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O destino imóvel: um poema francês de Rilke e o princípio da reflexão

Immobilized fate: a French poem by Rilke and reflection as principle

Resumo:

Um poema francês de Rilke, publicado em 1926 com o ciclo de poemas Vergers, é traduzido aqui em duas versões similares, mas não idênticas. O poema e sua dupla tradução dão origem a duas perguntas: (1) por que a recepção dos poemas franceses de Rilke tem sido mais restrita ou circunscrita que a de seus poemas alemães? (2) por que duas traduções diferentes do mesmo poema? Tomado como princípio da reflexão, o poema com sua dupla tradução simultânea deve abrir caminho para compreender as duas questões, seu eventual parentesco e, de modo mais geral, a convergência entre crítica e criação. O conceito crítico de reflexão como retorno a si e abertura para o outro e o conceito (metáfora) de espaço de indeterminação são os marcos mais visíveis do caminho traçado a cada volta pela própria reflexão.

Palavras-chave:
Rilke; Poemas Franceses; Tradução; Reflexão; Crítica

Abstract:

A French poem by Rilke, published in 1926 with the Vergers cycle of poems, is translated here in two similar but not identical versions. The poem and its double translation give rise to two questions: (1) why has the reception of Rilke’s French poems been more restricted or circumscribed than that of his German poems? (2) why two different translations of the same poem? Taken as a principle of reflection, the poem with its simultaneous double translation should open the way to understanding the two questions, their possible kinship and, more generally, the convergence between criticism and creation. The critical concept of reflection as a return to oneself and an opening to the other and the concept (metaphor) of a space of indeterminacy are the most visible landmarks of the path traced at each turn by reflection itself.

Keywords:
Rilke; French Poems; Translation; Reflection; Criticism

1 “Et on pense à la vie arrêtée”

Um poema francês de Rilke, escrito em 1924 e publicado em 1926 com o ciclo de poemas intitulado Vergers, é aqui traduzido para o português em duas versões 2 2 O título completo do ciclo publicado na primeira edição é Vergers suivi des Quatrains Valaisans avec un portrait de l´auteur par Baladine gravé sur bois par G. Aubert (R ilke, 2003: 416). Essa é a edição consultada para a tradução do poema 42 ( 2003: 54-56). Aproveito a oportunidade para agradecer a todos que discutiram as versões anteriores deste texto: Débora Morato Pinto, Pedro Galé, Marcio Suzuki, Mário Caimi, Franco Sandanello, Sabrina Marioto e integrantes do Grupo Kant – UFSCar: Adriano Mergulhão, Ana Arelaro, Bento Tedesco Prado, Ivanilde Fracalossi, João Andrello, José Luciano Verçosa, João Paulo Rissi, Larissa Soares da Silva, Marcelo Vieira, Patrícia Fernandes da Cruz, Rafael Dias e Taciane Alves da Silva. O agradecimento estende-se também aos pareceristas anônimos da Pandaemonium Germanicum e a seus editores, em especial a Helmut Galle. Os comentários, sugestões e críticas foram cruciais para aprimorar o texto. Agradeço também ao CNPq pela bolsa de produtividade, que tem permitido que a reflexão possa ramificar-se em diversas direções. . Identificado no ciclo pelo número quarenta e dois, parece anunciar no desfecho o destino que tem partilhado com os demais poemas em francês de Rilke: “enfermé dans le bloc d’un sort immobile” 3 3 Há duas razões para citar os versos de Rilke em francês. Não é preciso decidir por uma entre as duas traduções apresentadas no final do artigo nem citá-las ao mesmo tempo. Também é convite para retraduzir o poema; caso alguém chegue a resultados diversos na tradução e divergentes na reflexão sobre o poema que traduziu, não deixará, paradoxalmente, de concordar com a reflexão aqui proposta. . Não é que tenham sido relegados à própria sorte. Vergers foi logo acolhido por Paul Valéry, André Gide e Jean Cocteau ( Rilke, 2003: 426-428). É suficiente um só exemplo; Valéry não apenas escreveu o prefácio da primeira edição de Les Roses, outro livro de poemas franceses de Rilke editado em 1927 ( Rilke, 2009: 19), mas também expressou ao próprio autor a admiração e estranheza por Vergers: “o senhor não pode conceber a estranheza surpreendentemente delicada do seu som francês[...]. Muitas vezes há algo de Verlaine nessa invenção. Um Verlaine mais abstrato” ( Rilke, 2003:426). Diversas traduções dos poemas franceses de Rilke também têm circulado em diferentes idiomas. Em português, ainda que recentes, a tradução e a retradução desses poemas não deixam de ser significativas 4 4 Sem pretensão de exaustividade, listamos as seguintes traduções dos poemas franceses de Rilke para o português: Jardins ( Rilke, 1995); As rosas ( Rilke, 1996); As Janelas, seguidas de poemas em prosa franceses ( Rilke, 2009). José Paulo Paes traduziu de Rilke três poemas franceses, reunindo-os a outros poemas alemães sob a rubrica: “Dos poemas esparsos e póstumos ( Rilke, 2012) ); Pomares (Vergers) ( Rilke, 2019 ). Por este inventário, o poema aqui duplamente traduzido tem já duas traduções anteriores, encontradas em Jardins e Pomares, traduções de Vergers. Portanto, o poema quarenta e dois de Rilke foi traduzido em português pelo menos quatro vezes. Fenômeno similar ocorre com outro poema francês de Rilke, que, publicado tanto em Vergers como em Fenêtres, tem cinco traduções em português, propostas por quatro tradutores e reunidas por Guilherme G. Flores ( Flores, 2016 ). . No entanto, os poemas franceses de Rilke, em comparação com seus poemas alemães, têm tido circulação mais restrita. A recepção mais limitada (ou circunscrita, em termos mais próximos ao poema aqui traduzido), não pode ser atribuída à quantidade. Rilke escreveu mais de quatrocentos poemas em francês, na maior parte entre 1924 e 1926 5 5 Böschenstein contabiliza quatrocentos e sessenta e um poemas em francês de Rilke ( 1998: 191); para Manfred Engel seriam quatrocentos e cinquenta ( 2005b: 157 ). . Uma primeira pergunta se impõe: por que a recepção circunscrita desses poemas?

Algumas hipóteses já foram propostas: (1) decisões editoriais passadas, ao restringir o acesso a grande parte da produção francesa tardia de Rilke, não teriam permitido que o valor de seus poemas franceses como um todo fosse reconhecido por um círculo mais amplo ( Engel, 2005aENGEL, Manfred. Jenseits der Sprachgrenze? Rilkes französische Gedichte. In: Actes du XXVIe Congrès de l'Association des Germanistes de l'Enseignement Supérieur. Bern: Lang, 2005b, 157-163.); (2) a expectativa ainda presente, em especial de franceses e de alemães, de reiterar o já conhecido os teria impedido de abrir-se para o que haveria de novo nos poemas franceses de Rilke ( Böchstein, 1998BÖSCHENSTEIN, Bernhard. Rainer Maria Rilkes Französische Gedichte. In: DEMETZ, Peter; STORCK, Joachin W.; ZIMMERMANN, Hans Dieter (org.). Ein europäischer Dichter aus Prag. Würzburg: Königshausen und Neumann, 1998, p. 191-200.); (3) a ausência de valor poético desses poemas, em comparação com os poemas alemães de Rilke ( Campos, 2014CAMPOS, Augusto de. “Entre coisas e Anjos”. Entrevista a Carlos Ávila. Portal Uai, Belo Horizonte, 29/11/2014. Disponível em: https://www.uai.com.br/app/noticia/pensar/2014/11/29/noticias-pensar,161967/entre-coisas-e-anjos.shtml. Acesso em: 14/04/2023.
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), os fecharia para o futuro. Essas três hipóteses, calcadas em três modos temporais (passado, presente e futuro), estão longe de esgotar o espaço de respostas possíveis. São suficientes, no entanto, para determinar o escopo da pergunta. Não por serem hipóteses plausíveis, mas porque sua validade como hipóteses tem de ser colocada entre parênteses. As duas primeiras supõem o que é negado pela terceira: o valor dos poemas franceses de Rilke. Além disso, cada uma delas privilegia um modo temporal para circunscrever os fatos que julga relevantes para explicar a recepção. Se são incongruentes entre si, só poderão ser aceitas ou descartadas como hipóteses legítimas depois de estabelecido que princípio de ajuizamento supõem tacitamente. Daí que a pergunta pela recepção adquira um escopo determinado, ainda que pouco familiar. Em vez de deter-se sobre fatos na aparência conhecidos ou sobre teorias consideradas amplamente discutidas, a pergunta deve trazer à luz do dia que princípio as hipóteses pressupõem tacitamente para ajuizar sobre o valor dos poemas franceses de Rilke e sobre os fatos relevantes de sua recepção. Questão crítica de princípio, não de fato. Mas o escopo da pergunta é também determinado por seu ponto de partida. Não sobrevém ao poema como pergunta geral e, por isso, indiferente à singularidade do fenômeno interrogado. Radicando-se no poema francês quarenta e dois de Rilke com sua dupla tradução, a pergunta pela recepção deve tomá-lo como princípio de uma reflexão crítica de princípio.

A essa pergunta se junta uma segunda: como é possível que as duas traduções do poema de Rilke coexistam com igual pretensão de valor? Também aqui a pergunta tem um ponto de partida determinado; não é suscitada pela sucessão de duas traduções surgidas em tempos distintos, mas pela simultaneidade delas. Sendo simultâneas, o intervalo temporal entre uma e outra é ou suspenso ou reduzido. A simultaneidade não seria o índice mais visível de que o enigma está antes no poema traduzido que nas circunstâncias temporais e contingentes da tradução? Seguir Berman aqui pode ser fecundo por duas razões, no fundo antagônicas. Ao mesmo tempo que sua reflexão abre espaço para pensar o enigma, também o contorna, exigindo que se vá além, ou melhor, aquém, ao poema francês de Rilke como princípio da reflexão.

A sucessão de traduções de uma obra ao longo do tempo é fenômeno comum. Ainda que diversas as razões que o expliquem, podem ser reduzidas a duas condições temporais sucessivas. É o que propõe Berman ( ( 2017BERMAN, Antoine. A retradução como espaço da tradução. Tradução de Clarissa Prado Marini, Marie-Hélène C. Torres. Cad. Trad. Florianópolis, v. 37, n. 2, 2017, p. 261-268. Disponível em: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n2p261 Acesso em: 22/07/2021.
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: 262 ) quando elenca duas tendências para explicar o fenômeno. De acordo com a primeira, é preciso retraduzir porque as traduções envelhecem. Nesse caso, as razões da caducidade poderiam ser reconduzidas à temporalidade de algumas circunstâncias históricas. De acordo com a segunda, é preciso retraduzir porque nenhuma pretenderia ser a tradução por excelência. Nesse caso, a razão do caráter inacabado de uma tradução poderia ser creditada à temporalidade que, própria à estrutura do ato de traduzir, se manifestaria na sucessão temporal de retraduções ( Berman, 2017BERMAN, Antoine. A retradução como espaço da tradução. Tradução de Clarissa Prado Marini, Marie-Hélène C. Torres. Cad. Trad. Florianópolis, v. 37, n. 2, 2017, p. 261-268. Disponível em: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n2p261 Acesso em: 22/07/2021.
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: 266). As duas tendências teriam uma raiz comum: prendem-se à sucessão temporal para explicar a multiplicidade de novas traduções. Nada que diga respeito, portanto, à ocorrência simultânea delas. Mas por que se inquietar com a simultaneidade? Simultâneas, a multiplicidade possível de traduções não pode ser atribuída nem ao envelhecimento nem à temporalidade do traduzir, as duas tendências que Berman destaca. Se é assim, a reflexão de Berman deixa intocada uma questão mais difícil: como o próprio poema francês de Rilke torna possível uma pluralidade de traduções?

Não há dúvida de que nossa pergunta se aproxima da que Berman formula, embora seu texto não lhe dê muita atenção: por que uma obra “autoriza várias traduções”? ( Berman, 2017BERMAN, Antoine. A retradução como espaço da tradução. Tradução de Clarissa Prado Marini, Marie-Hélène C. Torres. Cad. Trad. Florianópolis, v. 37, n. 2, 2017, p. 261-268. Disponível em: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n2p261 Acesso em: 22/07/2021.
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: 262). Embora próximas, as duas perguntas não são idênticas. A pergunta de Berman visa a obra em geral, o que torna seu perguntar alheio à especificidade do fenômeno interrogado. Já nossa pergunta se radica na experiência singular da dupla tradução simultânea do poema de Rilke; por isso, o perguntar deve tomar a especificidade dessa experiência a cada passo como princípio da reflexão. Outro poema de Rilke talvez abra outra perspectiva para a reflexão ou suscite perguntar diverso.

Tal pergunta não seria, porém, ociosa? Desde o início não se impõe que a possibilidade de traduções simultâneas é prova inequívoca da necessária insuficiência do traduzido em relação ao original, arquétipo invariável situado além delas? Tal conclusão, abraçada irrefletidamente pelo senso comum (“traduzir é trair”) ou defendida por alguns sistemas filosóficos, não é necessária 6 6 Berman denomina “platonismo” esse modo de pensar que seria também incorporado em geral pela tradução ( Berman, 2021). . Desafia-a um fato histórico também apontado por Berman. Há grandes traduções, da Vulgata de São Jerônimo ao Baudelaire de Stefan George, “que perduram tanto quanto os originais e que, às vezes, têm mais brilho que estes[...]. Que não envelhecem” ( Berman, 2017BERMAN, Antoine. A retradução como espaço da tradução. Tradução de Clarissa Prado Marini, Marie-Hélène C. Torres. Cad. Trad. Florianópolis, v. 37, n. 2, 2017, p. 261-268. Disponível em: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n2p261 Acesso em: 22/07/2021.
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: 262-263). O fato histórico das grandes traduções tem pelo menos duas consequências importantes. Primeiro, esse fato, ao pôr em xeque as categorias de arquétipo e derivado, de imutável e mutável, de uno e múltiplo, restitui o caráter enigmático à pergunta que formulamos. Se é assim, volta-se ao ponto de partida: somente o poema francês de Rilke com sua dupla tradução pode ser tomado como princípio de reflexão. Segundo, ao indicar que há traduções que não envelhecem, o fato coloca sob suspeita qualquer explicação que recorra, irrefletidamente, ao tempo histórico da sucessão, externo à própria obra, para decifrar o enigma.

A partir daqui, porém, o espaço aberto por Berman se fecha, ainda que recorra ao conceito de espaço (“espaço de sucesso”), metáfora não temporal, para explicar a possibilidade da retradução. Em vez de abrir-se para a obra e por ela, Berman reitera o tempo que condicionaria o ato de traduzir. A “temporalidade tanto psicológica quanto cultural e linguística” ( Berman, 2017BERMAN, Antoine. A retradução como espaço da tradução. Tradução de Clarissa Prado Marini, Marie-Hélène C. Torres. Cad. Trad. Florianópolis, v. 37, n. 2, 2017, p. 261-268. Disponível em: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n2p261 Acesso em: 22/07/2021.
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: 266) no início condenaria a primeira tradução à insuficiência, mas depois também permitiria compensá-la com a irrupção do kairos, o “momento favorável” historicamente para a retradução ( Berman, 2017BERMAN, Antoine. A retradução como espaço da tradução. Tradução de Clarissa Prado Marini, Marie-Hélène C. Torres. Cad. Trad. Florianópolis, v. 37, n. 2, 2017, p. 261-268. Disponível em: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n2p261 Acesso em: 22/07/2021.
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: 266). Mas a pergunta não era por que uma obra autoriza múltiplas traduções tão duradouras quanto o original, não como a temporalidade as torna possível?

O espaço enclausurado, porém, não é destino (“sort immobile”) da reflexão, mas o que pode e deve movê-la (“et on pense à la vie arrêtée”). Que é, porém, a reflexão exigida pela pergunta? Termo genérico que se confundiria com análise, comentário, descrição ou leitura cerrada de uma obra e de sua tradução? Mas deter-se nesse sentido mais usual do termo é situar-se aquém ou além do centro vivo da reflexão (“Qu’on a le cœur trop vieux pour penser un enfant”). Não pode ser o caso de que poema francês de Rilke com sua dupla tradução seja o coração do refletir, abrindo espaço para pensar o enigma que ele mesmo engendra? Essa última hipótese seria mera especulação no ar se já não estivesse aqui radicada, desde o início, na reflexão do poema (genitivo subjetivo e objetivo) duplamente traduzido.

