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“Em caso de dúvida, sempre cômico!”: o teatro de Elfriede Jelinek

“If in doubt, always comical”: the theatre of Elfriede Jelinek

Resumo

A dimensão cômica é um aspecto negligenciado na recepção brasileira da obra de Elfriede Jelinek, embora venha ganhando cada vez mais destaque em trabalhos acadêmicos internacionais. O propósito deste trabalho é argumentar que o potencial cômico não é um fator secundário na obra da escritora austríaca, mas essencial no âmbito de seu projeto político-esclarecedor. Nesse sentido, este artigo apresenta possíveis aproximações a diversas categorias do cômico que podem ser identificadas em textos teatrais de Jelinek. A argumentação baseia-se em quatro peças teatrais, todas tematizando o papel da mulher numa sociedade patriarcal e capitalista.

Palavras-chave:
Elfriede Jelinek; teatro; cômico

Abstract

The comical dimension is a neglected aspect of the Brazilian reception of Elfriede Jelinek’s work, despite receiving more and more prominence in international academic works. The purpose of this paper is to argue that the comical potential is not a secondary factor in the work of the Austrian writer, but essential in the context of her political-enlightening project. In this sense, this paper presents some possible approaches to several categories of the comical that can be identified in Jelinek’s theatre texts. The arguments are based on examples of four pieces written by Jelinek, all thematizing the role of women in a patriarchal and capitalist society.

Keywords:
Elfriede Jelinek; theatre; the comical

Quanto mais sério o assunto,

mais cômico precisamos ser.

Elfriede Jelinek

O trágico é o verdadeiro tema de uma comédia.

Ela existe porque trata de algo substancial com humor,

tornando-o suportável. A comédia difere da tragédia

apenas na sua postura narrativa.

David Schalko, autor e dramaturgo

1 Introdução1 1 Este artigo é resultado de uma pesquisa de pós-doutorado realizada na Universidade de Viena e na Universidade de Graz, Áustria (de fevereiro de 2019 até março de 2020), com apoio do Serviço Austríaco de Intercâmbio (ÖAD).

À primeira vista, a obra de Elfriede Jelinek não parece ser apropriada para se pensar sobre o cômico. Seu trabalho (sobretudo romances, ensaios e textos para o teatro2 2 Não usamos, neste artigo, o termo “drama” para nos referir aos textos teatrais de Jelinek, pois muitos deles não têm seguido o modelo daquilo que, tradicionalmente, se entende por “drama” como, por exemplo, o formato de falas dialógicas, atos, cenas etc. ) é conhecido como provocador, chocante, pessimista, exagerado e pornográfico. Uma pequena seleção de comentários feitos por parte da recepção jornalística e crítica brasileira pode ilustrar isso: sobre o romance Desejo (Jelinek 2013b) lemos no jornal O Estado de S. Paulo: “Nós nos deparamos com o mal. O ser humano, homem ou mulher, irrompe carregado tanto daquele vazio inexorável […] quanto de uma qualidade metastática, que a tudo transforma em terra arrasada, os outros e a si próprio” (Leones 2013: s. p.). O livro seria capaz de tirar o leitor de sua “zona de conforto”, “causando repulsa, não excitação” (Leones 2013: s. p.). Outra resenha ressalta a linguagem densa, pois o romance seria “estranho, difícil de compreender” (Gallo 2018Gallo, Rafael. “Desejo”, um belo e estranho romance. São Paulo Review, São Paulo, 16 jun. 2018. Disponível em: http://saopauloreview.com.br/desejo-um-belo-e-estranho-romance/. Acesso em: 2 abr. 2019.
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: s. p.). De acordo com o tradutor do romance A pianista (Jelinek 2011), Luis Krausz, esse texto de Jelinek versa sobre a “arte da infelicidade” tratando de questões como “inconsciência, submissão absoluta a forças incompreensíveis, tirania e ascetismo” (Krausz 2011: 87).

Comentários dessa natureza são condizentes com o teor de muitos estudos sobre Jelinek, inclusive em nível internacional3 3 Cf., por exemplo, os artigos reunidos em Elfriede Jelinek: Die internationale Rezeption (Bartens e Pechmann 1997). . Porém, chama a atenção a crescente quantidade de estudos que focam a dimensão cômica da obra jelinekiana, inclusive um abrangente projeto de pesquisa (2017-2019) interdisciplinar e interinstitucional, intitulado “O cômico e a subversão na obra de Jelinek”, realizado pela Plataforma de pesquisa Elfriede Jelinek [Forschungsplattform Elfriede Jelinek], um renomado centro de pesquisa da Universidade de Viena4 4 Cf. Forschungsplattform (2017-2019). Nesse site, encontra-se um grande número de artigos, entrevistas, transcrições de conversas etc. sobre o papel do cômico na obra de Jelinek. Antes do cômico, outros temas tratados em projetos de pesquisa da Plataforma Jelinek foram: pós-dramaticidade; capital - poder - gênero; a escrita como forma de resistência; alteridade; e xenofobia. . Devido ao pessimismo mostrado por Jelinek em relação ao mundo e à humanidade e a temáticas tradicionalmente não associadas à comicidade (como o capitalismo, o nazismo, o papel da mulher numa sociedade capitalista etc.), o cômico na obra dessa autora parece ser uma faceta negligenciada ou até negada por parte dos leitores e críticos, ao mesmo tempo que destacada por outra parte. Podemos observar algo semelhante no caso de seu conterrâneo Thomas Bernhard (1931-1989), cujos livros foram inicialmente associados apenas com o negativo, o obscuro, a infelicidade, a loucura e outros termos-chaves trágicos. Porém, ao longo dos anos, a crítica passou a acatar posturas de leitura mais abertas ao potencial cômico desse autor. Assim, no livro Komik: ein interdisziplinäres Handbuch [O cômico: um manual interdisciplinar] (Wirth 2017), Bernhard tem quatro entradas e sua obra é tratada, ao lado de Franz Kafka e Arno Schmidt, num subcapítulo intitulado “Cripto-cômicos: Kafka, Bernhard, Schmidt” (Wirth 2017: 278-280). Nesse mesmo livro de referência sobre o cômico, o nome de Jelinek não consta nenhuma vez. No entanto, vários dos colaboradores desse manual são participantes do projeto citado acima, “O cômico e a subversão”, da Plataforma de pesquisa Elfriede Jelinek.

Há pouquíssimas traduções da obra de Jelinek disponíveis no Brasil5 5 Apenas dois romances foram publicados no Brasil até hoje, ambos com bastante atraso em relação ao lançamento em língua alemã: A pianista [Die Klavierspielerin], de 1983, e Desejo [Lust], de 1989, publicados em traduções brasileiras em 2011 e 2013, respectivamente. . Embora já tenham sido realizadas algumas montagens cênicas, não há traduções de textos teatrais da autora publicadas em nosso país. Um recente artigo de Artur Kon - uma “Introdução à dramaturgia de Jelinek e particularmente ao seu peculiar feminismo” (Kon 2018: 30) - é sinal, porém, de uma crescente recepção acadêmica e crítica da obra (cf. também Krausz 2011). Em seu texto, Kon faz uma única menção, de passagem, ao potencial cômico da produção teatral da autora austríaca, numa referência a uma cena da peça Krankheit oder Moderne Frauen [Doença ou mulheres modernas], que seria, “ao mesmo tempo horrível e cômica” (Kon 2018: 31). Numa montagem de 2015, a Companhia de Teatro Acidental (São Paulo), da qual Artur Kon é integrante, encenou a Ein Sportstück (Peça esporte), em cuja apresentação on-line encontra-se outra das poucas menções ao cômico, numa citação do diretor Clayton Mariano. Este afirma que a peça “procura pôr em cena os discursos escritos por Jelinek de forma crua, por vezes violenta, […] mas sem abdicar do humor - frequentemente corrosivo - da austríaca”6 6 Cf.: Peça Esporte… (2015). . Outra peça já montada, pela Ciadasatrizes (São Paulo), em 2016, é Dramas de princesas [Prinzessinnendramen]. Na apresentação on-line encontramos o comentário de que a obra de Jelinek “ultrapassa os limites previamente estabelecidos por um ‘senso comum feminista’” e é marcada por um “sarcasmo talvez desagradável ao colocar na boca de personagens femininas alguns dos discursos mais misóginos de suas peças”7 7 Cf.: Dramas de Princesas (2016). . Resumindo, o potencial cômico da obra de Jelinek não passou totalmente despercebido na recepção brasileira; porém, o assunto ainda não foi tema de um estudo mais detalhado.

A própria autora tem ressaltado repetidamente que entende o cômico como uma faceta fulcral de sua obra. Sem atribuir à autora um poder soberano de interpretação, vale mencionar que Jelinek costuma destacar com veemência esse aspecto, sem deixar de reconhecer que o cômico nem sempre é entendido pelos leitores e pela crítica. Por exemplo, numa entrevista concedida ao jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, a escritora declara: “Muitos alemães não entendem minhas brincadeiras, eles não acham isso cômico” (Jelinek 2004). Gitta Honegger, tradutora da obra de Jelinek para o inglês americano, faz um relato de uma conversa com a escritora. A questão apresentada por Honegger foi: como, numa tradução, resolver a “ambiguidade” em relação ao limite do que seja cômico; e, citando Thomas Bernhard, perguntou: “É uma comédia? É uma tragédia?”. Jelinek respondeu: “Em caso de dúvida, sempre cômico” (Honegger 2017: 42). Numa entrevista concedida exclusivamente ao Estado de S. Paulo, em 2013, Jelinek classifica como “maravilhoso” o filme A professora de piano, que Michael Haneke produziu a partir do romance A pianista - e que certamente contribuiu fortemente para a imagem que se criou em solo brasileiro acerca da autora e sua obra. Jelinek afirma também que ela mesma “certamente” é “mais irônica do que Haneke, que é muito sério e diz que a comédia nunca foi o forte dele. Eu ironizo tudo, obsessivamente, inclusive em minha vida pessoal” (Kodic 2013: s. p.). Jelinek entende que sua literatura está enraizada na tradição do Grupo de Viena, de Ludwig Wittgenstein, Karl Kraus e Johann Nestroy - todos eles expoentes de uma “literatura muito focada na forma, que trabalha menos com conteúdo do que com a tonalidade, com o som da língua” -, no “transbordamento barroco da língua” e no “afiado humor judaico” (Jelinek 2004), uma forma “mais afiada, mais amarga, mais negra, mais desesperada e mais deslumbrante que qualquer outra forma de comicidade” (cf. Hass e Meister 2018Hass, Ulrike; Meister, Monika. ‘Wie ist es möglich, Theater ausschließlich mit Texten aufzustören?’ E-Mail-Wechsel zwischen Ulrike Haß und Monika Meister. Forschungsplattform Elfriede Jelinek, Wien, 2018. Disponível em: https://fpjelinek.univie.ac.at/fileadmin/user_upload/proj_ejfz/PDF-Downloads/Meister_-_Hass.pdf. Acesso em: 19 abr. 2019.
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: 2-3).

No teatro, onde a recepção ocorre num espaço público, onde o riso é contagiante e mais facilmente desatável que na leitura solitária, o cômico ocupa um papel especial. A seguir, debruçamo-nos sobre o potencial cômico de quatro textos que Jelinek escreveu para o teatro, todos eles tematizando o papel da mulher numa sociedade patriarcal e machista - um tema caro à autora e que é atual e relevante no Brasil. Procuramos dialogar com diversos estudos já publicados em relação ao tema, todos analisando aspectos da dimensão crítica - e até subversiva - das diversas estratégias de comicidade usada pela autora. Ilustramos nossa argumentação com trechos de quatro peças da autora - em cuja tradução procuramos manter, sobretudo, o potencial cômico, mesmo quando isso implica, em alguns casos, abrir mão de uma correspondência semântica mais estrita8 8 Todas as traduções de citações das peças de Jelinek são de nossa autoria; no caso das passagens de Schatten (Eurydike sagt), a tradução foi feita em colaboração com Cristiane Gonçalves Bachmann. . Como as peças talvez não sejam ainda conhecidas pelos leitores, apresentamos também um resumo dos seus enredos e algumas informações básicas entendidas como as mais relevantes em relação a elas.

