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Bilinguismo luso-alemão: introdução ao dossiê temático

[Portuguese-German Bilingualism: Introduction to the thematic issue]

Quando nos deparamos com o termo “bilinguismo”, uma questão que sempre emerge é a seguinte: como pode ser definida a pessoa bilíngue? Visões mais antigas definem o indivíduo bilíngue de acordo com as suas habilidades em cada uma das línguas, como se fosse uma pessoa com dois sistemas linguísticos completamente separados (Bloomfield 1961Bloomfield, L. Language. New York, NY: Holt, Rinehart and Winston, 1961.). Essa visão do bilíngue, segundo Grosjean (2013Grosjean, F. Bilingualism: a short introduction. In: Grosjean, F.; Li, P. (Eds.). The Psycholinguistics of Bilingualism. Chichester: Publishing, Blackwell, 2013, 5-26.), pode resultar em uma postura negativa do bilíngue sobre a sua própria proficiência, pois cria um patamar de bilinguismo praticamente inatingível.

Atualmente, a pergunta sobre a definição do indivíduo bilíngue pode ser respondida de diversas formas. Uma das possibilidades tem relação com o uso de categorias, escalas e dicotomias (Butler 2013Butler, Y. G. Bilingualism/Multilingualism and Second-Language Acquisition. In: Bhatia, T. K.; Ritchie, W. C. (Eds.). The Handbook of Bilingualism and Multilingualism. Oxford, UK: Blackwell Publishing Ltd, 2013, 114-136.). Há distinções de falante bilíngue baseadas nos seus níveis de dominância em cada uma das línguas, na função das línguas, na proficiência, na orientação dos falantes, no contexto e na idade de aquisição. Todas essas variáveis podem influenciar o uso das línguas.

As perspectivas contemporâneas caracterizam o bilinguismo com destaque ao uso das línguas no cotidiano, em detrimento do domínio equilibrado dos níveis de proficiência nas línguas. Grosjean (2010Grosjean, F. Bilingual: life and reality. Cambridge (MA): Harvard Univ., 2010.) define o falante bilíngue como aquele que usa duas ou mais línguas (ou dialetos) no seu cotidiano. O critério de inclusão no bilinguismo se torna consideravelmente menos conservador ou restritivo quando se parte do princípio do uso das línguas ou dialetos. A concepção de bilinguismo de Grosjean, assim como a de Mackey (1972Mackey, W. The description of bilingualism. In: Fishman, J. (Ed.). Reading in the sociology of language. 3. ed. Den Haag: Mouton, 1972, 554-584.), investiga e define o indivíduo bilíngue de forma abrangente. Desse modo, o bilinguismo abrange duas ou mais línguas independentemente da idade de aquisição das várias línguas e da proficiência em cada uma.

Este dossiê não pretende categorizar e definir o bilinguismo de forma exaustiva, mas apresentar algumas possibilidades de investigação sobre o bilinguismo luso-alemão. Usamos uma definição lata de bilinguismo, a qual inclui falantes com diferentes perfis de aquisição e uso, para expor o bilinguismo luso-alemão considerando diferentes prismas, métodos e abordagens teóricas. Dessa forma, são incluídos estudos com falantes das duas línguas, considerando também outras. A língua alemã é utilizada aqui como termo guarda-chuva de variedades padrão e minoritárias.

Os contextos de bilinguismo luso-alemão têm relação, principalmente, com (i) a busca pela aprendizagem de alemão como língua estrangeira nos países lusófonos ou a aprendizagem de português como língua estrangeira em países de expressão alemã, (ii) a permanência de emigrantes portugueses e brasileiros em países falantes de alemão e (iii) a manutenção de línguas de imigração histórica de origem alemã no Brasil. Considerando esses contextos, o uso das duas línguas (também em contato com outras) tem sido cada vez mais frequente e, por isso, é um campo de investigação prolífero.

Torna-se cada vez mais importante compreender melhor o uso das línguas nos diferentes contextos mencionados, bem como refletir sobre aspectos específicos desse bilinguismo e perspectivas de pesquisa. A este dossiê pertencem textos sobre aspectos cognitivos, psicolinguísticos, sociolinguísticos e etnolinguísticos de falantes de línguas de origem alemã e português. Os textos foram redigidos por autores do Brasil, da Alemanha e de Portugal, refletindo uma rede de pesquisadores interessada nesse bilinguismo no mundo.