No entanto, talvez haja alguém que, irrefletido, não se dobre de pronto à reflexão que é proposta pelo poema francês de Rilke já nas primeiras linhas. Vale a pena, por isso, voltar-se para uma reflexão que é familiar, mas só em parte. Pela familiaridade, pode demover quem é cativo do que presume já conhecer e, pela estranheza que permanece, movê-lo em direção ao enigma do poema como centro móvel da reflexão. Berman é mais uma vez exemplar por essas duas razões, não de todo conciliáveis entre si.

Sua reflexão torna mais visível o enigma ao dar centralidade a um conceito não genérico de reflexão que articula tradução, pensamento filosófico e poema:

a) reflexão é certa poesia ou poetar: “uma poesia que atualiza suas condições no próprio poema... que a poesia seja visível no poema, eis a poesia da poesia. Essa atualização se efetua por uma ‘reflexão’” ( Berman, 2018BERMAN, Antoine. Cartas para Fouad El-Etr. Tradução de Simone Petry. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.: 11). Essa poesia reflexionante seria primeiro a dos românticos alemães. Reflexão aqui, longe de ser termo genérico, é conceito que tem raiz no conceito kantiano de reflexão, retomado depois por Novalis e por Schlegel. Daí que, kantianamente, chamem essa poesia à segunda potência de “poesia da poesia” ou de “poesia transcendental ( Berman, 2018BERMAN, Antoine. Cartas para Fouad El-Etr. Tradução de Simone Petry. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.: 11). Poesia da reflexão seria também a poesia moderna, embora mais formalizada. Por isso, a filosofia kantiana estabeleceria uma divisão entre duas épocas da poesia:”imagine uma poesia pós-kantiana, ou mesmo kantiana. Parece inconcebível que o curso da poesia pudesse ser dividido em dois por uma filosofia, mas foi isso que aconteceu[...]. À revolução copernicana da filosofia corresponde, assim, uma revolução copernicana da poesia” ( Berman, 2018BERMAN, Antoine. Cartas para Fouad El-Etr. Tradução de Simone Petry. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.: 11).

b) também o traduzir se radica na reflexão: “experiência que pode se abrir e se (re)encontrar na reflexão. Mais precisamente: ela é originalmente (e enquanto experiência) reflexão” ( Berman, 2013BERMAN, Antoine. A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. - 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013.: 23). Como tal, a tradução pode abrir caminho para um saber muito peculiar, a tradutologia, radicada na reflexão como saber de si: “A tradutologia: a reflexão da tradução sobre si mesma a partir da sua natureza de experiência” ( 2013BERMAN, Antoine. A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. - 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013.: 24). Sendo saber de si, a tradutologia é simultaneamente sujeito e objeto, não sendo, portanto, nem teoria da tradução, como o seriam a linguística ou a literatura comparada ( Berman, 2013BERMAN, Antoine. A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. - 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013.: 23-24), nem prática (técnica ou metodologia) do traduzir. Não é por capricho que a tradutologia rejeita ser assim caraterizada. As categorias de teoria e de prática supõem um objeto e um sujeito já constituídos alheios à própria “reflexão da tradução sobre si mesma a partir da sua natureza de experiência” ( Berman, 2013BERMAN, Antoine. A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. - 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013.: 24). Assim entendida e exercida, a reflexão confere um grande alcance à tradutologia. Abre espaço, a partir da experiência do traduzir (experiência que já é em si reflexão), para tornar visível no ato suas próprias condições e decisões. Mas, ao voltar-se para si, a reflexão também abre espaço para um outro: para uma crítica a teorias e a práticas de tradução. Que sejam largamente discutidas ou adotadas não constitui, para a reflexão crítica, ponto de partida para compreender algo ou executar uma tarefa, mas estação de parada para aferir-lhes a validade presumida e os pressupostos tácitos. Nesse sentido, a crítica que a reflexão, como “analítica da tradução”, dirige ao platonismo da tradução há muito vigente é exemplo importante, mas não o único ( Berman, 2013BERMAN, Antoine. A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. - 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013.: 35) 7 7 Não é reiterativo destacar a especificidade do conceito de reflexão como saber de si também no caminho aqui traçado em voltas contínuas. De outro modo, talvez alguém tome por reflexão crítica o que não é nem reflexão nem crítica, esperando que ela aqui ofereça o que não pretende ou execute precisamente o que põe em xeque. A questão da recepção mais restrita dos poemas franceses de Rilke e a questão da pluralidade de traduções que o poema autoriza, formuladas como questões de princípio, não de fato, exigem uma reflexão que não pode nem deve aceitar nada como dado a não ser a singularidade da própria experiência de tradução plural e simultânea do poema de Rilke (seção 1 deste texto) . Por isso, desde o início e por princípio, as duas questões não podem ser resolvidas ou sequer cogitadas como enigmas, se tomadas por questões sobre objetos já constituídos como tais (os poemas alemães e franceses de Rilke e as circunstâncias históricas de sua recepção) que deveriam ser analisados por teorias amplamente discutidas ou por práticas (técnicas ou metodologias) recorrentes de análise literária ou histórica. O aspecto genuinamente crítico da reflexão, desencadeado já na primeira volta pelo poema francês de Rilke, revolve-se nas três seções seguintes. Torna-se mais visível na seção 2 quando a antitética entre duas posições sobre os poemas franceses de Rilke demanda a investigação do pressuposto não declarado que compartilham. A volta seguinte permite exibir em contornos mais definidos, no espelhamento recíproco entre essa antitética e a concepção kantiana de dialética da crítica do gosto (seção 3), em que consiste o aspecto crítico da reflexão: exame das posições conflitantes em vista da investigação do fundamento de possibilidade dos juízos sobre o valor poético de um poema. Ocorre aqui um fenômeno que não é estranho à reflexão como saber de si. O espelhamento feito na seção 3 torna mais visível especularmente por que é crítica a questão de princípio na seção 1 e na seção 2, ao mesmo tempo que abre caminho para a próxima volta: questionamento dos pressupostos tácitos da leitura que De Man faz dos poemas franceses e alemães de Rilke (seção 4). No retorno a si, a reflexão conduz, na última volta (seção 5), ao outro como criadora: abertura para o novo que engendra volta após volta na própria crítica aos pressupostos de teorias e de práticas aceitas. Nesse ponto do retorno a si, a reflexão apropria-se dialeticamente da tese, proposta por De Man, da indistinção entre poema e poética, figuração e metafiguração, embora não lhe compre os pressupostos, em particular, o da não referencialidade do referente. No final, o princípio (e quem se deixou moveu por ele) já não é nem pode ser o mesmo: “Du musst dein Leben ändern”. Convém observar que esse paralelo que traçamos entre o caminho aqui aberto e a tradutologia não deve sugerir que a seguimos como modelo. Fosse assim, não seria reflexão como saber de si. Não há dúvida de que o paralelo permite dar contorno mais definido à reflexão em andamento já na primeira volta e, talvez, demover quem, irrefletido, não se deixou mover por ela. No fundo, porém, ocorre o inverso. É a força do próprio poema de Rilke, coração móvel da reflexão sobre o duplo enigma que o poema mesmo engendra, que tornou possível entrever a origem, especificidade, alcance e eventuais limites da reflexão na tradutologia. .

c) o conceito de reflexão em que se ampara tanto o traduzir como a tradutologia não é genérico, mas também se enraíza, como em certo poetar, no conceito filosófico de reflexão elaborado por Kant e retomado por seus epígonos: “De Kant a Hegel e Heidegger, a experiência é um conceito fundamental da filosofia. O mesmo vale para a reflexão” ( Berman, 2013BERMAN, Antoine. A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. - 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013.: 24). Como consequência desse seu enraizamento, a tradutologia tem como dever (ou seja, como tarefa que lhe é peculiar) radicar-se no pensar filosófico: “sem ser de modo algum uma ‘filosofia da tradução’, deve necessariamente enraizar-se no pensamento filosófico” ( Berman, 2013BERMAN, Antoine. A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. - 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013.: 25). Mas, por vigorar a reflexão, a relação é de mão dupla: “o pensamento moderno está intimamente relacionado ao problema da tradução, ou mais precisamente ao espaço desta” ( Berman, 2013BERMAN, Antoine. A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini. - 2. ed. Tubarão: Copiart, 2013.: 25).

Berman mostra, a partir de sua própria experiência reflexionante do traduzir, que reflexão é o centro que articula as dimensões da tradutologia, do pensar filosófico e da poesia. Torna mais tangível não apenas que há um enigma da pluralidade de traduções, mas também como deve ser pensado se o pensar aspira a ser reflexão como volta a si a partir da experiência do traduzir: em torno da concepção crítica de reflexão posta em circulação por Kant, retomada pelos pós-kantianos e incorporada em alguns poemas, modernos e contemporâneos. Nada que diga respeito, assim, à temporalidade histórica.

A reflexão de Berman, porém, não é o ponto final. Pelas dúvidas que suscita, move a reflexão ao ponto de partida, ao poema francês de Rilke com sua dupla tradução. Berman assume o conceito de reflexão como matriz invariável de sentido, sem trincas nem aporias, de Kant a Hegel. Desse modo, não se atém à categoria de uno e múltiplo desafiada pelo fato das grandes traduções? Não permanece, por isso, no horizonte categorial do platonismo, que considera superável no pensar e no traduzir ( Berman, 2021BERMAN, Antoine. A essência platônica da tradução. Tradução de Gilles Jean Abes e revisão de Simone Petry. Tradução em Revista, n. 30, 2021, p. 346-368. Disponível em: 10.17771/PUCRio.TradRev.52994. Acesso em: 01.mar. 2023.)? Berman também diz não haver nada mais fácil que o acesso ao eu transcendental pelo caminho da imaginação ( Berman, 2018BERMAN, Antoine. Cartas para Fouad El-Etr. Tradução de Simone Petry. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.: 10); mas como seria fácil se é incerto o que seja a reflexão em Kant, o eu e seu vínculo com a imaginação? A reflexão de Berman é inseparável de sua experiência concreta de tradução. No entanto, pelos dois pontos acima, não condena a reflexão ao pensar abstraente? Não é por isso que a interrogação de Berman pelo enigma da multiplicidade de traduções seja externa à singularidade de cada experiência? 8 8 A singularidade que parece ser contornada por Berman não é outra senão a que é peculiar à reflexão que ele mesmo mobiliza. Nos termos de Berman, a singularidade não pode ser considerada, para dar um exemplo, a de uma experiência própria a certo sujeito (um determinado tradutor ou autor) marcado por vicissitudes individuais ou sociais na ordem do tempo perante um objeto que, já dado constituído como tal (um poema), pode ou deve ser lido e interpretado progressivamente. Do ponto de vista da reflexão como retorno a si, a singularidade não pode ser assim pensada por duas razões. Primeiro: a singularidade, aqui, é parte do enigma, se não o for o enigma mesmo (a da experiência da pluralidade de traduções de um poema francês de Rilke); atribuir a ela, já no ponto de partida, algumas propriedades ou determinações é supor decifrado, ao menos em parte, o enigma. Segundo: sujeito e objeto, na reflexão como retorno a si, não são dados em si mesmos ou separadamente, mas se constituem como tais pela reflexão, sujeito e objeto de si mesma. Algumas perguntas que, não sendo objeções, deixam intocada a perplexidade diante do enigma da singularidade da experiência da dupla tradução simultânea do poema francês de Rilke.

As duas perguntas, sobre a recepção mais restrita dos poemas franceses de Rilke e sobre a possibilidade da dupla tradução de um deles, talvez tenham algum parentesco, pois questões de princípio, não de fato, radicadas no poema francês de Rilke com sua dupla tradução. Valem, por isso, como aposta que a primeira estrofe do poema sugere:

CE soir quelque chose dans l’air a passé

qui fait pencher la tête ;

on voudrait prier pour les prisonniers

dont la vie s’arrête.

Et on pense à la vie arrêtée…

O movimento de algo indefinido (“quelque chose”) no ar, no limite entre o claro e o escuro (“ce soir”), é ponto de inflexão para um ato (“qui fait”) de flexão da cabeça (“pencher la tête”); assim fletido e internalizado como pensar, o ato desencadeia uma possibilidade ou desejo, expressos pelo verbo querer no subjuntivo (“voudrait”), de um agente indefinido (indicado pelo pronome pessoal indefinido “on”) que, em sua generalidade, pode ser individuado ou determinado pelo contexto da ação. A flexão que o poema figura abre um espaço de possibilidades para pensá-lo, por contraste com a vida detida (“Et on pense à la vie arrêtée”). A ação inicial de flexão da cabeça, ao culminar no último verso da estrofe em um pensamento realizado (“arrêtée”), retorna ao ponto de partida, perfazendo a inteira curvatura do ato de pensar, como reflexão, portanto. Se é assim, o caminho da reflexão, aberto passo a passo pelo poema, deve exibir, pelos ganhos do próprio caminhar, o valor de um princípio que no início é apenas algo obscuro (“Ce soir quelque chose”), inexpresso como o movimento do ar (“dans l’air a passé”). A este ponto teremos de voltar, como também indicado pelo movimento circular da estrofe inicial do poema. Por enquanto, a pergunta que o último verso do poema suscita (“enfermé dans le bloc d’un sort immobile”) é: por que a recepção mais circunscrita dos poemas franceses de Rilke?

O poema e sua dupla tradução encontram-se no final. Se a aposta é que constituam o princípio que desencadeia e conduza a reflexão, podem ser lidos antes. Essa ordem, em que o princípio se apresenta no fim, ainda que paradoxal, talvez mostre, pelo próprio caminho traçado pela reflexão, que não há diferença essencial entre crítica e criação, poética e poema, filosofia e retórica.

2 O princípio de leveza: “l’avenir est absent”

Böschenstein ( 1998BÖSCHENSTEIN, Bernhard. Rainer Maria Rilkes Französische Gedichte. In: DEMETZ, Peter; STORCK, Joachin W.; ZIMMERMANN, Hans Dieter (org.). Ein europäischer Dichter aus Prag. Würzburg: Königshausen und Neumann, 1998, p. 191-200.: 200), encerrando o problema no círculo restrito dos leitores franceses e alemães, atribui a recepção circunscrita dos poemas franceses de Rilke a razões contingentes. Rilke teria adotado um princípio de leveza para os compor, deixando para trás a gravidade da fase alemã. Teria se fechado, assim, aos estudiosos alemães. Também por motivos circunstanciais, alheios ao valor dos poemas, os leitores franceses teriam mantido igual distância: “o meio cultural francês não estaria tão facilmente disposto, no uso da própria língua, a conceder tal importância a um poeta” ( Böschenstein, 1998BÖSCHENSTEIN, Bernhard. Rainer Maria Rilkes Französische Gedichte. In: DEMETZ, Peter; STORCK, Joachin W.; ZIMMERMANN, Hans Dieter (org.). Ein europäischer Dichter aus Prag. Würzburg: Königshausen und Neumann, 1998, p. 191-200.: 200 ). A mescla de admiração e estranheza de Valéry teria se transformado, para o público francês posterior, em barreira contra o estrangeiro.

A generalização é enorme, mas Böschenstein não está sozinho. Kant e Nietzsche já haviam antes contraposto, em termos próximos, a agilidade do espírito francês à gravidade e menor brilho dos alemães 9 9 Nas Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, Kant estabelece uma oposição de grau, não de gênero, entre alemães e franceses: “O gracejo refinado, a comédia, a sátira cômica, o jogo amoroso e o estilo fluente e natural são dotes autenticamente franceses”. Próprio dos alemães seria o engenho ( Witz), com alguma desvantagem, na comparação com franceses e ingleses: o atrativo possuiria “menos ingenuidade, e a nobreza, um brio menos ousado”. ( GSE, AA 02: 244). Para Nietzsche, o contraste é mais acentuado: “Encontram-se entre os alemães com toda prolixidade, tudo o que há de gravidade majestosa, de pesadume, de pompa solene, todos os gêneros intermináveis e enfadonhos”. Não por acaso, para evadir-se da Alemanha, Lessing teria traduzido autores franceses e mantido independência no ritmo de seu estilo ( 2001: 40-41). Nossas referências à obra de Kant remetem à edição da Akademie Ausgabe (AA), precedida pela abreviação do título da obra em alemão, seguida pelo volume e pela página, exceto a referência à Crítica da razão pura, que segue a paginação padrão de A e B. As traduções de Kant são de minha autoria, exceto a das Observações ( Kant, 2018). Agradeço a V. Figueiredo a indicação das Observações. . O importante, porém, não é o que os “bons europeus” pensam de si, mas a conclusão que Böschenstein extrai da generalização. Talvez útil se transposta (“übersetzt”) para um público situado em outra margem: periférico, não pode avaliar melhor, para proveito próprio, o alcance de um princípio que presume irradiar-se do centro dos poemas franceses de Rilke?

