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O conceito de Espírito nos Ensaios Bíblicos de Herder

[The Concept of Spirit in Herder’s Biblical Essays]

Resumo

Este estudo investiga alguns ensaios bíblicos de Johann Gottfried von Herder com o fim de pormenorizar o surgimento do conceito de “espírito” (Geist) em sua filosofia e de salientar como essa concepção simultaneamente se insere e redefine a tradição judaico-cristã sobre o tema. Para tanto, são analisados os textos Lieder der Liebe, Vom Geist der Ebräischen Poesie e Von der Gabe der Sprachen am ersten christlichen Pfingstfest a partir dos quais o espírito é pensado, ao longo de três décadas (entre 1778 a 1794), respectivamente como: poesia popular, vitalidade social, organicidade e cultura. É possível afirmar que os ensaios bíblicos de Herder ultrapassam a teologia, investigando, de maneira laica, as especificidades das religiões, das línguas, das tradições ou das culturas, cujas nuances podem esclarecer ou questionar dicotomias relevantes, tais como: natureza-cultura, cultura-civilização ou até mesmo humanidade-animalidade.

Palavras-chave:
Herder; Espírito; Poesia hebraica; Vitalismo; Organicidade

Abstract

This article investigates some biblical essays of Johann Gottfried von Herder in order to demonstrate the emergence of the concept of “spirit” (Geist) in his philosophy and stresses how this conception simultaneously fits in and redefines the Judeo-Christian tradition on the subject. The article analyses the texts Lieder der Liebe, Vom Geist der Ebräischen Poesie and Von der Gabe der Sprachen am ersten christliche Pfingstfest, as starting points in which “spirit” is thought over three decades (from 1778 to 1794) respectively as: popular poetry, social vitality, organicity and culture. In that respect Herder's biblical essays overpass theology, investigating, in a secular way, the specificities of religions, languages, traditions or cultures, whose nuances may discern and question relevant dichotomies, such as: nature-culture, culture-civilization, or even humanity-animality.

Keywords:
Herder; Spirit; Hebrew poetry; Vitalism; Organicity

1 Introdução

Johann Gottfried von Herder foi uma peça-chave para a disseminação do termo “espírito” (Geist) em um viés laico e, além disso, suscitou impactos imediatos na filosofia e na política, marcando diretamente a estética romântica e conceitos do idealismo alemão. Ao longo de seus escritos, o termo passa a ser conceituado como a própria vitalidade inerente ao homem e aos seres vivos, a qual se adapta a novos contextos, línguas e tempos. No entanto, esse “espírito” elaborado e difundido por Herder não pode ser considerado uma concepção exclusivamente moderna. Conforme as palavras do próprio autor, “no Antigo Testamento, o Espírito chama-se vida, vigor, respiração, hálito, sopro, coragem e força, desde o início e na maior parte.” (Herder 1794: 48) Tal releitura da tradição bíblica indaga sobre a relação conceitual latente entre o Geist moderno e esse “espírito” (ruah/pneuma) bíblico.

Esta investigação demonstra como o conceito de Geist de Herder está profundamente relacionado ao “espírito” da tradição judaico-cristã, sendo uma importante encruzilhada entre os antigos saberes sobre ruah, pneuma ou spiritus e concepções tipicamente modernas como nação, povo ou cultura.2 2 Para a citação e a consulta de termos do Antigo e do Novo Testamento, foi utilizada a obra: Nestle, Eberhard. Novum Testamentum Graece et Latine. Stuttgart: Priviligierte Württembergische Bibelanstalt, 1923. Para as citações de passagens bíblicas, foi utilizada a versão portuguesa da Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 2002. Quando houve modificação da tradução durante o texto, essas alterações foram indicadas em notas de rodapé. Por fim, as citações em alemão da obra de Herder também foram cotejadas com a versão inglesa editada por Michael Forster em: Herder, 2002. Não se pretende, porém, realizar uma leitura teológica sobre a obra de Herder, mas se trata de entendê-lo como um marco no conceito de “espírito” na medida em que valoriza as especificidades de cada cultura. Assim, o Geist herderiano é analisado enquanto expressividade popular, enquanto vitalidade dos povos, além de organicidade política e cultural. Com isso, pode-se destacar sua singularidade tanto para a estética romântica, da qual ele certamente foi um dos inspiradores por sua liderança no movimento Sturm und Drang, quanto para a tendência idealista que surgia na filosofia de Fichte3 3 Desde já, é importante traçar uma distinção entre a concepção herderiana de Geist e aquela de Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), a qual abre o caminho para o idealismo alemão em seu sistema filosófico. Fichte, chegou a elaborar um conceito de “espírito”, embora sua concepção seja predominantemente intelectualista, enquanto a de Herder o entendia como a vitalidade inerente aos povos. Em uma das cartas destinadas a Schiller, Fichte não evita considerar o “espírito” como uma sorte de princípio criador de ideias, mais voltado para a estética e para a filosofia em geral, abrindo um caminho de racionalização. Em suas palavras, “O espírito é, então, uma capacidade dos ideais. O espírito deixa para trás os limites da realidade e em sua esfera própria não há limites.” (Fichte, 2014: 143) ainda ao final do século XVIII, antes mesmo do sistema filosófico de Hegel e de sua Fenomenologia do Espírito. Além disso, a análise dos ensaios religiosos de Herder e a releitura de conceitos derivados de seu Geist, como povo, nação ou cultura contribuem certamente para desmistificar o lugar obscuro, embora fundamental, que o autor ocupa nas discussões de estética, historiografia, filosofia da linguagem, teoria política ou mesmo antropologia.

O “espírito”, para Herder, é o próprio dinamismo vida comum a toda a humanidade e também o princípio capaz de diferenciar os povos em suas variações linguísticas ou expressões autóctones. Ainda assim, esse Geist não se restringe à estética ou à estilística, abarcando, também, decorrências políticas, éticas e linguísticas. Resumidamente, a exemplo do ensaio sobre Pentecostes, Geist passa a ser o conceito fundamental para Herder afirmar que o homem tem, somente, “um mito, uma língua e uma linguagem: ela une os espíritos, que as armas e as políticas rompiam e separavam umas das outras. Apenas o entusiasmo não faz isso sozinho, senão a interpretação, o trato fraterno e a conciliação.” (Herder 1794: 140) Ademais, como será demonstrado, a distinção entre Geist, Volksgeist e Kultur foi a base para diversos conceitos contemporâneos de cultura.

A presente análise foi disposta em três momentos, conforme a leitura dos seguintes ensaios bíblicos de Herder: a) o primeiro consiste no estudo sobre o Cântico dos Cânticos (Herder 1781Herder, Johann Gottfried von. Lieder der Liebe: die ältesten und schönsten aus Morgenlande, nebst vier und vierzig alten Minneliedern. Leipzig: Weygand, 1781.), (Lieder der Liebe: Die ältesten und schönsten aus Morgenlande, nebst vier und vierzig alten Minneliedern), publicado originalmente em 1778. Tal livro, em linhas gerais, é um esforço inicial para reconhecer nos versos hebraicos uma poesia popular na qual sobrevém uma preocupação estilística aliada a um gesto quase antropológico de valorização das especificidades culturais; b) Posteriormente, o texto trata do livro Do Espírito da poesia hebraica (Herder 1825) (Vom Geist der Ebräischen Poesie), originalmente de 1782, no qual é possível perceber uma conceituação aprofundada sobre o tema e sobre uma aporia que suscita maiores reflexões: a de que o Geist seria o princípio da vida, o laço que uniria distintas nações e distintas tradições poéticas em uma mesma origem. Nesse texto, há diversas reflexões de cunho linguístico capazes de complementar algumas ideias anteriores do autor acerca expressividade artística como parte da variação das línguas e dos povos ao longo do tempo; c) Finalmente, a análise foca a questão neotestamentária em Sobre o dom das línguas no primeiro Pentecostes cristão (Herder 1794) (Von der Gabe der Sprachen am ersten christlichen Pfingstfest), publicado originalmente em 1794. Nessa obra, Herder explicita um caminho de secularização na história do “espírito”, observando-o como uma organicidade inerente à vida das nações. Com esse gesto, contestou o caminho iluminista de civilisation, o qual almejava uma equiparação universal dos povos, para propor uma alternativa germânica de Kultur, conceito que prima pelas diferenças entre os povos e em torno do qual permeiam muitas discussões e inquietações por parte das ciências humanas.