O primeiro artigo publicado neste dossiê, intitulado A mente corporificada: como os gestos revelam a fluência conceptual no processo de aprendizagem de alemão como língua estrangeira, foi escrito por Adriana Fernandes Barbosa (Universidade de Brasília). O estudo investiga o bilinguismo luso-alemão em contexto de Deutsch als Fremdsprache (DaF, ‘Alemão como Língua Estrangeira’). O objetivo do estudo foi investigar como estruturas cognitivas subjacentes aos verbos separáveis e não separáveis da língua-alvo da aprendizagem podem ser reveladas pelos gestos produzidos por uma professora bilíngue e duas alunas brasileiras durante uma aula de DaF. As interações foram filmadas em cursos de graduação e em cursos livres de idiomas. Foi feita uma análise multimodal detalhada sobre o prefixo durch-, que evidenciou o pensamento conceptual corporificado. Os gestos das participantes retrataram esquemas imagéticos e mapeamentos metafóricos subjacentes aos verbos estudados e diferenças entre o sistema conceptual do português e do alemão. O estudo contribui, de forma inovadora na área de DaF, para evidenciar, de um ponto de vista multimodal, o papel dos gestos no ensino e na aprendizagem de alemão.

Com uma abordagem psicolinguística, o artigo Evidence of non-selective lexical access to second and third language in unbalanced multilinguals: an N400 study on the processing of interlingual homographs também conta com a participação de aprendizes de DaF, além de inglês. O objetivo do texto escrito por Marina Lameira, Felipe Bezerra, André Cravo, Maria Teresa Carthery-Goulart (Universidade Federal do ABC) e Pâmela Toassi (Universidade Federal do Ceará) foi examinar como participantes falantes de português brasileiro, inglês e alemão acessam o significado de homógrafos interlinguísticos. Trata-se de palavras que possuem a mesma grafia, mas significados diferentes nas duas línguas: por exemplo, boot (bota em inglês, barco em alemão). Os autores utilizaram a tarefa de julgamento semântico durante um exame de eletroencefalografia (EEG). Por meio da técnica altamente precisa, foi estudado o registro gráfico das correntes elétricas emitidas no cérebro, para investigar a atividade elétrica durante o processamento dos estímulos. Os resultados da tarefa mostram um processamento mais demorado para os homógrafos. Foi encontrado o clássico efeito N400 no EEG, isto é, um índice de integração no processamento semântico, necessário na leitura dos estímulos-alvo, pois o sentido era inesperado devido à influência da língua não alvo. Dessa forma, argumenta-se pela coativação das línguas estrangeiras. O estudo pode fornecer implicações interessantes para o ensino de DaF considerando a aprendizagem da língua posteriormente ao inglês.

O artigo Mehrsprachigkeit in Rio Grande do Sul: Zur Negation im brasilianischen Hunsrückisch, redigido por Esther Rinke (Goethe-Universität Frankfurt am Main) e Cristina Flores (Universidade do Minho) investiga uma variedade de origem alemã: a língua hunsriqueana falada em Santo Cristo, Rio Grande do Sul. O objetivo foi identificar potenciais áreas de mudança linguística induzida pelo contato linguístico e por transferência linguística. Com base num corpus de produção de fala espontânea de 20 falantes bilíngues, o foco das autoras foi a negação, contrastada entre português e a variedade alemã. A posição do marcador de negação e a possível dupla negação, que ocorre em português, foram os pontos principais da análise. Os resultados mostram que a negação é um fenômeno muito estável em hunsriqueano e segue os padrões de ordem das palavras do alemão. Esta estabilidade é o resultado do uso constante da língua minoritária. No entanto, fenômenos variáveis de Concordância Negativa, que são semelhantes ao português brasileiro (PB), mas agramaticais em alemão padrão, também foram encontrados. O artigo contribui para mostrar, de forma inovadora, fenômenos de variação e mudança das duas línguas em contato.