Confiante de que o problema seja do público, não dos poemas, Böschenstein ( 1998BÖSCHENSTEIN, Bernhard. Rainer Maria Rilkes Französische Gedichte. In: DEMETZ, Peter; STORCK, Joachin W.; ZIMMERMANN, Hans Dieter (org.). Ein europäischer Dichter aus Prag. Würzburg: Königshausen und Neumann, 1998, p. 191-200.: 200) lança um desafio: “é hora de mudar essa situação”. Que o interesse do leitor possa modificar-se, atestando a contingência do motivo da recepção circunscrita dos poemas franceses de Rilke, encontra indícios em várias partes 10 10 Na França, indício de mudança do meio cultural é a inclusão, em antologia de poemas franceses publicada pela Gallimard, do poema de Rilke aqui traduzido ao lado de poemas de Paul Valéry, Césaire e Aragon entre outros ( Gallimard, 2011 ). . Inclui-se entre nós a crescente tradução e retradução para o português dos poemas franceses de Rilke, já mencionada. Mas é paradoxal a aposta de expansão sem uma reflexão de princípio que possa bancá-la. Ao menos para o poema de Rilke, o que primeiro choca e comove é a figuração da impossibilidade de expansão. Porque suspenso da morte e, por isso, também da vida, o detento só pode presentificar o futuro como repetição do mesmo e, assim, fechado ao novo: “À la vie qui ne bouge plus vers la mort/et d’où l’avenir est absent”. Nesse caso, que justificaria a aposta de que o interesse do público pelos poemas franceses de Rilke possa expandir-se? De imediato, a figuração da vida detida, não torna suspeito o alcance do princípio de leveza?

Em posição contraposta, situa-se Augusto de Campos, recriador exemplar de vários poemas alemães de Rilke para o português. O problema da recepção estaria no valor menor dos poemas franceses: “Para mim, não guardam a mesma tensão e a mesma originalidade dos textos em língua alemã, e, salvo um ou outro caso, me soam como um Rilke aguado” ( Campos, 2014CAMPOS, Augusto de. “Entre coisas e Anjos”. Entrevista a Carlos Ávila. Portal Uai, Belo Horizonte, 29/11/2014. Disponível em: https://www.uai.com.br/app/noticia/pensar/2014/11/29/noticias-pensar,161967/entre-coisas-e-anjos.shtml. Acesso em: 14/04/2023.
https://www.uai.com.br/app/noticia/pensa...
). É claro que essa opinião tem de ser vista com cautela, porque extraída de uma entrevista. Não parece, porém, ser momento isolado. Não espelha a prática do poeta tradutor que se detém nos poemas alemães de Rilke? O problema da recepção estaria, então, no valor poético reduzido da maioria dos poemas franceses de Rilke, não no desinteresse do público.

A avaliação de Augusto de Campos também não deixa de ser paradoxal. Por restringir em bloco o alcance dos poemas franceses de Rilke, é confrontada, ao menos no poema francês de Rilke, pela figuração da vida estéril: “[...]où la conscience de l’enfance intime/à ce point s’efface”. Evocar a “conscience de l’enfance intime” não repõe, por negação, um tempo passado íntimo que, resgatado pela consciência presente, abre-se para possibilidades futuras. Ao contrário, o poema parece figurar o movimento que, sem possibilidade de mediação entre a consciência viva do passado e sua projeção futura, só pode ser movimento imóvel (“Où tous les jours piétinent sur place”). Como julgar aguados, ao menos dessa perspectiva, os poemas franceses de Rilke? A riqueza do poema, como deve ficar claro no final, permite uma leitura reversa: como abertura para o novo.

O paradoxo em que se enreda cada uma das duas posições talvez seja indício de que compartilham um mesmo pressuposto. Daí ser importante, ainda que por um desvio, compreender o conflito. De um lado, há a afirmação de que o princípio de leveza dos poemas franceses de Rilke e sua expressão verbal em francês (os próprios poemas concretizados pelo princípio) teriam afastado o público, apesar do valor que teriam; de outro, há a afirmação de que o mesmo princípio, traduzido como “um Rilke aguado”, seria responsável pelo valor reduzido da maioria dos poemas franceses (por isso, também por seu alcance limitado no público). Teríamos então:

  1. 1.

    O princípio de leveza teria conferido aos poemas franceses de Rilke o mesmo valor de seus poemas em alemão, afastando, porém, o público (o público alemão, pela estranheza do próprio princípio, e o francês, pela estranheza de sua expressão verbal).

  2. 2.

    O princípio de leveza dos poemas franceses de Rilke teria produzido poemas que não teriam o mesmo valor de seus poemas alemães, afastando, por isso, o público em geral (pela pouca densidade e originalidade dos poemas franceses).

No primeiro caso, o princípio de leveza e sua expressão concreta nos poemas franceses lhes conferiria valor poético, mas afastaria o público. No segundo, esse princípio subtrai-lhes o valor e por isso afasta o público. O princípio, portanto, resulta em duas sortes de efeitos e de explicações conflitantes entre si. Não estaríamos diante de um conflito entre duas proposições que têm a aparência de ser igualmente verdadeiras sobre o valor dos poemas franceses de Rilke? Se for assim, os dois ajuizamentos não constituem algo como uma antinomia de gosto, tal como Kant a representa na Crítica da Faculdade de Julgar?

Não se resolve, assim, o problema da recepção dos poemas franceses de Rilke, mas se mostra como a reflexão deverá, se pretende ser crítica, pensá-lo e, portanto, também o caminho que assim se pode abrir 11 11 “Crítico”, aqui, como se verá com maior clareza na seção seguinte, diz respeito a um problema que é necessariamente de princípio: investigação de princípios de segunda ordem aceitos na enunciação de juízos de primeira ordem. . Se vigora um conflito entre posições divergentes sobre o princípio de leveza, o problema só pode ser pensado criticamente como questão de princípio, não de fato: quais os pressupostos não declarados do princípio de leveza? Ou, em outra formulação, como é possível o princípio de leveza, fonte de duas posições conflitantes sobre os poemas franceses de Rilke? Assim também se mostra que o problema da recepção não pode ser pensado criticamente como questão de fato, pesquisa empírica de circunstâncias temporais ou históricas da recepção. Apesar de relevante para esclarecê-las, tal pesquisa requer antes uma reflexão que estabeleça criticamente um princípio de ajuizamento de fatos e de valores; de outro modo, resultará em um agregado arbitrário de informações, por mais “evidentes” que pareçam. Sobretudo, uma pesquisa empírica, ao coligir fatos que reputa conhecidos, não escuta o poema nem como testemunha nem como autor das circunstâncias de sua própria recepção. Permanece surda, assim, ao fenômeno que pretende decifrar.

Se já trazer à luz do dia o conflito entre posições torna possível mostrar como deve e como não deve ser pensado o problema da recepção, então pode ser fecundo ir mais a fundo e comparar o conflito com a antinomia do gosto tal como caracterizada pela terceira crítica de Kant. A comparação, mesmo que arriscada, pode resultar em ganho triplo. Primeiro, talvez permita compreender em que consiste a diferença entre as duas posições sobre os poemas franceses de Rilke: seriam apenas paralelas ou constituiriam um conflito genuíno? Segundo, permite demarcar, caso haja conflito, o território em que se situam: mera enunciação de juízos ou reflexão, ainda que tácita, sobre como são possíveis? Terceiro, caso os dois lados se situem, mesmo que implicitamente, no território da reflexão, a comparação pode trazer à luz do dia o pressuposto do princípio de leveza, usado sem reservas pelos dois lados. Aqui, o importante é saber se o pressuposto permite alcançar o que cada posição pretende: explicar o que os poemas e fatos têm a dizer em uma análise atenta, mas despreocupada com a reflexão sobre como fazê-la. Mas, por contraste, uma coisa deve ficar clara desde já. A comparação entre duas posições divergentes em torno do princípio de leveza e o conflito antinômico não deve ser vista como externa ao poema de Rilke, com sua dupla tradução. Ao contrário, não apenas é momento da reflexão sobre como pode e deve ser lido, mas também procura explicitar o “como” a partir do próprio poema, o princípio que conduz a reflexão de ponta a ponta 12 12 Aqui, a figura da reflexão crítica como saber de si (e, assim, do outro) mostra-se concretamente menos pelo que é dito sobre ela do que por como ela mesma se constrói a cada vez e a cada volta a partir da singularidade da dupla tradução do poema francês de Rilke. Por isso, só na última volta torna-se mais visível o que está presente desde a primeira: por que tal reflexão não deve ser considerada uma reflexão que, limitando-se a discutir como o poema de Rilke pode ser lido ou como deve ser considerado na questão da recepção, perderia de vista o que teria a dizer numa leitura atenta do poema e de fatos já conhecidos. Pensar assim, separando o “quê” do “como”, é, entre outras coisas, supor que seja certo o que a reflexão como saber de si questiona: a separação entre metafiguração e figuração, linguagem e retórica, para recorrer à tese proposta por De Man (cf. seção 4 deste texto). .

3 A reflexão abstraente: “Où tous les jours piétinent sur place”

Se não é um desatino entrar no labirinto da antinomia do gosto, é preciso compreender como a Crítica da faculdade de julgar a formula. Kant primeiro estabelece o critério geral do que possa ser genuinamente dialético ou antinômico:

Uma faculdade de julgar que deva ser dialética tem de ser, antes de tudo raciocinante, i.e., é preciso que seus juízos tenham a pretensão, até mesmo a priori, de ser universais; pois a dialética consiste na contraposição de tais juízos. Por isso, a discordância entre juízos estéticos dos sentidos (sobre o agradável e sobre o desagradável) não é dialética. Também o conflito dos juízos de gosto, se cada um apelar para seu próprio gosto, não constitui nenhuma dialética do gosto, porque ninguém pensa fazer de seu juízo uma regra universal (KU, AA 05: 337-338).

O critério primeiro (“zuvörderst”) e indispensável para qualificar como dialética a faculdade de julgar é que os juízos contrapostos sejam “raciocinantes”, ou seja, “é preciso que seus juízos tenham a pretensão a priori de ser universais”. A importância desse critério para a dialética do juízo estético é inicialmente negativa, apenas exclui juízos estéticos díspares que poderiam se passar por dialéticos, isto é, antinômicos, sem que o sejam. Não é dialética a discordância entre juízos estéticos dos sentidos 13 13 Para dar mais inteligibilidade à passagem, que supõe o que vem antes na Crítica da Faculdade de Julgar, pode-se dizer que estético, em termos críticos, diz respeito à relação de um juízo com o sentimento do sujeito. É estético qualquer juízo “cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo” ( KU, AA 05: 204). O juízo estético diferencia-se, assim, de um juízo lógico ou de conhecimento, que pretende relacionar nossas representações a um objeto. Nesse sentido, estético jamais diz respeito à propriedade de certos objetos (de arte ou naturais), mas ao sentimento do sujeito diante deles. Um juízo estético pode ser juízo estético dos sentidos, quando se funda num sentimento subjetivo privado, ou juízo estético de gosto, quando se funda em um sentimento produzido pela própria reflexão (o ato de julgar em geral). Neste caso, ainda que subjetivo, pode pretender valer para todos. . Alguém para quem digo que este vinho está doce pode retrucar que está amargo para ele. Apesar da não concordarem entre si, os juízos não constituem uma antinomia do gosto: cada um que os formula apenas expressa o que lhe agrada, sem pretender impor seu juízo aos demais. O mero uso do verbo “estar”, possível apenas em alguns idiomas, em português e em espanhol, por exemplo, mas não em alemão ( sein) ou em francês ( être), é indicativo de que se fala da apreciação do ponto de vista privado e circunstancial, sem pretensão de valer para todos 14 14 É Mario Caimi quem fez semelhante observação para marcar a diferença entre unidade subjetiva e unidade objetiva da apercepção no contexto da Dedução Transcendental da segunda edição da Crítica da razão pura, em palestra realizada no Encontro do Grupo Kant e a História da Filosofia, ocorrido em 29/11/2017 na UFSCar (informação verbal). . Juízos diferentes sobre o agradável (ou sobre o desagradável) não são, portanto, conflitantes e, assim, não constituem uma antinomia. Tampouco é antinômica a disparidade entre juízos estéticos de gosto. O juízo de gosto, como o juízo dos sentidos, também é estético, pois não atribui o predicado (belo ou feio) a um objeto, apenas expressa o sentimento de prazer ou desprazer do sujeito diante de certos objetos. Ainda que estético, o juízo de gosto difere, porém, do juízo dos sentidos. Quem julga algo belo pressupõe que seu ajuizamento se funda não em inclinações ou circunstâncias privadas, mas na satisfação que presume haver para todo e qualquer sujeito que ajuíza sobre o mesmo objeto: “Ele falará do belo, portanto, como se a beleza fosse propriedade essencial do objeto [...]muito embora seja meramente estético” ( KU, AA 05: 211). Por isso, quem julga algo belo (ou feio) tem a pretensão de que seu juízo, mesmo que fundado no próprio sentimento, possua validade subjetiva universal 15 15 Em termos kantianos, é a reflexão estética (o juízo de gosto como ato) que produz o próprio sentimento de prazer ou desprazer (o belo e o feio como se fossem propriedades do objeto), não o contrário. O sentimento produzido pelo refletir vincula-se, por isso, a um ato cognitivo (mas sem conceito determinado) e, por consequência, é assimilado à própria consciência desse ato: “A consciência da finalidade meramente formal no jogo das faculdades de conhecer do sujeito, em uma representação pela qual um objeto é dado, é o próprio prazer [...]” ( KU, AA 05: 222). Por ser produzido pela reflexão e vinculado às faculdades de conhecer em geral, o sentimento de prazer ou desprazer (belo ou feio) pretende ter validade para todo sujeito, independentemente das circunstâncias privadas de quem enuncia o juízo. .

É a pretensão à universalidade subjetiva, ausente de um juízo estético dos sentidos, que pode dar lugar à disparidade entre dois juízos de gosto. Se digo que o poema de Rilke é belo, alguém pode retrucar que é feio (ou aguado), com base na mesma universalidade subjetiva presumida do juízo que proferi. A disparidade entre os dois juízos constituiria uma antinomia do gosto? Não é o caso. Ainda que os juízos sejam dispares, não configuram uma antinomia: “ninguém pensa fazer de seu juízo uma regra universal”. Não é muito claro esse ponto. Se um juízo de gosto tem a pretensão à universalidade subjetiva e nisso se distingue de um juízo dos sentidos, por que cada um dos lados não faria de seu juízo de gosto uma regra universal? Talvez Kant queira apenas sugerir que cada um dos lados, mesmo supondo que seu juízo deva valer para os demais, não o justifica com base em um princípio tomado como regra. Os dois lados podem até aceitar, implicitamente, o mesmo princípio, divergindo apenas no resultado da aplicação do princípio 16 16 Sigo a interpretação de Allison ( 2001: 237 ). . Deste modo, ainda que díspares, os juízos não divergem necessariamente na questão do princípio de ajuizamento. Não constituem, por isso, uma genuína antinomia.

Que ocorre com as duas posições antagônicas sobre os poemas franceses de Rilke? Constituiriam uma antinomia? À primeira vista parece que sim. As duas posições não pretendem que o juízo que proferem se funda em inclinações ou circunstâncias privadas. Tampouco pretendem que o juízo seja arbitrário, mas o justificam por um princípio (o de leveza). Assim, as duas posições antagônicas sobre o poema de Rilke: (a) possuem a pretensão de ser gerais; (b) supõe, mesmo que tacitamente, que o princípio de leveza seja a norma que justifica a posição que adotam. Essas duas caraterísticas são importantes, pois poderão dar alguma pista do limite do princípio de leveza.