2 Cânticos dos Cânticos como poesia popular

Herder afirma em seu ensaio Lieder der Liebe que os cânticos de amor seriam uma verdadeira poesia espiritual. Não exatamente por uma questão de religiosidade, senão por se tratar de uma emanação autenticamente popular, da qual lhe interessam tanto seus aspectos formais, quanto seu contexto histórico. O autor, a esse respeito, foi um dos primeiros a reconhecer elementos estilísticos nos livros poéticos da Bíblia, como Cântico dos Cânticos, Salmos ou . Apesar de Robert Lowth4 4 Robert Lowth (1710-1787) foi um pastor inglês pioneiro na redescoberta da versificação bíblica durante a modernidade. Realizou uma análise eminentemente formal da poesia hebraica, embora tenha reconhecido nela critérios poéticos próprios, distintos das rimas das línguas neolatinas ou da metrificação da poesia clássica grega ou latina. Logo, os textos bíblicos versificados, como o Pentateuco, Cântico dos Cânticos ou Jó estariam marcados pelo intercalar de imagens ou ideias, mas não exatamente por repetições de sons, como se dá, por exemplo, nas línguas latinas a partir da Renascença. Em outras palavras, Lowth foi pioneiro ao afirmar que a poesia bíblica é marcada por paralelismos semânticos, um conceito chave para compreendê-la até aos dias atuais. haver sido pioneiro nesse sentido alguns anos antes, Herder se diferencia expressamente deste predecessor britânico por conta de uma abordagem que vai além de questões formais, sendo capaz de reunir simultaneamente aspectos linguísticos, políticos e sociais dos textos poéticos bíblicos. Em linguagem acessível e dirigida ao público leigo, Herder ultrapassa uma mera leitura de formalidades estilísticas, salientando sobretudo a poeticidade do livro sagrado, determinada pelo seu processo e por seu contexto de formação (Bildung). Nesse propósito, o autor ressalta a expressão e a música do Cântico dos Cânticos em uma metáfora orgânica: tal como flores que brotam, a poesia hebraica seria fruto de uma vitalidade popular, possível de fazer sentido para o leitor do tempo presente.

Seriam pedantes e ‘entendidos’ os que desejassem nos ensinar apenas hebraico ou metro anacreôntico no Cântico dos Cânticos, simultaneamente impedindo outra aplicação ou alento da alma. A Natureza, doçura e amor, é uma só em toda parte. Onde o coração adentra com as palavras deste livro a fim de orar, discursar, contemplar, amar, aí pode-se fazer tal como o fizeram Isaías, Cristo e João. Sendo assim, cada flor desabrochará fresca nesta nova posição e sua alma e seu ânimo emprestar-lhes-ão belas cores vivas neste contexto e neste tempo. (Herder 1781Herder, Johann Gottfried von. Lieder der Liebe: die ältesten und schönsten aus Morgenlande, nebst vier und vierzig alten Minneliedern. Leipzig: Weygand, 1781.: 127) 5 5 “Es wären Pedanten und Wortkrämer, die uns am Hohenliede nur Hebräisch lehren und Anakreontisch singen lehren wollten; weitere Anwendung und Seelenspeise daran aber untersagten. Ist die Natur, wie Süßigkeit und Liebe, überall nur Eins; wo dir dein Herz eingiebt, mit den Worten dieses Buchs zu beten, zu reden, zu betrachten, zu lieben; da kannst du’s so ungehindert thun, als Jesajas Christus und Johannes es thaten. Jede Blume wird gleichsam frisch blühen auf dieser neuen Stelle und deine Seele, dein Muth, ja dieser Ort und diese Stunde werden ihr frische schöne Farben leihen; jeder mann aber siehet, daß diese unendlichen, so augenblicklichen, so unbestimmbaren Anwendungenden Ersten wortverstand nicht aufheben, sondern vor aussezen, bestätigen und gleichsam bewähren.”

Herder valoriza a autenticidade popular da poesia bíblica, questionando os padrões estéticos iluminista e neoclassicista do século XVIII, os quais costumavam restringir a beleza à tradição greco-latina. Nesse sentido, retoma algumas ideias de seu mentor Johann Georg Hamann (1730-1788), como a de que o grego bíblico (ou koiné) não seria inferior ao grego homérico ou ático, pois sua expressão simples seria a mais condizente com seu contexto histórico. Em Kleeblatt Hellenistischer Briefe, de 1762, Hamann chega a afirmar que os livros do Novo Testamento foram escritos “em terras judias sob domínio dos romanos por pessoas que não eram literati de seu saeculum, então a característica de seu estilo é a mais autêntica prova sobre o autor, sobre o lugar e sobre o tempo desses livros.” (Hamann 2007: 36). Essa leitura de Hamann, que problematiza tanto o momento histórico quanto o seu estilo, marcaria profundamente Herder, bem como todo o romantismo alemão posterior.

Herder, em seu ensaio Lieder der Liebe, vai além da expressividade mística de Hamann ou de um estudo formal dos tropoi nas palavras, como os de Lowth, a fim de salientar a espontaneidade popular de uma língua e de seu contexto de formação. Acerca do tema, Baildam entende que Herder “julgava a Bíblia eminentemente como literatura. Ela seria uma expressão do Volksgeist do povo que a escreveu: e isso era um traço da verdadeira poesia para Herder.” (Baildam 1999: 90) Na medida em que elevou a autenticidade de uma obra em relação a um povo como o principal valor para a poesia, Herder considera o valor do texto do Cântico dos Cânticos em pé de igualdade com o de Homero, perfazendo para a arte hebraica um gesto análogo àquele de Winckelmann em relação à arte grega.

Entretanto, a argumentação do ensaio Lieder der Liebe excede a estilística e a teologia, promovendo uma leitura que procura considerar as mais variadas peculiaridades do homem e da nação judia em relação às suas tradições e ao meio físico. Na investigação dos Cânticos, considera o texto poético como uma autêntica emanação do “espírito”, embora sua força se deva apenas às palavras e aos pensamentos, igualmente humanos. Assim, a poesia hebraica não seria um código místico digno de ser cultuado, mas uma revelação divina operada no seio da história real. Johannes Schmidt, bem como boa parte da crítica mais recente6 6 Essa consideração de Herder sobre as especificidades culturais de diferentes povos foi compreendida enquanto um gesto antropológico em seu pensamento na coletânea de textos organizada por Anik Waldow e Nigel de Souza intitulada Herder: Philosophy and Anthropology. Consultar: Waldow; De Souza, 2017. , lê essa atitude como uma “antropologia religiosa”. Conforme o autor, “isso, de fato, torna possível compreender Deus utilizando-se dos mesmos dados empíricos e sensórios, considerados por Herder para seu entendimento acerca da natureza, da história, da cultura e dos seres humanos.” (Schmidt 2017: 189)

A redescoberta do hebraico por Herder não significou, por conseguinte, uma nova poética ou um novo ideal artístico bíblico a ser difundido nas academias ou nos salões europeus. Antes, consistiu em um anseio por liberdade de criação artística e em uma inédita relativização dos estilos e dos valores estéticos classicistas, a fim de reconhecer dignidade e beleza em todas as línguas, povos e nações. Nesse gesto, o pensador instigou a tradução de documentos de diferentes tradições do passado ou até mesmo do presente a fim de ressaltar autênticas emanações de “espíritos do povo” (Volksgeister).

Essa busca por diversas tradições e a consequente relativização do valor da arte clássica buscava indiretamente redescobrir a própria tradição germânica, de modo que a poesia hebraica serviria como um importante contraponto no trabalho de relativização dos padrões estéticos neoclássicos. Tal seria um pré-requisito para a aceitação de diversas tradições populares, de suas peculiaridades histórico-geográficas e especialmente das características fonéticas de seu próprio idioma. Enfim, a poesia alemã poderia alcançar a excelência de suas contrapartidas grega, latina ou hebraica quando os caminhos já traçados por ela no “espírito” passassem a ser considerados dignos pelos próprios germânicos e quando houvesse maior liberdade poética aos temas, às imagens e até aos tropoi advindos de sua própria tradição.

Essa necessidade de valorização do Geist da própria língua e do que viria a ser considerada como a nação alemã não significa, logicamente, a rejeição ou a discriminação de outras tradições poéticas. Sikka, na linha iniciada por Isaiah Berlin, entende que Herder ultrapassa um pluralismo ou um mero multiculturalismo, reconhecendo nele um verdadeiro relativismo que antecipa uma visão antropológica para a análise dos povos. Para a autora, o ensaísta prussiano abdica do rigor filológico em suas comparações de línguas para conceder maior valor à forma de vida que gerou essas variações. Portanto, “a própria análise de Herder sobre obras literárias coloca a necessidade de interpretá-las dentro de seus contextos histórico e cultural, sugerindo, ao mesmo tempo, que revelam o espírito de um povo de uma maneira específica e profunda.” (Sikka 2011: 139)

Nesse sentido, o estudo de Herder sobre as especificidades da poesia hebraica é paralelo a outros trabalhos que realizou em relação a outras tradições. Vale lembrar que, como leitor, não privilegiou alguma obra canônica sobre todas as outras, como a Bíblia ou a poesia de Homero, já que também era um profundo leitor de Dante, assim como publicou estudos basilares para a redescoberta de Shakespeare na Europa continental, além de haver comentado muitas vezes sobre o controverso de Ossian, que haveria supostamente legado a épica para as línguas célticas. Por isso, antes mesmo de Goethe haver cunhado seu pensamento sobre uma Weltliteratur, Herder compreendeu como a pluralidade de tradições antigas e modernas poderia suscitar uma maior compreensão sobre a particularidade espiritual da própria língua alemã. Esse seu gesto comparatista e individualizante sobre as letras hebraicas, portanto, almejava contribuir para a renovação das próprias letras germânicas, pois sua proximidade ao “sopro da vida” poderia ajudar a compreender o princípio vital comum a todos os povos. Essa problemática de Geist enquanto fator de unidade foi ainda mais aprofundada em Do Espírito da poesia hebraica, tema do próximo item.