Da mesma forma, o artigo Es ist am regnen - Es tut regnen: investigação do processo de replicação funcional no Hunsrückisch como fenômeno linguístico-contatual, escrito por Claudia Fernanda Wolff Pavan (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) aborda o contato linguístico. O foco do estudo é a perífrase estar+gerúndio do PB em contato com o Hunsrückisch, considerando, portanto, a realização da progressividade. A autora também analisou ocorrências de progressividade em Hunsrückisch: o tun-progressivo e o am-progressivo. Foi utilizado o banco de dados do macroprojeto ALMA-H (Atlas linguístico-contatual das minorias alemãs na bacia do Prata: Hunsrückisch), que conta com mais de 800 horas de gravação de entrevistas com falantes de Hunsrückisch e cartas pessoais escritas por imigrantes alemães e seus descendentes nos séculos XIX e XX. A autora argumenta que o uso mais frequente dessas construções tem, entre suas motivações, o contato linguístico com o português local bem como a situação de bilinguismo decorrente desse contato e a possível influência da perífrase estar+gerúndio - que teria suas funções replicadas pelos falantes dessa variedade dialetal da língua alemã. Há, portanto, uma replicação de funções sintáticas do português no Hunrückisch, evidenciando mais fenômenos de contato linguístico entre ambas as línguas preenchendo uma lacuna ao se analisar o nível sintático.

Por fim, Adriana Dalla Vecchia (Universidade Federal de Sergipe) e Neiva Maria Jung (Universidade Estadual Maringá) publicam o texto Construindo entendimentos de língua para o exame de proficiência em alemão em um contexto de migração suábia no Brasil. O objetivo do estudo é discutir como o conceito de língua alemã padrão é elaborado por estudantes e professores que participam das aulas de Língua Alemã no 1º e 3º anos do Ensino Médio de uma escola situada no contexto de imigração germânico-suábia no Brasil. As autoras analisaram práticas em que professores e estudantes abordam entendimentos sobre uma prova de proficiência de DaF. A perspectiva teórico-metodológica adotada foi a etnografia da linguagem da Linguística Aplicada. As autoras argumentam, com base em segmentos de transcrição das interações, que a translinguagem permitida na aula facilita a elaboração de entendimentos, o avanço nas tarefas e a compreensão do que constitui a prova de proficiência em alemão. Os integrantes da interação utilizam o seu repertório linguístico (português, suábio e alemão padrão) e semiótico, para entenderem a prova de proficiência. O estudo lança luz sobre uma comunidade de falantes de suábio e aprendiz de DaF, refletindo sobre práticas que incluem a língua minoritária e podem facilitar o desempenho dos aprendizes na aula e nas provas de proficiência.

De modo geral, os estudos aqui publicados fornecem implicações para o ensino de DaF, ao mostrar a importância dos gestos na aquisição da fluência conceitual da nova língua no bilinguismo luso-alemão, influências de uma língua estrangeira (alemão) na ativação lexical de outra língua (inglês) e presença da língua minoritária na aula de DaF. Considerando o contexto de línguas minoritárias, as pesquisas evidenciam fenômenos de contato linguístico português-hunsrückisch na negação e na progressividade. O conjunto de artigo apresenta propostas muito interessantes e desponta diversas perspectivas atuais de pesquisas sobre o bilinguismo luso-alemão: multimodalidadde na aula de DaF, coativação de línguas, contato linguístico em situação natural e presença da língua minoritária de origem alemã na aula de DaF.

Esperamos que os artigos publicados nesta edição ajudem a exemplificar algumas possibilidades de tópicos, abordagens e métodos de pesquisa que estão vinculados ao bilinguismo. Além disso, esperamos que os temas aqui apresentados estimulem pesquisas sobre o bilinguismo no contexto da Germanística por pesquisadores em diferentes estágios de suas carreiras e pertencentes às mais diversas áreas de pesquisa, e ajudem a conectar pessoas, estabelecendo e aprofundando colaborações. Agradecemos à equipe da Revista Pandaemonium Germanicum pela abertura, às autoras e aos autores por suas significativas contribuições, aos revisores pelos seus comentários inspiradores e aos leitores pelo interesse.

Referências bibliográficas

  • Bloomfield, L. Language. New York, NY: Holt, Rinehart and Winston, 1961.
  • Butler, Y. G. Bilingualism/Multilingualism and Second-Language Acquisition. In: Bhatia, T. K.; Ritchie, W. C. (Eds.). The Handbook of Bilingualism and Multilingualism. Oxford, UK: Blackwell Publishing Ltd, 2013, 114-136.
  • Grosjean, F. Bilingual: life and reality. Cambridge (MA): Harvard Univ., 2010.
  • Grosjean, F. Bilingualism: a short introduction. In: Grosjean, F.; Li, P. (Eds.). The Psycholinguistics of Bilingualism. Chichester: Publishing, Blackwell, 2013, 5-26.
  • Mackey, W. The description of bilingualism. In: Fishman, J. (Ed.). Reading in the sociology of language. 3. ed. Den Haag: Mouton, 1972, 554-584.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2023
  • Aceito
    22 Fev 2023
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