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CERTA HERANÇA MARXISTA NO RECENTE DEBATE DA EDUCAÇÃO FÍSICA NO BRASIL* * Tomo aqui emprestado o título do livro de José Arthur Gianotti (2000), não porque meus argumentos encontrem eco na laboriosa análise da tradição marxista elaborada por ele, mas porque se trata, lá e cá, de um mesmo fenômeno. O trabalho é resultado parcial do Programa Programa de Pesquisas Teoria Crítica, Racionalidades e Educação (V), financiado pelo CNPq.

CIERTA HERENCIA MARXISTA EN EL DEBATE RECIENTE DE LA EDUCACIÓN FÍSICA EN BRASIL

Resumo

O artigo analisa aspectos do surgimento e desenvolvimento de uma abordagem marxista na Educação Física brasileira. Para tanto, procura em primeiro lugar, reconstruir o percurso do conceito cultura corporal da Europa para o Brasil. Alinhando-se aos debates e tensões da Guerra Fria, tal abordagem chega ao país em concorrência e correspondência com outros, como cultura de movimento e cultura corporal de movimento. Isso tudo compõe o Movimento Renovador em Educação Física, cuja resposta principal é a consecução de uma Educação Física crítica, no contexto de redemocratização. A seguir, o trabalho comenta brevemente o tema do corpo e sua educação em Marx e Gramsci, e examina alguns aspectos do conceito de cultura corporal em visada interna ao próprio marxismo. Finalmente, aponta-lhe um défice dialético e sugere, ainda nos marcos de Marx, possibilidades de interpretação e proposição da educação do corpo.

Palavras chave:
Educação Física; Crítica; Marxismo; Brasil

Resumen

El artículo analiza aspectos del surgimiento y desarrollo de un enfoque marxista en la educación física brasileña. Con este fin, busca, en primer lugar, reconstruir el curso del concepto de cultura corporal desde Europa hasta Brasil. En línea con los debates y tensiones de la Guerra Fría, este enfoque llega al país en competencia y correspondencia con otros, como la cultura de movimiento y la cultura corporal de movimiento. Todo esto constituye el Movimiento Renovador en Educación Física, cuya respuesta principal es el logro de una Educación Física crítica, en el contexto de la redemocratización. A continuación, el artículo comenta brevemente el tema del cuerpo y su educación en Marx y Gramsci, y examina algunos de los aspectos del concepto de cultura corporal en una visión interna del propio marxismo. Finalmente, le señala un déficit dialéctico y sugiere, incluso en el marco de Marx, posibilidades de interpretación y proposición de educación corporal.

Palabras clave:
Educación Física; Crítica; Marxismo; Brasil

Abstract

This paper analyzes aspects of the emergence and development of a Marxist approach in Brazilian Physical Education. For this purpose, it firstly reconstructs the course of the concept body culture from Europe to Brazil. Aligning with the Cold War debates and tensions, such an approach reaches the country in competition and correspondence with others, such as movement culture and movement body culture. This all makes up the Renewing Movement in Physical Education, whose main answer is the achievement of a critical Physical Education, in the context of redemocratization. In the following, the paper briefly comments on the theme of the body and its education by Marx and Gramsci, and examines some aspects of the concept of body culture in an internal view of Marxism itself. Finally, it points to a dialectical deficit and suggests, even in the framework of Marx, possibilities for interpretation and proposition of body education.

Keywords:
Physical Education; Criticism; Marxism; Brazil

1 O MARXISMO NA BATALHA DAS IDEIAS

O entrelaçamento entre política e epistemologia ou a perspectiva segundo a qual o conhecimento se constrói não apenas seguindo uma dinâmica que lhe seria interna, a partir de princípios lógicos de um ou outro quadrante, mas também submetido a um conjunto de determinações sociais, é algo que só a experiência moderna poderia nos trazer. Como se sabe, a modernidade é o primeiro tempo que pensa a si mesmo como transitoriedade histórica e, portanto, que coloca em jogo a forma de constituir um discurso sobre si mesma.

Tal capacidade de autorreflexão refunda a tradição dialética e, com ela, a crítica ao capitalismo realizada por Marx e seus herdeiros. Esta tradição pretende ser, nesse contexto, uma crítica imanente a seu objeto, ela só faz sentido na medida da negação do objeto criticado que, por sua vez, é sua razão de existência.

O encontro da tradição dialética com um fenômeno que lhe é contemporâneo, a escola pública, e ainda com a ideia de revolução - ou seja, uma transformação social que se dá aconteceu a partir das contradições internas de uma situação social - coloca a educação no centro da concorrência por modelos de sociedade. É, portanto, no movimento de embate e de conflagração entre classes que distintas propostas educacionais entram na disputa pela formação das novas gerações, por projetos de nação e mesmo de modelos civilizatórios.