Mas, ainda que se aproximem da dialética da faculdade de julgar estética, as duas características não bastam para fazer do conflito entre as duas posições sobre Rilke uma genuína dialética do gosto. Esta requer ainda, de acordo com o critério primeiro e geral, que os juízos em conflito sejam “raciocinantes”, quer dizer, a priori e, como tais, tenham a pretensão de valer de modo estritamente universal. Não é, porém, o que ocorre com as duas posições antagônicas sobre Rilke. A primeira, que atribui a recepção escassa ao gosto do público, não pode ter a pretensão de ser subjetivamente universal, pois diz respeito a um círculo restrito de leitores (alemães e franceses), em determinado período de tempo (até agora). Avalia, por isso, que a recepção possa ser diferente, daí o desafio que lança: “é hora de mudar a situação!”. Algo parecido se passa com a segunda posição, que atribui o problema à obra francesa de Rilke, não à resistência do público. Não formula um juízo que tenha a pretensão de valer para todos e, assim, de modo estritamente necessário. Admite exceções (“salvo um ou outro caso, me soam como um Rilke aguado”) e, também, acrescenta uma cláusula restritiva: “Para mim, não guardam a mesma tensão e a mesma originalidade dos textos em língua alemã”. Admite, portanto, que haja exceções e que se possa ajuizar de outro modo.

Aqui é preciso cuidado. A cláusula restritiva (“para mim”) não acabaria por conferir valor meramente privado ao juízo, como ocorre, por exemplo, em um juízo dos sentidos (para mim, o vinho está doce) ou um juízo em que cada um apela apenas para seu gosto, sem pretender fazer dele uma regra geral? Não é o que se passa. O ajuizamento, apesar da cláusula restritiva, não se apoia em alguma circunstância particular de quem julga, mas procura se apoiar em propriedades como se pertencessem à obra francesa de Rilke: “[...]não guardam a mesma tensão e a mesma originalidade dos textos em língua alemã”. Nesses termos, qualquer um que pretenda avaliar a obra pode, em rigor, concordar ou não com o juízo emitido. A discordância apenas confirmaria a pretensão de valer para todos com base em um princípio de avaliação. Sendo assim, a cláusula restritiva (“para mim”) não cancela a pretensão de o ajuizamento valer como regra para outros. Há, assim, uma pretensão à generalidade, que, sendo apenas comparativa, não se confunde com a universalidade subjetiva a priori.

Aproximar as duas posições conflitantes sobre Rilke e a antinomia do gosto, da Crítica da faculdade de julgar, não nos leva cada vez mais longe do problema aqui proposto? A aproximação seria um disparate se não tivesse alcançado nada. Já houve, porém, um primeiro ganho. A aproximação já conseguiu mostrar que: (a) as duas posições não são paralelas entre si, mas constituem um conflito: cada uma delas resulta em avaliações contrárias sobre o valor dos poemas franceses de Rilke com base em um mesmo princípio que pretende ter validade geral; (b) esse princípio, o de leveza, não é estritamente universal, por não ser a priori.

É necessário agora um segundo passo. Que território as duas posições compartilham, apesar de antagônicas? Antes, Kant havia excluído os juízos dos sentidos e os juízos de gosto como candidatos para uma dialética do gosto, ainda que eventualmente díspares. O passo agora é positivo, pois enuncia de que ponto de vista se dá o conflito:

Não resta, portanto, nenhum conceito de uma dialética que possa referir-se ao gosto a não ser o conceito de uma dialética da crítica do gosto (não do próprio gosto) em vista de seus princípios: uma vez que surgem, de modo natural e inevitável, conceitos conflitantes entre si acerca do fundamento de possibilidade dos juízos de gosto em geral (KU, AA 05: 231-232).

Só pode haver dialética quando há um conflito que se situa não no terreno da enunciação de juízos de gosto, mas no terreno da crítica do gosto. Mais precisamente, uma antinomia do gosto se dá não entre juízos de gosto díspares, mas entre princípios concorrentes que procuram explicar e justificar a possibilidade do próprio juízo de gosto em geral. Allison é claro nesse ponto: “se deve haver algo como uma dialética do gosto, ela tem de dizer respeito à crítica do gosto, isto é, a princípios de segunda ordem subjacentes a juízos de gosto de primeira ordem” ( Allison, 2001ALLISON, Henry. Kant's Theory of Taste: A Reading of the Critique of Aesthetic Judgment. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.: 237).

Mas há uma razão adicional. O conflito só é genuinamente antinômico se os dois princípios concorrentes são não apenas de segunda ordem, mas também a priori, fundados, portanto, na legalidade da faculdade de julgar: “uma crítica transcendental do gosto só terá uma parte que possa ser nomeada dialética da faculdade de julgar estética, caso se encontre uma antinomia desse poder que torne duvidosa sua legalidade e, assim, também sua possibilidade interna” (KU, AA 05: 231-232).

Se é assim, aproximar mais uma vez o conflito entre as duas posições sobre Rilke e o conceito kantiano de dialética do gosto é possível, mas só em parte. Aproxima-se da dialética do gosto, porque as duas posições antagônicas procuram explicar e, ao menos tacitamente, justificar a possibilidade da posição que adotam com base em um princípio mais geral (o de leveza). O conflito situa-se, assim, no domínio da crítica: “crítica do gosto (não do próprio gosto) em vista de seus princípios”. Por outro lado, a aproximação não é perfeita por dois motivos: (a) os dois lados em disputa não pretendem que o princípio de leveza esteja radicado na legalidade da faculdade de julgar; (b) não justificam sua posição com base em princípios concorrentes, mas em um só princípio (o de leveza); a divergência está na aplicação do princípio, que resulta em conclusões opostas. Por tudo isso, o conflito entre as duas posições não constitui um conflito genuinamente dialético.

Se a aproximação é imperfeita, que ganho pode ter? Ela já tornou possível compreender que as duas posições em torno do princípio de leveza não são paralelas, mas antagônicas na aplicação do princípio; também tornou claro sua pretensão de valer em geral, mas não universalmente, porque não ser a priori. Tornou claro em seguida que as duas posições se dão no terreno da crítica: aceitam um princípio de segunda ordem para ajuizar sobre os poemas franceses de Rilke. Poderá resultar, agora, em um terceiro ganho: trazer à luz do dia o pressuposto subjacente ao princípio de leveza.

Os lados antagônicos sobre Rilke situam-se no terreno da crítica (segundo ponto). Contudo, não explicitam a pressuposição que, tacitamente, adotam para alcançar o princípio de leveza. Se não está radicado na razão humana, de onde provém? Não sendo a priori, esse princípio só pode ser obtido pela generalização de casos singulares, ou seja, a partir do exame de alguns poemas ou, em termos kantianos, pela reflexão abstraente que, pela comparação, reflexão e abstração, procura alcançar uma proposição geral.

Se é assim, vem à luz do dia o pressuposto compartilhado pelos dois lados em disputa. Pressupõem, sem mais, que um poema não passa de unidade fechada, perfeitamente acabada e imóvel que, como tal, pode ser comparada com a de outros poemas, assim também considerados. Caberia então ao crítico, para alcançar um princípio geral de explicação e avaliação, comparar vários poemas, refletir o que possuem em comum e abstrair do que é diferente. Pressupõem, portanto, que um poema é a reiteração de uma mesma matriz de composição. Descoberta pela reflexão abstraente, a matriz serviria como princípio de explicação e de avaliação de cada um dos poemas comparados e de seu conjunto. Dito de outro modo, o princípio de leveza valeria a um só tempo como mecanismo de composição seguido por Rilke para elaborar os poemas franceses e regra para o crítico explicá-los e avaliá-los.

Não se encontra aqui o limite desse pressuposto, por mais recorrente que possa ser em crítica literária? Não que se possa prescindir da generalização para compreender a unidade de uma obra, sua ausência ou como rompe com outras. A questão, porém, é outra: até que ponto um poema pode ser concebido como unidade fechada e, por isso, suscetível de ser comparado com outros para destacar o que lhes é comum e invariável? A duplicidade de traduções simultâneas do poema não coloca em dúvida a validade e alcance desse pressuposto? Não é o sinal mais visível de que é o próprio poema de Rilke que autoriza a tradução bifurcada, tanto quanto leituras diversas, igualmente válidas?

Se for assim, o poema francês de Rilke está longe de ser unidade fechada, acabada e imóvel. Ao contrário, o poema engendra, pelo avesso, um espaço de indeterminação, visível pela dupla tradução. Abre, assim, diferentes perspectivas, por mais circunscrito que esteja por normas, hábitos ou convenções do uso da linguagem. Pelo avesso, pois o faz no momento em que figura o espaço de clausura que impõe a repetição do mesmo e o movimento imóvel fechado ao novo. Deste modo, a reflexão sobre a tradução bifurcada torna tangível o que torna a duplicidade possível: o espaço de indeterminação do poema autoriza uma pluralidade de sentidos e de traduções, coexistentes entre si, mas não necessariamente congruentes. No limite, é plausível pensar que as duas posições antagônicas em torno do princípio de leveza capturem algo do espaço de indeterminação que o poema engendra. A primeira posição estima positivamente a leveza, pelo movimento quase imperceptível que o poema torna possível, já a segunda a desqualifica, concebendo como aguado o que, sem ruído, se esparrama em diferentes direções. Se for assim, a comparação com a dialética do gosto kantiana não é, no fundo, movida pela indeterminação do poema de Rilke, tornado visível na tradução dupla?

Se o conceito de espaço de indeterminação impõe, deste modo, um claro limite ao pressuposto da reflexão abstraente, a aceitação cega desse mesmo pressuposto enclausura a força criadora do poema. Por isso, ainda que divirjam no resultado da aplicação do princípio de leveza, os dois lados antagônicos prendem-se ao pressuposto da reiteração do mesmo que o poema denuncia: “Où tous les jours piétinent sur place”. Como seria possível, então, que a recepção dos poemas franceses, ao menos vista pela janela de um deles, pudesse ser ampliada se é fechado e imóvel o próprio princípio que deveria expandi-la?

Aonde chegamos? A reflexão que se iniciou com a pergunta suscitada pelo poema francês de Rilke (a pergunta sobre a recepção circunscrita dos poemas franceses de Rilke) levou a um problema de princípio, não de fato: o princípio de leveza, porque ligado a duas posições divergentes, possuiria legitimidade para explicar ou estimar a recepção dos poemas e estimar o valor que possuiriam? Em seguida, o mesmo caminho conduziu sem alarde para a segunda pergunta: por que duas traduções simultâneas do poema de Rilke? Um esboço de resposta para as duas perguntas foi feito ao longo do percurso. O conceito crítico de espaço de indeterminação, extraído do poema de Rilke se acaso lido pelo avesso, como sugerido pela tradução bifurcada, possui quatro consequências: (a) o conceito limita o alcance do pressuposto subjacente ao princípio de leveza (o pressuposto de que o poema seja unidade fechada e imóvel); (b) permite explicar como é possível a plurivocidade do poema de Rilke, patente pela duplicidade de sua tradução; (c) permite estimar o valor do poema, porque congruente com a força que possui para engendrar o novo; (d) deixa entrever que crítica e criação não são atividades essencialmente distintas (o próprio conceito de espaço de indeterminação é apenas uma metáfora possível extraída do poema de Rilke: o conceito que explica o modo de figuração do poema é ele próprio uma figura de linguagem).

Até aqui, a reflexão conferiu a prerrogativa à primeira pergunta (sobre a recepção dos poemas franceses de Rilke), sem apagar a segunda. Agora, a reflexão deve refazer o caminho, privilegiando a segunda pergunta (sobre a duplicidade da tradução do mesmo poema), sem perder de vista a primeira. Como já ganhou algo no percurso, a reflexão pode formular a segunda pergunta de modo diverso: haveria outro princípio crítico, diferente do princípio de leveza, que pretenda explicar como é possível a duplicidade da tradução do poema, sem, contudo, prender-se ao espaço de clausura? Onde encontrá-lo?

4 A reflexão da reflexão: “où toutes les nuits tombent dans l’abîme”

Não é preciso inventar nada, pois o princípio pode ser encontrado na investigação, exemplar em muitos aspectos, que Paul De Man faz dos poemas de Rilke, alemães e franceses ( De man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 37-74). Fica em aberto por enquanto se o princípio escapa ou não ao espaço de clausura da reflexão generalizante. Por onde começar? Talvez pelo meio do percurso, quando De Man analisa o poema “Archaischer Torso Apollos” de Rilke para corroborar o que conquistou nos passos precedentes 17 17 De Man cita apenas dois versos do poema alemão de Rilke. O poema integral e três traduções (De Manuel Bandeira, Ivo Barroso e Karlos Rischbieter) podem ser lidos em Ivo Barroso ( 2011) . .

Caso inquietasse De Man, o fenômeno da pluralidade de traduções (evidenciado, para nós, pelas três traduções em português do Torso Arcaico) poderia conduzi-lo para a reflexão crítica de como é possível. Talvez então questionasse o pressuposto e o alcance do princípio de unidade que presume ter encontrado na obra de Rilke. Não é enigmático que o poema autorize traduções diferentes, mesmo descontado o tempo sucessivo que as multiplica e a temporalidade inscrita na estrutura do ato de traduzir? Nada disso, porém, interessa a De Man, preocupado com o princípio de unidade da obra de Rilke. Se a análise do “Torso arcaico de Apolo” puder servir como exemplo do que está em jogo, vale a pena citá-la integralmente ( De Man, 1 996: 62):

Em “Archaischer Torso Apollos” (1: 313), a inversão é ocular. O observador está, por sua vez, sendo observado pela estátua fragmentada que foi transformada num único, grande olho: “ denn da ist keine Stelle,/die dich nicht sieht” [pois aqui não há um lugar/ que não te veja]). A inversão só é possível porque a escultura é quebrada e fragmentária; se a estátua tivesse realmente representado o olho de Apolo, o quiasmo não poderia ter surgido. O olho ausente permite que uma visão imaginária venha a existir, e isso transforma a escultura sem olho em um olho de Argos capaz de engendrar, por si mesmo, todas as dimensões do espaço [...]. O princípio unificador dos Poemas Novos reside na homologia de sua estrutura poética.

A reflexão é concisa, pois supõe os passos anteriores. Mesmo assim, ela é notável tanto pelo que diz quanto pelo que sugere, mas não diz. Que apenas sugere? “O olho ausente permite que uma visão imaginária venha a existir”. A “visão imaginária” ( imaginary vision) do observador transforma o fragmento da estátua em um só olho; pelo mesmo ato, o observador acaba por tornar-se observado pelo olho da estátua que imaginou, antes ausente. Ao assinalar a inversão de perspectiva entre observador e observado, De Man procura reafirmar ser o quiasmo, inversão de polaridades, o tropo central de toda a poesia de Rilke, alemã e francesa. Notável, antes de tudo, é que a leitura proposta por De Man para o “Torso Arcaico” é repleta de figuras de linguagem. Primeiro propõe uma metáfora ao comparar o olho da figura mitológica de Argos com o torso da estátua de Apolo, transformada em um “único, grande olho” pela visão imaginária. Mas a comparação supõe a sinédoque, pois os cem olhos da figura mitológica de Argos são tomados por um único olho. A própria expressão “imaginary vision” é metáfora: compara um ato da mente de reapresentar um objeto ausente com a visão in concreto do que está presente. A partir daí, De Man poderia ter dito que a visão imaginária, em rigor, imaginadora, ao transformar a estátua fragmentada “num único, grande olho” também torna presente, por sinédoque, a estátua integral, antes apenas fragmento. Em seguida, poderia ter inferido que, se é assim, a imaginação figura, num só lance, a unidade entre o observado e o observador como partes de uma totalidade possível, que, por não ser dada como tal, é produzida pela própria imaginação. O que salta aos olhos, portanto, no que De Man sugere, mas não diz, é a figura clássica da imaginação como faculdade de tornar presente, em uma unidade, o ausente. É precisamente assim que a dedução transcendental da segunda edição da Crítica da razão pura apresenta a imaginação: “ Imaginação [”Einbildungskraft”] é a faculdade de representar um objeto também sem a sua presença na intuição” ( CRP: B 151). O “também” aqui indica uma dupla dimensão da imaginação: (a) reapresentação de algo antes visto, mas agora ausente; (b) representação de algo que, embora presente, é reconfigurado ou unificado com algo ausente, em vista da figuração de um todo 18 18 Aqui, sigo de perto a interpretação de Caimi ( 2007: 87 ). . Não é preciso recorrer, porém, a Kant. A função de unificar múltiplos aspectos para formar a unidade de um todo não dado como tal está já na superfície da palavra Einbildungskraft, a “força da formação-em-um”, como Rubens Rodrigues Torres Filho traduz em outro contexto ( 2004TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Ensaios de Filosofia Ilustrada. São Paulo: Iluminuras, 2004.: 134).