3 As letras hebraicas e o espírito enquanto princípio da vida

Como se observou, Herder é um pioneiro ao estudar a Bíblia como literatura, embora seu gesto secularizante de tomar o sagrado como literário não o tenha impedido de realizar uma leitura particularizada sobre textos religiosos. Assim, em Do Espírito da poesia hebraica, o autor conceitua o “espírito” como a capacidade expressiva das línguas antigas ou modernas e, simultaneamente, realiza uma genealogia de seus contextos vitais, conceituando-o para além da estilística ou da religião. Além disso, esse aspecto atento para as especificidades da cultura hebraica por Herder possibilitou-lhe propor considerações de teor político sobre os textos bíblicos, especialmente por entender o Antigo Testamento como uma verdadeira Lei judaica ou até mesmo como uma constituição natural para povos ou para as nações do mundo.

A temática do “espírito” e os seus impactos nas línguas e nas literaturas são conceituados na forma de diálogo em Do Espírito da poesia hebraica. Nessa conversa, o personagem Eutífron, um religioso, interpela Alcífron, um retórico acerca do fundamento da linguagem no livro de Jó. O estudo inicia mencionando a importância da aspiração e da expiração do ar na poesia. Para o autor, o próprio sopro do ar seria o princípio da manifestação divina no mundo humano e, em seguida, comprova esse raciocínio mencionando o seguinte trecho do livro de Jó em tradução alemã:

Porque estou cheio de palavras, pressionado por um sopro (Othem) interior. É-me como vinho que quer transbordar Como odres novos que explodem. Falarei para ficar aliviado Abrirei os lábios para responder.7 7 A tradução alemã utilizada por Herder sobre esse trecho do livro de Jó é a seguinte: “Der Rede bin ich voll! / mich ängstiget der Othem meiner Brust! / Er gährt in mir, wie der zugestopfte Most, / wie der neue Sclauch zerreißt. / Reden will ich und Luft mir machen, meine Lippen will ich öffnen und antworten” (Herder 1825: 13) ( 32:18-11)

Na passagem, Herder associa diretamente Geist à tradição bíblica quando destaca a passagem literal de ar pelos órgãos de fala, relacionando-a com o ruah, o espírito de Deus, que, conforme o Gênesis, “modelou o homem com argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.” (Gênesis 2: 7) A maior força da poesia hebraica estaria em sua proximidade com o próprio Espírito, ou seja, com o próprio sopro da vida, muito mais do que em elementos formais, como os paralelismos (semânticos) ou as rimas, elementos que, vale lembrar, haviam sido muito estudados por Robert Lowth alguns anos antes.

A compreensão herderiana de Geist como aspiração física, paradoxalmente, não era alheia às letras greco-latinas. Ainda assim, a partir dos estudos de Gérard Verbeke (1945Verbeke, Gérard. L’évolution de la doctrine du Pneûma, du stoicisme à S. Augustin. Paris: De Brouwer; Louvain: Éditions de l’Institut superieur de philosophie, 1945.), pode-se afirmar que a tradição da medicina de Hipócrates ou as teorias estoicas sobre o pneuma não entendiam esse sopro individualmente, como movimento corporal de algum um homem ou de algum animal. Ao contrário, esse sopro era coletivo por excelência e perfazia uma espécie de elo sutil presente em todos os seres vivos, sendo capaz de transmitir a vida àqueles que respiram. Portanto, Herder possui alguns pontos de contato tanto com o viés greco-latino quanto com o hebraico, assim como compreende que Geist é o conjunto de especificidades de um povo em um sentido não necessariamente transcendente, levando em conta características linguísticas, morais e até mesmo geográficas, como os climas ou topografias. Contudo, no caminho dos povos, o autor concede um lugar especial à tradição hebraica, a qual é entendida como um sopro exterior dado por graça a todos os seres humanos, sopro este que passa a ser lido analogicamente como expressividade nas línguas por meio do aparelho fônico.

Quando se abrem esses lábios, a expressão está cheia de vida e os corpos expressam a forma das coisas, enquanto se dão aos sentimentos; e isso, parece-me, é o espírito (Geist) da língua hebraica: ele é cheia do hálito da alma. (Athems der Seele). Não reclama a beleza do som, como o grego, senão que respira e vive (lebet).8 8 “Wenn diese Lippen sich öffneten, ward es gewiß lebendiger Laut, Bild der Sache im Athem der Empfindung; und das ist, dünkt mich, der Geist der Ebräischen Sprache. Sie ist voll Athems der Seele: sie tönt nicht wie die Griechische, aber sie haucht, sie lebet.” (Herder 1825Herder, Johann Gottfried von. Vom Geist der Ebräischen Poesie: eine Anleitung für die Liebhaber derselben und der ältesten Geschichte des Menschlichen Geistes. Lepzig: Johann Ambrosius Barth, 1825.: 13)

Como se observou, as línguas são um dos aspectos da vitalidade espiritual comum a todos os povos para Herder e, se fosse possível diferenciá-las a partir de seus monumentos literários, também seria possível aproximá-las pelas respectivas diferenças de expressão. Desde seu estudo Ainda uma filosofia da história para a formação da humanidade (Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit), de 1774, Herder opôs, à concepção histórica iluminista de Voltaire, uma redefinição para as particularidades de cada agrupamento humano, para compreender seu espírito próprio, Volksgeist. Essas determinações que complexificam a humanidade certamente fomentam o historicismo em seu pensamento, sobretudo por partir da individualidade de cada fragmento cultural9 9 Friedrich Meinecke (1972) afirma que as buscas por individualidade e por fragmentos são os fundamentos principais das diferentes modalidades de historicismo desde o século XVII, considerando Herder dos autores mais importantes nesse percurso. A tese de Meinecke, ademais, além de retirar a carga pejorativa do termo, diferencia diversos historicismos de conceitos com os quais costuma ser comumente relacionado, como o nacionalismo ou mesmo Estado. , e, por outro lado, pelo esforço de conceituar a convivência e a sucessão das mais variadas nações.10 10 Herder estabelece o conceito moderno de nação (Nation) distinguindo-o tanto do povo em sentido iluminista, isto é, como conjunto de indivíduos que almejam um ideal civilizatório universal e, ademais, o diferencia de um mero Volk, que, apesar de ser uma individuação natural, não chega a ser uma unidade política espontânea, como uma Nation. Conforme Isaiah Berlin, “Para ele, a Nação não é uma entidade política.” (Berlin 1976: 181) Em contrapartida, também é necessário afirmar como era importante para Herder (1774) o entendimento de que todas as nações compartilhariam de um mesmo Geist, o qual pode ser entendido como um dinamismo linguístico universal, comum a todos os povos e nações.

Por conta disso, o espírito é, para Herder, um elemento principalmente unificador das diferentes nações, uma vez que o elo vital que as une também seria um princípio de metamorfose capaz possibilitar a diversidade de expressões de maneira espontânea e isenta de qualquer teleologia pré-definida. Acerca dessas características do pensamento de Herder, Graukoger (2016Graukoger, Stephen. The Role of Aesthetics in Herder’s Anthropology. In: DE SOUZA, Nigel; WALDOW, Anik. Herder: Philosophy and Anthropology. Oxford: Oxford Press, 2016.) salienta que a linguagem não é “um meio de representação para ele, mas sobretudo um meio de expressão. E é este papel expressivo da linguagem que é crucial para sua consideração da formação do caráter, que é o ponto final de sua antropologia.” (Graukoger 2016: 99) Enfim, o dinamismo, isto é, o movimento vital seria o verdadeiro laço entre os homens e aquilo que os distingue, a partir de das necessidades de cada contexto histórico e geográfico.

Se, por um lado, a língua hebraica era a emanação do Espírito, por outro lado, a Torá, ou seja, a Lei judaica mediada por Moisés, seria um laço constitutivo de uma verdadeira nação: não no sentido jurídico de uma constituição escrita, mas como o maior exemplo de uma formação (Bildung) de uma instituição política espontânea, autêntica e espiritual. Se é verdade que o conceito moderno de “nação” remonta necessariamente a Herder, também há de se recordar como algumas disseminações tardias e particulares de nacionalismo, como a do nazifascimo, tiveram seus papéis na tragédia do século XX. Atualmente, no século XXI, o “nacionalismo” parece estar inclusive muito em voga no debate político. E não exatamente de maneira positiva.11 11 Em pronunciamentos de presidentes como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, o nacionalismo passa a ser retomado como uma solução contrária à aproximação pessoas e de povos, o que chamam de “globalismo”. Sobre o tema: Mounk, 2019. Essa leitura de nação, porém, não condiz exatamente com as teorias de Herder, pensador fundamental e indispensável para se pensar sobre o potencial da “nacionalidade” ante a ameaça dos “nacionalismos”, constituindo uma importante referência para a nação enquanto disseminação de diferenças, conforme Bhabha, 1990. Por fim, a nação em Herder fomenta as particularidades locais como contribuição para uma Humanität heterogênea e plena de antagonismos. Ver: Berlin 1976. Diante dessa questão, vale lembrar que, para Herder, nação é tão somente a formação de uma organicidade popular inerente a um determinado povo. E, embora o autor não tenha pensado sobre o problema da homogeneidade cultural inerente a seu próprio conceito, a nação jamais poderia ser alcançada como imposição violenta de uma autoridade, característica que hoje é reivindicada por muitos ditos “nacionalistas” do Brasil e do mundo.