Se Michel Foucault tem razão ao dizer que fazer filosofia é elaborar conceitos, então, considerando o apenas exposto, é de se perguntar se os conceitos podem ser críticos e, se sim, qual sua fecundidade como ferramentas analíticas capazes de, ao menos, exercerem a negação determinada do presente. A expectativa de um pensamento crítico é, no entanto, mais extensa, e diz respeito à superação da ordem de coisas, não apenas pelo conceito, evidentemente, mas pelo movimento da prática política. Vale a orientação geral da surrada undécima tese sobre Feuerbach, onde se lê que “Os filósofos até hoje apenas, e de diferentes maneiras, interpretaram o mundo. É preciso transformá-lo” (MARX, 1973aMARX, Karl. Ad Feuerbach. In: MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Werke (MEGA). Berlin: Ditz, 1973a. v. 4, p. 19-21., p. 21).

A Educação Física brasileira também tem seu marxismo e ele se traduz, em um dos seus mais emblemáticos casos, no conceito de cultura corporal. Trata-se de um fantasma que ronda o campo há quase trinta anos. É um espírito que assombra parte de seu debate acadêmico, a fração que, de um ponto de vista crítico, se preocupa com certa epistemologia e certa pedagogia, perguntando-se sobre qual seria o objeto de conhecimento da área, mas também de ensino, com qual ela, no sentido superação da ordem vigente, se ocuparia.

Nesse processo, que é de disputa acadêmica e política, cultura corporal é um conceito de combate, emerge na perspectiva de sintetizar uma posição crítica que enfatizasse o primeiro termo, oferecendo uma alternativa à, por exemplo, atividade física, expressão restrita e vinculada às Ciências da Saúde. Com cultura corporal, a Educação Física procurava e procura presença nas Humanidades, em especial nas Ciências da Educação, tentando legitimar sua prática na escola como disciplina do conhecimento, com conteúdo específico.

Nas próximas páginas, reconstruo um caminho pelo qual se constituiu o conceito de cultura corporal no Brasil. Para tanto, começo mencionando três dos impulsos do pensamento crítico da Educação Física brasileira que emergem nos anos 1980. Um deles de recorte marxista mais ortodoxo, outro que, ainda se mantendo nessa tradição, incorpora aspectos da crítica cultural da Nova Esquerda. Soma-se a eles um terceiro, de corte fenomenológico. Eles compõem grande parte do espectro que se convencionou chamar de Movimento Renovador da Educação Física. Logo depois, procuro expor, muito sinteticamente, alguns lugares que o corpo e sua educação ocupam em Marx e em Antonio Gramsci, um dos mais importantes marxistas a se ocupar da Educação, com presença marcante no Brasil. Trata-se uma seção que pode ser lida quase como um excurso, um desvio embora necessário. A seguir, reexamino o conceito de cultura corporal tal como proposto por Soares et al. (1992SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.) em alguns de seus desdobramentos, tentando, no mesmo motor que ele pretende acionar, a tradição dialética, fazer-lhe a crítica. Ao final, sugiro algumas linhas de reflexão no interior do marxismo.

2 POLÍTICA, SOCIEDADE, MOVIMENTO RENOVADOR EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Para além da propostas socialistas, anarquistas e sindicalistas do final do século dezenove e da primeira metade do vinte, as disputas por uma educação crítica ganham força ao longo das décadas seguintes, principalmente nos anos 1950 e 1960, quando se desenha, na esteira do desenvolvimentismo e da sensibilidade social enraizada em período de relativa democracia (1945-1964), assim como da obra de Álvaro Vieira Pinto, o método de alfabetização de Paulo Freire, em Pernambuco. Era preciso alfabetizar para a conscientização e conscientizar que há um saber entre os não letrados que supõe uma visão, ainda que eventualmente heterônoma, de mundo. Síntese feliz entre base humanista, sensibilidade social e gênio inovador, a educação libertadora e para a conscientização foi proscrita pela ditadura civil-militar que tem início com o golpe de 1964.

Quinze anos depois, em 1979, a Lei da Anistia permitiu o regresso de Paulo Freire do longo exílio, contribuindo para a retomada de um debate crítico em educação que pudesse opor-se aos modelos modernizadores tecnocráticos da ditadura. Ao mesmo tempo, se desenvolvia uma interpretação crítica de cariz mais propriamente marxista em torno das ideias e pesquisas de Dermeval Saviani (1983SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Campinas: Cortez/Autores Associados, 1983., entre outros) no Programa de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, centro de resistência intelectual e política ao regime de exceção.