Deve-se mencionar ainda que, neste trabalho, o termo “cômico” é usado para se referir a uma “característica atribuída a objetos (enunciado, pessoa, situação, artefato etc.)”, de possível efeito divertido (Wirth 2017: 2), e que pode se manifestar de diversas formas (ironia, chiste, sátira, paródia, sarcasmo, trocadilho etc.). Já o humor - que não é tema deste artigo - é “uma característica de pessoas e consiste na receptividade em relação ao cômico” (Wirth 2017: 7). Este artigo não pretende realizar um aprofundamento em teorias sobre o cômico, nem partir de uma teoria específica para a aproximação a ser feita dos textos selecionados. Optamos por partir dos textos jelinekianos e procurar respaldo e embasamento em diversas teorias do cômico e em estudos já empreendidos sobre a obra de Jelinek para corroborar nossa discussão. Tomando a obra de Jelinek em sua totalidade, as teorias do contraste e da incongruência possuem certa relevância para uma análise do cômico em seus textos. Essas abordagens entendem aquilo que faz rir como uma consequência de antagonismos, oposições, divergências, dicotomias e conflitos e se baseiam na revelação de desproporções - por exemplo, entre o alto e o baixo, o sublime e o banal, o corpo e a alma. Nas palavras de Beatrix Müller-Kampel, tais contrastes representam um “ponto fulcral do cômico” (Müller-Kampel 2012: 15)9 9 Sobre a teoria da incongruência, cf. também o capítulo “Quando se ri de coisas absurdas ou a teoria da incongruência” (Geier 2011: 157-177). .

Sem dúvida, as obras referenciais de Wolfgang Kayser (1961) e Mikhail Bakhtin (2010Bakhtin, Mikhail M. Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.) foram importantes fontes de inspiração. Ambas focam a questão do grotesco, embora partindo de pontos de vista divergentes. Enquanto Kayser dá destaque aos aspectos terrificantes do grotesco, Bakhtin acentua seu lado libertador - e é justamente essa ambiguidade (que não pretendemos resolver nem dissolver aqui) que parece frutífera para uma discussão da obra da escritora austríaca.

Certamente O riso, de Henri Bergson (2011Bergson, Henri. Das Lachen. Tradução de Roswitha Plancherel-Walter. Hamburg: Felix Meiner, 2011.), é outra obra importante no âmbito deste artigo, mesmo considerando que a sua discussão acerca da função social do riso - que presume a tentativa de exclusão ou correção daquele que é alvo do riso (Bergson 2011: 16-17) - nos pareça insuficiente para fazer jus à complexidade do cômico na obra de Jelinek. Ainda assim, as reflexões de Bergson sobre a “anestesia do coração”, capaz de transformar qualquer tragédia em comédia, sobre o automatismo e o corpo mecanizado e seus efeitos cômicos (2011: 18) e sobre a comicidade criada através da palavra foram substanciais para a argumentação aqui exposta. Esses conceitos são úteis tanto para entender a ambiguidade do cômico presente nos textos de Jelinek, quanto para refletir sobre o efeito das figuras no palco que se assemelham a marionetes (de comportamento mecanizado e/ou insensíveis aos acontecimentos ao seu redor) e sobre o que a autora provoca nos momentos em que brinca com a língua, quando “é a própria língua que se torna cômica” (Bergson 2011: 77). Bergson ainda estabelece uma relação entre os dois conceitos: o de automatismo e de comicidade das palavras, e chega a conclusões valiosas para nossa discussão - por exemplo, quando aponta que o ato de “vestir uma ideia absurda com uma expressão idiomática” já naturalizada (2011: 82) é motivo para o riso, assim como a procura por direcionar a atenção do ouvinte para o “lado material de uma metáfora” (2011: 84). Nos dois casos, trata-se de estratégias usadas por Jelinek, como veremos a seguir.

Outro teórico que não deve ser ignorado aqui é Sigmund Freud. Além de desenvolver, assim como Bergson, uma análise aprofundada das estratégias para criar um efeito cômico através da palavra, Freud debruçou-se sobre as motivações psíquicas daquele que enuncia palavras “chistosas” (Freud 2017). Para entender a função que o cômico cumpre nos textos de Jelinek, é essencial levar em consideração esse olhar freudiano, como tento ilustrar com alguns exemplos apresentados ao longo deste trabalho. Sempre que necessário, vamos voltar a nos referir a esses teóricos do cômico.

Dedicamos ainda algumas palavras à poética teatral de Jelinek. Ela nunca se propôs a escrever teatro nos moldes naturalista ou psicológico, conforme suas próprias palavras: “eu não procuro colocar no palco pessoas que agem psicologicamente” (Jelinek 1984: 14). Como ressalta Beate Hochholdinger-Reiterer, tal viés já a “predestina a ser uma ‘autora de comédias’”, já que nenhuma forma teatral cômica se baseia na psicologia (Hochholdinger-Reiterer 2019: 3), aspecto ressaltado também por Bergson (2011Bergson, Henri. Das Lachen. Tradução de Roswitha Plancherel-Walter. Hamburg: Felix Meiner, 2011.). As figuras jelinekianas parecem ser máquinas, até seres mortos-vivos, que pronunciam excertos de discursos alheios. O teatro de Jelinek mostra grande influência de Brecht (sobretudo em Nora, uma das peças aqui apresentadas), sua dramaturgia é didática, narrativa, antimimética. A famosa frase de Jelinek “Não quero teatro” refere-se à sua procura pela desconstrução da “falsa unidade” da “vida” (Jelinek 1983), típica do teatro burguês e corroborada pela coerência entre personagem, identidade e voz. A dramaturga - no intuito de não imitar a vida no teatro - não atribui a seus personagens uma linguagem que possa ser considerada “natural”, realista, mas uma que é artificial e composta por parcelas de discursos, vozes e citações já em circulação, formando novas combinações e novas significações, numa estreita rede de intertextualidades. Jelinek denomina sua “técnica literária” de “montagem”, com a qual consegue criar “diversas camadas linguísticas”, colocando “na boca das figuras afirmações que já existem” (Jelinek 1984: 14).

Nesse sentido, entendemos que seria um enorme empobrecimento reduzir a obra de Jelinek ao conteúdo narrativo de seus enredos, como tantas vezes acontece na crítica jornalística. Aliás, a distinção de sua linguagem foi exatamente a justificativa oficial apresentada pela Academia Sueca de Literatura na sua premiação com o prêmio Nobel em 2004. Consta na comunicação oficial que a autora foi escolhida pelo “fluxo musical de vozes e contravozes em romances e peças que, com extraordinário zelo linguístico, revelam o absurdo dos clichês sociais e seu poder subjugador”10 10 Cf., por exemplo, Austríaca… (2004). . A própria Jelinek resume: “Aquilo que eu escrevo não é uma língua comum, é uma língua artificial, inclusive na técnica de montagem que uso de vez em quando. É, na verdade, uma composição linguística” (Jelinek 2004).

As peças de Jelinek têm grande presença nos palcos de língua alemã e têm sido encenadas por alguns dos diretores mais bem-conceituados atualmente, como Frank Castorf, Christoph Schlingensief, George Tabori, Nicolas Stemann e Einar Schleef. Em relação às encenações, Jelinek tem se posicionado contrária a tratamentos “respeitosos” de seus textos por parte dos diretores teatrais. À pergunta de como deseja ver seus textos tratados na passagem para o palco, Jelinek respondeu: “Qualquer tipo de tratamento está bom para mim. Quanto mais imoderado, melhor. Não quero respeito pelas minhas peças! O diretor, a diretora são coautores” (Jelinek 2009: s. p.). Jelinek tem julgado de modo positivo, inclusive, a apresentação de bonecas gigantes, evidentemente representando a própria autora (com seu penteado típico de tranças loiras e com traços faciais que explicitamente remetem a ela), mesmo quando elas são exageradamente sexualizadas e/ou caricatas.

Vale lembrar ainda que obviamente a dimensão cômica de uma montagem teatral está ligada muito mais às decisões do diretor, dos atores, das atrizes do que ao texto-base. Qualquer texto pode ser encenado de modo cômico ou não. Aqui, nos debruçamos apenas sobre os textos e seu potencial cômico, convidando para uma leitura que reforce essa faceta e procurando mostrar que a comicidade que se observa nas encenações teatrais das peças jelinekianas não é apenas resultado de ideias criativas de diretores, mas já está presente, de diversas formas, nos textos (cf. Hochholdinger-Reiterer 2019Hochholdinger-Reiterer, Beate. ‘Ich kann leider an keinem Kalauer vorbeigehen’: Der komische Leib der Sprache in Elfriede Jelineks Theatertexten. Forschungsplattform Elfriede Jelinek, Wien, 2019. Disponível em: https://fpjelinek.univie.ac.at/fileadmin/user_upload/proj_ejfz/PDF-Downloads/Komik-_Hochholdinger-Reiterer-Beitrag.pdf. Acesso em: 19 abr. 2019.
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).

2 As peças

A seguir, apresentaremos resumos e informações relevantes acerca das quatro peças de Elfriede Jelinek nas quais concentramos a análise subsequente. Trata-se das seguintes obras: Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften [O que aconteceu após Nora deixar seu marido ou Os pilares das sociedades] (2015) (publicado originalmente em 1979); Krankheit oder Moderne Frauen [Doença ou mulheres modernas] (2015) (publicado originalmente em 1984); Raststätte oder Sie machens alle [Parada rodoviária ou Assim fazem todos] (2002) (publicado originalmente em 1994) e Schatten (Eurydike sagt) [Sombra (Eurídice diz)] (2013a).

Visto que essas peças ainda não ganharam nenhuma tradução brasileira, entendemos que seja legítima uma apresentação mais ampla de seu conteúdo e de suas características formais, para que leitores que não dominam a língua alemã e que, portanto, não poderiam ler ou consultar os textos no original possam acompanhar a discussão de forma satisfatória. Para a seleção dessas peças levamos em consideração, em primeiro lugar, seu potencial de estabelecer relações intertextuais com discursos atuais do contexto brasileiro. Desse modo, optamos por não incluir na seleção nenhum texto que trate de algum assunto restrito ao contexto austríaco ou de língua alemã (como, por exemplo, Burgtheater, Schnee Weiss ou Ulrike Maria Stuart)11 11 Estes textos podem ser acessados na sua íntegra na homepage de Elfriede Jelinek https://www.elfriedejelinek.com/. ou ao contexto político internacional (como Bambiland ou Am Königsweg). Os textos selecionados tratam, embora de maneiras diferentes, de um tema familiar, atual e polêmico na atualidade do Brasil: a posição (ou as possíveis posições) da mulher num âmbito patriarcal e machista. Entendemos que essa relação com discursos existentes pode ser favorável para uma recepção mais ampla das peças no Brasil, para a qual este artigo quer contribuir. Além da questão temática, consideramos também o potencial cômico das peças. Como nosso objetivo é apresentar diversas formas e funções do cômico na obra teatral da dramaturga austríaca, escolhemos textos que, por um lado, oferecem exemplos ilustrativos para corroborar nossa argumentação e, por outro, apresentam uma certa diversidade para ilustrar que Jelinek domina e aplica diversas estratégias de (possível) efeito cômico. Sob o aspecto cronológico, as peças representam exemplos de diversas fases produtivas da autora, ilustrando assim propostas estéticas diversas, como será evidenciado nos resumos a seguir. Desse modo, entendemos que a seleção realizada permite ao leitor um contato com algumas obras representativas da produção teatral de Jelinek.

Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften (Jelinek 2015) foi a primeira peça teatral escrita por Jelinek. Tem três atos, dezoito cenas e segue um formato dramático bastante tradicional, com diálogos, cenas e enredo. Trata-se de um “drama secundário” [Sekundärdrama], termo criado pela autora para se referir a textos que fazem referência explícita a outras obras literárias. Neste caso, como já indica o título, as referências principais são duas peças de Henrik Ibsen (Casa de bonecas e Os pilares da sociedade). Entretanto, muito diferente da obra do norueguês, o teatro de Jelinek não se pretende naturalista. O personagem central e a temática (o papel da mulher e as relações entre homem e mulher num contexto patriarcal e capitalista) fazem referência direta ao modelo ibseniano. Na peça de Ibsen, Nora se rebela contra as regras da sociedade repressiva do século XIX e abandona esposo e filhos. O final aberto deixa espaço para especulações sobre o possível destino de Nora após deixar seu lar - um escândalo para a Europa da época. O enredo da peça jelinekiana é ambientado no final dos anos de 1920, mas, já na rubrica inicial, lê-se a sugestão de realizar “saltos temporais” nas apresentações cênicas (Jelinek 2015: 8) - essa indicação levou alguns diretores a colocar, nos três atos, diferentes “Noras” no palco (atrizes diferentes que representam o personagem central em momentos históricos diversos), contribuindo assim para o caráter “anti-ilusório” e didático da peça.

A peça inicia com Nora, que acabou de abandonar seu marido Helmer, à procura de um emprego. Ela torna-se trabalhadora na indústria têxtil, porém não é aceita pelas colegas, sobretudo devido a seu comportamento burguês e suas ideias feministas que, ao longo da peça, vão se revelando vazias e lugares-comuns. A protagonista consegue conquistar um rico empresário, mas é usada por ele para extorquir seu próprio ex-marido. Apesar de os personagens falarem sobre o amor lançando mão de frases prontas tradicionais e românticas, fica evidente que são os interesses (ou, no caso das mulheres, necessidades) econômicos que ditam as regras e as preferências amorosas. No final, Nora volta ao seu lar, seu marido, seus filhos e sua posição de esposa subalterna12 12 Em 2013, Jelinek escreveu um “epílogo” para Nora, um “drama terciário”, intitulado Nach Nora (Após Nora), que aborda a exploração das mulheres na indústria têxtil em países menos desenvolvidos e num contexto econômico marcado pelo neoliberalismo. Às vezes apresentadas juntas, as três peças sobre o personagem Nora (a de Ibsen e as duas de Jelinek) têm recebido o nome de Nora³. .

Krankheit oder Moderne Frauen (Jelinek 2015) liga, desde o título, de modo irônico, “doença” com “mulheres” e é a primeira peça de Jelinek com personagens vampiros - a partir daí, outros “mortos-vivos” [Untote] vão surgindo em sua obra, inclusive no opus magnum, o romance Die Kinder der Toten [Os filhos dos mortos]13 13 Transformado em filme em 2018, por Kelly Copper e Pavol Liška do Nature Theater of Oklahoma (encontrado, por exemplo, em: http://www.austrianfilms.com/film/die_kinder_der_toten.) . Um detalhe biográfico curioso nesse contexto é o fato de que, em diversas ocasiões, Jelinek tem se autodefinido como uma “morta-viva”, vivendo reclusa, incapaz de levar uma vida “normal” e interagir com o mundo dentro do que é socialmente esperado. Krankheit revela na própria lista dos personagens seu viés antirrealista e irônico: temos Emily (“enfermeira e vampiro”), Carmilla (“dona de casa, mãe e vampiro, austríaca”), o doutor Heidkliff (“odonto-ginecologista”), o senhor Hundekoffer (literalmente “mala de cachorro”, um “contador e marido de Carmilla”), um santo, uma mártir, cinco pessoas andando de patins (que representam os filhos de Carmilla e seu marido), uma boneca falante, dois cães de caça “bem-educados”, algumas mulheres muito bem-vestidas, uma criatura dupla (“Emily e Carmilla, costuradas uma à outra para formar uma figura só”). Emily, vampira e lésbica assumida, é noiva do doutor Heidkliff, mas decide abandoná-lo após conhecer Carmilla, que veio ao consultório para dar à luz ao seu sexto filho. Até então, Carmilla era dona de casa e mãe, recatada e bonita. Ela morre durante o trabalho de parto, mas é revivida por Emily e se torna também vampira. Já os homens, incapazes de desenvolver qualquer tipo de diálogo verdadeiro, repetitivos e presos nos seus jargões machistas e egocêntricos, muitas vezes aludindo a termos da teoria psicanalítica de Freud, demoram para entender a situação. No final, convencidos de que, como bons “pagadores de impostos” não “pagam para ver algo assim”, matam a criatura dupla que representa a união de suas (ex-)companheiras. Conforme aponta Ute Nyssen (2015), no posfácio de uma coletânea de diversas peças de Jelinek, Krankheit deu início a uma tradição de uso de um “‘vocabulário de guerra’ por parte de muitos críticos masculinos”, tendendo em direção ao conceito de “anomalia” (Nyssen 2015: 281) - tradição crítica que tem perseguido a autora até hoje.

Ao lado de Totenauberg e Wolken.Heim, Raststätte (2002) faz parte de uma trilogia cujo tema central é o mito da natureza e daquilo que é considerado “natural”. O subtítulo dado por Jelinek a seu texto, Sie machens alle, remete à ópera Cosí fan tutte (Assim fazem todas) de W.A. Mozart e L. da Ponte (1790). O sentido do termo escolhido pela autora - alle (todos) - inclui também os homens, o que não acontece no título da ópera, que se refere apenas às mulheres. O enredo: um grupo de quatro pessoas, dois casais, fazem uma parada num restaurante na beira de uma rodovia. Através de um anúncio publicado num jornal, as mulheres marcaram um encontro sexual secreto com dois homens, que deveriam aparecer em breve, fantasiados de animais. Graças a um conselho do garçom, são os próprios maridos que decidem vestir as fantasias de urso e de alce e que vão ao encontro de suas esposas no banheiro do estabelecimento. Acontece uma orgia sexual, marcada por passagens com alto grau de violência verbal direcionada contra os “animais”, a que se segue uma sessão de vídeo num carro, em que os quatro assistem às cenas pornográficas que acabaram de viver. Somente nesse momento as esposas percebem que foi com os próprios esposos que elas tiverem relações sexuais. No final, quem sai das fantasias de animais são dois estudantes japoneses de filosofia que passam a ler em voz alta um texto de seus “Electronic books”, fazendo referência ao pensamento de Martin Heidegger e tematizando as relações tensas entre natureza e tecnologia. Assim como em Krankheit, nessa peça são também as mulheres que assumem o papel de protagonistas ativas na aproximação sexual. Porém, como no texto da peça Nora, elas não se libertam (e nem tentam se libertar) da dominação dos discursos masculino-patriarcais, subordinando-se a eles (cf. Klein 2013: 153).

Schatten (Eurydike sagt) (2013a), diferentemente das outras peças aqui em foco, não contém nenhum tipo de diálogo. É uma das muitas peças de Jelinek escritas em forma de “superfícies textuais” [Textflächen] - cf. o ensaio homônimo de Jelinek (2013)14 14 Cf.: Jelinek (2013c). - ou “superfícies de linguagem” [Sprachflächen]. Trata-se de termos usados para denominar peças escritas sem distribuição de papéis, são “paisagens” linguísticas de parágrafos compridos e aparentemente sem estruturação. Nada que lembre um drama tradicional. No caso de Schatten, é um texto longo, um aparente monólogo do personagem Eurídice, que se compõe de extratos discursivos das mais diversas fontes (Metamorfoses, de Ovídio; a obra de Freud; A história maravilhosa, de Adelbert de Chamisso; a cultura pop da atualidade etc.). Em algumas encenações, os diretores decidiram “dividir” o personagem e levaram ao palco uma série de “Eurídices”, cada uma representando uma faceta da Eurídice jelinekiana. Schatten dialoga com o mito grego de Orfeu e Eurídice, em que o poeta e músico, inconformado com a morte de sua amada, que foi mordida por uma serpente, desce ao Hades e recebe a permissão de levar Eurídice de volta ao reino dos vivos - com a condição de não olhar para ela até chegar lá. No final da caminhada, Orfeu não resiste, olha para trás e perde Eurídice, agora de forma definitiva. Diferentemente de diversas outras reescrituras já realizadas, Jelinek passa a palavra a Eurídice, deixando-a contar a sua versão da história, ambientando o momento da narração nos tempos atuais. Orfeu é um cantor de música pop bem-sucedido, que vive fugindo das massas histéricas de fãs femininas (quase crianças ainda) e que precisa de Eurídice para satisfazer a própria autoimagem, para se espelhar nela, comprovando a própria genialidade. No intuito de cumprir o papel da mulher-companheira de um pop star, Eurídice teve de deixar de lado sua vocação de escritora.

Schatten (Eurydike sagt) está ambientado nos tempos atuais, mas a incapacidade do personagem feminino de se livrar do poder masculino e patriarcal (sempre vinculado ao poder econômico) não é diferente daquela que vemos em Nora. No final da peça, como prevê o script, Orfeu perde Eurídice e volta sozinho para o mundo dos vivos. Entretanto, o motivo do fracasso de sua empreitada não é a força do amor romântico, mas a impaciência para tornar pública a sua experiência de salvador corajoso: Orfeu não quer apenas conferir se a amada o segue, mas tira o seu celular para fazer uma selfie, com Eurídice no fundo da foto, registrando o seu ato heroico de retirá-la do reino dos mortos. Outro diferencial da versão jelinekiana é que Eurídice não quer voltar com Orfeu ao mundo dos vivos (onde não consegue se livrar do papel submisso tradicionalmente destinado às mulheres), mas está feliz com a ideia de continuar no mundo dos “mortos-vivos”, invisível, sozinha, mas livre. O texto encerra com as palavras: “[…] não estou mais aí, eu sou”15 15 “[…] ich bin nicht mehr da, ich bin.” .

3 O cômico: formas e funções

De um modo geral, a comicidade que pode ser percebida na obra de Jelinek visa a diversos objetos, conforme já destacaram Wolfson e Ellrich (2019). Pode estar dirigida a determinadas pessoas (como Heidegger e Donald Trump) ou a figuras mitológicas (Orfeu e Eurídice, numa das peças aqui discutidas), ou a determinados grupos de pessoas: empresários, executivos, as massas de fãs, cantores de música pop, mulheres, homens. Também pode ter como alvo determinadas “ideias, ideologias” (Wolfson, Ellrich 2019: 3), isto é, discursos ou “mitos do cotidiano”, conforme definidos por Roland Barthes16 16 Cf.: Barthes (2012). . Vários teóricos têm se debruçado sobre aspectos, às vezes bastante diferentes, ao tratar do cômico na obra de Jelinek. Partindo dessas distintas apreciações, elaboramos a seguir algumas categorias que nos parecem úteis para uma reflexão sobre o assunto.