A esse respeito, Frederick Barnard (2003Barnard, F. Herder on Nationality, Humanity and History. Montreal e Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2003.) compreendeu as semelhanças entre Heinrich Heine e Herder em relação à refutação de violências de cunho religioso ou a assimilações forçadas a que os judeus eram muitas vezes submetidos. O autor demonstra como, em ambos os casos, a afirmação das diferenças entre nações era vista de uma maneira altamente positiva, as quais poderiam sanar algumas insuficiências do Iluminismo. Assim, o impulso dos ideais de Humanität impunha valores universais atemporais e, para Herder, “a ênfase e a funcionalidade desses valores poderiam tomar concatenações divergentes e diferir de sociedade para sociedade ou mesmo poderiam variar dentro de uma própria sociedade ou conforme cada época.” (Barnard 2003: 77) Sendo um pesquisador muito assistemático, Herder não destacou as autonomias linguísticas e culturais no propósito de equipará-las a alguma teleologia ou hierarquia, senão que justamente almejou salvaguardar os judeus e qualquer outro povo de conversões forçadas ou de assimilações violentas, reivindicando, em contrapartida, uma real autodeterminação a todos eles. 12 12 Ainda conforme Barnard, as ideias de Herder e seus impactos em Heine teriam sobre ações concretas apara garantir a autodeterminação dos judeus chegam mesmo a adiantar o sionismo: “This fusion not only anticipated Zionism but also yielded pointers in the direction of tolerance and emancipation.” (Barnard: 2003: 72)

Esse destaque às pluralidades e esse ímpeto de Herder em defender as diferenças nas línguas e nos costumes sugere uma relativização da cultura, algo que pode ser concluído a partir do problema das variações linguísticas, tema central de seu Ensaio sobre a origem da linguagem (Abhandlung über den Ursprung den Sprache), de 1772. Nesse escrito, resumidamente, as línguas seriam adaptações aos diversos contextos, espaços e tempos em que estivessem. Para Herder, a linguagem humana sobre a superfície da Terra passa a ser entendida como um elemento tão maleável quanto as metamorfoses de Proteu, ser mitológico capaz de tomar qualquer forma. Pois, “o homem deve viver em todas as regiões da terra, enquanto um animal apenas deve possuir seu território e seu ambiente restrito. [...] Sendo assim, também sua língua será a língua da terra; distinta em cada mundo distinto, nacional em cada nação.” (Herder 1772: 192) Esse ensaio de Herder é pioneiro em relação à linguística moderna por considerar, a partir de seu relativismo cultural, a língua humana principalmente em relação a seus contextos históricos e geográficos, bem como a equiparação entre o que considerou linguagem humana e linguagem animal. Além dessas colocações, pode-se afirmar que, para Herder, seriam as línguas e, mais exatamente, a linguagem que moldariam o pensamento e não o contrário, vindo a ser uma conceituação fundamental para toda a filosofia da linguagem contemporânea.

No entanto, como pensar essa proeminência da linguagem em relação ao pensamento se “espírito” é um conceito de contornos claramente metafísicos, aliás condizente com a busca por um princípio vital comum ao ruah hebraico, ao pneuma grego ou ao spiritus latino? A resposta de Herder está novamente em se aproximar de uma filologia que se antecipa a uma busca antropológica avant la lettre, pois não pensa Geist como uma categoria teológica ou como uma entidade transcendente: antes, o autor especula sobre o “espírito” sempre em chave secular, isto é, como literatura, como história, como língua ou ainda como política, entre outras possibilidades. Defendemos a hipótese de que a linguagem é seu principal dado espiritual a plantear um sentido universal de Humanidade, ainda que somente seja possível percebê-la materializada em idiomas e em variações de línguas das mais diversas origens e tradições. Desse modo, a linguagem (Sprache) pode ser considerada a parcela de vida - ou o dado espiritual - que, por excelência, reúne homens, povos, nações e, inclusive, as próprias línguas (Zungen). Também a diferença entre linguagem e línguas é pensada conforme uma vitalidade comum adaptada a contextos diversos e sem alguma teleologia, evolucionismo ou direção histórica assimilável aos homens.

Nesse propósito de destacar algum elemento unificador da humanidade, o Ensaio sobre a origem das línguas possui algumas considerações que não foram suficientemente consideradas pela linguística ou pela filosofia política até hoje. A principal delas, a título de exemplo, é a refutação do monopólio humano sobre a linguagem, pois, de um modo absolutamente arrojado, Herder não a considerava como um fator diferenciador entre homens e feras. Diferentemente das considerações sobre linguagem de Descartes e Rousseau, para Herder, o que destacaria os seres humanos seria tão somente o nível de abrangência das línguas e não exatamente sua natureza distinta em relação aos demais. Atualmente, algumas pesquisas vêm sendo realizadas no sentido de refutar a separação moderna entre uma humanidade dotada de razão composta por sujeitos e uma animalidade destituída de linguagem ou pensamento e, por isso, composta por objetos. Phillipe Descola, a esse respeito, afirma que “a ideia comum do Ocidente há alguns séculos é a de que nós nos diferenciamos dos animais por espírito e não pelo corpo.” (Descola 2010: 177) Paradoxalmente, Herder, um conceituador, por excelência, do “espírito”, ainda no século XVIII intuiu que a suposta “linguagem” animal não se distinguiria daquela dos homens por uma questão de essência, mas puramente por contexto. Sua consideração de que a flexibilidade da linguagem humana estaria em sua necessidade de se adaptar a todos os cantos do planeta foi omitida em grande parte pela filosofia e pela linguística, porém ainda possui um enorme potencial para suscitar especulações futuras. Embora os estudos sobre as línguas e sobre os costumes dos povos sejam considerados estudos sobre o Geist que uniria todos os homens, esse princípio vital comum e suas expressões verbais não chegaram a ser sistematizados por Herder. Possivelmente, o ensaio Sobre o dom das línguas no primeiro Pentecostes cristão seja o texto a destacar de maneira mais direta a relação entre o “espírito”, as línguas e os povos: tanto como emanação como ordenação da vida.

4 Pentecostes e o espírito como organicidade

No livro Sobre o dom das línguas no primeiro Pentecostes cristão (Von der Gabe der Sprachen am ersten christlichen Pfingstfest), publicado originalmente em 1794, Herder problematiza a linguagem a partir de Atos dos Apóstolos e, principalmente, a partir das Epístolas Paulinas. O texto, em linhas gerais, conceitua o termo Geist dentro do Novo Testamento enquanto organicidade, algo que não deixa de ser uma continuidade da leitura laica de Herder sobre as escrituras. Essa ordem ou organicidade do “espírito” seria uma capacidade inerente de aproximar e manter unidos diversos povos e diversas línguas conforme uma única obra, ou seja, em uma só linguagem. Nesse propósito, é perceptível no ensaio um aprofundamento em temas da tradição da teologia do Espírito Santo, como a pneumatologia medieval, saber que foi impactante em seu pensamento mais maduro.

Em Sobre o dom das línguas no primeiro Pentecostes cristão, Herder estabelece uma leitura renovadora sobre o milagre da suposta inteligibilidade universal do dia de Pentecostes, mito que foi considerado a contraface da separação das línguas de Babel.13 13 Daniel Heller-Roazen chegou a afirmar uma leitura de Babel não como uma separação de línguas, a qual teria sido sanada no milagre Pentecostes, mas também como uma con-fusão, isto é, como uma operação conjunta. Para tanto, utilizou-se de uma tradição exegética minoritária, que perpassa Fílon de Alexandria, Dante Alighieri e até Jacques Derrida. Nessa perspectiva iniciada por Fílon, Deus teria especializado os agires humanos em Babel. E, se for considerada essa possibilidade, Babel e Pentecostes não seriam distintas operações com as línguas, mas possuiriam até mesmo algumas semelhanças. Sobre o tema, consultar: Heller-Roazen 2018. Para as leituras predominantes de Atos dos Apóstolos, seja na tradição católica ou protestante, diversos povos de origens distintas, como Medos, Partos e Judeus, puderam se comunicar entre si em Jerusalém, cinquenta dias após a ressurreição de Cristo, ainda que falando em seus próprios idiomas. Essa graça teria caído do céu na forma de línguas de fogo, as quais haveriam entusiasmado esses primeiros cristãos e cumprido a promessa da vinda do Espírito Santo.14 14 “Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito concedia se exprimirem.” Atos dos Apóstolos, 2:3-4. Nessa ocasião, esses povos diferentes teriam presenciado milagres como a “glossolalia” ou o “falar com línguas”. Diferentemente da separação das línguas em Babel, Pentecostes seria a possibilidade de um novo sentido comum difundido pela graça divina, em uma espécie de Nova Aliança com a Palavra. Herder retoma essa temática justamente para retirar a condição de milagre dessa data, lendo-a como uma expressão coletiva entusiasmada, embora sem qualquer portento. “Falar com a língua significa, pois, no estilo hebraico, nada mais do que falar com afeto, entusiasmo, força e cordialidade.” (Herder 1794: 62) Nada haveria de miraculoso em uma compreensão universal, algo que uma língua franca, como o grego, já realizara na Antiguidade. Em contrapartida, o aspecto realmente divino de Pentecostes, para Herder, seria a capacidade colaborativa de pessoas e povos por meio de um único Espírito Santo, que, ao lhes conceder dons, também lhes proporcionou distintos lugares ou distintos ofícios: em outras palavras, deu-lhes organicidade. (Embora não pretendamos discutir esse problema a fundo, é preciso salientar que as consequências políticas dessa organicidade podem variar amplamente, de acordo com a leitura: estendendo-se desde a autogestão espontânea até mesmo à interiorização abusiva da disciplina.)