Neste último caso, a partir de uma particular leitura de Gramsci, estava em jogo a perspectiva de que a transformação social se daria, em sociedades complexas, pela disputa pela hegemonia, ideologia materializada em práticas culturais e políticas, entre elas, e das mais importantes, a educação. Para gerar o rompimento com a ordem social, seria preciso que um conjunto de mudanças de mentalidade e de práticas estivesse já estruturado, como se posições em um campo de batalha fossem sendo vencidas, na medida em que uma reforma intelectual e moral fosse construída. Por isso a perspectiva universalista de Gramsci, sua luta contra os dialetos que mantêm as populações periféricas excluídas e isoladas, a ênfase na disciplina das crianças como um tirocínio para que os filhos das camadas subalternas pudessem aceder à alta cultura. Não é pequena, portanto, a importância da escola nesse projeto. A disputa pela educação é, em tal registro, a disputa por projetos sociais distintos, e assim que sua história deve ser entendida, como expressão da luta de classes.

É desse contexto que, em parte, emerge o Movimento Renovador em Educação Física, processo que alia, na especificidade do fenômeno, críticas ao esporte tradicional, às ideias e práticas higienistas, à militarização das aulas nos pátios e quadras escolares, ao que se supunha ser um sufocamento do corpo pela ordem disciplinar. Observe-se, como expressão de seu momento inicial, o slogan do Encontro Nacional de Estudantes de Educação Física, realizado em 1984, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, que perguntava: “Educação Física, ou a arte de adestrar seres humanos”? Ao mesmo tempo, é no âmbito de certa contracultura, presente durante toda a década de 1970 no Brasil (talvez como última forma de resistência à ditadura, segundo a interpretação de muitos, uma vez rarefeita a oposição política de fato), que o corpo ganha protagonismo, a exemplo da educação macrobiótica, da “fala” do corpo, da antiginástica, da somaterapia, entre tantas outras práticas em que a dimensão corporal, seja lá em que plano fosse, aparecia como protagonista1 1 O pequeno e preciso livro de Wanderley Codo e Wilson Senne (1987), O que é corpolatria, faz uma ótima síntese do movimento de culto ao corpo nos anos 1970 e 1980. .

O Movimento Renovador da Educação Física, sem necessariamente assumir posições mais bem irracionalistas como as supracitadas, responde com livros como Educação de corpo inteiro, de João Batista Freire (1989FREIRE, João Batista. Educação de corpo inteiro: teoria e prática da Educação Física. São Paulo: Scipione, 1989.), Educação Física cuida do corpo e mente (1983) e O brasileiro e seu corpo (1990), ambos de João Paulo Subirá Medina. E logo, de maneira mais elaborada, com os conceitos de cultura de movimento (KUNZ, 1989KUNZ, Elenor. O esporte como conteúdo hegemônico da Educação Física escolar. Ijuí: Contexto & Educação, 1989.,1991), cultura corporal de movimento (BRACHT, 1992BRACHT, Valter. Educação Física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992.), cultura corporal (SOARES et al., 1992SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.).

3 CULTURA CORPORAL

A expressão cultura corporal parece ter origem, ao menos em parte, na leitura de livros de autores portugueses de esquerda vinculados, direta ou indiretamente, ao Partido Comunista Português (PCP) e presentes nos debates que sucederam a Revolução do Cravos, a Revolução dos Tenentes de 25 de Abril de 1974, que derrubou o salazarismo e impulsionou os movimentos de independência das colônias portuguesas na África2 2 Retomo aqui parte da discussão feita em Vaz (2015). .

O 25 de Abril veio abrir a possibilidade de se avançar resolutamente no sentido da democratização da escola, o que deve ser entendido como sua abertura a um número sempre crescente de indivíduos oriundos das classes sociais mais desfavorecidas, a transformação democrática de seus programas e a emancipação do seu próprio funcionamento. A democratização da escola não pode, portanto, ser exclusivamente entendida como um esforço em proporcionar um mais amplo acesso a quem dela tem mais necessidade, ainda que este fator seja determinante, mas ao qual se deve juntar uma sensível alteração no funcionamento interno do sistema escolar e uma profunda transformação do conteúdo dos seus programas (MELO DE CARVALHO, 1978MELO DE CARVALHO, Antônio. Cultura física e desenvolvimento. Lisboa: Compendium, 1978., p. 108).

Em Portugal dizia-se de uma cultura física. Autores como Melo de Carvalho (1978) e Noronha Feio se alinhavam ao posicionamento antifascista. Alguns dos livros por eles publicados em finais dos 1970 e início da década seguinte chegavam, de forma errática, ao Brasil.

De cultura física chegou-se a cultura corporal, provavelmente porque física soava como próximo de uma perspectiva de atividade física. Por outro lado, a presença do termo cultura era muito importante naquele momento3 3 Agradeço a Valter Bracht o apoio à reflexão, em particular neste ponto. , demarcando a diferença de posições que defenderiam uma natureza não histórica em relação às práticas corporais. Cultura era ainda uma questão fundamental para as propostas educacionais alinhadas a Paulo Freire e a Dermeval Saviani.

