit wie Frucht und Schale […].” (Benjamin 1923: XII)
  • 22
    Num texto dedicado especificamente à interpretação de “Die Aufgabe des Übersetzers”, o estudioso belga afirma o seguinte: “The text constantly uses images of seed, of ripening, of harmony, it uses the image of seed and rind [l’écorce et le noyau] - which seem to be derived from analogies between nature and language, whereas the constant claim is constantly being made that there are no such analogies.” (De Man 2000: 30)
  • 23
    No original: “Dieses Gesetz, eines der grundlegenden der Sprachphilosophie [...].” (Benjamin 1923: XI)
  • 24
    No original: “Entsprechend bliebe die Übersetzbarkeit sprachlicher Gebilde auch dann zu erwägen, wenn diese für die Menschen unübersetzbar wären.” (Benjamin 1923: VIII)
  • 25
    Na tradução de Junia Barreto. No original: “La traductibilité pure et simple est celle du texte sacré dans lequel le sens et la littéralité ne se discernent plus pour former le corps d’un événement unique, irremplaçable, intransférable, « matériellement la vérité ». Appel à la traduction : la dette, la tâche, l’assignation ne sont jamais plus impérieuses.” (Derrida 1998: 234)
  • 26
    No original: “Ja, während das Dichterwort in der seinigen überdauert, ist auch die größte Übersetzung bestimmt in das Wachstum ihrer Sprache ein -, in der erneuten unterzugehen.” (Benjamin 1923: X)
  • 27
    Tradução nossa. No original: “Ein in der Reflexion auf das sprachliche Wesen der Erkenntnis gewonnener Begriff von ihr wird einen korrespondierenden Erfahrungsbegriff schaffen der auch Gebiete deren wahrhafte systematische Einordnung Kant nicht gelungen ist umfassen wird. Als deren Oberstes ist das Gebiet der Religion zu nennen. Und damit läßt sich die Forderung an die kommende Philosophie endlich in die Worte fassen: Auf Grund des Kantischen Systems einen Erkenntnisbegriff zu schaffen dem der Begriff einer Erfahrung korrespondiert von der die Erkenntnis Lehre ist.” (Benjamin 1991: 168). Para interessantes considerações sobre a importância que o conceito de experiência adquire nas discussões benjaminianas sobre religião e história, cf. Steiner (2004: 40-41); Lavelle (2005).
  • 28
    No original: “Vielmehr beruht alle überhistorische Verwandtschaft der Sprachen darin, daß in ihrer jeder als ganzer jeweils eines und zwar dasselbe gemeint ist, das dennoch keiner einzelnen von ihnen, sondern nur der Allheit ihrer einander ergänzenden Intentionen erreichbar ist: die reine Sprache.” (Benjamin 923: XI)
  • 29
    Segundo Steiner (2004: 49): “In der Aufgabe des Übersetzers geht es allerdings nicht so sehr um Sprache überhaupt, sondern um konkrete Sprachformen im historischen Kontext. Dennoch setzt der Essay die mediale oder: magische Auffassung der Sprache ebenso voraus wie den in dieser Auffassung fundierten universalen Übersetzungsbegriff.”
  • 30
    Conforme Seligmann-Silva (1999: 88): “Já a ‘linguagem pura’, que está na base de todas as línguas e que é visada como a tarefa do tradutor, corresponde àquela ‘linguagem pura do nome’, tal como vimos no Sprachaufsatz.”
  • 31
    Embora Kant rechace de modo geral as tentativas físico-teleológicas de se provar a existência de Deus (veja-se a ironia com que ele interpela o leitor a esse respeito em: KU, AA V: 480, CFJ 364), as palavras que encerram o Apêndice da Segunda Parte apresentam a teologia física podendo “servir ao menos como propedêutica para a verdadeira teologia, na medida em que possibilita, através da consideração dos fins da natureza - dos quais apresenta uma rica matéria - a ideia de um fim terminal que a natureza não pode apresentar [...].” (KU, AA V: 485, CFJ 370)
  • 32
    No original: “So ist die Übersetzung zuletzt zweckmäßig für den Ausdruck des innersten Verhältnisses der Sprachen zueinander.” (Benjamin 1923: IX)
  • 33
    No original: “Sie besteht darin, diejenige Intention auf die Sprache, in die übersetzt wird, zu finden, von der aus in ihr das Echo des Originals erweckt wird.” (Benjamin 1923: XIII)
  • 34
    No original: “Jene reine Sprache, die in fremde gebannt ist, in der eigenen zu erlösen, die im Werk gefangene in der Umdichtung zu befreien, ist die Aufgabe des Übersetzers.” (Benjamin 1923: XVI)
  • 35
    No original: “Das vermag vor allem Wörtlichkeit in der Übertragung der Syntax und gerade sie erweist das Wort, nicht den Satz als das Urelement des Übersetzers.” (Benjamin 1923: XV)
  • 36
    Um(a) parecerista anônimo(a) da Pandaemonium Germanicum sugeriu que a ausência de sistematicidade na escrita ensaística de Benjamin - ainda mais em oposição à sistematicidade kantiana - deveria ser levada em conta antes de se propor uma avaliação como essa. Ainda que de fato se possa detectar uma tensão contraditória nas concepções que Benjamin esboça sobre a relação entre a pluralidade das línguas humanas e a unidade da linguagem divina - levando em conta tanto o seu “Sprachaufsatz” quanto a sua “Aufgabe des Übersetzers” -, tal como sugerido por Fenves (2011: 149), parece-nos inegável que Benjamin postula uma dimensão divina da linguagem como a instância de algum modo responsável por fundamentar a traduzibilidade das várias línguas humanas. Nesse sentido, discordamos da ideia de Fenves (2011: 149), segundo a qual, para Benjamin, a tradução não deveria ser entendida primariamente em termos de línguas inferiores conduzindo a superiores. Segundo o nosso entendimento, o arranjo proposto pelo pensador alemão é precisamente este: uma interpretação teológica fundamenta e ilustra a sua compreensão das próprias estruturas e relações entre as línguas humanas (Steiner 2004: 48-50).
  • 37
    O caráter dogmático dessas considerações é inclusive representado pela forma como Benjamin (retomando Lutero) propõe a tradução do vocábulo grego λóγος (lógos). Uma consulta rápida ao Gottwein: Griechisches Online-Wörterbuch mostra que optar por “Wort” e tirar daí conclusões precipitadas - sem sequer cogitar a possibilidade de traduções alternativas - é extremamente reducionista (até mesmo no interior de um argumento teológico, a partir da tradução de Lutero), pois deixa de lado ideias como as de: Erwägung, Erzählung, Gedanke, Gerücht, Gespräch, Grund, Mitteilung, Nachricht, Rede, Sinn, Unterredung, Verhandlung, Vernunft... Para uma representação dramática da dificuldade de se traduzir λóγος (lógos), nessa passagem do Evangelho de João, para o alemão (segundo um argumento que pode ser estendido a qualquer outra língua), cf. os vv. 1224-1237 da primeira parte do Fausto de Goethe (2004: 131).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2018
  • Aceito
    12 Jun 2018
Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/; Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, 05508-900 São Paulo/SP/ Brasil, Tel.: (55 11)3091-5028 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: pandaemonium@usp.br