Discutir o “espírito” muitas vezes significa discutir sobre linguagem. Assim, a leitura teológica católica tradicional entendeu Pentecostes como uma superação das divisões das línguas ocorrida no episódio de Babel e, assim, o milagre do Espírito Santo ofereceria a possibilidade de compreensão unitária ou de uma segunda aliança entre as escrituras e a palavra divina. Enquanto a palavra escrita ou simplesmente a Lei (judaica) traria a morte, a compreensão espiritual, para Paulo de Tarso, traria uma nova vida à letra: “pois a letra mata e o Espírito comunica a vida.” (2 Coríntios 3: 6) Por essa oposição, o Espírito passou a ser um conceito metalinguístico e, logo, uma categoria importante para se discutir sobre retórica, sobre hermenêutica ou sobre figuras de sentido durante mais de um milênio entre os tempos da patrística e da escolástica ao longo de toda a Idade Média. (Ohly 2005Ohly, Friedrich. Sensus Spiritualis: studies in medieval significs and the philology of culture. Tradução de Kenneth Northcott. Chicago: Chicago University Press, 2005.)

No mais, as discussões sobre o “sentido espiritual” (sensus spiritualis) acarretaram diversas sistematizações e hierarquizações durante a teologia medieval. Segundo os importantes estudos do filólogo Friedrich Ohly, “por um olhar teológico, revela-se que a confusão de línguas de Babel continua apenas para o sentido literal das línguas, ao passo ela fica resolvida pelo sentido espiritual da palavra - que deve ser elucidado a partir das coisas - algo que seria comum à totalidade das línguas.” (Ohly 2005: 20) Ou seja, o Pentecostes significa supostamente uma promessa metafísica de superação da fugacidade dos sentidos das escrituras ou mesmo “superação” das variações das línguas ao longo do tempo. Dentro dessa concepção, o próprio sentido espiritual foi subdividido em hierarquias: haveria o sentido moral, como recomendação na conduta; o alegórico, sobre as correspondências entre o Antigo e o Novo Testamento; e anagógico, o mais elevado de todos, referente aos grandes mistérios da fé.15 15 A esse respeito: Noth 1995: 37-38; também: Todorov 2014: 135-137. Todorov também se voltou algumas vezes a essa questão, afirmando que o fato do Cristianismo propor um Deus transcendente implica uma cisão da palavra ou da letra passível de ser remediada em um plano espiritual distinto, supostamente acessível por um olhar alegórico sobre as escrituras.16 16 Para Todorov (2014: 155): “Não há pensamento mais repetido na hermenêutica cristã que a frase de São Paulo: ‘A letra mata, o espírito vivifica’. Nesse sentido podemos dizer que o cristianismo tem uma necessidade constitutiva do método de interpretação alegórica: se não houvesse alegoria, não haveria Deus (porque seria impossível afirmar a existência de uma realidade espiritual inacessível aos sentidos e, portanto, sempre fruto de interpretação).”

Em relação aos sentidos da Bíblia, Herder foge às tipificações da teologia católica latina, preferindo entender o sentido espiritual como um espírito de liberdade hermenêutica. Não seria exagero afirmar que, para o autor, qualquer cristão teria o mesmo direito de interpretar as escrituras para além dos comentários ou das glosas, as quais buscariam condicionar um sentido unitário. Afirma, justamente, que todos os homens possuem o mesmo direito de ler e de interpretar que Lutero teve. “O Espírito é a essência do Luteranismo, assim como o Espírito é a essência do Cristianismo. Convicção religiosa livre, verificação e autodeterminação: sem esse espírito de liberdade, tudo é ou se tornará cadáver.” (Herder 1794: 130)

Mais do que uma metalíngua ou do que uma tipificação do sentido figurado, Herder lê Pentecostes em uma chave política e comunitária, afirmando ser incoerente entendê-lo como um sentido abstrato ou como uma língua franca. Aliás, não acredita ser possível que, no tempo dos Apóstolos, tantos povos juntos na Palestina, por mais diversos que fossem, já não tivessem experimentado minimamente alguma dessas línguas, como o latim e principalmente o grego koiné, o qual foi, inclusive, utilizado na maioria das cartas que os apóstolos trocavam entre si. Portanto, a existência corriqueira de línguas francas, por si só, retiraria o estatuto de milagre de alguma dádiva de compreensão universalizada para línguas separadas.

Para Herder, que não deixava de ser um herdeiro do Iluminismo e de ideias críticas às fundamentações religiosas do poder, o verdadeiro milagre residiria na capacidade de vários povos seguirem um mesmo credo e os mesmos cultos a partir de atribuições diferentes, embora dentro de uma unidade maior, mesmo que ela fosse parcialmente irreconhecível aos homens. Os verdadeiros portentos pentecostais estariam no fato de não-judeus se reunirem com hebreus para reler as escrituras sagradas e para disseminar essa renovação da fé. E o sentido profundo do dom das línguas seria uma espécie de colaboração.

A administração de Deus desenvolveu ao longo do tempo até mesmo o que o símbolo de Pentecostes demonstrou, a saber: as línguas divididas se uniram em algumas línguas comuns conhecidas e os próprios apóstolos fizeram um grande escrito sobre essa união. Embora incultos, todos escreveram na língua culta do mundo. O fato de alguns dentre eles terem se acostumado a conceitos admitidos e a formas verbais desse idioma grego, como João e Paulo, promoveu ainda mais a reunião das nações. (Herder 1794Herder, Johann Gottfried von. Von der Gabe der Sprachen am ersten christlichen Pfingstfest. Riga: Johann Friedrich Hartknoch, 1794.: 138)

Portanto, o dom das línguas é entendido por Herder (1794Herder, Johann Gottfried von. Von der Gabe der Sprachen am ersten christlichen Pfingstfest. Riga: Johann Friedrich Hartknoch, 1794.) em um sentido muito mais amplo do que o de uma língua franca dada por Deus, sendo considerado uma organicidade imanente ao trabalho em grupos heterogêneos ou em línguas distintas: povos diferentes unidos em espírito pelo mesmo culto. “O trabalho que esse dom produziu permanece e engrandece a si mesmo até o fim dos dias, pois ele é uma reunião de espíritos (ecclesia) o mais belo e grandioso que ocorre entre os homens na Terra.”17 17 “Das Werk, das diese Gabe gewirkt hat, dauert fort und vergrößert sich bis ans Ende der Tage; es ist eine Versammlung der Gemüther, (ecclesia) das Großeste und Schönste, was unter Menschen auf der Erde Statt findet.” (Herder 1794: 135) Porém, o gesto de Herder pode ser entendido como uma tentativa de transferir a organicidade desse culto pentecostal para buscar um sentido universal de Humanidade.

As ideias de Herder sobre o Espírito podem contribuir decisivamente com discussões políticas contemporâneas em torno do pensamento de Paulo de Tarso, pois a ideia de “espírito” como organicidade é um desafio às leituras que nele observaram exclusivamente um messianismo cristológico. Alain Badiou, Giorgio Agamben, Paolo Virno e Slavoj Zizek buscaram, cada qual, discutir alguns fundamentos da filosofia política a partir do cristianismo primitivo. Entre os fundadores desse debate sobre teologia política, em uma tentativa de renovação de fundamentos filosóficos, inclusive no campo da “esquerda”18 18 Sobre esses debates em torno da teologia política, Terry Eagleton (2014: 203) entende que: “It is now some on the left, not the right, who look to a religious ‘supplement’ to the political.” , por um lado, Badiou busca uma subjetividade universal na fé (pístis) em contraposição a uma política centrada na afirmação de identidades parciais. Por outro, Agamben entende o propósito de Paulo de Tarso como uma nova forma de vida que rompe com a Lei e que é capaz de estabelecer uma nova temporalidade. Contudo, ambos os autores se restringem a uma cristologia, havendo uma clara falta de investigação sobre o papel linguístico, comunitário e organizacional do Espírito Santo. Essa omissão é bastante significativa, pois, apesar de o Novo Testamento poder remeter a uma rebelião com o poder político da Roma Imperial, também é muito perceptível nele o papel ordenador e organizacional atribuível aos dons do “espirituais”.