Dada a proximidade com o PCP, era evidente a influência nesse processo da hoje extinta República Democrática da Alemanha (RDA), país criado em 1949, alinhado no Pacto de Varsóvia, sob a liderança da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Na RDA a expressão institucional para Educação Física era Körperkultur (cultura corporal, cultura do corpo), traduzida em Portugal, como também, sintomaticamente, em Cuba, por cultura física, denominação que nesse país perdura até hoje.

Como foi comum no tempo em que sobreviveu a RDA, país que dividia com sua congênere do Oeste o epicentro da Guerra Fria, era preciso opor-se ao que acontecia do outro lado da fronteira, inclusive no que se referia à Educação Física e aos esportes. No caso deste último, foi comum entre os comunistas a adoção de nomes para os clubes que se referissem à dinâmica do trabalho, como Dínamo ou Post (Correio), opondo-se a e vistas como burguesas, tais como Borussia (KLUGE, 2004KLUGE, Volker. Das Sportbuch DDR. Berlim: Eulenspiegel, 2004.)4 4 Este parágrafo retoma ponto já presente em Vaz (2018). . Esta diferença também deveria estabelecer-se na Educação Física como disciplina escolar, de modo que enquanto até o final dos anos 1960 ou início dos anos 1970 predominou a denominação Leibeserziehung (educação do corpo, educação corporal) na República Federal da Alemanha, também fundada em 1949 como reação à RDA, nesta manteve-se, como acima referido, Körperkultur.

Se ambas encontram semelhante tradução, é porque em alemão as duas formas de designar corpo são válidas, Leib sendo o corpo sob o Romantismo, ligado à natureza, ao vitalismo, à vida (Leben) e Körper atendendo ao imperativo científico, anatômico, fisiológico. Na interpretação de Jan Tamboer (1994TAMBOER, Jan. Philosophie der Bewegungswissenschaft. Frankfurt am Main: Afra, 1994.), o primeiro seria o corpo relacional, o segundo o substancial. De Leibeserziehung chega-se a Sportunterricht, aula de esporte, mas entendida genericamente como Educação Física, e então a denominação de Deutsche Sporthochschule (Escola Superior Alemã de Esportes) para o centro de estudos e de formação de Colônia - principal centro de pesquisas de Educação Física na Alemanha Federal -, assim como Deutsche Hochschule fürKörperkultur, em Leipzig, RDA, fundada em 1950 e extinta depois de 1990, com a Reunificação Alemã.

Dois outros conceitos, no entanto, vieram compor o Movimento Renovador da Educação Física no Brasil com semelhante força, ambos oriundos de tradições germânicas ou ao menos filtradas pela Alemanha. Devem ser mencionados porque dialogaram diretamente com o conceito de cultura corporal. Procurando uma conceptualização mais abrangente e não tão demarcado pelo materialismo histórico, Valter Bracht buscou a formulação do conceito de cultura corporal de movimento. Na cultura estaria, para Bracht (1992) e alguns de seus colegas, a afirmação de que o movimento humano não seria apenas o deslocamento articulado de músculos e ossos, mas expressão histórica “com significado e sentido”. Havia, portanto, uma intencionalidade no movimento corporal que se deixava ver como código cultural e que ganhava, conforme sua radicação social e histórica, sentido político. Seria nos limites das práticas de lazer que a cultura corporal de movimento encontraria razão de ser e caracterização como conhecimento a ser trabalhado na Educação Física escolar.

Com forte amparo na reflexão sobre o Brasil em transição para a democracia, Bracht encontrou no pensamento da Nova Esquerda um importante apoio analítico, em especial na crítica de Bero Rigauer (1969RIGAUER, Bero. Sport und Arbeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1969.) ao esporte. Filha do movimento antiautoritário dos anos 1960, a Nova Esquerda incorporou ao marxismo elementos da psicanálise, de maneira que encontrou no corpo um importante território de realização política. O corpo como protagonista da política significou, no contexto da crítica ao capitalismo e ao socialismo autoritário, a condenação ao esporte convencional, ao movimento olímpico, à disciplina. Se na Alemanha essa crítica encontrou respaldo na interpretação da grande encenação autoritária que foram os Jogos Olímpicos de 1936, isso motivou que para a edição de 1972 fosse até mesmo fundado, pela oposição extraparlamentar, um Comitê Antiolímpico. Segundo Rigauer,

Sobrevivem em ambos Estados alemães duas características que marcaram o esporte no Nacional-Socialismo. [Uma delas é]: O treinamento desportivo e a Educação Física permanecem como formas de educação autoritária. Em seus livros lê-se que: “Os estudantes devem aprender a seguir as ordens do professor sem que seja necessário esperar por esclarecimentos sobre seu sentido. Uma criança não pode, em princípio, tudo compreender [...]; em segundo lugar, há várias situações nas quais não há, por conta de alguma periculosidade, tempo para esclarecimentos. A submissão é por isso fundamental” (1969, p. 80). (Tradução minha).