3.1 O modelo do gênero da comédia

Uma primeira abordagem possível para nos aproximarmos do cômico na obra teatral de Jelinek são os paralelos e as diferenças que nela encontramos em relação ao gênero da comédia, que tem como uma das suas características o reestabelecimento da ordem consagrada pela sociedade burguesa, geralmente simbolizada pelo final feliz. A peça A casa de bonecas de Ibsen termina com a saída de Nora de seu lar, deixando em aberto o seu destino. Já na peça Nora de Jelinek, a protagonista acaba voltando para o marido e os filhos, seguindo assim o script previsto pelo gênero da comédia. O mesmo ocorre em Raststätte. Na ópera Cosí fan tutte, de Mozart e da Ponte, dois amigos querem testar o amor de suas noivas, descobrem que o amor e a fidelidade delas não são absolutos, aprendem a ver as fraquezas do ser humano e terminam mantendo os casamentos planejados. Também na peça de Jelinek, após diversas confusões e mal-entendidos amorosos, os dois casamentos dos protagonistas se mantêm. Conforme aponta Banoun (1996Banoun, Bernard. Komik und Komödie in einigen Stücken Elfriede Jelineks. In: Schmidt-Dengler, Wendelin; Sonnleitner, Johann; Zeyringer, Klaus (org.). Komik in der österreichischen Literatur. Berlin: Erich Schmidt, 1996, p. 285-299.), a peça corresponde “exatamente” àquilo que prevê o gênero da comédia, a “construção […] é clássica, a distribuição dos papéis clara e perfeitamente simétrica” (Banoun 1996: 296). A partir dessa perspectiva, as peças seguem o modelo tradicional em relação à estrutura e ao enredo; tanto em Nora quanto em Raststätte. Elas sugerem “o reestabelecimento da ordem social dentro do casamento burguês” (Banoun 1996: 295). Vale lembrar que diversos estudos têm destacado a influência do gênero dramático do Vaudeville na obra de Jelinek, que, aliás, traduziu diversas peças de Eugène Labiche e Georges Feydeau para o alemão. A própria autora reconhece essa influência em sua obra. Como apontou Banoun, “os personagens de Raststätte não são mais medíocres, sua linguagem não é mais obscena e o enredo não é mais patético do que eram cem anos atrás, no Vaudeville” (Banoun 1996: 298).

Embora as duas peças de Jelinek sigam a estrutura do modelo convencional da comédia, os desfechos não permitem o riso aliviado do público, baseado no reconhecimento do mérito dos próprios valores ancorados na ordem social. Nos dois casos, o desenlace não deixa de denunciar e expor as implicações da conservação da ordem social burguesa. Em Nora, cena após cena, torna-se mais claro que a protagonista, apesar de fazer uso frequente de jargões feministas e do discurso da libertação da mulher, não é capaz de se desfazer nem da sua formação pessoal burguesa e nem das dependências financeiras do mundo patriarcal. Sua volta ao lar é o reconhecimento resignado da impossibilidade da libertação feminina. Algo parecido acontece em Raststätte: ao longo da ópera-modelo de Mozart e da Ponte, os dois casais passam por um processo de aprendizagem; na peça jelinekiana, isso não ocorre. Aqui - aliás, de modo bastante semelhante aos dramas de Johann Nestroy17 17 Cf., por exemplo, Nestroy (1959). Nessa peça, o personagem Damian dá um exemplo da visão pessimista do mundo nestroyiano: “Se os outros homens não são melhores do que eu, então todos nós não prestamos nada” (“Wenn die anderen Männer nicht besser sein als ich, so sein wir alle nix nutz”). e Ödön von Horváth18 18 Cf., por exemplo, Horváth (2019). , igualmente baseados numa visão pessimista em relação ao mundo - a hipocrisia do modelo burguês fica evidente, os casamentos como finais obrigatórios da comédia não convencem e não se baseiam em amor ou empatia mútua, mas em dependência financeira e/ou falta de opção. Em vez de amor ou sentimentos, Raststätte põe em cena e coloca em questão as bases dos laços matrimoniais, as “superficialidades e distrações, nas normas sociais transmitidas sobretudo pelas mídias” (Banoun 1996Banoun, Bernard. Komik und Komödie in einigen Stücken Elfriede Jelineks. In: Schmidt-Dengler, Wendelin; Sonnleitner, Johann; Zeyringer, Klaus (org.). Komik in der österreichischen Literatur. Berlin: Erich Schmidt, 1996, p. 285-299.: 299).

3.2 As rubricas: personagens grotescos e desequilíbrio entre fala e ação

Uma segunda possibilidade de se aproximar ao cômico na obra teatral de Jelinek são as rubricas. Constantemente, elas ressaltam o caráter não naturalista dos textos ou põem em evidência a natureza grotesca dos personagens e/ou dos acontecimentos. Como aponta a própria Jelinek, “eu aumento (ou reduzo) minhas figuras até chegarem a um tamanho sobre-humano”, pois acontece que “o caráter absurdo da situação teatral - observa-se algo num palco! - exige esse exagero em relação às pessoas”19 19 “Ich vergrößere (oder reduziere) meine Figuren ins Übermenschliche, […]. Die Absurdität der theatralen Situation - man betrachtet etwas auf einer Bühne! - verlangt eben diese Übersteigerung der Personen.” (Jelinek 1984: 14). Conforme já mencionado, a autora não leva ao palco “seres humanos redondos, com erros e pontos fracos”, mas procura criar “polêmica, contrastes claros, cores fortes, uma pintura em branco e preto; uma técnica de xilogravura”20 20 “Ich bemühe mich nicht um abgerundete Menschen mit Fehlern und Schwächen, sondern um Polemik, starke Kontraste, harte Farben, Schwarz-Weiß-Malerei; eine Art Holzschnittechnik.” (Jelinek 1984: 14). O resultado é uma distorção de qualquer alusão à realidade, uma sensação de estranhamento e exagero e personagens que agem de modo mecânico, como marionetes21 21 Sobre o riso e sua relação com o mecânico e o repetitivo, cf. Bergson (2011). .

Em Nora, o caráter não naturalista das figuras é traçado de modo ainda mais discreto, as rubricas indicam uma ruptura irônica entre ação e fala dos personagens:

Nora precisa ser representada por uma atriz de experiência acrobática que […] precisa saber fazer os exercícios físicos descritos, mas é indiferente se sabe fazê-lo de modo “profissional” ou não, pois o que faz pode, sem problema, ser um pouco desajeitado. 22 22 “Nora muß auf jeden Fall von einer akrobatisch geübten Schauspielerin gespielt werden, die auch tanzen kann. Sie muß die jeweils angeführten Turnübungen machen können, dabei ist es aber egal, ob es ‘professionell’ wirkt oder nicht, es kann also ruhig auch ein wenig ungeschickt aussehen, was sie macht.” […] Seu [de Nora] comportamento está em contradição com sua roupa, bastante desgastada. 23 23 “Ihr Verhalten steht im Widerspruch zu ihrer ziemlich heruntergekommenen Kleidung.” (Jelinek 2015: 8-9).

Em vários momentos, a incoerência entre ação e fala dos personagens causa um efeito cômico; por exemplo quando Helmer, amarrado e imobilizado por Nora num jogo sadomasoquista e sem reconhecer ainda a ex-esposa (rubrica: “sendo amarrado cada vez mais forte”24 24 “Er wird immer mehr verschnürt.” ), comenta acerca do bom gosto do mobiliário da casa: “Isso aí é porcelana de Sèvres, essa xícara com as florezinhas…? De fato, esta casa possui estilo e bom gosto.”25 25 “Ist das dort Sèvres-Porzellan, diese Tassen mit den Blumen drauf…? Wirklich, dieses Heim hat Stil und Geschmack.” (Jelinek 2015: 54). Na cena final da peça, a rubrica é a seguinte: “Na sala de jantar da casa da família Helmer. Helmer está sentado na mesa de jantar, lendo um jornal. Idílio. Deixa-se servir por Nora.”26 26 “Bei Helmers im Eßzimmer. Helmer sitzt beim Abendessen und liest Zeitung. Idyll. Er läßt sich von Nora bedienen.” (Jelinek 2015: 54). Tal “idílio” poderia sugerir um final feliz nos moldes clássicos, porém, o diálogo agressivo do casal Nora e Helmer que se segue causa, novamente, um forte contraste irônico, desconstruindo a cena denominada idílica na rubrica.

Em Krankheit, o contraste entre aquilo que os personagens dizem (e o modo como o dizem) e suas ações torna-se mais explícito. Os atos representados no palco incluem cenas sangrentas de canibalismo, a extração de órgãos do corpo de Carmilla, recém-falecida durante o parto de mais um filho, e um assassinato, mas, conforme lemos na rubrica inicial, “a entoação, sobretudo dos homens”, deve ser “quase continuamente rápida, ágil, dinâmica e leve”27 27 “Den Tonfall möchte ich fast durchgehend, vor allem bei den Männern, rasch, ágil, dynamisch, leicht.” (Jelinek 2015: 192). Também em Raststätte, apesar de os homens aparecerem no palco fantasiados de animais grotescos e de aparência “perigosa”, sua conversa deve seguir - conforme ressalta uma das didascálias - um “estilo de conversação muito leve”28 28 “Sie müssen gefährlich wirken wie Götzenbilder, sprechen jedoch im leichtesten Konversationston”. (Jelinek 2002: 94). A incoerência entre fala, gestos e roupa também é evidente, por exemplo, nessa fala sobre as roupas de Isolde e Claudia: “A mais velha é um pouco velha e gorda demais para sua roupa fitness. Mas, a mais nova também não combina com sua roupa que é quase futurista”29 29 “Die ältere ist zu alt und etwas zu dick für ihren Sportdreß. Aber auch die jüngere paßt nicht recht zu ihrer Bekleidung, die beinahe futuristisch ist.” (Jelinek 2002: 71). Já em Krankheit, Emily entra em cena trajando um “vestido moderno, de bom caimento”, com “uma ou duas estacas que saem de seu corpo, de modo discreto, deixando escorrer um pouco de sangue”30 30 “Sie trägt ein modisches, fließendes Kleid. Aus ihrem Körper ragen diskret ein, zwei Pfähle, aus denen Blut rieselt.” (Jelinek 2015: 194). Em outra cena, “Carmilla está deitada, morta, na cadeira [uma mistura de cadeira de dentista e uma cadeira ginecológica]” (Jelinek 2015: 206) com “sangue escorrendo entre suas pernas”, porém “isso não é percebido nem causa estranheza em ninguém”31 31 “Carmilla hängt tot im Sessel, was aber niemand zu merken und niemand zu stören scheint. Zwischen ihren Beinen Blut.” . Como em muitas outras cenas nessa peça, nenhum dos personagens mostra o mínimo estranhamento com o grotesco, o violento, o sangrento; todos continuam normalmente suas conversas sobre temas banais e cotidianos, cada um preocupando-se com seus próprios problemas.

Gail Finney (1997Finney, Gail. Komödie und Obszönität: Der sexuelle Witz bei Jelinek und Freud. The German Quarterly, Urbana, v. 70, n. 1, 1997, p. 27-38.), assim como diversos outros estudiosos, apontou que as indicações cênicas de Jelinek evidenciam repetidamente uma proximidade com o gênero da comédia-pastelão (Slapstick). Por exemplo, em Raststätte (cf. Finney 1997: 33), lemos em uma das rubricas: “Os homens entram fantasiados de urso e alce. As fantasias não vestem bem, são grandes demais para eles. O alce pisa na sua roupa e tropeça.”32 32 “Ihre Männer kommen als Elch, bzw. Bär verkleidet herein. Die Kostüme passen ihnen nicht, sind ihnen zu groß. Der Elch tritt auf sein Gewand und stolpert.” (Jelinek 2002: 109). Na mesma peça, na rubrica de uma cena ambientada num banheiro feminino, lê-se:

As duas mulheres gritando exageradamente, como se estivessem sendo assadas num espeto. Porém, isso, em vez de dar uma impressão de medo, deve parecer cômico. […] Nas cabines acontece um tipo de orgia com as mulheres rindo e se esperneando; em alguns momentos aparecem rapidamente apenas os pés [as patas], mas somem logo depois.33 33 “Beide Frauen schreien im Chor, als steckten sie am Spieß. Es muß aber nicht ängstlich, sondern komisch wirken. Also eine Art demonstratives Wehgeschrei. […] In den Kabinen eine Art Orgie mit Gekicher und Gestrampel, mas sieht manchmal nur die Füße [Pfoten] kurz auftauchen und wieder verschwinden.” (Jelinek 2002Jelinek, Elfriede. Stecken, Stab und Stangl; Raststätte; Wolken; Heim: Neue Theaterstücke. 2. ed. Reinbek: Rowohlt, 2002.: 113).