Essa organicidade pneumatológica é uma marca das Cartas de Paulo, valendo lembrar que a divisão dos dons do Espírito Santo surge como a figura capaz de dispor as diferentes ocupações dos primeiros cristãos: alguns fiéis podem falar, outros interpretam escrituras, ao passo que outros ainda profetizam, dentre muitos outros ofícios. Nessa tipificação de dons, porém, o “Espírito” costuma ser acompanhado de apelos por moderação em relação aos atributos divinos recebidos e, por sinal, são abundantes as súplicas de aversão à desordem. Destaca-se, a esse respeito, a reprimenda do apóstolo Paulo contra o misticismo desregrado, que supostamente prejudicava a imagem pública dos fiéis da Igreja de Corinto: “Por conseguinte, irmãos, aspirai ao dom da profecia e não impeçais que alguém fale em línguas. Mas tudo se faça com decoro e com ordem (táxin).” (1 Coríntios 14: 39-40) Essa requisição de austeridade ante a loucura dos dons espirituais é central na leitura de Herder (1794Herder, Johann Gottfried von. Von der Gabe der Sprachen am ersten christlichen Pfingstfest. Riga: Johann Friedrich Hartknoch, 1794.) e pode lançar novos problemas em relação ao chamado messiânico da ressurreição destacados por Agamben em Badiou, por modos diferentes. Pois o Espírito Santo também implica imperativos de ordem (táxis) nas cartas de Paulo, outorga que também aparece sob outros nomes, como nos apelos por respeito à autoridade19 19 “Cada um se submeta às autoridades constituídas (huperexoúsais), pois não há autoridade (exousía) que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus.” Romanos 13:1. (exousía) ou ponderação20 20 “E ele é que ‘concedeu’ a uns ser apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e doutores, para aperfeiçoar os santos em vista do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo, até que alcancemos todos nós a unidade da fé e à justa medida (eis metron helikias) do Filho de Deus, o estado de Homem Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo.” Efésios 4:11-13. A expressão “do pleno conhecimento” da tradução original para “eis metron helikias” foi alterada para “à justa medida”. (métron).

Todo o caráter ordenador associado ao Espírito Santo e à pneumatologia, apesar de ser uma promessa de vida nova, também é um fundamento à hierarquização dos fiéis ou ainda à ordenação imanente da vida, isto é, a uma lei impressa no coração. Peter Sloterdijk (2004Sloterdijk, Peter. Esferas: globos, v. 2. Tradução de Isidoro Reguera. Madri: Siruela, 2004.), no segundo volume de Esferas, lê essa organicidade do cristianismo primitivo em uma chave linguística, afirmando que o trabalho apostólico seria uma performatividade: por meio do uso da palavra com o selo da fé, centro e periferia ou clero e fiéis tornavam-se partes de uma nova realidade, isto é, de um novo firmamento. “A mensagem chega sempre como carta certificada, e havê-la aceitado, ainda que com reservas, significa o mesmo que a assinatura do receptor em um recibo de entrega.” (Sloterdijk 2004: 603) Já Fabián Ludueña Romandini adentra ainda mais na problemática performática do Espírito Santo na teologia medieval. O autor afirma que, mais do que uma bênção ao poder eclesiástico, ela consistiria em uma retórica de “santificação” do mundo, que se confunde com a condição do exercício do poder divino na Terra. O autor relembra que, sem o Espírito Santo, “haveria simplesmente um abismo entre Deus e o mundo que nem a burocracia angélica poderia preencher porque, para que esta atue, é necessário uma natureza vivificada e santificada que possa ser objeto de administração.” (Ludueña Romandini, 2011: 163) Assim, as discussões cristológicas sobre o poder promovidas, entre outros pensadores, por Agamben ou Badiou, podem ser reproblematizadas pela organicidade espiritual, algo que, desde a pneumatologia medieval, atravessou os séculos, e cuja maior prova é a ensaística de Herder.

A concepção herderiana de Geist não é tributária apenas da metáfora vital do Cântico dos Cânticos como um desabrochar da poesia popular ou do princípio vital dos homens, uma vez que especula sobre uma organicidade de Geist em seu ensaio sobre Pentecostes. Sendo assim, seu conceito demonstra como a organização espiritual paulina sobrevive, de algum modo, até mesmo na modernidade luterana, na qual sobressai a ideia de uma sociedade baseada em uma ordem afetiva imanente. É, pois, perfeitamente possível reconstruir um paralelo direto entre o conceito herderiano de “espírito” e a “lei no coração” das Cartas Paulinas, tendo em vista que a leitura de Herder sobre Novo Testamento privilegiou a disposição de trabalhos e de ofícios aventada pelo Espírito Santo em favor de uma concepção, não apenas vitalista, mas plenamente organicista de Geist. E essa organicidade manifesta em sua ensaística bíblica é um problema persistente para a filosofia ocidental, pois demonstra como não se pode conhecer os limiares das problemáticas da teologia política ou mesmo da biopolítica sem a devida consideração da sutileza do “poder espiritual”.21 21 Poder espiritual é comumente compreendido na filosofia política como uma justificativa transcendente para o exercício do poder dito temporal, embora essa temática suscite problematizações mais profundas. Nesse sentido, diferentemente de uma justificativa, Michel Foucault compreendeu o exercício desse poder espiritual como a base para uma disciplina aos sujeitos, a que chamou de poder pastoral. “This form of power cannot be exercised without knowing the inside of people's minds, without exploring their souls, without making them reveal their innermost secrets; it is linked with the production of truth — the truth of the individual himself.” (Foucault 1982: 783) Conforme Ludueña Romandini (2011), o Espírito Santo é a atividade que dá força-de-lei aos Evangelhos e também aquilo que dissemina a jurisdição divina sobre a criaturas etéreas e terrenas, ultrapassando portanto, a noção comumente que entende o “poder spiritual” como poder clerical.

5 Do espírito às culturas

A organicidade do conceito herderiano de Geist, profundamente baseada na teologia sobre os dons do Espírito Santo, também pode ser desdobrada para se pensar sobre a dinâmica das culturas (Kulturen) dos povos. Assim como Geist seria um elo vital entre os seres, a Kultur diria respeito a particularizações das vidas dos grupos humanos. E, mesmo que ela não fosse tida por uma essência, poderia ser especulada a partir de dados empíricos das diversas nações, como suas línguas, seus costumes, suas histórias, seus climas, entre infinitos aspectos. Portanto, o conceito de Geist em Herder, tanto no sentido de contexto histórico quanto no sentido de organicidade ora trabalhados, também é o fundamento direto de um novo conceito de cultura.

Herder contrapôs um modelo “espiritual” germânico de pensamento e de sociedade baseado nos costumes ou afetos, ante um modelo, em tese, “literal”, presumivelmente francês. Segundo a leitura bastante conhecida de Norbert Elias (2011Elias, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução de Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.: 24), “o conceito francês e inglês de civilização pode se referir a fatos políticos ou econômicos, religiosos ou técnicos, morais ou sociais.” Ainda conforme o autor: “O conceito alemão de Kultur alude basicamente a fatos intelectuais, artísticos e religiosos e apresenta a tendência de traçar uma nítida linha divisória entre fatos deste tipo, por um lado, e fatos políticos, econômicos e sociais, por outro.” (Elias 2011: 24) Resumidamente, Kultur seria espontânea, ao passo que civilisation seria estatutária. Diante desse contexto do final da Aufklärung, Herder foi uma peça-chave não apenas para redefinir a “cultura” como uma autêntica opção especulativa e identitária das letras germânicas, como também para estabelecê-la como a maior sucessora moderna do problema do “espírito”.

Os conceitos de Kultur e Geist surgem mutuamente imbricados, especialmente pela determinação almejada pelo termo Volksgeist, sendo forçoso separá-los dentro da obra de Herder. Essa relação entre os dois conceitos, aliás, pode ser percebida até os dias atuais nas ciências humanas, uma vez que “espírito” é uma chave para se entender até mesmo uma das concepções de cultura mais difundidas no pensamento contemporâneo, como aquela de Raymond Williams (1992Williams, Raymond. Cultura. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.), obra basilar justamente para os “estudos culturais”. Em seu texto intitulado simplesmente como Cultura, a primeira citação faz referência direta tanto ao “espírito”, quanto à filosofia de Herder.