Enquanto isso, no Brasil, a crítica tinha na oposição à ditadura civil-militar seu momento de realização, com o esporte sendo visto como dispositivo de disciplinamento do corpo e embotador das capacidades espirituais. Daí o breve texto de Bracht (1986BRACHT, Valter. “A criança que pratica esporte respeita as regras do jogo...capitalista!”. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 7, n. 2, p. 62-68, 1986.), tornado clássico do Movimento Renovador, que no título parodia um slogan dos órgãos federais a respeito do esporte escolar: “Criança que pratica esporte, respeita as regras do jogo...capitalista”!

Na mesma crítica ao esporte, Bracht encontrou em Elenor Kunz (1989KUNZ, Elenor. O esporte como conteúdo hegemônico da Educação Física escolar. Ijuí: Contexto & Educação, 1989., 1991, 1994) um importante interlocutor. O projeto de Kunz, que se desenvolveu durante uma década a partir da metade dos anos 1980, se estruturou em torno de uma concepção de movimento, de uma perspectiva de educação e de ensino e de uma crítica ao esporte.

O primeiro dos pilares diz da coincidência entre perceber e movimentar-se, de forma que se colocaria a centralidade do sujeito que se movimenta (pela ação), não do movimento realizado (passivamente). A inspiração vem de Merleau-Ponty, mas também de uma tradição holandesa de pensar filosoficamente o movimento, cujo nome central de um período mais recente é Jan Tamboer (1994TAMBOER, Jan. Philosophie der Bewegungswissenschaft. Frankfurt am Main: Afra, 1994.), mas que remete a estudos de Frederic Jacobus Johannes Buytendijk (1956) sobre a postura e o movimento, entre outros temas.

A essa perspectiva de movimento liga-se uma educacional que, ao menos de início (KUNZ, 1991KUNZ, Elenor. Educação Física: ensino e mudanças. Ijuí: Unijuí, 1991.) estrutura-se nas contribuições de Paulo Freire (1967FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.; 1970) à conscientização e a uma pedagogia libertadora, em conexão com a expectativa de um ensino problematizador (TREBELS, 1985TREBELS, Andreas Heinrich. Turnen Vermitteln. Sportpadagogik, n. 5, p. 10-19, 1985.) que considera o movimento em dimensão dialógica (TAMBOER, 1979TAMBOER, Jan. Sich-bewegen: ein Dialog zwischen Mensch und Welt. Sportpadagogik, n. 2, p. 8-13,1979.; TREBELS, 2003). Nos termos da Educação Física, isso se traduz no reconhecimento de que a cultura de movimento abrange um rol de possibilidades muito maior do que a monocultura esportiva ofereceria, ao mesmo tempo em que os movimentos vistos como mais eficazes poderiam, entre outros, ser um ponto de chegada na aprendizagem, mas não o de partida. Se assim não for ou não fosse, então há ou haveria um limite muito estreito no que seria aprendido, eliminando uma série de movimentos possíveis cujo potencial seria o de, autonomamente, serem construídos como respostas a um desafio frente a um arranjo material (KUNZ, 1994).

O movimento humano teria três dimensões (TREBELS citado por KUNZ, 1991KUNZ, Elenor. Educação Física: ensino e mudanças. Ijuí: Unijuí, 1991.), sentir, pensar e agir, e apenas a última, no tradicional ensino esportivo, teria lugar. Coloca-se, então, o terceiro pilar das questões de Kunz, a crítica ao esporte. Ele teria dimensões inumanas vinculadas à iniciação precoce e ao doping (KUNZ, 1994) e sua presença hegemônica na Educação Física Escolar (KUNZ, 1989) impediria que a cultura de movimento fosse respeitada em toda sua amplitude. Além disso, o esporte obedeceria a três tendências, instrumentalização, especialização, selecionamento (TREBELS, citado por KUNZ, 1991). Ou seja, o movimento seria puro meio e não um possível fim em si mesmo, estaria ainda limitado pelos interesses da modalidade escolhida e poderia ser ação de poucos, uma vez que o foco nos resultados a serem alcançados (e não em quem os alcanças) faz com que poucos se sobressaiam e que muitos sejam excluídos.