Conforme destaca Bernard Banoun (1996Banoun, Bernard. Komik und Komödie in einigen Stücken Elfriede Jelineks. In: Schmidt-Dengler, Wendelin; Sonnleitner, Johann; Zeyringer, Klaus (org.). Komik in der österreichischen Literatur. Berlin: Erich Schmidt, 1996, p. 285-299.: 288-289), as discrepâncias e incongruências entre as indicações cênicas das rubricas e a ação e as falas que vemos no palco causam não apenas um efeito cômico, mas são reveladoras da poética antinaturalista da autora (cf., também, Hoff 2015Hoff, Dagmar von. Satirisch, komisch, grotesk: Elfriede Jelineks Theaterstücke. In: Jakobi, Carsten; Wildschmidt, Christine (org.). Witz und Wirklichkeit: Komik als Form ästhetischer Weltaneignung. Bielefeld: Transcript, 2015, p. 109-122.: 116; Schenkermayr 2009: 346). O “princípio do contraste e da separação de elementos” contribui, de acordo com a própria Jelinek, para a exposição e “a conscientização de situações e fatos” (Jelinek 1984Jelinek, Elfriede. Ich schlage sozusagen mit der Axt drein. TheaterZeitSchrift, Berlin, v. 7, 1984, p. 14-16., apud Banoun 1996: 289). A encenação de atos violentos e sangrentos - desde sempre parte da estética grotesca e burlesca - em combinação com o riso e motivos cômicos faz “parecer ainda mais terrível” o “contexto terrificante” das ações dos personagens (Schenkermayr, 2009: 348). Podemos ilustrar isso com a seguinte indicação numa rubrica em Krankheit:

[…] Cada uma das duas mulheres [Emily e Carmilla] atira-se como uma loba para cima de uma das crianças, derrubando-a ao chão. Há uma luta terrível, pois a criança tenta se defender. As mulheres mordem fortemente as gargantas das crianças. O recém-nascido berra: Mamããee! Mamããee! As mulheres bebem o sangue das crianças, os homens ficam parados, alheios aos acontecimentos.34 34 “Dann stürzen sich die beiden Frauen wie die Wölfinnen auf je eins der Kinder und reißen es zu Boden. Es gibt einen wahnsinnigen Kampf, weil das Kind sich wehrt. Die Frauen beißen den Kindern die Kehlen durch. Der Säugling quäkt: Mamaa! Mamaa! Die Frauen trinken die Kinder aus, die Männer stehen unbeteiligt daneben.” (Jelinek 2015: 242-243).

Enquanto ocorre essa ação sangrenta no palco, a conversa dos personagens continua banal, Benno pergunta a sua esposa Carmilla pelo paradeiro do novo machado e ela, interrompendo por um momento a ação de canibalismo, responde: “Está onde sempre está. Crianças são crianças”35 35 “Sie ist dort, wo sie immer ist. Kinder sind eben Kinder.” (Jelinek 2015: 243), atribuindo assim a responsabilidade do sumiço do machado às crianças, que, naquele mesmo instante, ela está devorando.

Conforme resume Schenkermayr (2009), tal “estética radical da representação de sofrimento com os meios da comicidade burlesca” leva ao absurdo “os modelos de pensamento e de ação dos mitos triviais” - como, por exemplo, o mito da mãe protetora e dedicada ao bem-estar de seus filhos36 36 Sobre os mitos triviais, sua definição segundo Roland Barthes e seu importante papel na estética de Jelinek cf., por exemplo: Schenkermayr (2009) e Janz (1995). - e contribui para a “deformação da realidade”, que na obra de Jelinek “não ocorre apenas no nível linguístico, mas sobretudo através da combinação dissonante das falas com as ações físicas no palco” (Schenkermayr 2009: 349-350). As rubricas são parte essencial nesse intuito de criar contrastes não apenas cômicos, mas também reveladores.

3.3 O cômico grosseiro como ferramenta de dessacralização e desmitificação

O grotesco e outras formas do cômico grosseiro, burlesco, frequentemente considerado banal e de “baixo” nível, encontram-se não apenas nas rubricas, mas também nas falas dos personagens. Muitas vezes, isso ocorre justamente para reforçar o contraste com alguma frase de significado aparentemente sublime, com um tom de páthos teatral ou, como apontou Daniela Strigl numa mesa redonda, com o “assim chamado bom gosto” (Strigl 2018). Em relação a Schatten, repleta de alusões, no mínimo, inusitadas à sexualidade (“fenda de menina” [Mädchenspalten]), Kon (2018) avalia que haveria “algo de intencionalmente grosseiro e impalatável”, que atinge inclusive o politicamente correto, “como se Jelinek fizesse questão de não corresponder a uma posição feminista adequada, limpa, esterilizada, insistindo em não reduzir sua obra ao discurso ‘correto’ e já conhecido” (KON 2018: 33). Na tradição do João Linguiça [Hanswurst] e outras figuras cômicas do teatro popular austríaco, Jelinek opta por usar (muitas vezes ao lado de termos sublimes) uma linguagem de baixo calão e palavras vulgares, um vocabulário bastante criativo que remete claramente ao mundo da pornografia, ao fazer “piadas que não se faz” (Strigl 2018) sobre temas tradicionalmente considerados tabu como alvo de piadas (assassinato, violência doméstica, pedofilia etc.) e ao violar as regras e convenções do “bom gosto”, provocando e subvertendo normas, hierarquias e valores aparentemente inabaláveis. Segundo a própria autora:

O grande não fica grande e o pequeno não fica pequeno. Os impotentes, os indefesos recebem o tom sublime, a grande língua, enquanto os poderosos são praticamente banalizados, reduzidos até sua medida verdadeira, para tornar mais claro suas mentiras e sua mesquinhez. (Jelinek, 2018 apud Hochholdinger-Reiterer 2019Hochholdinger-Reiterer, Beate. ‘Ich kann leider an keinem Kalauer vorbeigehen’: Der komische Leib der Sprache in Elfriede Jelineks Theatertexten. Forschungsplattform Elfriede Jelinek, Wien, 2019. Disponível em: https://fpjelinek.univie.ac.at/fileadmin/user_upload/proj_ejfz/PDF-Downloads/Komik-_Hochholdinger-Reiterer-Beitrag.pdf. Acesso em: 19 abr. 2019.
https://fpjelinek.univie.ac.at/fileadmin...
: 4).

Na obra de Jelinek, o cômico nunca é um fim em si, é um meio para tornar algo mais claro. Um objetivo declarado da autora é desconstruir “mitos triviais”. Em Die endlose Unschuldigkeit [A inocência infinita] (Jelinek 1980), ela dedicou-se pela primeira vez à discussão desenvolvida por Roland Barthes sobre esse conceito e o papel das mídias de massa para a divulgação desse tipo de mito. Entende-se por “mito do cotidiano” uma interpretação supostamente apolítica que “atribui a situações e desenvolvimentos históricos a aparência de serem naturais” para, assim, “evitar ações a favor de mudanças sociais” (Schenkermayr 2009: 344). Através de meios burlescos e grotescos e sua “estética radical da representação de sofrimento com os meios da comicidade burlesca” (Schenkermayr 2009: 349) e, também, da sátira e do escárnio, Jelinek faz balançar qualquer páthos ou convenções enraizadas em mitos triviais e procura dessacralizar tais “verdades” e “mitos” tidos como “naturais” e inquestionáveis. Tanto Banoun (1996Banoun, Bernard. Komik und Komödie in einigen Stücken Elfriede Jelineks. In: Schmidt-Dengler, Wendelin; Sonnleitner, Johann; Zeyringer, Klaus (org.). Komik in der österreichischen Literatur. Berlin: Erich Schmidt, 1996, p. 285-299.) quanto Schenkermayr (2009) ressaltam a inclinação de Jelinek para desconstruir mitos, para dessacralizá-los, com ajuda do uso do “baixo cômico”, fortemente enraizado na tradição austríaca do “teatro popular” desde o século XVIII37 37 Cf., por exemplo, a peça Häuptling Abendwind oder Das greuliche Festmahl [O cacique Vento da Noite ou O festim abominável], de Nestroy, uma peça com traços absurdos e grotescos e com alusões satíricas contra o nacionalismo europeu e o mito da vida civilizada. (Disponível em: https://gutenberg.spiegel.de/buch/hauptling-abendwind-5115/1). Em Präsident Abendwind [Presidente Vento da Noite], Jelinek dialoga explicitamente com essa peça de Nestroy e alude, ao mesmo tempo, ao seu próprio contexto político, o escândalo em torno da eleição de Kurt Waldheim para a presidência da Áustria. (Disponível na homepage da autora: https://www.elfriedejelinek.com/). até o Grupo de Viena. Esse tipo de teatro trabalha com o que é grotesco, carnavalesco, dando destaque a processos físicos como alimentação, excreção e copulação, desde sempre elementos fundamentais do burlesco e do “baixo cômico”. Por exemplo, Claudia - uma das esposas em Raststätte à procura de uma aventura sexual fora do casamento - chama os candidatos de “animais” pelos quais pretende ser “devorada” e lança mão de “mitos” machistas acerca das mulheres: “Mulheres além dos 40 não são mais mulheres. Mas eu queria tanto conhecer um animal.”38 38 “Frauen über vierzig sind keine Frauen mehr. Ich wollte aber doch so gern ein Tier kennenlernen”. (Jelinek 2002: 72). Em Schatten, o mitológico Orfeu torna-se um descendente de um “animal obstinado, que só quer saber de comer, encher a cara, cantar e transar, e mais nada”39 39 “[…] als stamme er von einem hartnäckigen Tier ab, dem es ums Fressen, Saufen, Singen und Ficken geht und um sonst nichts.” (Jelinek 2013a: s. p.). No monólogo de Eurídice, entremeiam-se termos provocativos, muitos deles neologismos, e passagens grotescas. Um exemplo:

Com nossos stars claro que isso é diferente, com eles tudo é diferente, mas o que o cantor vai fazer com aquelas que ficam tirando para fora suas genitálias e abrindo bem na cara dele, e a genitália feminina está simplesmente por toda parte, mesmo na sua fase mais precoce, podemos olhar para onde quisermos, está simplesmente em toda parte, as meninas com suas fendas traiçoeiras, são como montes de areia, bancos de areia, buracos de areia movediça, engolem qualquer um (Jelinek 2013a: s. p.).40 40 “Bei unseren Stars ist das natürlich anders, bei denen ist alles anders, aber was soll der Sänger mit denen anfangen, die da vor seinem Gesicht ihr Geschlecht hervorziehen und aufklappen, und das weibliche Geschlecht ist schon in seiner frühesten Phase einfach überall, man kann schauen, wohin man will, die sind einfach überall, die Mädels mit ihren tückischen Spalten, die sind wie Sandhaufen, Sandbänke, Treibsandlöcher, nehmen jeden auf […]”.

A possibilidade de o público se reconhecer nesse tipo de representação é uma das causas das “dificuldades” que se percebe na recepção da obra de Jelinek (Banoun 1996Jelinek, Elfriede. Überschreitungen: Ein Gespräch mit Elfriede Jelinek. Elfriede Jelinek, jul. 1996. Disponível em: https://www.elfriedejelinek.com/fintervw.htm. Acesso em: 27 jun. 2019.
https://www.elfriedejelinek.com/fintervw...
: 299), mas ao mesmo tempo a chave para seu possível efeito esclarecedor. Conforme Banoun, “uma sociedade hesitante em relação aos próprios valores e normas” tem dificuldade de rir ao ver seu “próprio retrato”, a comicidade se torna “uma das armas mais fortes”, e as peças de Jelinek um ato de “agressão contra o espectador” (Banoun 1996: 299).