É certo que De Man não propõe nada parecido com um estudo clássico das faculdades da mente ( Gemüt). No fundo, porém, desloca a síntese figuradora da imaginação (“figürliche synthesis” ou “synthesis speciosa”, segundo a terminologia kantiana) para o processo de figuração da linguagem (“figural language”, o conceito ou tropo central em De Man). Desse modo, acaba por deslocar a investigação crítica das condições a priori da representação, das quais faz parte a imaginação, para a retórica, entendida como estudo de tropos e figuras de linguagem ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 20-21). O deslocamento tem como consequência mais extrema a impossibilidade de decidir entre o modo de figurar e o que é figurado, entre léxis e logos, crítica e literatura, como é visível pela série de tropos que compõe a reflexão de De Man sobre o poema de Rilke. Se é assim, em vez de ignorar a imaginação, De Man poderia tomá-la, na condição de síntese figuradora , como outro tropo, ao lado dos demais que investiga. Ou melhor, acima deles, como tropo recorrente que até mesmo empresta seu nome à metafiguração (termo empregado por De Man). Metafiguração: uma figuração que é de segunda ordem ou é crítica da figuração, uma vez que a pergunta pelos modos retóricos de um texto literário seria também pergunta retórica ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 30, 35).

Caso fosse até o fim no que sugere, mas não diz, De Man também poderia entrever mais uma coisa. A remissão do fragmento ao todo pela imaginação (“visão imaginária”) não precisa ser unicamente a remissão do torso arcaico de Apolo ao olho e à estátua inteiriça de que é parte. Pode ser também a remissão do poema “Torso Arcaico de Apolo”, ele próprio um fragmento, aos demais poemas de Rilke. Pela metafiguração, a imaginação pode assumir a perspectiva do poema-fragmento para investigar os demais poemas de Rilke (ou figurá-los) em vista de uma unidade não dada; ou, inversamente, pode investigar o poema “Torso Arcaico de Apolo” pela perspectiva dos outros poemas de Rilke. O todo assim presentificado não seria em rigor senão um entre outros possíveis, não necessariamente expressões distintas de uma mesma legalidade (“homologia”). Pois a composição dos poemas-fragmentos pode ser recomposta ou reapresentada indefinidamente, de diversos modos similares, mas não inteiramente congruentes entre si. Em seguida, De Man poderia entrever que a própria pluralidade de traduções do poema-fragmento é, talvez, a expressão mais visível dessa remissão dinâmica a um todo possível entre outros. Nesse caso, o poema-fragmento e suas traduções se correspondem, isto é, respondem-se uns aos outros em uma miríade de aspectos possíveis. Ou, de modo mais radical, que as traduções também contribuem, a partir da perspectiva que abrem, para engendrar a própria remissão do poema-fragmento a um todo possível. Por fim, caso desse mais um passo, De Man poderia ver com outros olhos sua afirmação de que, no poema “Torso Arcaico de Apolo”, a visão imaginária “transforma a escultura sem olho em um olho de Argos capaz de engendrar, por si mesmo, todas as dimensões do espaço”. Imediatamente, a metáfora é de que o olho ausente de Apolo na estatura fragmentada, presentificado como a totalidade da estátua pela “visão imaginária”, é o centro que engendra a totalidade das dimensões do espaço do que pode ser visto. No entanto, essa afirmação pode ser enxergada de outro modo. A imaginação pode transformar a escultura sem olho em um olho de Argos, alocando-a sucessivamente em diferentes centros de um espaço indeterminado. A cada vez, é diverso o centro e as dimensões engendradas do espaço do que se pode ver. A imaginação também pode presentificar o olho simultaneamente em diversos pontos de um espaço indeterminado, multiplicando numa só trama as dimensões do espaço e os modos do que pode ser visto. Nesse caso “único grande olho” se converteria em vários, como o Argo Panoptes figurado em alguns vasos gregos como um monstro (“monstro”: também o que mostra) de cem olhos distribuídos ao longo do corpo. No caso mais extremo, a imaginação pode, num espaço indeterminado, redistribuir os cem olhos em fragmentos diferentes, multiplicando as dimensões do espaço, os modos de ver e a correlação entre eles. Esse é o caso do quadro “Juno e Argo”, de Rubens, em que os cem olhos de Argos, já decapitado, são alocados na cauda móvel de dois pavões. O mesmo processo pode ser realizado pela metafiguração com os próprios poemas-fragmentos. Em nosso caso, apenas dois olhos, o poema francês de Rilke e o “Torso Arcaico de Apolo”, na correlação entre o espaço de indeterminação e as dimensões engendradas pelo olho ausente-presente do fragmento.

Se tivesse dado esse passo mais extremo, De Man poderia ter entrelaçado, pela crítica (figuração da figuração ou metafiguração), o problema da plurivocidade de um poema, da pluralidade de traduções, de sua correlação e, talvez, também da recepção. É mais difícil ver como o problema da recepção possa fazer parte da trama. Provisoriamente, pode-se imaginar que a recepção não é passiva, subjugada pelas contingências históricas que, externas à obra, determinam o que uma época deve acolher ou recusar. A recepção pode ser marcada também, em maior ou menor grau, pela capacidade de uma época em engendrar o novo a partir da novidade, reconfigurando a ordenação preexistente de obras. Talvez seja esperar demais que De Man tivesse seguido até o fim o que sugeriu, mas não disse. Contudo, é plausível pensar que, mesmo sem o passo mais extremo, poderia ter sido mais cauteloso em sua aposta de encontrar uma homologia estrutural nos poemas de Rilke, a mesma estrutura reiterada na pluralidade de poemas.

Que De Man diz realmente do “Torso Arcaico de Apolo”? Primeiro, explicita a inversão do ponto de vista: “[...]a inversão é ocular. O observador está, por sua vez, sendo observado pela estátua fragmentada que foi transformada num único, grande olho”. Segundo, explicita que o tropo da inversão é o quiasmo, figura que cruza os atributos, no caso, o olho presente que é visto e o olho ausente que vê. Terceiro, que o vazio ou a lacuna é condição indispensável do quiasmo em qualquer contexto. Uma inversão só é possível se a falta puder ser convertida no seu contrário, como a impossibilidade do amor na promessa de alcançá-lo. Quarto, explicita o amplo alcance da figura retórica da inversão. O quiasmo seria estratégia não apenas do poema “Torso arcaico de Apolo”, mas também dos Novos Poemas de que é parte: “O princípio unificador dos Novos Poemas reside na homologia de sua estrutura poética”. Por último, explicita que, quando aposta na homologia do princípio unificador dos Novos Poemas, pretende alcançar a invariabilidade na variação, sem cogitar que pode haver indeterminação no próprio princípio ou em sua aplicação in concreto.

De Man não para aí. O princípio unificador extravasaria os Novos Poemas tanto pela extensão que teria na obra de Rilke como um todo quanto pela função que assumiria para valorá-la (como se verá logo mais). Pela extensão, pois o quiasmo seria a estratégia retórica não apenas dos Novos Poemas, mas também de grande parte da poesia de Rilke: “A figura determinante da poesia de Rilke é a do quiasmo, o cruzamento que inverte os atributos de palavras e coisas” ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 56 ). A onipresença do quiasmo estaria até mesmo onde, como nas Elegias de Duíno, pareceria ausente .

A inversão de uma negatividade em uma promessa, a ambivalente estratégia temática das Elegias permite um jogo linguístico que é análogo àqueles dos mais trabalhados entre os Novos Poemas. Exigem, entretanto, um tom muito diferente, cujo pathos, fervor e exaltação nos fazem esquecer a natureza formal e ficcional da unidade que celebram

(De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 68).

É o que também ocorreria, em menor grau, nos Sonetos a Orfeu. Nas duas obras, o caráter messiânico e seu “apelo à emoção e à participação do leitor” ( 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 67 ) fariam esquecer a estrutura linguística de inversão. No fim, a existência de duas leituras divergentes sobre os poemas de Rilke, longe de exigir alguma decisão, refletiria dois usos diferentes da figura retórica do quiasmo:

Toda a complexidade de sua poesia só pode aparecer na justaposição de duas leituras, na qual a primeira esquece e a segunda reconhece a estrutura linguística que a faz existir. Resta a questão se o próprio Rilke considerava sua obra por essa perspectiva dupla ou se seguia o exemplo de seus comentadores, acentuando sistematicamente a primeira em detrimento da segunda

(De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 68-69).

O “jogo de polaridades” compareceria na obra de Rilke em uma terceira modalidade. Nem estrutura linguística manifesta em alguns poemas nem seu esquecimento em outros, compareceria também como alvo da denúncia mais geral de Rilke sobre o caráter ilusório da figuração. O Soneto do Cavaleiro seria um exemplo: “a verdade da figura se revela como uma mentira no exato momento em que se afirma na plenitude de sua promessa” ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 73 ). Seria o caso também do poema alemão tardio “Gong”. Inversão não apenas visual, como no “Torso Arcaico de Apolo”, mas também na dimensão fônica, denunciada no final do poema “como erro e traição” ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 73 ).

É claro a essa altura o grande alcance que De Man confere ao quiasmo como princípio unificador dos poemas alemães de Rilke. Que diz sobre os poemas franceses? Nesse ponto, é lacônico. Apenas diz haver alguns que, ao converterem a retórica visual em retórica auditiva, denunciam a mentira da figuração. Estariam próximos, ao que parece, da terceira modalidade do uso do quiasmo, exemplificada pelos poemas alemães “Soneto ao Cavaleiro” e “Gong”. Infere-se, por exclusão, que haveria outros poemas franceses que recorreriam às duas modalidades do uso do quiasmo encontrado em alguns poemas alemães. Se for assim, o quiasmo seria onipresente nos poemas de Rilke, alemães e franceses. Mas é preciso deter-se na leitura que De Man faz dos poemas franceses, pois sustenta que também marcam uma ruptura.

A análise de De Man sobre eles é decerto mais opaca, pois se apoia em um único exemplo. Ou melhor, não se trata sequer de um poema. Sem nenhuma advertência, justapõe dois fragmentos, provenientes de dois poemas franceses distintos de Rilke 19 19 Os poemas “Gong” e “Mensonge II” integram os poemas franceses avulsos de Rilke que os editores agruparam sob o título: “ Die Gedichte – September 1923 bis September 1926”. Os dois poemas encontram-se respectivamente em Rilke ( 2003: 302, 306) . . Do poema francês “Gong” , par do poema alemão de mesmo nome, De Man extrai a segunda estrofe:

Il faut fermer les yeux et renoncer à la bouche

rester muet, aveugle, ébloui:

L´espace tout ébranlé, qui nous touche

Ne veut de notre être que l´ouïe.

Já do poema “Mensonge II”, extrai dois versos:

Masque? Non. Tu es plus plein,

Mensonge, tu as des yeux sonores.

Propomos duas traduções:

Manter os olhos cerrados e os lábios selados, Quedar-se mudo, cego e ofuscado, O espaço que nos tange todo brandido Requer de nosso ser somente o ouvido.

Máscara? Não. É bem mais abundante, Mentira, sonantes são os seus olhos.

É preciso vedar os olhos e abdicar da boca Manter-se mudo, cego, aturdido, O espaço que inteiro tangido nos toca Não quer de nosso ser senão o ouvido.

Máscara? Não. Tu és mais plena, Tens os olhos sonoros, Mentira

Que conclusão De Man extrai dos dois fragmentos que justapõe? Para as duas posições conflitantes examinadas há pouco, o princípio de leveza marcava uma ruptura dos poemas franceses com os poemas alemães. Em um primeiro momento, De Man parece chegar a conclusão análoga (apenas parece):

[...]a mudança para o francês indica não apenas o conhecimento da ruptura, mas seu advento. A promessa contida na poesia de Rilke (...)é dessa forma colocada, pelo próprio Rilke, na perspectiva desagregadora da mentira. Só podemos entender Rilke se entendermos a urgência dessa promessa, junto à necessidade igualmente urgente e igualmente poética, de revogá-la, no exato instante em que parece estar a ponto de oferecê-la

(De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 74; trad. modificada).

Também aqui De Man não se detém no problema da pluralidade de traduções. Esse problema não é urgente apenas para quem depara com a dupla tradução em português do poema “Gong”, mas também para quem não o traduz. O poema “Gong” é duplo. Um que Rilke escreveu em alemão em novembro de 1925 e outro em francês, pouco depois, em março de 1926. Apesar do mesmo nome, o “Gong” francês não é réplica do “Gong” alemão. Tampouco são homônimos, pois compartilham o título, o tema e, talvez, a técnica poética, como supõem os editores dos poemas franceses de Rilke ( Rilke, 2003RILKE, Rainer Maria. ENGEL, Manfred; LAUTERBACH, Dorothea (Hg.). Rilke Werke: Kommentierte Ausgabe. Supplementband. Gedichte in französischer Sprache. Frankfurt am Main und Leipzig: Insel Verlag, 2003.: 306 ). Se é assim, a homologia da técnica resulta em duas variantes co-respondentes entre si, quer dizer, que se respondem mutuamente em línguas distintas, como o próprio gongo figurado no poema: “tout ce qui fut autor, en mille bruits se change/nous quite et revient: rapprochement étrange de la marée de l´infinit” ( Rilke, 2003RILKE, Rainer Maria. ENGEL, Manfred; LAUTERBACH, Dorothea (Hg.). Rilke Werke: Kommentierte Ausgabe. Supplementband. Gedichte in französischer Sprache. Frankfurt am Main und Leipzig: Insel Verlag, 2003.: 306 ). A co-respondência, assim entendida, não torna suspeita a leitura proposta por De Man? Se o princípio se modifica continuamente na aplicação, como falar em homologia do quiasmo como princípio unificador dos poemas de Rilke?

Nada disso perturba De Man, ocupado apenas com o que considera ser a ruptura do Rilke em francês. Paradoxalmente, julga que, em vez de marcar a recusa do quiasmo, a ruptura o repõe ao denunciar a mentira que o torna possível. Que temos então? O resultado, por enquanto, é ter visto o alcance que De Man confere ao quiasmo como princípio unificador. O jogo retórico de inversões seria, de ponta a ponta, o princípio determinante e unificador da obra de Rilke, alemã e francesa. Por sua presença, explícita nos Novos Poemas e em seu entorno, incluindo alguns poemas franceses, implícita nos Sonetos a Orfeu e nas Elegias de Duíno e, em aparente ruptura, como mentira da figuração denunciada pela obra tardia de Rilke, incluindo outros poemas franceses. Assim entendido, o princípio seria a matriz unívoca sem brechas que estruturaria cada poema individual e a obra de Rilke como um todo.

Mas esse resultado é parcial. A envergadura do princípio unificante não está apenas na extensão dos casos que explica, mas também na valoração que possuiria. Valorizar os Novos Poemas, tomando-os como metro para aferir os demais poemas afins de Rilke, depreciar O Livro das Horas e O Livro da Pobreza e da Morte, ambos como “momento menos elevado” ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 50 ); confrontar quem julga diluidores os poemas dos Sonetos a Orfeu e das Elegias de Duíno; apreciar, ao contrário, a dupla face complementar da obra de Rilke e a ruptura tardia que repõe negativamente o padrão – tudo isso só é possível a partir do momento em que o jogo retórico de inversão também serve como critério do valor poético dos poemas de Rilke, alemães e franceses. Os poemas que incorporariam o princípio, em algumas das três modalidades, teriam maior valor poético, e os que deles se afastariam, menor valor. Se for assim, o princípio unificador proposto por De Man é a um só tempo princípio de explicação da obra de Rilke e princípio para julgar seu valor.