Esse percurso muito sintético aqui desenhado diz de algumas linhas do Movimento Renovador em Educação Física. Tirante a popularizada por Kunz, um crítico não conservador do conceito de cultura corporal porque toda cultura teria tal predicado e porque não seriam corpos, mas sujeitos que se movimentam (KUNZ, 1994KUNZ, Elenor. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Unijuí, 1994.), as outras duas encontram no marxismo importante inspiração. No âmbito da Nova Esquerda o corpo tem presença marcante, ao ponto de Herbert Marcuse (1969MARCUSE, Herbert. “Revolution aus Ekel”. Spiegel Gespräch mit dem Philosophen Herbert Marcuse. Spiegel, n. 31, p. 103-106, 1969. (Entrevista a Georg Wolff e Dieter Brumm)., p. 106), seu nome mais eloquente, afirmar que “[...] que não se pode entender seu (de Marx) conceito de socialismo ao não se observar que por meio da revolução o ser humano deve se libertar até mesmo em sua constituição sensorial-fisiológica”. Esse movimento na Educação Física brasileira encontrou em Bracht e em sua interpretação da cultura corporal de movimento seu momento mais extenso e profícuo, mas nem de longe viu suas possibilidades serem esgotadas, o que sugere e convida a avançar5 5 Uma exceção é o livro de Saraiva (2005), que trabalha questões de gênero sob proposta de Marcuse para fundamentar aulas coeducativas em Educação Física. . O marxismo mais ortodoxo, por sua vez, teria um lugar na Educação Física, na medida da proposição de uma perspectiva que fosse crítico-superadora (SOARES et al., 1992SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.). Em sua centralidade, como se verá, não estará o corpo, mas uma reflexão sobre as representações que o têm como destinatário.

Temos, então, duas grandes linhas com diferentes vínculos com o marxismo, a última oriunda de forma mais direta do ideário do socialismo realmente existente, que faz uma crítica à sociedade capitalista e em seu interior coloca a cultura corporal como momento importante da formação humana, e a outra que, de inspiração antiautoritária, critica o esporte e o disciplinamento corporal de maneira interna, nele observando dispositivos de dominação que incidem sobre o corpo.

Nas próximas páginas ocupo-me de aspectos da versão mais ortodoxa do marxismo na Educação Física, não sem antes fazer um breve excurso mencionando o que o próprio Marx escreveu sobre essa disciplina escolar e extraescolar já então muito presente na Europa Central, aos tempos de seus estudos sobre as origens e o desenvolvimento do capitalismo como forma de vida. Menciono esta posição e a ela somo uma de Gramsci, não exatamente sobre Educação Física, mas sobre a organização do tempo livre e o lugar do corpo em seu interior, e ainda sobre o corpo na educação.

4 O CORPO E SUA EDUCAÇÃO EM KARL MARX E EM ANTONIO GRAMSCI - BREVE EXCURSO

Em sua gigantesca obra, Marx escreveu umas poucas linhas sobre educação, cabendo a muitos dos que compuseram a tradição marxista dedicar-se com mais afinco ao tema. Para o revolucionário alemão, a educação apresentava um papel secundário no processo de transformação social, devendo vincular-se ao que considerava o delimitador da condição humana: o trabalho, capacidade de transformação da natureza a favor de si. Daí advém a perspectiva segundo a qual a escola deveria estar junto à fábrica, aquele território em que o trabalho estaria mais organizado, produtivo e, em consequência, da mesma forma os trabalhadores, agentes privilegiados da transformação social. É desse contexto que emergirá o trabalho como princípio educativo, tema decantado por várias gerações de educadores.

A educação entendemo-la em três aspectos:

Primeiro: Educação intelectual.

Segundo: Educação corporal, como é oferecida nas escolas de esportes e por meio de exercícios militares.

Terceiro: Educação Politécnica, que transmite os princípios gerais de cada processo de produção e ao mesmo tempo introduzem a criança e o jovem no uso prático e no manuseio dos instrumentos elementares de cada ramo de trabalho. À organização dos jovens trabalhadores deve respeitar os progressos da formação intelectual, esportiva e politécnica. Os custos das escolas politécnicas devem ser parcialmente cobertos pela venda do que nela for produzido. A ligação entre trabalho produtivo assalariado, educação intelectual, exercício corporal a formação politécnica elevará a classe trabalhadora adiante do nível alcançado pela aristocracia e pela burguesia (MARX, 1973cMARX, Karl. Vorschläge für das Programm der Internationalen Arbeiterassoziation (IAA). In: MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Werke (MEGA). Berlin: Ditz, 1973c. v. 16., p. 194). (Grifos do autor, tradução minha).

Se coube aos sucessores de Marx o desenvolvimento da educação como tema, Gramsci emerge como uma das principais forças desse pensamento. Atento às questões da cultura em sociedades complexas, o grande intelectual italiano devota um peso importante para a educação no processo de construção de hegemonia e de uma reforma intelectual e moral capaz de gerar parte das condições necessárias para a transformação da sociedade. As análises e assertivas de Gramsci sobre educação estão em seus Cadernos, mas também, e principalmente, nas cartas que endereça à cunhada, tomando os próprios filhos como destinatários das ideias propostas. Formação científica e humanística, associada àquela para o trabalho, deveria ser o mote da escola, evitando tanto o tecnicismo quanto o diletantismo. Para tanto, o domínio de si: “Na realidade, toda geração educa a nova geração, isto é, forma-a; e a educação é uma luta contra os instintos ligados às funções biológicas elementares, uma luta contra a natureza, a fim de dominá-la e de criar o homem ‘atual’ à sua época” (GRAMSCI, 2001, p. 62).