Começando como nome de um processo - cultura (cultivo) de vegetais ou (criação e reprodução) de animais e, por extensão, cultura (cultivo ativo) da mente humana - ele se tornou, em fins do século XVIII, configuração ou generalização do ‘espírito’ que informava o ‘modo de vida global’ de determinado povo. Herder (1784-91) foi o primeiro a empregar o significativo plural, ‘culturas’, para intencionalmente diferenciá-lo de qualquer sentido singular ou, como diríamos hoje, unilinear de civilização. (Williams 1992Williams, Raymond. Cultura. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.: 10)

Portanto, o Espírito, visto como um modo de vida global de um povo está inevitavelmente ligado à ensaística de Herder sobre Geist e, mais especificamente a seu conceito de Kultur, que passa a ser um qualificativo mais exato de uma população ou nação, ou seja, Volksgeist, termo que sempre esteve relacionado com o caráter plural das culturas.

Por outro lado, pode-se questionar se uma concepção mais aristocratizante de cultura, como a de T.S. Eliot, conhecida por privilegiar a “alta cultura”, teria alguma correspondência com o pensamento de Herder. O autor de Wasteland toma a concepção vitoriana legada por Matthew Arnold22 22 Para Matthew Arnold, cultura seria um esforço moral e intelectual através da razão e da vontade de Deus com o propósito de superar as deficiências da humanidade e não exatamente a inserção em uma determinada tradição ou nos meios de vida de um povo. Segundo o autor: “Culture is then properly described not as having its origin in curiosity, but as having its origin in the love of perfection; it is a study of perfection. It moves by the force, not merely or primarily of the scientific passion for pure knowledge, but also of the moral and social passion for doing good.” (Arnold 1869: 8) como uma importante referência, relendo-a para sustentar a ideia de um cultivo contínuo necessário ao indivíduo humano a fim de aprimorá-lo rumo às suas maiores qualidades, sob pena de involução. Daí herda a concepção de busca pela cultura elevada ou ainda pela “perfeição” em contraposição à “vulgaridade”. Eliot remete ao organicismo espiritual de Herder, pelo intermédio da obra de Samuel Taylor Coleridge23 23 Coleridge (2009) é um dos disseminadores do organicismo e do vitalismo em inglês, imediatamente após autores de fala alemã, como Schelling, os irmãos Schlegel e, principalmente Herder. Sobre esse contexto, “as part of the growing intellectual force of organicism in which a number of writers preceded him in an occasional use of vegetable figures, Herder in his imagery reveals his organistic world-view in an essentially mechanistic, non-vitalistic age.” (Schick, 2019:119) , justamente quando critica Arnold, ao afirmar que a sofisticação do indivíduo não basta para uma compreensão geral de cultura, sendo necessário também um crescimento coletivo. Isso porque a cultura e a religião (que são quase sinônimos para Eliot) deveriam funcionar como um organismo que - em tese - ligaria as classes altas às baixas ou os sacerdotes aos fiéis, a fim de (em teoria) se beneficiarem mutuamente. Eliot entende que “a cultura do indivíduo não pode ser isolada da do grupo, e que a cultura do grupo não pode ser abstraída da sociedade inteira; e que nosso conceito de ‘perfeição’ deve considerar ao mesmo tempo os três sentidos de cultura.” (Eliot 2008: 36) Não deixa de ser perceptível na concepção de Eliot um sentido corporativista de colaboração de classes para haver coesão social e uma fruição elevada dos meios de vida: “Podemos até descrever a cultura simplesmente como aquilo que torna a vida digna de ser vivida.” (Eliot 2008: 41) Essa concepção organicista de Eliot nada mais é do que uma maneira mais aristocratizante de pensar sobre o princípio da vida, embora parcialmente condizente com aquilo que Herder chama simplesmente “espírito”.

Sendo assim, paradoxalmente, tanto a alta cultura de Eliot quanto a cultura popular de Williams podem ser amplamente relacionadas com o conceito herderiano de Kultur que lhes precedeu, bem como com toda a organicidade do conceito de Geist. Enfim, a obra de Herder continua muito atual para grande parte das ciências humanas, independentemente de ser quase sempre lembrado pelo conceito político de nação (Nation) ou pela ideia de formação (Bildung) para a linguística histórica e estilística. Porém, todos esses legados de Herder, vale recordar, ainda podem contribuir com especulações sobre a indistinção entre homem e animal ou sobre a inconsistência de se separar o ser humano de seu ambiente, tal como as recentes iniciativas de Bruno Latour (2004Latour, Bruno. Politiques de la nature: comment faire entrer les sciences en démocratie. Paris: La Découverte, 2004.) ou de Eduardo Viveiros de Castro (2002Castro, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.) convidam a pensar. Isso porque as teorizações de Herder chegam até mesmo a colocar em xeque o binômio natureza-cultura, haja vista que também entende Kultur a partir de dados eminentemente físicos ou “naturais”. Por isso, qualquer investigação sobre a gênese do conceito ocidental de cultura, ainda que possa ser facilmente atribuível a Herder, não pode abdicar de pensar que essa concepção não surge como contraponto ao natural, sendo até mesmo o caso contrário. Em seu conceito, dados geográficos como o clima ou a topografia seriam aspectos culturais tão indispensáveis quanto a tradição ou os costumes de um povo, um posicionamento certamente capaz de suscitar muitos desdobramentos epistemológicos na era do antropoceno.

A ensaística bíblica de Herder exemplifica como o Geist de diversas variantes da metafísica e da estética modernas não consiste simplesmente em um rompimento da tradição judaico-cristã de espírito (ruah, pneuma, spiritus), mas surge como uma reproblematização do tema, de modo que o moderno e o antigo compartilham diversas intertextualidades. A leitura do Cântico dos Cânticos como poesia popular, a busca por uma vitalidade comum à humanidade na poesia do Antigo Testamento, a releitura do Espírito de Pentecostes como uma organicidade e, por fim, a centralidade do conceito de Geist para diversas concepções contemporâneas de cultura demonstram como Herder foi uma encruzilhada de importância primordial na história do “espírito”. Ela automaticamente o implica como uma referência indispensável para se pensar em temáticas tipicamente modernas, como nação, humanidade ou mesmo linguagem. Conhecendo-se o modo pelo qual suas investigações perpassam a temática religiosa, também se reconhece como sua ensaística não foi mera secularização de conceitos teológicos, pois impactou decisivamente na concepção de “vida” que permeia saberes e instituições, os quais abarcam desde a estética até a antropologia ou desde a linguística comparada até os Estados-nação. Em suma, além de serem uma confluência intelectual de primeira relevância para a modernidade, os conceitos e os problemas legados por Herder ainda podem insuflar novas vitalidades nas literaturas, nas ciências humanas e, não menos, nas discussões éticas e políticas contemporâneas.