De onde provém alcance tão amplo do princípio, em sua dupla função? Proveniente da reflexão abstraente, a exemplo das duas posições anteriores, que se contrapunham em torno do princípio de leveza? É impossível a investigação proposta por De Man sem o exame caso a caso dos poemas de Rilke. De outro modo, como poderia dizer que o princípio de unidade vale para inúmeros casos, às vezes díspares na aparência? Como poderia usá-lo como critério para valorizar alguns poemas em prejuízo de outros, se não dispusesse de uma pluralidade a ser analisada e avaliada? Se a comparação é imprescindível para a aplicação ou corroboração do princípio, não o é, porém, para obtê-lo. Em outro lugar, tentando entender a relação de Nietzsche com a literatura, De Man propõe caminho diverso da reflexão abstraente. Em vez de começar em “estudos de casos individuais e partir para generalizações e sínteses”, mais rápido seria considerar unicamente a concepção nietzschiana de retórica presente em sua obra, do início ao fim ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 126 ). Que temos aqui? Em vez da reflexão abstraente, que analisa vários casos para obter um traço comum a eles, De Man busca, sem rodeios, um princípio de síntese da obra de Nietzsche como um todo. Deste modo, o princípio de síntese buscado se distingue radicalmente do princípio alcançado pela reflexão abstraente. Mais que isso, o princípio de síntese até mesmo a torna possível, uma vez que toda análise (desmembramento) supõe uma síntese (o posto junto). No caso dos escritos de Nietzsche, encontrar o princípio de síntese significa delimitar a concepção de retórica que lhes confere unidade do início ao fim, da Origem da Tragédia até a Vontade de Poder. Não é plausível pensar que De Man recorra a procedimento similar no caso de Rilke?

Que seja assim é o que mostra, mesmo obliquamente, a questão que orienta sua leitura de Rilke: “a questão é mais se o texto de Rilke se volta sobre si mesmo de uma maneira que coloca em dúvida a autoridade de suas próprias afirmações, especialmente quando essas afirmações se referem aos modos de escritura que o texto defende” ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 44 ). Assim formulada, a questão não é imediatamente compreensível. Uma primeira pista pode ser encontrada no início da pergunta que De Man formula: “se o texto se volta sobre si mesmo”. Trata-se, portanto, da reflexão imanente ao texto; ou, como De Man dissera antes, do “autoconhecimento reflexivo da poesia de Rilke” ( 1996RILKE, Rainer Maria. As rosas. Trad. Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.: 42 ). Autoconhecimento nada mais é do que conhecimento de si ou reflexão; autoconhecimento reflexivo, portanto, só pode ser reflexão da reflexão. Elevada ao quadrado, a reflexão não se detém na reflexão de primeira ordem que procura pensar a relação entre experiência vivida e poema, verdade e linguagem. Se é reflexão de segunda ordem, só pode ser reflexão sobre a relação da linguagem com seus próprios modos de dizer, não com o que é dela distinta. Importa, então, no exame de Rilke, localizar o momento em que as “afirmações se referem aos modos de escritura que o texto defende”. Por isso, a questão proposta por De Man pode ser reformulada como investigação da relação, de duas mãos, entre a reflexão de Rilke sobre a linguagem e a reflexão que os poemas concretizam. Nesses termos, a questão se converte no problema da congruência ou não entre os dois momentos: saber se “as proposições de Rilke sobre a linguagem são de fato realizadas em sua poesia, dessa forma permitindo que nos movamos livremente entre a poesia e a poética” ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 44 ).

Agora se torna um pouco mais claro como De Man pretende alcançar o princípio unificante. Não pela análise de casos singulares, como na reflexão abstraente, mas pela reflexão sobre, de um lado, a linguagem conscientemente pensada em geral por Rilke (poética) e, de outro, sobre a sua realização concreta (poemas). Daí é só um passo para que a linguagem dos poemas de Rilke possa ser tomada por De Man como matriz única e unívoca de uma pluralidade de casos por ela estruturados. Basicamente, a homologia estrutural de cada poema, compartilhada com os demais, seria garantida pela concepção de linguagem de Rilke. A reflexão da reflexão, ou autoconsciência reflexiva, converte-se em princípio de síntese para o crítico e de composição para o poeta. O crítico se vê autorizado, assim, a dispensar o longo caminho da reflexão abstraente, que vai de casos individuais para generalizações e sínteses entre elas e, no final, para uma valoração mais ou menos global. Também se torna claro por que De Man se autoriza, sem mais, a ver o quiasmo como figura retórica determinante da obra de Rilke. Se não é questão de rastrear caso a caso os poemas nem de procurar a indeterminação que um princípio pode trazer consigo ou engendrar na própria aplicação, o quiasmo, uma vez encontrado nos Novos Poemas, assume posição central. Matriz unívoca que estrutura cada um dos poemas ou é suposta até mesmo nos casos que a obliteram ou a denunciam como ilusória. Daí também que o princípio unificante proposto por De Man possa ser empregado como princípio crítico unívoco para ajuizar sobre o valor ou não dos poemas. Se, em Rilke, poética e poemas constituem via de mão dupla; se o poema é expressão acabada da reflexão da reflexão, então possui valor o que se conforma de modo cristalino ao princípio, tomado como medida, ao passo que não possui valor o que dele se desvia. A reflexão da reflexão encontra na concepção rilkeana de linguagem um princípio que, por ser estruturante de cada poema singular e de grande parte de sua obra, é princípio de síntese para o poeta e para seu crítico.

Mas De Man não para aí. Descoberto o quiasmo como princípio de síntese em Rilke, é necessário explicar como o próprio quiasmo é possível. Aqui também é decisiva a reflexão sobre a concepção de linguagem poética de Rilke e sua concretização nos poemas, ou, ao inverso, a reflexão sobre os poemas, que dão corpo a sua linguagem poética. O ponto de partida da reflexão é o paradoxo que surge da presunção de Rilke de ater-se apenas ao princípio interno da figuração e, em sentido contrário, de seu apelo a algo que a ultrapassa:

Esse paradoxo não se deve à má-fé ou uma fraude deliberada por parte de Rilke; é inerente à ambivalência da linguagem poética. A primazia do significante, na qual se baseia a poética fonocêntrica do quiasmo empreendida por Rilke, não é apenas uma propriedade da linguagem entre outras, que teria passado despercebida durante vários séculos, até que poetas particularmente sensíveis (como Mallarmé ou Rilke) a redescobrissem. A noção de uma linguagem inteiramente liberada de restrições referenciais é propriamente inconcebível. Qualquer enunciado pode sempre ser lido como um enunciado semanticamente concebido [...]

De Man (1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 67).

Assim ficamos sabendo que não apenas o quiasmo é recurso retórico conscientemente adotado por Rilke, na relação de mão dupla entre poética e poesia, mas também como é possível. O que permite o jogo de inversões do quiasmo é a ambivalência da linguagem poética como tal (não é descoberta de “poetas particularmente sensíveis”) e, em última análise, da linguagem em geral (“qualquer enunciado pode sempre ser lido como um enunciado semanticamente concebido”). Por um lado, o quiasmo só é possível porque a linguagem poética de Rilke se livrou da “primazia do significado localizado no referente”. Libertada da “obstrução das restrições referenciais do significado” ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 65), pode inverter, na própria figura, as polaridades da coisa figurada, sem entrar em conflito com sua “veracidade empírica ou transcendental” ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 66). Daí que apenas temas ou experiências pessoais lacunares, como o torso arcaico de Apolo ou a impotência do amor, se prestam à inversão. Por outro lado, apesar da primazia do referente, a inversão evoca o referido que ela precisa colocar em questão. Por isso, a inversão retórica na mera figura é também, paradoxalmente, figuração de algo que a extravasa: “A noção de uma linguagem inteiramente liberada de restrições referenciais é propriamente inconcebível”. Assim se torna mais claro em que consiste a ambivalência: o quiasmo, ao mesmo tempo que inverte as polaridades na figuração, refere-se à coisa figurada, cujos atributos seriam o correlato “desinvertido” da figura. Assim também se explicaria, pela ambivalência do jogo de linguagem, a ruptura do Rilke tardio e de alguns poemas franceses. Denunciar a inversão da figura é mostrar a mentira que repõe nas coisas significadas as categorias que a figura inverte. Ou seja, também a ruptura requer o princípio que a torna possível.

Nesse ponto, a reflexão da reflexão parece cumprir integralmente a tarefa que se propõe. Estabelece a homologia estrutural e estruturante do quiasmo não apenas como princípio de unidade adotado por Rilke na maioria de seus poemas, alemães e franceses, mas também como princípio unívoco para ajuizar o valor que possuiriam. Em nenhuma dessas etapas, De Man inquieta-se com o problema da pluralidade de traduções que o poema nos autoriza, da retradução como espaço de sucesso, da co-respondência entre o “original” e o traduzido e da relação que, como fragmentos, possam ter com totalidades possíveis. Tampouco o perturba a questão da recepção circunscrita dos poemas franceses, relegada, talvez, a circunstâncias históricas, alheias ao princípio unificador. De Man é homólogo a si mesmo.

De onde provém a confiança inabalável que lhe permite fazer do quiasmo o centro imóvel de uma esfera sem trincas? Ao que parece, de sua reflexão sobre as duas condições que julga constitutivas de toda a linguagem poética e, em última análise, também da linguagem em geral. As condições que De Man atribui ao princípio unificador de Rilke são as mesmas que tornam possível também a metafiguração.

A primeira condição (a primazia do significado localizado no referente) permite a De Man deter-se apenas no referente e desvencilhar-se da variedade temática dos poemas de Rilke, dos sentimentos que eles modulam e do imperativo de transformação, de si e das coisas, que alguns deles formulam (“Du musst dein Leben ändern”). É inevitável, por isso, que acredite poder sempre encontrar a reiteração de uma estrutura que projeta como unívoca no referente. E assim projeta não porque universalizou uma característica que encontrou em vários poemas nem mesmo porque primeiro desvendou a perfeita convergência entre os poemas e a poética de Rilke, mas por ter sobrevalorizado desde o início a homologia como critério universal de investigação. Antes de ser princípio unificador, a homologia estrutural é princípio de valoração, moeda de troca que o crítico adota para sempre encontrar no referente o invariável. Daí a presunção, outro nome para projeção, de que a crítica possa proceder sempre do mesmo modo: “toda a literatura responderia de modo similar, embora as técnicas e padrões tivessem de variar consideravelmente, é claro, de um autor para outro” ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 32). Se o critério de valor, que é também de escolha, é o primeiro princípio, a reflexão da reflexão jamais pode inquietar-se com a dúvida se poderia haver algum descompasso entre o princípio unificador e sua aplicação e, menos ainda, se algo como um espaço de indeterminação poderia ser constitutivo do próprio princípio. No fundo, o olho de Argos só pode enxergar-se a si mesmo.

A segunda condição (apesar da primazia do referente, a inversão evoca o referido que ela precisa colocar em questão) só permite procurar a invariabilidade no referente ao custo de outra projeção, que De Man não explicita como tal. Reconhece expressamente que a inversão de polaridades do quiasmo só é possível pela referência à coisa figurada “desinvertida” que coloca em questão. Não explicita, porém, que a coisa assim evocada requer ainda outro traço, sem o qual não é possível a inversão quiasmática nem, por tabela, a metafiguração. No poema alemão de Rilke, o torso de Apolo pôde converter-se num grande olho que tudo observa não apenas porque era fragmento observado, mas também porque se suponha a invariabilidade da própria relação entre observador e observado. Se essa relação fosse volátil, a inversão de polaridades, retrato instantâneo do que já não mais subsiste, deixaria de ser inversão no exato momento em que é figurada. Do mesmo modo, no poema francês 42, o detido só pôde ser figurado como liberto em pensamento, mostrando-nos como prisioneiros, porque se assumia a permanência da relação entre estar preso à reiteração do mesmo e liberto dela. Se é assim, a força poética do quiasmo não está apenas na rotação audaciosa de polaridades, mas também na invariabilidade da relação que assume haver entre os polos da própria coisa referida que o quiasmo colocar em questão.

Não se passa algo similar com a reflexão da reflexão? De Man reconhece que as técnicas e padrões variam de um autor para outro, de Dante a Rilke. Mas não se autoriza a desprezar a variação por projetar tacitamente igual estabilidade na coisa referida? Se é assim, não é inevitável que, para a reflexão da reflexão, o “Torso Arcaico de Apolo” e o poema francês quarenta e dois de Rilke sejam sempre reiteração de um padrão imutável, por mais fundo que vá a reflexão sobre eles e por mais diversa a experiência que uma e outra tornam possível. Também aqui a homologia estrutural do princípio buscado pelo crítico pressupõe implicitamente a homologia da estrutura na própria coisa investigada.

Que seriam, porém, essas “coisas”? Coisas distintas da figura ou apenas figuras tomadas como mero objeto temático por Rilke e por seu crítico? A reflexão da reflexão, como metafiguração, pretende investigar apenas os tropos da linguagem; aqui, a coisa é de imediato o referente com suas distintas configurações, de Dante a Rilke. Apesar de pretender restringir-se ao referente, a reflexão da reflexão não é possível sem referir-se furtivamente às coisas figuradas distintas das próprias figuras. De outro modo, não apenas haveria um regresso da figura para a figura da figura, ao infinito, mas também se apagaria a distinção conceitual entre figura e coisa figurada, referente e referido. Se for assim, a reflexão da reflexão supõe sub-repticiamente não apenas a referência à coisa figurada, mas também, caso pretenda deter-se apenas no referente, a invariabilidade da própria coisa, sombra que confere consistência tanto à figuração quanto a sua crítica. O poema de Rilke “Hermes. Orfeu. Eurídice” tematiza a própria inversão quiasmática, invertendo no final o primeiro quiasmo, “errado”. Porém, o quiasmo do quiasmo só pode ter significação, em última análise, pela referência à coisa referida: à vocação poética que se impõe como imperativo de mudança da linguagem e de si.

Se é assim, De Man supõe, por um lado, uma linguagem invariável e supratemporal, à parte de todo o uso, e, por outro, uma ordenação imutável das coisas, com categorias próprias, à parte de toda a experiência que um poema pode configurar. No final, a ambivalência da linguagem se reduziria a uma única validade, à sobrevalorização do invariável. Não confunde, então, por sobrevalorizar a homologia, as condições de possibilidade da figuração e da metafiguração com as próprias coisas figuradas? Não estaria aí o limite do princípio sintético proposto por De Man?

Não por acaso nada pode inquietar De Man. Nem a perspectiva do novo, antevisto já como reiteração do mesmo, nem o enigma da pluralidade de traduções nem o problema da recepção como atividade de apropriação. No fundo, a reflexão da reflexão projeta o que valoriza e almeja: “la vie qui ne bouge plus vers la mort/et d’où l’avenir est absent” 20 20 Em outro lugar, De Man ( 2000) propõe que o título “Aufgabe des Übersetzers”, de Benjamim, tenha de ser lido tautologicamente. “Aufgabe” é tarefa, mas também desistência (“aufgeben” como análogo a “to give up”): a tarefa do tradutor seria sua desistência. Amparado na leitura que propõe da Aufgabe des Übersetzers e em duas traduções do texto de Benjamin permeadas de erros, De Man conclui pela impossibilidade de traduzir. Como se, ao espaço de sucesso da retradução de Berman, contrapusesse o espaço da tradução como espaço do fracasso. Aqui também o padrão que De Man adota para ler Benjamin não é o de uma linguagem que concebe, platonicamente, como pura, imóvel e supratemporal, degradada primeiro pelo poema original e depois intensificada pela tradução? .