3.4 Jogos de língua: trocadilhos, alusões e brincadeiras

Jelinek é fã declarada de trocadilhos. Ela não conta piadas, mas usa a língua de modo chistoso - um tipo de comicidade que se produz instantaneamente ao fazer uso da língua. Trata-se de jogos de palavras que, para Jelinek, são “momentos da verdade” uma “entrega à vida própria da língua” (Jelinek 2018 apud Hochholdinger-Reiterer 2019Hochholdinger-Reiterer, Beate. ‘Ich kann leider an keinem Kalauer vorbeigehen’: Der komische Leib der Sprache in Elfriede Jelineks Theatertexten. Forschungsplattform Elfriede Jelinek, Wien, 2019. Disponível em: https://fpjelinek.univie.ac.at/fileadmin/user_upload/proj_ejfz/PDF-Downloads/Komik-_Hochholdinger-Reiterer-Beitrag.pdf. Acesso em: 19 abr. 2019.
https://fpjelinek.univie.ac.at/fileadmin...
: 8), que traz à tona tudo aquilo que a autora escolheu como alvo de sua crítica. São parte daquilo que Sebastian Weirauch (2018) chama de “retórica subversiva de Jelinek”, com a qual a autora, partindo de uma “postura irônica” se “apropria de discursos mediáticos, textos literários e lugares comuns, para parodiá-los” (Weirauch 2018: 9). Novamente, essa apropriação intertextual tem uma pretensão esclarecedora, pois através de “trocadilhos, escárnio e distanciamento”, Jelinek pretende “dirigir a atenção do leitor aos mecanismos ideológicos e manipulativos da língua” (Weirauch 2018: 9). O alvo de sua crítica não é o personagem (tipificado) como enunciador das frases, mas o uso irrefletido da língua. São os abismos do comportamento humano num contexto patriarcal e capitalista - geralmente muito bem escondidos atrás de frases e jargões, facilmente identificáveis como parte dos discursos que permeiam o nosso dia a dia - que estão na mira de Jelinek, inclusive quando se trata aparentemente de simples trocadilhos. Mais uma vez, vale lembrar a fonte da qual Jelinek bebe: o afamado dramaturgo Johann Nestroy, desestabilizador de qualquer discurso burguês edificante, dotado de uma “comicidade esclarecedora” cuja força não reside numa competência psicológica, mas na “construção de suas frases” (Kraus 1935: s. p.). Muitas das frases de autoria de Nestroy, como: “Vou me casar por conveniência, um casamento por dinheiro e, ao mesmo tempo, um casamento por inclinação, porque tenho uma inclinação infinita pelo dinheiro”, de Liebesgeschichten und Heiratssachen [Histórias de amor e coisas de casamento] (Nestroy 1988), poderiam certamente também ser atribuídas a Jelinek. Ela mesma destacou a força das frases de Nestroy num texto incluído no folheto do programa de uma obra desse autor, encenada no Burgtheater em Viena em 2001, no qual ela registra: “essa língua [de Nestroy] pensa sempre também nos seus próprios pressupostos, inclui eles na sua redação, mas não os problematiza, apenas os diz” (Jelinek 2001: s. p.)41 41 Para uma discussão mais aprofundada sobre a obra e a língua de Nestroy, sua força crítica e satírica, cf., também, Schmidt-Dengler (2001). .

No diálogo inicial entre Nora, que está à procura de emprego e ainda confiante no seu poder de emancipação individual, e o gerente de contratação, integralmente sujeito à lógica do capital financeiro, o embate entre duas visões de mundo se evidencia num trocadilho: GERENTE DE CONTRATAÇÃO - “No meu cargo é possível estudar que a profissão não é uma fuga, mas o melhor acabamento para uma vida.” NORA - “Mas ainda não quero acabar com minha vida! Eu aspiro por minha realização pessoal.” (Jelinek 2015: 9).

Logo depois, Nora usa palavras que remetem aos discursos da liberação da mulher e diz: “Quero erguer a dignidade humana e o direito básico por livre realização pessoal.” O páthos da frase é anulado imediatamente pela fala do gerente ilustrando a supremacia da lógica capitalista, que sai como vencedora no final da peça: “Você não pode erguer nada, pois precisa de suas mãos para segurar coisas mais importantes.”42 42 NORA: Ich möchte die Menschenwürde und das Grundrecht auf freie Entfaltung der Persönlichkeit hochhalten. PERSONALCHEF: Sie können überhaupt nichts hochhalten, weil Sie Ihre Hände für Wichtigeres brauchen. (Jelinek 2015: 10). O conflito que se expõe aqui através da interpretação literal de um verbo usado metaforicamente na primeira frase não é entre dois sujeitos psicologicamente construídos, mas entre dois discursos, familiares aos espectadores. Algo semelhante acontece quando Heidkliff, o médico de Krankheit oder Moderne Frauen, diz “Precisamos ser capazes de entender as mulheres na sua íntegra”43 43 “Wie müssen imstande sein, die Frauen als Ganzheit zu sehen.” no exato momento em que retira de Carmilla, já morta, “um órgão muito grande, inflável, que é amorfo e marrom”44 44 “Er nimmt ein besonders großes aufblasbares Organ heraus, es ist amorph und braun […].” (Jelinek 2015: 217), conforme lemos na rubrica. Aqui descontrói-se imediatamente, através da ação que acontece no palco, qualquer possibilidade de uma leitura metafísica da fala sobre a “integridade” das mulheres. Esse tipo de estranhamento devido a deslocamentos e condensações linguísticas causa não apenas um efeito chistoso (Freud 2017Freud, Sigmund. O chiste e sua relação com o inconsciente. Tradução de Fernando Costa Matos e Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.), mas, segundo Jelinek, também desperta uma atenção maior pela língua e seu funcionamento, corroborando assim o projeto crítico da autora. O potencial crítico da peça é exposto inclusive na segunda parte do título da peça: Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften. A forma plural “Gesellschaften” [sociedades] em lugar do singular “Gesellschaft” [sociedade], usado por Ibsen (Os pilares da sociedade), cria uma ambiguidade irônica, sugerindo a interpretação do termo como sociedades capitalistas anônimas.

Precisa-se mencionar também os frequentes “lapsos” nas falas dos personagens jelinekianos. Como já apontou Freud (2017Freud, Sigmund. O chiste e sua relação com o inconsciente. Tradução de Fernando Costa Matos e Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.), eles possuem - de modo semelhante ao sono e ao chiste - uma grande força produtiva, revelando facetas do inconsciente que geralmente procuramos reprimir. Nos lapsos, dizemos algo que não queremos dizer, mas que pode ser extremamente revelador. Dois exemplos de Schatten: “Parece que já estou nas águas terminais, ah, não, nas águas termais, está pensando o quê?”45 45 “Bin wohl schon im Keinort, aber nein, doch nicht im Kurort, wo denken Sie hin.” ou “o Apolo, o ogrinho, ops, o sogrinho!”46 46 “der Apoll, der Schweiger, äh, Schwieger-Papi!” (Jelinek 2013a: s. p.).

Krankheit e Raststätte são textos que renderam a Jelinek a acusação, feita por boa parte da crítica, de ser uma autora de pornografia. E é justamente o cômico e o foco na forma linguística que ilustram ser infundada a definição da peça como pornográfica - embora, obviamente, Jelinek lance mão de alusões ao mundo da pornografia (rubrica em Raststätte: “Por favor, deixem-se inspirar aqui pela estética dos filmes pornográficos comerciais”47 47 “Bitte sich hier. Von der Ästhetik der kommerziellen Pornofilme inspirieren lassen.” (Jelinek 2002: 121)). Como bem argumenta Finney (1997Finney, Gail. Komödie und Obszönität: Der sexuelle Witz bei Jelinek und Freud. The German Quarterly, Urbana, v. 70, n. 1, 1997, p. 27-38.)48 48 No seu artigo, Finney apresenta uma análise interessante da comicidade em Jelinek a partir das categorias do chiste estabelecidos por Freud, a qual não pode ser discutida aqui de modo aprofundado tendo em vista os limites deste artigo. , pornografia e riso não são compatíveis, pois “assim que rimos numa apresentação ou leitura pornográfica, rompe-se o efeito sexual, a força de excitação diminui” (1997: 33). Finney ainda pergunta: “É possível estar excitada enquanto se ri?” (1997: 33). Remetendo a Susan Sontag, a teórica recorda que a pornografia não se importa com a forma linguística, pois apenas quer provocar a excitação, enquanto Jelinek faz uso de uma linguagem estilizada, transformando a pornografia em algo mais próximo da comédia (Finney 1997: 33). Ao mesmo tempo, é através do cômico (assim como do sonho, conforme mostrou Freud) que é possível trazer à tona e pronunciar verdades escondidas no inconsciente (social) ou, no mínimo, não dizíveis dentro dos limites estabelecidos pelas convenções da sociedade. Para criar esse efeito revelador, Jelinek recorre às estratégias linguísticas que Freud havia identificado como essenciais para o funcionamento do cômico (a condensação, o deslocamento e o duplo sentido, por exemplo). De acordo com Finney, são essas estratégias que diferenciam o texto de Jelinek (assim como o chiste sexual) do uso pornográfico da língua e que levam a uma leitura que denuncia os mecanismos e o poder opressor da pornografia. Se a obra de Jelinek for reduzida ao nível do enredo, sobra apenas o conteúdo pornográfico.

Em Raststätte, muitos dos trocadilhos possuem uma conotação sexual e/ou machista. Por exemplo, numa conversa entre os homens fantasiados de urso e de alce: “Como muitos dos nossos contemporâneos, é com tempero que você gosta da coisa, não é?”49 49 “Wie viele Zeitgenossen wollen auch Sie nichts als genossen werden, stimmt’s?” (Jelinek 2002: 97). Em Krankheit, o teor é semelhante: Heidkliff, falando sobre as mulheres: “Elas têm sexo. Nexo, nem sempre.”50 50 “Sie sind Geschlecht. Schlecht sind sie nicht unbedingt.” (Jelinek 2015: 220); “Em tudo que fiz, nunca deixei de ser eu mesmo. Seja você também fiel a mim, Emily.”51 51 “Ich bin bei allem, was ich je getan habe, ich selbst geblieben. Bleib auch du mir treu, Emily!” (Jelinek 2015: 222). Essas falas cumprem uma função de estranhamento frente à língua, de desnaturalização do uso de frases fixas e jargões. Como apontou Hoff (2015Hoff, Dagmar von. Satirisch, komisch, grotesk: Elfriede Jelineks Theaterstücke. In: Jakobi, Carsten; Wildschmidt, Christine (org.). Witz und Wirklichkeit: Komik als Form ästhetischer Weltaneignung. Bielefeld: Transcript, 2015, p. 109-122.), os textos de Jelinek não são meros jogos de linguagem, mas usam “a agressividade especificamente linguística e temática” para chegar a um efeito satírico (Hoff 2015: 116). Os alvos de seus ataques são a assim chamada normalidade da vida cotidiana - os “mitos do cotidiano” -, mas também a suposta normalidade do uso (literário ou não) da língua. Jelinek procura mostrar que tais normas e convenções (como as de gênero, por exemplo) são nada mais que práticas sociais e discursivas. E é através do cômico que ela consegue evidenciar os mecanismos desses discursos.

Um aspecto que não deve ser negligenciado no âmbito da obra de Jelinek é a maneira cômica com a qual ela usa as formas dialetais da língua alemã. A autora contrasta esse tipo de linguagem, geralmente associado com o mundo rural e (supostamente) idílico, com uma forte violência verbal, desestabilizando mais uma vez um padrão cultural estabelecido. Nas peças aqui discutidas, esse tipo de linguagem não aparece, por isso não nos estendemos sobre essa questão neste momento.