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  • Mounk, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Tradução de Cássio de Arantes Leite e Debora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • Nestle, Eberhard. Novum Testamentum Graece et Latine. Stuttgart: Priviligierte Württembergische Bibelanstalt, 1923.
  • Noth, Winfried. Panorama da semiótica de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume, 1995
  • Ohly, Friedrich. Sensus Spiritualis: studies in medieval significs and the philology of culture. Tradução de Kenneth Northcott. Chicago: Chicago University Press, 2005.
  • Schmidt, Johannes. Herder’s Religious Anthropology in his Later Writings. In: Waldow, Anik; De Souza, Nigel. Herder Philosophy and Anthropology. Oxford: Oxford University Press, 2017.
  • Schick, Edgar B. Metaphorical organicism in Herder’s early works: a study of the relation of Herder’s literary idiom to his worldview. Berlim: DeGruyter Mouton, 2019.
  • Sikka, Sonia. Herder on Humanity and Cultural Difference: Enlightened Relativism. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
  • Sloterdijk, Peter. Esferas: globos, v. 2. Tradução de Isidoro Reguera. Madri: Siruela, 2004.
  • Todorov, Tzvetan. Simbolismo e interpretação. Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
  • Verbeke, Gérard. L’évolution de la doctrine du Pneûma, du stoicisme à S. Augustin. Paris: De Brouwer; Louvain: Éditions de l’Institut superieur de philosophie, 1945.
  • Waldow, Anik; De Souza, Nigel. Herder Philosophy and Anthropology. Oxford: Oxford University Press, 2017.
  • Williams, Raymond. Cultura. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
  • 2
    Para a citação e a consulta de termos do Antigo e do Novo Testamento, foi utilizada a obra: Nestle, Eberhard. Novum Testamentum Graece et Latine. Stuttgart: Priviligierte Württembergische Bibelanstalt, 1923. Para as citações de passagens bíblicas, foi utilizada a versão portuguesa da Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 2002. Quando houve modificação da tradução durante o texto, essas alterações foram indicadas em notas de rodapé. Por fim, as citações em alemão da obra de Herder também foram cotejadas com a versão inglesa editada por Michael Forster em: Herder, 2002.
  • 3
    Desde já, é importante traçar uma distinção entre a concepção herderiana de Geist e aquela de Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), a qual abre o caminho para o idealismo alemão em seu sistema filosófico. Fichte, chegou a elaborar um conceito de “espírito”, embora sua concepção seja predominantemente intelectualista, enquanto a de Herder o entendia como a vitalidade inerente aos povos. Em uma das cartas destinadas a Schiller, Fichte não evita considerar o “espírito” como uma sorte de princípio criador de ideias, mais voltado para a estética e para a filosofia em geral, abrindo um caminho de racionalização. Em suas palavras, “O espírito é, então, uma capacidade dos ideais. O espírito deixa para trás os limites da realidade e em sua esfera própria não há limites.” (Fichte, 2014: 143)
  • 4
    Robert Lowth (1710-1787) foi um pastor inglês pioneiro na redescoberta da versificação bíblica durante a modernidade. Realizou uma análise eminentemente formal da poesia hebraica, embora tenha reconhecido nela critérios poéticos próprios, distintos das rimas das línguas neolatinas ou da metrificação da poesia clássica grega ou latina. Logo, os textos bíblicos versificados, como o Pentateuco, Cântico dos Cânticos ou Jó estariam marcados pelo intercalar de imagens ou ideias, mas não exatamente por repetições de sons, como se dá, por exemplo, nas línguas latinas a partir da Renascença. Em outras palavras, Lowth foi pioneiro ao afirmar que a poesia bíblica é marcada por paralelismos semânticos, um conceito chave para compreendê-la até aos dias atuais.
  • 5
    “Es wären Pedanten und Wortkrämer, die uns am Hohenliede nur Hebräisch lehren und Anakreontisch singen lehren wollten; weitere Anwendung und Seelenspeise daran aber untersagten. Ist die Natur, wie Süßigkeit und Liebe, überall nur Eins; wo dir dein Herz eingiebt, mit den Worten dieses Buchs zu beten, zu reden, zu betrachten, zu lieben; da kannst du’s so ungehindert thun, als Jesajas Christus und Johannes es thaten. Jede Blume wird gleichsam frisch blühen auf dieser neuen Stelle und deine Seele, dein Muth, ja dieser Ort und diese Stunde werden ihr frische schöne Farben leihen; jeder mann aber siehet, daß diese unendlichen, so augenblicklichen, so unbestimmbaren Anwendungenden Ersten wortverstand nicht aufheben, sondern vor aussezen, bestätigen und gleichsam bewähren.”
  • 6
    Essa consideração de Herder sobre as especificidades culturais de diferentes povos foi compreendida enquanto um gesto antropológico em seu pensamento na coletânea de textos organizada por Anik Waldow e Nigel de Souza intitulada Herder: Philosophy and Anthropology. Consultar: Waldow; De Souza, 2017.
  • 7
    A tradução alemã utilizada por Herder sobre esse trecho do livro de é a seguinte: “Der Rede bin ich voll! / mich ängstiget der Othem meiner Brust! / Er gährt in mir, wie der zugestopfte Most, / wie der neue Sclauch zerreißt. / Reden will ich und Luft mir machen, meine Lippen will ich öffnen und antworten” (Herder 1825: 13)
  • 8
    “Wenn diese Lippen sich öffneten, ward es gewiß lebendiger Laut, Bild der Sache im Athem der Empfindung; und das ist, dünkt mich, der Geist der Ebräischen Sprache. Sie ist voll Athems der Seele: sie tönt nicht wie die Griechische, aber sie haucht, sie lebet.”
  • 9
    Friedrich Meinecke (1972) afirma que as buscas por individualidade e por fragmentos são os fundamentos principais das diferentes modalidades de historicismo desde o século XVII, considerando Herder dos autores mais importantes nesse percurso. A tese de Meinecke, ademais, além de retirar a carga pejorativa do termo, diferencia diversos historicismos de conceitos com os quais costuma ser comumente relacionado, como o nacionalismo ou mesmo Estado.
  • 10
    Herder estabelece o conceito moderno de nação (Nation) distinguindo-o tanto do povo em sentido iluminista, isto é, como conjunto de indivíduos que almejam um ideal civilizatório universal e, ademais, o diferencia de um mero Volk, que, apesar de ser uma individuação natural, não chega a ser uma unidade política espontânea, como uma Nation. Conforme Isaiah Berlin, “Para ele, a Nação não é uma entidade política.” (Berlin 1976: 181)
  • 11
    Em pronunciamentos de presidentes como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, o nacionalismo passa a ser retomado como uma solução contrária à aproximação pessoas e de povos, o que chamam de “globalismo”. Sobre o tema: Mounk, 2019. Essa leitura de nação, porém, não condiz exatamente com as teorias de Herder, pensador fundamental e indispensável para se pensar sobre o potencial da “nacionalidade” ante a ameaça dos “nacionalismos”, constituindo uma importante referência para a nação enquanto disseminação de diferenças, conforme Bhabha, 1990. Por fim, a nação em Herder fomenta as particularidades locais como contribuição para uma Humanität heterogênea e plena de antagonismos. Ver: Berlin 1976.
  • 12
    Ainda conforme Barnard, as ideias de Herder e seus impactos em Heine teriam sobre ações concretas apara garantir a autodeterminação dos judeus chegam mesmo a adiantar o sionismo: “This fusion not only anticipated Zionism but also yielded pointers in the direction of tolerance and emancipation.” (Barnard: 2003: 72)
  • 13
    Daniel Heller-Roazen chegou a afirmar uma leitura de Babel não como uma separação de línguas, a qual teria sido sanada no milagre Pentecostes, mas também como uma con-fusão, isto é, como uma operação conjunta. Para tanto, utilizou-se de uma tradição exegética minoritária, que perpassa Fílon de Alexandria, Dante Alighieri e até Jacques Derrida. Nessa perspectiva iniciada por Fílon, Deus teria especializado os agires humanos em Babel. E, se for considerada essa possibilidade, Babel e Pentecostes não seriam distintas operações com as línguas, mas possuiriam até mesmo algumas semelhanças. Sobre o tema, consultar: Heller-Roazen 2018.
  • 14
    “Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito concedia se exprimirem.” Atos dos Apóstolos, 2:3-4.
  • 15
    A esse respeito: Noth 1995: 37-38; também: Todorov 2014: 135-137.
  • 16
    Para Todorov (2014: 155): “Não há pensamento mais repetido na hermenêutica cristã que a frase de São Paulo: ‘A letra mata, o espírito vivifica’. Nesse sentido podemos dizer que o cristianismo tem uma necessidade constitutiva do método de interpretação alegórica: se não houvesse alegoria, não haveria Deus (porque seria impossível afirmar a existência de uma realidade espiritual inacessível aos sentidos e, portanto, sempre fruto de interpretação).”
  • 17
    “Das Werk, das diese Gabe gewirkt hat, dauert fort und vergrößert sich bis ans Ende der Tage; es ist eine Versammlung der Gemüther, (ecclesia) das Großeste und Schönste, was unter Menschen auf der Erde Statt findet.”
  • 18
    Sobre esses debates em torno da teologia política, Terry Eagleton (2014: 203) entende que: “It is now some on the left, not the right, who look to a religious ‘supplement’ to the political.”
  • 19
    “Cada um se submeta às autoridades constituídas (huperexoúsais), pois não há autoridade (exousía) que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus.” Romanos 13:1.
  • 20
    “E ele é que ‘concedeu’ a uns ser apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e doutores, para aperfeiçoar os santos em vista do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo, até que alcancemos todos nós a unidade da fé e à justa medida (eis metron helikias) do Filho de Deus, o estado de Homem Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo.” Efésios 4:11-13. A expressão “do pleno conhecimento” da tradução original para “eis metron helikias” foi alterada para à justa medida”.
  • 21
    Poder espiritual é comumente compreendido na filosofia política como uma justificativa transcendente para o exercício do poder dito temporal, embora essa temática suscite problematizações mais profundas. Nesse sentido, diferentemente de uma justificativa, Michel Foucault compreendeu o exercício desse poder espiritual como a base para uma disciplina aos sujeitos, a que chamou de poder pastoral. “This form of power cannot be exercised without knowing the inside of people's minds, without exploring their souls, without making them reveal their innermost secrets; it is linked with the production of truth — the truth of the individual himself.” (Foucault 1982: 783) Conforme Ludueña Romandini (2011), o Espírito Santo é a atividade que dá força-de-lei aos Evangelhos e também aquilo que dissemina a jurisdição divina sobre a criaturas etéreas e terrenas, ultrapassando portanto, a noção comumente que entende o “poder spiritual” como poder clerical.
  • 22
    Para Matthew Arnold, cultura seria um esforço moral e intelectual através da razão e da vontade de Deus com o propósito de superar as deficiências da humanidade e não exatamente a inserção em uma determinada tradição ou nos meios de vida de um povo. Segundo o autor: “Culture is then properly described not as having its origin in curiosity, but as having its origin in the love of perfection; it is a study of perfection. It moves by the force, not merely or primarily of the scientific passion for pure knowledge, but also of the moral and social passion for doing good.” (Arnold 1869: 8)
  • 23
    Coleridge (2009) é um dos disseminadores do organicismo e do vitalismo em inglês, imediatamente após autores de fala alemã, como Schelling, os irmãos Schlegel e, principalmente Herder. Sobre esse contexto, “as part of the growing intellectual force of organicism in which a number of writers preceded him in an occasional use of vegetable figures, Herder in his imagery reveals his organistic world-view in an essentially mechanistic, non-vitalistic age.” (Schick, 2019:119)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2022
  • Aceito
    31 Maio 2022
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