É necessária a leitura proposta por De Man? Caso seja, como poderia ser lido por nossa conta o poema francês quarenta e dois de Rilke aqui traduzido? Não é difícil chegar ao jogo de inversões que De Man atribui aos demais poemas em alemão de Rilke. Nós que, fora da prisão, gostaríamos de orar aos prisioneiros, nos vemos enclausurados no círculo imanente do pensar por uma mentira que nos imobiliza (o coração envelhecido); com a suspensão do movimento para a morte, a vida também se detém, e nosso próprio corpo se converte em cela que a encerra em bloco imóvel. A clausura é até mesmo marcada graficamente no final do poema pela primeira palavra do verso (“enfermé”) e pela última (“immobile”). Encerram, como prisão, o que vem entre elas: “enfermé dans le bloc d’um sort immobile”. Já os detentos, cientes de sua condição, não se iludem com a mentira; por isso, são mais livres no pensar do que nós, embora tenham o corpo subjugado pela repetição e pelo movimento imóvel. O externo (nós) se torna interno (internato, poderíamos dizer) tanto quanto o interno se converte em externo. A inversão de polaridades seria possível, aqui, por uma falta. Não somos livres, daí que a oração aos presos não passe de desejo que não se concretiza (“on voudrait prier pour les prisonniers”). O poema quarenta e dois de Rilke poderia ser encaixado, então, na classe dos poemas franceses e alemães que explicitam o quiasmo e o afirmam como condição de possibilidade. Mas também é possível chegar a outro resultado, tomando como ponto de partida leitura análoga a que De Man sugere para os poemas tardios de Rilke. Como nesses, o poema quarenta e dois seria a denúncia do princípio de inversão como mentira desagregadora: “mais on lui ment/enfermé dans le bloc d’um sort immobile”.

Se o mesmo princípio (o quiasmo como figura determinante da obra de Rilke) resulta em duas leituras diversas, como lhe atribuir alguma homologia? Não se encontra aqui fenômeno análogo ao da duplicidade de tradução, da co-respondência entre o “Gong” alemão e o “Gong” francês e da duplicidade de sentido latente no princípio de leveza? Em vez da homologia de um princípio, não se deve pensar antes no espaço de indeterminação do poema como reflexão e do princípio que procura circunscrevê-lo? Não é de estranhar, assim, que o poema quarenta e dois autorize ainda uma terceira leitura, mais atenta a esses fenômenos e à potência criadora do poema.

5 A reflexão criadora e o poema como fragmento: “qu’on a le cœur trop vieux pour penser un enfant”

Até agora, a reflexão desencadeada e conduzida pelo poema francês de Rilke com sua dupla tradução deu algumas voltas. Primeiro privilegiou o problema da recepção, em seguida, o da pluralidade de traduções. Também procurou mostrar que os dois problemas possuem parentesco, caso sejam pensados como duas perguntas de princípio, não de fato. A essa altura, não é muito difícil ver que a reflexão da reflexão (“où toutes les nuits tombent dans l’abîme”) é o simétrico oposto da reflexão abstraente (“Où tous les jours piétinent sur place”) e enclausura, como ela, a potência criadora do poema. O antagonismo pode ser assim compreendido:

  1. 1.

    O princípio de leveza marca a ruptura dos poemas franceses de Rilke com seus poemas em alemão, marcados pelo princípio de gravidade; alcançado pela reflexão abstraente, o princípio de leveza supõe a análise caso a caso de poemas individuais para chegar ao geral e, depois, a sínteses possíveis. Aqui, a busca pelo mesmo no diverso é a busca por um princípio geral e unívoco de explicação e de valoração dos poemas franceses de Rilke.

  2. 2.

    O quiasmo como princípio marca a continuidade na obra de Rilke, pois até mesmo a ruptura de alguns poemas franceses com os poemas alemães supõe o princípio que recusam; alcançado pela reflexão da reflexão, o quiasmo como princípio sintético supõe a homologia estrutural entre a linguagem poética de Rilke e os casos por ela estruturados. A busca pelo princípio unificador do diverso é a busca por um princípio unívoco de explicação e de valoração dos poemas de Rilke, alemães e franceses.

As duas posições compartilham duas características: (1) a generalidade que atribuem aos respectivos princípios; (2) o uso que deles fazem, embora implícito, para justificar o que dizem sobre os poemas de Rilke. Ao longo do percurso, essas duas caraterísticas deram já alguma pista do limite das duas posições antagônicas. Presas a princípios gerais descolados da singularidade plural de cada poema, imobilizam a força do poema no exato momento em que procuram circunscrevê-la. Como o conflito anterior, também este não é genuinamente antinômico, pois nenhum lado pretende que os princípios que adotam sejam a priori e radicados na faculdade de julgar. Mais uma vez, pensar esse conflito, mesmo sendo imperfeita sua aproximação com o conflito na antinomia de gosto kantiana, traz algum ganho. Mostra, primeiro, que a disputa se dá em torno de dois princípios que não apenas pretendem ser gerais, mas também têm a pretensão de explicar como são possíveis juízos sobre o valor poético em geral (juízos estéticos, em sentido alargado). Mostra-se, assim, que a disputa se situa no domínio da crítica, não da mera enunciação circunstancial de juízos. Permite, em segundo lugar, trazer à luz do dia o prejuízo que compartilham. Que é esse prejuízo de fundo? Cada um dos lados assume, sem mais, que um poema consiste em uma unidade acabada que, como uma mônada sem janela, encerra de seu ponto de vista a matriz unívoca de sentido, de composição e de crítica. É o que supõe a reflexão abstraente, quando compara casos diversos para encontrar o que lhes é comum (o princípio de leveza). É também o que supõe a reflexão da reflexão, pois, de outro modo, não poderia buscar na reflexão da linguagem sobre si mesma uma matriz unívoca estruturante de casos específicos (o quiasmo como princípio determinante da obra de Rilke). Cada um dos lados também assume a univocidade do princípio como padrão para aferir o valor dos poemas. É assim que o princípio de leveza é empregado para destacar o valor ou sua falta nos poemas franceses de Rilke. Do mesmo modo, é como medida unívoca que o quiasmo é usado para atribuir valor ao que o expressa ou depreciar o que dele se afasta. De cada lado, a univocidade ou a invariabilidade na variação é tomada como condição da possibilidade do princípio e de sua dupla aplicação (heurística e valorativa). No fundo, o prejuízo tácito compartilhado pelas duas posições antagônicas colide com o que é denunciado pelo poema:

qu’on a le cœur trop vieux pour penser un enfant.

Ce n’est pas tant que la vie soit hostile ;

mais on lui ment,

enfermé dans le bloc d’un sort immobile.

Como os poemas franceses de Rilke poderiam expandir seu raio de ação e abrir espaço para o novo se for considerado, ao lado de outros, unidade fechada que apenas reitera uma matriz unívoca de sentido? O poema francês quarenta e dois, pelo menos, é a prova visível, pelo avesso, de que não se fecha ao voltar-se sobre si. Primeiro, negativamente, pois denuncia a mentira do destino imóvel de quem assume, como valor e princípio, o lugar indeterminado designado pelo pronome indefinido (“on”): “qu’on a le cœur trop vieux pour penser un enfant”. Segundo, positivamente, pelo jogo que contrasta a figuração com o ritmo, invertendo a inversão. No poema original de Rilke se encontra: “Où tous les jours piétinent sur place /où toutes les nuits tombent dans l’abîme”. Se essa oposição puder ser vista como um quiasmo, pode ser reconduzida à figura direta ou “desinvertida”: “Où toutes les nuits piétinent sur place/Où tous les jours tombent dans l’abîme”. Na figuração direta, a noite não é, como na figura invertida, a abertura para o abismo da diferenciação, própria da clareza do dia. É antes o recolhimento do diverso que precede e prepara a multiplicidade de formas. Mas, na figura do quiasmo, a noite suprime a expectativa do novo e, por isso, só pode provocar a vertigem da repetição intermitente do mesmo: “où toutes les nuits tombent dans l’abîme”. Assim poderia ser lido o poema de Rilke, como figuração da vida detida (a exemplo que propõem as duas leituras anteriores) se não houvesse outra sorte de inversão A última estrofe é construída em grande parte por palavras de uma ou duas sílabas. Imprimindo velocidade ou leveza ao ritmo (“o ritmo médio da respiração” como “o ritmo de estilo”) 21 21 O ritmo médio da respiração como “o ritmo de estilo”, na avaliação de Nietzsche sobre o que seria o mais difícil no traduzir de um idioma para outro ( Nietzsche, 2001: 40). , suspende eufonicamente a mentira da imobilidade da repetição, figurada até mesmo graficamente no último verso. O poema inverte, portanto, pelos olhos sonoros, a inversão que figura ao longo do poema. Deste modo, o poema é a prova dos noves de que a reflexão pode tomá-lo como fragmento expressivo de um todo vivo que, destinado para a morte, só pode ser recomposto e compreendido de diferentes modos, não necessariamente congruentes entre si.

Que reflexão é essa? A que, em andamento desde o começo e mais visível a cada volta no próprio traçar do caminho, toma a experiência singular da dupla tradução de um poema francês de Rilke como problema e princípio da reflexão: a reflexão que, como retorno a si, é abertura para o novo e para um outro. Sendo criadora, a reflexão crítica não se limita a trazer à luz do dia o prejuízo comum e o limite das posições confrontadas, mas também permite restituir o que há de mais fecundo nos dois lados em conflito. Torna visível, por contraste, que a reflexão abstraente e a reflexão da reflexão tolhem, ao menos em um caso, o alcance dos poemas franceses de Rilke. Mas também permite ver que, em outro lugar, cada lado adota posição mais fecunda. Böschenstein, em vez de ater-se a princípios generalizantes, compara em outra ocasião quatro poemas de Rilke, extraídos de Vergers, com poemas de Valéry. Propõe, assim, uma relação dinâmica entre poemas em que a introdução do novo altera a ordem preexistente e a confronta ( Böschenstein, 2011BÖSCHENSTEIN, Bernhard. Rainer Maria Rilke, poète français, à l'écoute de Paul Valéry. Études Germaniques, n. 262, 2011, p. 289-296.). Do mesmo modo, permite avaliar criticamente o que há de mais fecundo em Augusto de Campos. No Anticrítico, o poema “Dante: um corpo que cai” é tanto a avaliação crítica de algumas traduções do Canto I e do canto V da Divina Comédia como prelúdio para retraduzi-los ( Campos, 2020CAMPOS, Augusto de. O anticrítico. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.: 13-27). Em nosso caso, pela aposta que fez, a reflexão já incorporou, na figura do poema-fragmento, posições muito próximas: a co-respondência entre poema e tradução e a recepção entendida como atividade de reflexão. Pela mesma aposta, a reflexão permitiu conferir maior alcance a uma tese proposta pela reflexão da reflexão. Sem alarde, De Man afirma ser ilusória a diferença entre literatura e crítica ( De Man, 1996DE MAN, Paul. Alegoria da leitura: Linguagem Figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996.: 35). De fato, a metafiguração não é também figuração? Não o mostra, em particular, o próprio conceito de espaço de indeterminação, conceito heurístico que é uma metáfora extraída do poema francês de Rilke? Se é assim, a reflexão crítica, como criadora, permite ver e apropriar-se (e já o fez) tanto da reflexão da reflexão (proposta por De Man) quanto da reflexão abstraente (subjacente ao princípio de leveza). De outro modo, como ela poderia ter tomado o poema francês de Rilke como princípio de sínteses possíveis e analisado o caminho que a síntese antes traçou? Mas se a reflexão criadora ganha corpo e se mostra no próprio traçar o caminho, talvez possa ser melhor vista se retornarmos ao princípio, seguindo o movimento circular que o poema sugere no início.

O movimento de algo indefinido (“quelque chose”) no ar, no limite entre o claro e o escuro (“ce soir”), é ponto de partida ou de inflexão de um ato (“qui fait”) de flexão da cabeça (“pencher la tête”); assim fletido, interiorizado e, também, exteriorizado (reflexão sobre si e abertura para o outro), o ato desencadeia uma possibilidade ou desejo, expressos pelo verbo querer no subjuntivo (“voudrait”), de um agente também indefinido (indicada pelo pronome pessoal indefinido “on”) que, em sua generalidade e indefinição, pode ser individuado ou determinado pela ação. A flexão indicada pelo poema pretende, deste modo, abrir um espaço de possibilidades para pensá-lo, por contraste com a vida detida (“Et on pense à la vie arrêtée”). Engendra, assim, um espaço de indeterminação que confronta a repetição mecânica do mesmo. A ação inicial de flexão da cabeça, ao culminar, no último verso da estrofe, em um pensamento realizado (“arrêtée”), retorna ao ponto de partida, perfazendo a inteira curvatura do ato de pensar, como reflexão, portanto. Essa reflexão, porém, não se fecha sobre si mesma, centro imóvel ao qual tudo converge, como na reflexão abstraente e na reflexão da reflexão. Aqui, o pensar só é reflexão porque se inclina (“qui fait pencher la tête”) concentricamente para um centro heterogêneo e móvel que o conduz; ou melhor, que deve conduzi-lo caso não se entregue à mentira, denunciada pelo poema: “qu’on a le cœur trop vieux pour penser un enfant”. Mas a mentira não desagrega nem imobiliza, pois é contornada pelo poema no exato momento em que a denuncia e a suspende fonicamente. No poema Torso arcaico de Apolo, o imperativo do último verso (“Du musst dein Leben ändern”) só pode ter um referido concreto se realizada a ação que ordena, não antes. Do mesmo modo, a prece aos prisioneiros, na aparência retida porque expressa no início como desejo (“on voudrait prier pour les prisonniers”), produz o próprio poema e o que ele move e modifica: a reflexão que, ao se voltar para um centro heterogêneo (“le cœur”), abre-se para o novo. No fim, a reflexão volta (-se) para seu princípio:

CE soir quelque chose dans l’air a passé

qui fait pencher la tête ;

on voudrait prier pour les prisonniers

dont la vie s’arrête.

Et on pense à la vie arrêtée…

À la vie qui ne bouge plus vers la mort

et d’où l’avenir est absent;

où il faut être inutilement fort

et triste, inutilement.

Où tous les jours piétinent sur place,

où toutes les nuits tombent dans l’abîme,

et où la conscience de l’enfance intime

à ce point s’efface,

qu’on a le cœur trop vieux pour penser un enfant.

Ce n’est pas tant que la vie soit hostile;

mais on lui ment,

enfermé dans le bloc d’un sort immobile.

Esta noite passou algo no vento,

que faz pender a cabeça;

e se queria orar por detentos

cuja vida suspende-se presa ...

E se pensa na vida em suspenso.

Na vida sem mover-se mais à morte

onde o futuro jaz ausente;

onde se deve em vão ser forte

e triste, inutilmente.

Onde os dias arrastam-se iguais,

onde as noites sempre se abismam,

onde a íntima consciência da infância

neste ponto se desfaz:

já velho o coração para pensar um menino.

Não tanto por ser a vida hostil;

mas a ele se ilude,

encerrado em bloco de sorte imóvel.

Algo esta noite passou no ar

Que a cabeça inclina,

E aos presos se queria orar

Cuja vida finda detida

E se pensa na vida a findar.

Vida que a morte cessou de mover,

onde o futuro se fecha vazio,

onde ser forte sem fim é dever

sempre sem fim, e sombrio.

Quando todos os dias marcam passo,

quando todas as noites se abismam,

quando a consciência da infância íntima

apaga-se sem traço:

já não pensa criança o coração velho demais

Menos por ser a vida um desatino.

mente-se porém a quem jaz

detido em cela de selado destino.

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  • KANT, Immanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime: ensaio sobre as doenças mentais. Tradução, introdução e notas de Vinicius Figueiredo. São Paulo: Clandestina, 2018.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal - Prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução de Márcio Pugliesi. Curitiba: Hemus, 2001.
  • RILKE, Rainer Maria. Jardins. Trad. Fernando Santoro. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.
  • RILKE, Rainer Maria. As rosas. Trad. Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
  • RILKE, Rainer Maria. As Janelas, seguidas de poemas em prosa franceses. Organização e tradução de Bruno Silva D´Abruzze e Guilherme Flores. Belo Horizonte: Crisálida, 2009.
  • RILKE, Rainer Maria. Poemas – Rainer Maria Rilke. Tradução de José Paulo Paes, segunda edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • RILKE, Rainer Maria. Pomares (Vergers). Tradução de William Zeytoulian. São Paulo: Demônio Negro, 2019.
  • RILKE, Rainer Maria. ENGEL, Manfred; LAUTERBACH, Dorothea (Hg.). Rilke Werke: Kommentierte Ausgabe. Supplementband. Gedichte in französischer Sprache. Frankfurt am Main und Leipzig: Insel Verlag, 2003.

Financiamento:

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (313393/2020-6).