A isso correspondem suas proposições para ao tempo livre do trabalho. Para Gramsci, em movimento de reconhecimento da organização administrativa do trabalho no modelo de Taylor e na procura de sua superação política, o lazer deveria seguir as mesmas regras disciplinares daquele, ainda que não como coerção externa, mas incorporação qualitativa superior do regramento, com vistas à autocoerção.

[...] a “caça à mulher” exige bastante “ócio”; no operário de tipo novo se repetirá, sob outras formas, o que ocorre nas aldeias camponesas. A relativa solidez das uniões sexuais camponesas liga-se estritamente ao sistema de trabalho rural. O camponês que volta para casa à noite, depois de uma longa jornada de trabalho, deseja a Venerum facilem parabilemque de Horácio: não tem o hábito de correr atrás de prostitutas; ama sua mulher, segura, sempre presente, que não fará dengo nem pretenderá a comédia da sedução e do estupro para ser possuída. Aparentemente, isso faz com que a função sexual se torne mecânica; mas, na realidade, trata-se de uma nova forma de união sexual, sem as cores “fascinantes” da fantasia romântica própria do pequeno burguês e do boêmio vadio. Revela-se claramente que o novo industrialismo quer a monogamia, quer que o homem trabalhador não desperdice suas energias nervosas na busca desordenada e excitante da satisfação sexual ocasional: o operário que vai para o trabalho depois de uma noite de “orgias” não é um bom trabalhador; a exaltação passional não pode se adequar aos mais perfeitos automatismos (GRAMSCI, 2001bGRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere: Temas da cultura. Católica. Americanismo e Fordismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001b. v. 4., p. 268-269).

5 CONSEQUÊNCIAS - UM COMENTÁRIO

Menciono dois trechos do livro Metodologia de Ensino de Educação Física (SOARES et al., 1992SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.) em que o conceito de cultura corporal é delimitado e logo chamado à operação metodológica. No primeiro excerto lemos que

Na perspectiva da reflexão sobre a cultura corporal, a dinâmica curricular, no âmbito da Educação Física, [...] busca desenvolver uma reflexão pedagógica sobre o acervo de formas de representação do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizadas pela expressão corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos, esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser identificados como formas de representação simbólica de realidades vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas (p. 32).

Se é correto o movimento de conceptualização de cultura corporal como um acervo de conhecimentos, seria o caso de sabermos com mais clareza o lugar da representação nesse processo. As práticas lúdicas se referem, de fato, a um arquivo mnemônico que a experiência social atualiza a partir de práticas e discursos que dão forma e sentido a jogos, esportes, exercícios ginásticos etc. Dessas representações, ademais, deveria ser feita uma reflexão pedagógica. O problema é que o corpo não encontra lugar nesse processo, a não ser como destino de um movimento reflexivo. Não há lugar privilegiado para um saber do corpo que, como destinatário- e não como composição - de uma cultura, acaba sendo visto como passivo. Embora se diga o contrário, não se encontra o sujeito, uma vez que está ausente a mobilização das contradições, de modo que se esvazia seu potencial dialético. Se não há corpo, tampouco há desejo, de forma que também na criação de novas possibilidades um saber que não dependa apenas da cognição não pode ser levado em conta. Não há lugar para a produção de conhecimento que reconheça uma dimensão mimética, não racional, ainda que não irracional, da cultura. Não se mobiliza a dialética entre o conceito e o não conceitual, uma vez imobilizado o processo em chave racionalista. Faltam as condições para gerar um conhecimento que talvez possa ser não apenas pensado, mas expressado. Isso pode ser visto com ainda mais clareza no fragmento abaixo:

Nesse sentido, o conhecimento é tratado de forma a ser retraçado desde sua origem ou gênese, a fim de possibilitar ao aluno a visão de historicidade, permitindo-lhe compreender-se enquanto sujeito histórico, capaz de interferir nos rumos de sua vida privada e da atividade social sistematizada.

O conteúdo do ensino, obviamente, é configurado pelas atividades corporais institucionalizadas. No entanto, essa visão de historicidade tem um objetivo: a compreensão de que a produção humana é histórica, inesgotável e provisória. Essa compreensão deve instigar o aluno a assumir a postura de produtor de outras atividades corporais que, no decorrer da história, poderão ser institucionalizadas (SOARES et al., 1992SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992., p. 40).

A formação é para a autonomia, como reza a tradição iluminista (a da Aufklärung), uma entre outras bases sobre o qual o marxismo se constrói. Retraçar a história de um bem da cultura (corporal) seria a estratégia para que o aluno se reconhecesse como sujeito e com isso pudesse agir. Formar-se possibilitaria tomar a história nas próprias mãos e produzir atividades corporais que poderiam vir a ser institucionalizadas.