3.5 A sátira e sua força desestabilizadora

A sátira é o meio favorito de Jelinek para dar vazão à sua indignação. Entendemos aqui a sátira como um ataque agressivo, motivado pela indignatio do autor. Como a própria Jelinek declarou em uma entrevista concedida a Sigrid Berka (1993Berka, Sigrid. Ein Gespräch mit Elfriede Jelinek. In: Modern Austrian Literature, Lincoln, v. 26, n. 2, 1993, p. 127-155.): “o estímulo e o ímpeto da minha escrita é a raiva e a indignação” (apud Hoff 2015Hoff, Dagmar von. Satirisch, komisch, grotesk: Elfriede Jelineks Theaterstücke. In: Jakobi, Carsten; Wildschmidt, Christine (org.). Witz und Wirklichkeit: Komik als Form ästhetischer Weltaneignung. Bielefeld: Transcript, 2015, p. 109-122.: 111) contra males, reais ou existentes na visão satírica, que são expostos para reivindicar (implícita e explicitamente) o conserto das (supostas) deficiências reveladas. A sátira é, portanto, um gênero marcado por um alto grau de intertextualidade52 52 A intertextualidade é um aspecto que possui grande relevância na obra jelinekiana e também uma evidente relação com sua dimensão cômica. Porém, essa questão não será aprofundada aqui, pois extrapolaria os limites deste artigo. . Os meios da sátira variam desde a ironia e a zombaria jocosa até o escárnio afiado e patético (cf. Zymner 2017: 22) e podem ser concomitantes com os outros aspectos do cômico que foram abordados até agora. O que diferencia a sátira de outras formas da agressão verbal (como a polêmica) é, sobretudo, a “estetização” através da “estilização (tendencialmente cômica), a ficcionalização ou a simbolização” (Zymner 2017: 22). De acordo com Strigl (2018), a obra de Jelinek constitui uma “intensificação e radicalização” da tradição austríaca da sátira, marcada primordialmente por Nestroy e Kraus (Strigl 2018). A definição de Jelinek como escritora satírica é destacada também por Hoff (2019). Na entrevista acima mencionada, concedida a Berka em 1993, a própria Jelinek expressou que sua “técnica literária” seria a da “negatividade”, da “flexão satírica da realidade e no agigantamento do real” (apud Hoff 2015: 111). Além disso, para a autora, o escárnio - intimamente ligado à sátira - está ligado também ao seu ímpeto feminista: “O escárnio tem sempre um efeito castrador. […] O escárnio e o trabalho intelectual de uma mulher são, num sistema patriarcal, transgressões” (Jelinek 1996: s. p.). Uma ilustração do viés satírico de Jelinek são, por exemplo, os diálogos dos dois maridos em Krankheit, uma sátira de discursos de viés machista. Benno, contador e marido de Carmilla, diz: “Já permiti diversas vezes que minha mulher tivesse algum significado. Ela deve fazer mais por si mesma. Já fez mais por si várias vezes.” Heidkliff, o odonto-ginecologista, responde:

Esteja mais apaixonado pelo aplauso do mundo! Por mim, tudo bem se você se tornar um virtuoso tardio! Torne-se um gigante! Torne-se um esportista aquático como eu! Você tem. Você tem o potencial! […] Seja um rei na sua área. Exija a prestação de serviços! Você merece. Mas, por favor, por favor: seja um pouco mais indiferente em relação ao ventre dessa mulher. Aliás, ela está morta.53 53 “Ich habe meiner Frau schon öfter erlaubt etwas zu bedeuten. Sie soll mehr aus sich machen. Sie hat schon oft was aus sich gemacht.” - “Seien Sie mehr in den Beifall der Welt verliebt! Werden Sie meinetwegen spätberufener Virtuose! Werden Sie Gigant! Werden Sie wie ich Wassersportler! Sie haben es. Sie haben es in sich. […] Seien Sie meinetwegen ein König in Ihrem Bereich. Verlangen Sie Dienstleistungen! Sie stehen Ihnen zu. Nur bitte, bitte: Stehen Sie dem Unterleib dieser Frau ein wenig gleichgültiger gegenüber. Sie ist übrigens tot.!” (Jelinek 2015: 215).

O alvo da sátira jelinekiana pode ser discursos, figuras públicas - por exemplo, Donald Trump, em Am Königsweg [No caminho real]54 54 Texto ainda não publicado. Estreia no Deutsches Schauspielhaus em Hamburg (outubro de 2017). Para mais informações: http://www.rowohlt-theaterverlag.de/tvalias/stueck/3519270. -, mas também mitos antigos. Em Schatten, Jelinek atualiza o enredo de uma narrativa secular e transforma Orfeu em alvo de escárnio e do olhar satírico de Eurídice - que, até agora, tem sido objeto passivo na famosa história de amor. Esse papel cabe agora a Orfeu, a hierarquia do poder de interpretação se inverte, ganhando novos contornos:

Ele nem me enxergaria como sombra, do jeito como está engrandecido, grande como um Deus […]. Ele não se conforma. Podemos nos perguntar se é verdade que está de luto porque me perdeu, como está dizendo. Mas ele sempre foi um fanfarrão. Na verdade, está de luto porque ele mesmo se perdeu, porque teve que abrir mão de alguma coisa, tanto faz de que forma, nunca lhe disseram o que é humildade. Não pode ser que alguém lhe tire algo.55 55 “Er würde mich als Schatten gar nicht sehen, so gut wie er dasteht, so groß wie ein Gott […]. Er findet sich nicht ab. Wir fragen uns, ob er trauert, weil er mich verloren hat, wie er angibt. Aber er ist ja immer ein Angeber gewesen. In Wahrheit trauert er, weil er sich selbst verloren hat, weil er etwas hergeben musste, in Form von etwas, egal was, Bescheidenheit ist ihm nicht gepredigt worden. Es geht nicht, dass ihm etwas weggenommen wird.” (Jelinek 2013a: s. p.).

Diferentemente do que acontece nas quatro peças aqui em foco, em alguns de seus textos teatrais, Jelinek refere-se a parcelas de uma realidade que não é conhecida pelo público brasileiro (por exemplo, casos de corrupção ou escândalos sexuais no mundo político e/ou econômico austríaco). Nesses casos, a compreensão do viés satírico poderia encontrar dificuldades na recepção brasileira (embora permita-se a hipótese de que, como o alvo principal de Jelinek são sempre os diversos entrelaçamentos entre patriarcado, capitalismo e política, o público brasileiro talvez nem tenha tanta dificuldade em chegar a uma interpretação coerente).

4 Considerações finais

O cômico na obra de Jelinek nunca é o fim em si mesmo. O riso causado por ele nunca é o riso aristotélico inofensivo, ele não é expressão de uma ambivalência, mas ele mesmo é ambivalente, uma ferramenta do ímpeto crítico da autora, e sempre próximo ao trágico. Como na epígrafe citada no início deste artigo, presume-se que o conteúdo do cômico pode ser igual ao do trágico, a diferença está na maneira da apresentação e, em última instância, no modo como se dá a recepção.

Nas peças abordadas, o cômico aparece em forma de jogos de linguagem, de trocadilhos, de ambiguidades semânticas, alusões e brincadeiras intertextuais. Há ainda o cômico do exagero, seja em forma de sátira, do grotesco ou da paródia. Alguns dos textos teatrais ainda dialogam com a estrutura clássica da comédia. Em todos os casos, o cômico tem a função de se referir à realidade (discursiva), transformando-a esteticamente, submetendo-a a uma crítica irredutível e revelando as diversas formas de violência, exploração e destruição inerentes ao nosso mundo. Essa violência geralmente é pouco visível, já que escondida atrás de uma cortina discursiva que a maquila com as cores da moral burguesa. Nas peças de Jelinek, são o cômico e o riso que nos permitem ver, pelo menos por alguns instantes, aquilo que se esconde atrás dessa cortina.