  • Financiamento:

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (313393/2020-6).
  • 2
    O título completo do ciclo publicado na primeira edição é Vergers suivi des Quatrains Valaisans avec un portrait de l´auteur par Baladine gravé sur bois par G. Aubert (R ilke, 2003: 416). Essa é a edição consultada para a tradução do poema 42 ( 2003: 54-56). Aproveito a oportunidade para agradecer a todos que discutiram as versões anteriores deste texto: Débora Morato Pinto, Pedro Galé, Marcio Suzuki, Mário Caimi, Franco Sandanello, Sabrina Marioto e integrantes do Grupo Kant – UFSCar: Adriano Mergulhão, Ana Arelaro, Bento Tedesco Prado, Ivanilde Fracalossi, João Andrello, José Luciano Verçosa, João Paulo Rissi, Larissa Soares da Silva, Marcelo Vieira, Patrícia Fernandes da Cruz, Rafael Dias e Taciane Alves da Silva. O agradecimento estende-se também aos pareceristas anônimos da Pandaemonium Germanicum e a seus editores, em especial a Helmut Galle. Os comentários, sugestões e críticas foram cruciais para aprimorar o texto. Agradeço também ao CNPq pela bolsa de produtividade, que tem permitido que a reflexão possa ramificar-se em diversas direções.
  • 3
    Há duas razões para citar os versos de Rilke em francês. Não é preciso decidir por uma entre as duas traduções apresentadas no final do artigo nem citá-las ao mesmo tempo. Também é convite para retraduzir o poema; caso alguém chegue a resultados diversos na tradução e divergentes na reflexão sobre o poema que traduziu, não deixará, paradoxalmente, de concordar com a reflexão aqui proposta.
  • 4
    Sem pretensão de exaustividade, listamos as seguintes traduções dos poemas franceses de Rilke para o português: Jardins ( Rilke, 1995RILKE, Rainer Maria. Jardins. Trad. Fernando Santoro. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.); As rosas ( Rilke, 1996RILKE, Rainer Maria. As rosas. Trad. Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.); As Janelas, seguidas de poemas em prosa franceses ( Rilke, 2009RILKE, Rainer Maria. As Janelas, seguidas de poemas em prosa franceses. Organização e tradução de Bruno Silva D´Abruzze e Guilherme Flores. Belo Horizonte: Crisálida, 2009.). José Paulo Paes traduziu de Rilke três poemas franceses, reunindo-os a outros poemas alemães sob a rubrica: “Dos poemas esparsos e póstumos ( Rilke, 2012RILKE, Rainer Maria. Poemas – Rainer Maria Rilke. Tradução de José Paulo Paes, segunda edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.) ); Pomares (Vergers) ( Rilke, 2019RILKE, Rainer Maria. Pomares (Vergers). Tradução de William Zeytoulian. São Paulo: Demônio Negro, 2019. ). Por este inventário, o poema aqui duplamente traduzido tem já duas traduções anteriores, encontradas em Jardins e Pomares, traduções de Vergers. Portanto, o poema quarenta e dois de Rilke foi traduzido em português pelo menos quatro vezes. Fenômeno similar ocorre com outro poema francês de Rilke, que, publicado tanto em Vergers como em Fenêtres, tem cinco traduções em português, propostas por quatro tradutores e reunidas por Guilherme G. Flores ( Flores, 2016FLORES, Guilherme Gontijo. “Uma janela de Rilke em várias versões”. Escamandro/ 21/06/2016 [S.I]. Disponível em: https://escamandro.wordpress.com/2016/06/21/uma-janela-de-rilke-em-varias-versoes. Acesso em: 26/04/2023.
    https://escamandro.wordpress.com/2016/06...
    ).
  • 5
    Böschenstein contabiliza quatrocentos e sessenta e um poemas em francês de Rilke ( 1998: 191); para Manfred Engel seriam quatrocentos e cinquenta ( 2005bENGEL, Manfred. Rilkes späteste französische Gedichte. In: SCHWEIKERT, Rudi (Hg.). Blätter der Rilke-Gesellschaft:„Auf geborgtem Boden“ – Rilke und die französische Sprache, Band 26. Frankfurt/Leipzig: Insel Verlag, 2005a, p. 11-24.: 157 ).
  • 6
    Berman denomina “platonismo” esse modo de pensar que seria também incorporado em geral pela tradução ( Berman, 2021BERMAN, Antoine. A essência platônica da tradução. Tradução de Gilles Jean Abes e revisão de Simone Petry. Tradução em Revista, n. 30, 2021, p. 346-368. Disponível em: 10.17771/PUCRio.TradRev.52994. Acesso em: 01.mar. 2023.).
  • 7
    Não é reiterativo destacar a especificidade do conceito de reflexão como saber de si também no caminho aqui traçado em voltas contínuas. De outro modo, talvez alguém tome por reflexão crítica o que não é nem reflexão nem crítica, esperando que ela aqui ofereça o que não pretende ou execute precisamente o que põe em xeque. A questão da recepção mais restrita dos poemas franceses de Rilke e a questão da pluralidade de traduções que o poema autoriza, formuladas como questões de princípio, não de fato, exigem uma reflexão que não pode nem deve aceitar nada como dado a não ser a singularidade da própria experiência de tradução plural e simultânea do poema de Rilke (seção 1 deste texto) . Por isso, desde o início e por princípio, as duas questões não podem ser resolvidas ou sequer cogitadas como enigmas, se tomadas por questões sobre objetos já constituídos como tais (os poemas alemães e franceses de Rilke e as circunstâncias históricas de sua recepção) que deveriam ser analisados por teorias amplamente discutidas ou por práticas (técnicas ou metodologias) recorrentes de análise literária ou histórica. O aspecto genuinamente crítico da reflexão, desencadeado já na primeira volta pelo poema francês de Rilke, revolve-se nas três seções seguintes. Torna-se mais visível na seção 2 quando a antitética entre duas posições sobre os poemas franceses de Rilke demanda a investigação do pressuposto não declarado que compartilham. A volta seguinte permite exibir em contornos mais definidos, no espelhamento recíproco entre essa antitética e a concepção kantiana de dialética da crítica do gosto (seção 3), em que consiste o aspecto crítico da reflexão: exame das posições conflitantes em vista da investigação do fundamento de possibilidade dos juízos sobre o valor poético de um poema. Ocorre aqui um fenômeno que não é estranho à reflexão como saber de si. O espelhamento feito na seção 3 torna mais visível especularmente por que é crítica a questão de princípio na seção 1 e na seção 2, ao mesmo tempo que abre caminho para a próxima volta: questionamento dos pressupostos tácitos da leitura que De Man faz dos poemas franceses e alemães de Rilke (seção 4). No retorno a si, a reflexão conduz, na última volta (seção 5), ao outro como criadora: abertura para o novo que engendra volta após volta na própria crítica aos pressupostos de teorias e de práticas aceitas. Nesse ponto do retorno a si, a reflexão apropria-se dialeticamente da tese, proposta por De Man, da indistinção entre poema e poética, figuração e metafiguração, embora não lhe compre os pressupostos, em particular, o da não referencialidade do referente. No final, o princípio (e quem se deixou moveu por ele) já não é nem pode ser o mesmo: “Du musst dein Leben ändern”. Convém observar que esse paralelo que traçamos entre o caminho aqui aberto e a tradutologia não deve sugerir que a seguimos como modelo. Fosse assim, não seria reflexão como saber de si. Não há dúvida de que o paralelo permite dar contorno mais definido à reflexão em andamento já na primeira volta e, talvez, demover quem, irrefletido, não se deixou mover por ela. No fundo, porém, ocorre o inverso. É a força do próprio poema de Rilke, coração móvel da reflexão sobre o duplo enigma que o poema mesmo engendra, que tornou possível entrever a origem, especificidade, alcance e eventuais limites da reflexão na tradutologia.
  • 8
    A singularidade que parece ser contornada por Berman não é outra senão a que é peculiar à reflexão que ele mesmo mobiliza. Nos termos de Berman, a singularidade não pode ser considerada, para dar um exemplo, a de uma experiência própria a certo sujeito (um determinado tradutor ou autor) marcado por vicissitudes individuais ou sociais na ordem do tempo perante um objeto que, já dado constituído como tal (um poema), pode ou deve ser lido e interpretado progressivamente. Do ponto de vista da reflexão como retorno a si, a singularidade não pode ser assim pensada por duas razões. Primeiro: a singularidade, aqui, é parte do enigma, se não o for o enigma mesmo (a da experiência da pluralidade de traduções de um poema francês de Rilke); atribuir a ela, já no ponto de partida, algumas propriedades ou determinações é supor decifrado, ao menos em parte, o enigma. Segundo: sujeito e objeto, na reflexão como retorno a si, não são dados em si mesmos ou separadamente, mas se constituem como tais pela reflexão, sujeito e objeto de si mesma.
  • 9
    Nas Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, Kant estabelece uma oposição de grau, não de gênero, entre alemães e franceses: “O gracejo refinado, a comédia, a sátira cômica, o jogo amoroso e o estilo fluente e natural são dotes autenticamente franceses”. Próprio dos alemães seria o engenho ( Witz), com alguma desvantagem, na comparação com franceses e ingleses: o atrativo possuiria “menos ingenuidade, e a nobreza, um brio menos ousado”. ( GSE, AA 02: 244). Para Nietzsche, o contraste é mais acentuado: “Encontram-se entre os alemães com toda prolixidade, tudo o que há de gravidade majestosa, de pesadume, de pompa solene, todos os gêneros intermináveis e enfadonhos”. Não por acaso, para evadir-se da Alemanha, Lessing teria traduzido autores franceses e mantido independência no ritmo de seu estilo ( 2001: 40-41). Nossas referências à obra de Kant remetem à edição da Akademie Ausgabe (AA), precedida pela abreviação do título da obra em alemão, seguida pelo volume e pela página, exceto a referência à Crítica da razão pura, que segue a paginação padrão de A e B. As traduções de Kant são de minha autoria, exceto a das Observações ( Kant, 2018KANT, Immanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime: ensaio sobre as doenças mentais. Tradução, introdução e notas de Vinicius Figueiredo. São Paulo: Clandestina, 2018.). Agradeço a V. Figueiredo a indicação das Observações.
  • 10
    Na França, indício de mudança do meio cultural é a inclusão, em antologia de poemas franceses publicada pela Gallimard, do poema de Rilke aqui traduzido ao lado de poemas de Paul Valéry, Césaire e Aragon entre outros ( Gallimard, 2011GALLIMARD, Antoine (Org). Mon beau navire - ô ma mémoire - Un siècle de poésie française: Gallimard 1911 -2011. Paris: Éditions Gallimard, 2011. ).
  • 11
    “Crítico”, aqui, como se verá com maior clareza na seção seguinte, diz respeito a um problema que é necessariamente de princípio: investigação de princípios de segunda ordem aceitos na enunciação de juízos de primeira ordem.
  • 12
    Aqui, a figura da reflexão crítica como saber de si (e, assim, do outro) mostra-se concretamente menos pelo que é dito sobre ela do que por como ela mesma se constrói a cada vez e a cada volta a partir da singularidade da dupla tradução do poema francês de Rilke. Por isso, só na última volta torna-se mais visível o que está presente desde a primeira: por que tal reflexão não deve ser considerada uma reflexão que, limitando-se a discutir como o poema de Rilke pode ser lido ou como deve ser considerado na questão da recepção, perderia de vista o que teria a dizer numa leitura atenta do poema e de fatos já conhecidos. Pensar assim, separando o “quê” do “como”, é, entre outras coisas, supor que seja certo o que a reflexão como saber de si questiona: a separação entre metafiguração e figuração, linguagem e retórica, para recorrer à tese proposta por De Man (cf. seção 4 deste texto).
  • 13
    Para dar mais inteligibilidade à passagem, que supõe o que vem antes na Crítica da Faculdade de Julgar, pode-se dizer que estético, em termos críticos, diz respeito à relação de um juízo com o sentimento do sujeito. É estético qualquer juízo “cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo” ( KU, AA 05: 204). O juízo estético diferencia-se, assim, de um juízo lógico ou de conhecimento, que pretende relacionar nossas representações a um objeto. Nesse sentido, estético jamais diz respeito à propriedade de certos objetos (de arte ou naturais), mas ao sentimento do sujeito diante deles. Um juízo estético pode ser juízo estético dos sentidos, quando se funda num sentimento subjetivo privado, ou juízo estético de gosto, quando se funda em um sentimento produzido pela própria reflexão (o ato de julgar em geral). Neste caso, ainda que subjetivo, pode pretender valer para todos.
  • 14
    É Mario Caimi quem fez semelhante observação para marcar a diferença entre unidade subjetiva e unidade objetiva da apercepção no contexto da Dedução Transcendental da segunda edição da Crítica da razão pura, em palestra realizada no Encontro do Grupo Kant e a História da Filosofia, ocorrido em 29/11/2017 na UFSCar (informação verbal).
  • 15
    Em termos kantianos, é a reflexão estética (o juízo de gosto como ato) que produz o próprio sentimento de prazer ou desprazer (o belo e o feio como se fossem propriedades do objeto), não o contrário. O sentimento produzido pelo refletir vincula-se, por isso, a um ato cognitivo (mas sem conceito determinado) e, por consequência, é assimilado à própria consciência desse ato: “A consciência da finalidade meramente formal no jogo das faculdades de conhecer do sujeito, em uma representação pela qual um objeto é dado, é o próprio prazer [...]” ( KU, AA 05: 222). Por ser produzido pela reflexão e vinculado às faculdades de conhecer em geral, o sentimento de prazer ou desprazer (belo ou feio) pretende ter validade para todo sujeito, independentemente das circunstâncias privadas de quem enuncia o juízo.
  • 16
    Sigo a interpretação de Allison ( 2001ALLISON, Henry. Kant's Theory of Taste: A Reading of the Critique of Aesthetic Judgment. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.: 237 ).
  • 17
    De Man cita apenas dois versos do poema alemão de Rilke. O poema integral e três traduções (De Manuel Bandeira, Ivo Barroso e Karlos Rischbieter) podem ser lidos em Ivo Barroso ( 2011BARROSO, Ivo. “Senhores, é tempo de Rilke”. Gaveta do Ivo, 2011. Disponível em: https://gavetadoivo.wordpress.com/tag/rainer-maria-rilke/. Acesso em: 13/03/2023.
    https://gavetadoivo.wordpress.com/tag/ra...
    ) .
  • 18
    Aqui, sigo de perto a interpretação de Caimi ( 2007CAIMI, Mario. Leçons sur Kant: la déduction transcendentale dans la deuxième édition de la Critique de la raison pure. Paris: Publications de la Sorbonne, 2007.: 87 ).
  • 19

    Os poemas “Gong” e “Mensonge II” integram os poemas franceses avulsos de Rilke que os editores agruparam sob o título: “ Die Gedichte – September 1923 bis September 1926”. Os dois poemas encontram-se respectivamente em Rilke ( 2003RILKE, Rainer Maria. ENGEL, Manfred; LAUTERBACH, Dorothea (Hg.). Rilke Werke: Kommentierte Ausgabe. Supplementband. Gedichte in französischer Sprache. Frankfurt am Main und Leipzig: Insel Verlag, 2003.: 302, 306) .

  • 20
    Em outro lugar, De Man ( 2000) propõe que o título “Aufgabe des Übersetzers”, de Benjamim, tenha de ser lido tautologicamente. “Aufgabe” é tarefa, mas também desistência (“aufgeben” como análogo a “to give up”): a tarefa do tradutor seria sua desistência. Amparado na leitura que propõe da Aufgabe des Übersetzers e em duas traduções do texto de Benjamin permeadas de erros, De Man conclui pela impossibilidade de traduzir. Como se, ao espaço de sucesso da retradução de Berman, contrapusesse o espaço da tradução como espaço do fracasso. Aqui também o padrão que De Man adota para ler Benjamin não é o de uma linguagem que concebe, platonicamente, como pura, imóvel e supratemporal, degradada primeiro pelo poema original e depois intensificada pela tradução?
  • 21
    O ritmo médio da respiração como “o ritmo de estilo”, na avaliação de Nietzsche sobre o que seria o mais difícil no traduzir de um idioma para outro ( Nietzsche, 2001NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal - Prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução de Márcio Pugliesi. Curitiba: Hemus, 2001.: 40).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2023
  • Aceito
    27 Jun 2023
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