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  • Krausz, Luis. A arte da infelicidade: A pianista, de Elfriede Jelinek, entre tradição e mass-media. Pandaemonium Germanicum, São Paulo, n. 17, 2011, p. 87-102. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/pg/article/view/38101/40831 Acesso em: 2 abr. 2019.
    » http://www.revistas.usp.br/pg/article/view/38101/40831
  • Leones, André de. Elfriede Jelinek lança leitor a anos-luz de qualquer zona de conforto. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 ago. 2013. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,elfriede-jelinek-lanca-leitor-a-anos-luz-de-qualquer-zona-de-conforto,1067216 Acesso em: 21 mar. 2019.
    » https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,elfriede-jelinek-lanca-leitor-a-anos-luz-de-qualquer-zona-de-conforto,1067216
  • Müller-Kampel, Beatrix. Komik und das Komische: Kriterien und Kategorien. LiThes, n. 7, 2012, p. 5-39. Disponível em: http://lithes.uni-graz.at/lithes/beitraege12_07/heft_7_gesamt.pdf. Acesso em: 27 maio 2019.
    » http://lithes.uni-graz.at/lithes/beitraege12_07/heft_7_gesamt.pdf. Acesso em: 27
  • Nestroy, Johann. Zu ebener Erde und erster Stock oder Die Launen des Glücks schlect. Wien: Globus, 1959.
  • Nestroy, Johann. Liebesgeschichten und Heiratssachen. In: Hein, Jürgen (org.). Sämtliche Werke. Historisch-kritische Ausgabe. Stücke 19. Wien: Jugend und Volk, 1988, p. 5-84.
  • Nyssen, Ute. Nachwort. In: Jelinek, Elfriede. Theaterstücke: Was geschah, nachdem Nora ihren Mann verlassen hatte oder Stützen der Gesellschaften; Clara S. musikalische Tragödie; Burgtheater; Krankheit oder Moderne Frauen. 11 ed. Hamburg: Reinbek, 2015, p. 266-285.
  • Peça Esporte: Cia de Teatro Acidental. Tusp, São Paulo, 2 out. 2015. Disponível em: http://www.usp.br/tusp/?portfolio=peca-esporte-cia-de-teatro-acidental Acesso em: 25 set. 2019.
    » http://www.usp.br/tusp/?portfolio=peca-esporte-cia-de-teatro-acidental
  • Schenkermayr, Christian. Ende des Mythos? - Beginn der Burleske? Versuch einer Annäherung an das Verhältnis von Mythendekonstruktion und burlesker Komödie in einigen Dramen Elfriede Jelineks. In: Leyko, Małgorzata; Pełka, Artur; Prykowska-Michalak, Karolina (org.). Felix Austria, Dekonstruktion eines Mythos?: Das österreichische Drama und Theater seit Beginn des 20. Jahrhunderts. Fernwald: Litblockin: 2009, p. 344-365.
  • Schmidt-Dengler, Wendelin. Nestroy: Die Launen des Glücks. Wien: Zsolnay, 2001.
  • Strigl, Daniela. Sprachspiel, Satire, Subversion: Zu den Traditionen der Komik bei Elfriede Jelinek. Gespräch mit Zuzana Augustová, Alexander W. Belobratow, Daniela Strigl, moderiert von Christian Schenkermayr. Forschungsplattform Elfriede Jelinek, Wien, 2018. Disponível em: https://fpjelinek.univie.ac.at/fileadmin/ user_upload/proj_ejfz/PDF-Downloads/Augustova-Belobratow-Strigl_.pdf Acesso em: 25 maio 2019.
    » https://fpjelinek.univie.ac.at/fileadmin/ user_upload/proj_ejfz/PDF-Downloads/Augustova-Belobratow-Strigl_.pdf
  • Weirauch, Sebastian. Gegen Ironie sind sie machtlos: Eine medienkritische Untersuchung von Elfriede Jelineks subversiver Rhetorik. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2018.
  • Wirth, Uwe (org). Komik: ein interdisziplinäres Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2017.
  • Wolfson, Lisa; Ellrich, Lutz. Komik-affine Spielweisen. Wie lassen sich Elfriede Jelineks Theatertexte „angemessen“ inszenieren? Forschungsplattform Elfriede Jelinek, Wien, 2019. Disponível em: https://fpjelinek.univie.ac.at/fileadmin/ user_upload/proj_ejfz/PDF-Downloads/Wolfson_Ellrich_Jelinek.24.4.18.pdf Acesso em: 2 out. 2019.
    » https://fpjelinek.univie.ac.at/fileadmin/ user_upload/proj_ejfz/PDF-Downloads/Wolfson_Ellrich_Jelinek.24.4.18.pdf
  • Zymner, Rüdiger. Satire. In: Wirth, Uwe (org.). Komik: Ein interdisziplinäres Handbuch. Stuttgart: Metzler, 2017, p. 21-25.
  • 1
    Este artigo é resultado de uma pesquisa de pós-doutorado realizada na Universidade de Viena e na Universidade de Graz, Áustria (de fevereiro de 2019 até março de 2020), com apoio do Serviço Austríaco de Intercâmbio (ÖAD).
  • 2
    Não usamos, neste artigo, o termo “drama” para nos referir aos textos teatrais de Jelinek, pois muitos deles não têm seguido o modelo daquilo que, tradicionalmente, se entende por “drama” como, por exemplo, o formato de falas dialógicas, atos, cenas etc.
  • 3
    Cf., por exemplo, os artigos reunidos em Elfriede Jelinek: Die internationale Rezeption (Bartens e Pechmann 1997).
  • 4
    Cf. Forschungsplattform (2017-2019). Nesse site, encontra-se um grande número de artigos, entrevistas, transcrições de conversas etc. sobre o papel do cômico na obra de Jelinek. Antes do cômico, outros temas tratados em projetos de pesquisa da Plataforma Jelinek foram: pós-dramaticidade; capital - poder - gênero; a escrita como forma de resistência; alteridade; e xenofobia.
  • 5
    Apenas dois romances foram publicados no Brasil até hoje, ambos com bastante atraso em relação ao lançamento em língua alemã: A pianista [Die Klavierspielerin], de 1983, e Desejo [Lust], de 1989, publicados em traduções brasileiras em 2011 e 2013, respectivamente.
  • 6
    Cf.: Peça Esporte… (2015).
  • 7
    Cf.: Dramas de Princesas (2016).
  • 8
    Todas as traduções de citações das peças de Jelinek são de nossa autoria; no caso das passagens de Schatten (Eurydike sagt), a tradução foi feita em colaboração com Cristiane Gonçalves Bachmann.
  • 9
    Sobre a teoria da incongruência, cf. também o capítulo “Quando se ri de coisas absurdas ou a teoria da incongruência” (Geier 2011: 157-177).
  • 10
    Cf., por exemplo, Austríaca… (2004).
  • 11
    Estes textos podem ser acessados na sua íntegra na homepage de Elfriede Jelinek https://www.elfriedejelinek.com/.
  • 12
    Em 2013, Jelinek escreveu um “epílogo” para Nora, um “drama terciário”, intitulado Nach Nora (Após Nora), que aborda a exploração das mulheres na indústria têxtil em países menos desenvolvidos e num contexto econômico marcado pelo neoliberalismo. Às vezes apresentadas juntas, as três peças sobre o personagem Nora (a de Ibsen e as duas de Jelinek) têm recebido o nome de Nora³.
  • 13
    Transformado em filme em 2018, por Kelly Copper e Pavol Liška do Nature Theater of Oklahoma (encontrado, por exemplo, em: http://www.austrianfilms.com/film/die_kinder_der_toten.)
  • 14
    Cf.: Jelinek (2013c).
  • 15
    “[…] ich bin nicht mehr da, ich bin.”
  • 16
    Cf.: Barthes (2012).
  • 17
    Cf., por exemplo, Nestroy (1959). Nessa peça, o personagem Damian dá um exemplo da visão pessimista do mundo nestroyiano: “Se os outros homens não são melhores do que eu, então todos nós não prestamos nada” (“Wenn die anderen Männer nicht besser sein als ich, so sein wir alle nix nutz”).
  • 18
    Cf., por exemplo, Horváth (2019).
  • 19
    “Ich vergrößere (oder reduziere) meine Figuren ins Übermenschliche, […]. Die Absurdität der theatralen Situation - man betrachtet etwas auf einer Bühne! - verlangt eben diese Übersteigerung der Personen.”
  • 20
    “Ich bemühe mich nicht um abgerundete Menschen mit Fehlern und Schwächen, sondern um Polemik, starke Kontraste, harte Farben, Schwarz-Weiß-Malerei; eine Art Holzschnittechnik.”
  • 21
    Sobre o riso e sua relação com o mecânico e o repetitivo, cf. Bergson (2011).
  • 22
    “Nora muß auf jeden Fall von einer akrobatisch geübten Schauspielerin gespielt werden, die auch tanzen kann. Sie muß die jeweils angeführten Turnübungen machen können, dabei ist es aber egal, ob es ‘professionell’ wirkt oder nicht, es kann also ruhig auch ein wenig ungeschickt aussehen, was sie macht.”
  • 23
    “Ihr Verhalten steht im Widerspruch zu ihrer ziemlich heruntergekommenen Kleidung.”
  • 24
    “Er wird immer mehr verschnürt.”
  • 25
    “Ist das dort Sèvres-Porzellan, diese Tassen mit den Blumen drauf…? Wirklich, dieses Heim hat Stil und Geschmack.”
  • 26
    “Bei Helmers im Eßzimmer. Helmer sitzt beim Abendessen und liest Zeitung. Idyll. Er läßt sich von Nora bedienen.”
  • 27
    “Den Tonfall möchte ich fast durchgehend, vor allem bei den Männern, rasch, ágil, dynamisch, leicht.”
  • 28
    “Sie müssen gefährlich wirken wie Götzenbilder, sprechen jedoch im leichtesten Konversationston”.
  • 29
    “Die ältere ist zu alt und etwas zu dick für ihren Sportdreß. Aber auch die jüngere paßt nicht recht zu ihrer Bekleidung, die beinahe futuristisch ist.”
  • 30
    “Sie trägt ein modisches, fließendes Kleid. Aus ihrem Körper ragen diskret ein, zwei Pfähle, aus denen Blut rieselt.”
  • 31
    “Carmilla hängt tot im Sessel, was aber niemand zu merken und niemand zu stören scheint. Zwischen ihren Beinen Blut.”
  • 32
    “Ihre Männer kommen als Elch, bzw. Bär verkleidet herein. Die Kostüme passen ihnen nicht, sind ihnen zu groß. Der Elch tritt auf sein Gewand und stolpert.”
  • 33
    “Beide Frauen schreien im Chor, als steckten sie am Spieß. Es muß aber nicht ängstlich, sondern komisch wirken. Also eine Art demonstratives Wehgeschrei. […] In den Kabinen eine Art Orgie mit Gekicher und Gestrampel, mas sieht manchmal nur die Füße [Pfoten] kurz auftauchen und wieder verschwinden.”
  • 34
    “Dann stürzen sich die beiden Frauen wie die Wölfinnen auf je eins der Kinder und reißen es zu Boden. Es gibt einen wahnsinnigen Kampf, weil das Kind sich wehrt. Die Frauen beißen den Kindern die Kehlen durch. Der Säugling quäkt: Mamaa! Mamaa! Die Frauen trinken die Kinder aus, die Männer stehen unbeteiligt daneben.”
  • 35
    “Sie ist dort, wo sie immer ist. Kinder sind eben Kinder.”
  • 36
    Sobre os mitos triviais, sua definição segundo Roland Barthes e seu importante papel na estética de Jelinek cf., por exemplo: Schenkermayr (2009) e Janz (1995).
  • 37
    Cf., por exemplo, a peça Häuptling Abendwind oder Das greuliche Festmahl [O cacique Vento da Noite ou O festim abominável], de Nestroy, uma peça com traços absurdos e grotescos e com alusões satíricas contra o nacionalismo europeu e o mito da vida civilizada. (Disponível em: https://gutenberg.spiegel.de/buch/hauptling-abendwind-5115/1). Em Präsident Abendwind [Presidente Vento da Noite], Jelinek dialoga explicitamente com essa peça de Nestroy e alude, ao mesmo tempo, ao seu próprio contexto político, o escândalo em torno da eleição de Kurt Waldheim para a presidência da Áustria. (Disponível na homepage da autora: https://www.elfriedejelinek.com/).
  • 38
    “Frauen über vierzig sind keine Frauen mehr. Ich wollte aber doch so gern ein Tier kennenlernen”.
  • 39
    “[…] als stamme er von einem hartnäckigen Tier ab, dem es ums Fressen, Saufen, Singen und Ficken geht und um sonst nichts.”
  • 40
    “Bei unseren Stars ist das natürlich anders, bei denen ist alles anders, aber was soll der Sänger mit denen anfangen, die da vor seinem Gesicht ihr Geschlecht hervorziehen und aufklappen, und das weibliche Geschlecht ist schon in seiner frühesten Phase einfach überall, man kann schauen, wohin man will, die sind einfach überall, die Mädels mit ihren tückischen Spalten, die sind wie Sandhaufen, Sandbänke, Treibsandlöcher, nehmen jeden auf […]”.
  • 41
    Para uma discussão mais aprofundada sobre a obra e a língua de Nestroy, sua força crítica e satírica, cf., também, Schmidt-Dengler (2001).
  • 42
    NORA: Ich möchte die Menschenwürde und das Grundrecht auf freie Entfaltung der Persönlichkeit hochhalten. PERSONALCHEF: Sie können überhaupt nichts hochhalten, weil Sie Ihre Hände für Wichtigeres brauchen.
  • 43
    “Wie müssen imstande sein, die Frauen als Ganzheit zu sehen.”
  • 44
    “Er nimmt ein besonders großes aufblasbares Organ heraus, es ist amorph und braun […].”
  • 45
    “Bin wohl schon im Keinort, aber nein, doch nicht im Kurort, wo denken Sie hin.”
  • 46
    “der Apoll, der Schweiger, äh, Schwieger-Papi!”
  • 47
    “Bitte sich hier. Von der Ästhetik der kommerziellen Pornofilme inspirieren lassen.”
  • 48
    No seu artigo, Finney apresenta uma análise interessante da comicidade em Jelinek a partir das categorias do chiste estabelecidos por Freud, a qual não pode ser discutida aqui de modo aprofundado tendo em vista os limites deste artigo.
  • 49
    “Wie viele Zeitgenossen wollen auch Sie nichts als genossen werden, stimmt’s?”
  • 50
    “Sie sind Geschlecht. Schlecht sind sie nicht unbedingt.”
  • 51
    “Ich bin bei allem, was ich je getan habe, ich selbst geblieben. Bleib auch du mir treu, Emily!”
  • 52
    A intertextualidade é um aspecto que possui grande relevância na obra jelinekiana e também uma evidente relação com sua dimensão cômica. Porém, essa questão não será aprofundada aqui, pois extrapolaria os limites deste artigo.
  • 53
    “Ich habe meiner Frau schon öfter erlaubt etwas zu bedeuten. Sie soll mehr aus sich machen. Sie hat schon oft was aus sich gemacht.” - “Seien Sie mehr in den Beifall der Welt verliebt! Werden Sie meinetwegen spätberufener Virtuose! Werden Sie Gigant! Werden Sie wie ich Wassersportler! Sie haben es. Sie haben es in sich. […] Seien Sie meinetwegen ein König in Ihrem Bereich. Verlangen Sie Dienstleistungen! Sie stehen Ihnen zu. Nur bitte, bitte: Stehen Sie dem Unterleib dieser Frau ein wenig gleichgültiger gegenüber. Sie ist übrigens tot.!”
  • 54
    Texto ainda não publicado. Estreia no Deutsches Schauspielhaus em Hamburg (outubro de 2017). Para mais informações: http://www.rowohlt-theaterverlag.de/tvalias/stueck/3519270.
  • 55
    “Er würde mich als Schatten gar nicht sehen, so gut wie er dasteht, so groß wie ein Gott […]. Er findet sich nicht ab. Wir fragen uns, ob er trauert, weil er mich verloren hat, wie er angibt. Aber er ist ja immer ein Angeber gewesen. In Wahrheit trauert er, weil er sich selbst verloren hat, weil er etwas hergeben musste, in Form von etwas, egal was, Bescheidenheit ist ihm nicht gepredigt worden. Es geht nicht, dass ihm etwas weggenommen wird.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2019
  • Aceito
    10 Set 2019
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