A proposta tem caminho certo, mas direção equivocada. O ponto de partida deve ser o estágio mais avançado do processo, o mais contemporâneo, não o contrário. Em sua crítica mais radical ao capitalismo, Marx (1973cMARX, Karl. Vorschläge für das Programm der Internationalen Arbeiterassoziation (IAA). In: MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Werke (MEGA). Berlin: Ditz, 1973c. v. 16.) parte de sua expressão maior, a mercadoria, para, ao desconstruí-la, reconstruir a lógica do sistema. Enquanto a mercadoria esconde sabedoria e sofrimento que a tornaram possível, a forma contemporânea de uma prática corporal acumula a história de suas contraditórias transformações. É do presente que miramos o passado, de forma que a reconstrução de um bem cultural significa, antes de tudo, mostrar como a sua história - com os mesmos sabedoria e sofrimento - se amalgama nesse resultado contemporâneo a que chamamos jogos, esportes, malabarismos etc.

6 FINAL

O Movimento Renovador se constituiu em importante força intelectual na Educação Física Brasileira, enfrentando problemáticas educacionais presentes na política e na tradição, mas também nas quadras e pátios de nossas escolas. Da maneira como lhe foi possível, articulou problemas práticos com análises teóricas e proposições pedagógicas. Isso foi feito com frequência mediante a recepção de aporte teórico da crítica dialética de diferentes extratos, assim como de certa fenomenologia. A crítica ao esporte convencional foi uma tônica com ênfases diversas, opondo-se aos modelos de contenção do corpo da ditadura civil-militar. O ponto de intersecção terá sido a valorização da cultura e o afastamento de interpretações biologicistas sobre corpo e movimento.

Não faria sentido que o Movimento Renovador, mesmo em sua versão marxista mais ortodoxa, se apoiasse no que Marx e mesmo Gramsci escreveram sobre a educação do corpo e o lazer. Registros políticos, intelectuais e históricos distintos daqueles enfrentados no Brasil das quatro últimas décadas determinaram as considerações desses dois grandes pensadores de esquerda. O ideário de cada um deles aparece na Educação Física brasileira contemporânea, quando é o caso, muito mais como aporte analítico e crítico da sociedade e da educação. Mas seria o caso de considerar o legado de ambos e observar até que ponto o que escreveram sobre o tema impacta outros aspectos das respectivas Obras.

O marxismo do Movimento Renovador em Educação Física talvez pudesse de forma mais efetiva ter se dedicado ao tema do corpo, não apenas como destinatário das representações culturais, mas como produtor de um saber, como foi visto no tópico anterior. Isso seria possível recorrendo ao próprio Marx, mas em registros distintos daqueles que foram escolhidos. Seria produtivo que houvesse espaço para o que se propõe nos Manuscritos Econômico-filosóficos, a educação dos sentidos em vista do intercâmbio que seres humanos materializam com a natureza, relação que os forma. Não são os humanos e sua visão, audição, tato, gustação, audição, frutos da natureza, mas produções da cultura.

O olho tornou-se um olho humano quando seu objeto passou a ser um objeto humano, social, criado pelo homem e a este destinado. Os sentidos, portanto, tornaram-se diretamente teóricos na prática. Eles se relacionam com a coisa em atenção a esta, mas a própria coisa é uma relação humana objetiva consigo mesma e com o homem, e vice-versa. A necessidade e a fruição, portanto, perderam seu caráter egoísta, e a natureza perdeu sua mera utilidade pelo fato de sua utilização ter-se tornado utilização humana (MARX, 1983MARX, Karl. Manuscritos econômico e filosóficos. In: FROMM, Erich. Conceito marxista de homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1983., p. 103)6 6 Carmen Soares (1990, p. 51) não deixou de notar a contribuição que isso poderia trazer para a Educação Física, ao trazer como epígrafe um fragmento de Marx a respeito da arte: “Não foi apenas pelo pensamento, mas através de todos os sentidos que o homem se afirmou no mundo objetivo”. .

Outra orientação que pode ser buscada em Marx é o que ele coloca em uma breve nota de O capital, destacando que o reconhecimento de si acontece nas infinitas possibilidades abertas pelo encontro com o outro. Esse reconhecimento se dá pelo corpo: “É por meio da relação com o Homem Paulo, como seu semelhante, que se reconhece o Homem Pedro como Humano. Mas se lhe coloca Paulo com pele e cabelos, em sua coporalidade/materialidade corporal paulínea, como expressão de gênero humano” (MARX, 1973cMARX, Karl. Vorschläge für das Programm der Internationalen Arbeiterassoziation (IAA). In: MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Werke (MEGA). Berlin: Ditz, 1973c. v. 16., p. 67d, tradução minha).

Talvez nessa direção pudéssemos considerar, com a inequívoca contribuição de Marx, a dialética entre universalidade cultural, particularidade corporal e singularidade subjetiva. Com isso, entre tantas outras abordagens, seria possível não apenas observar as contradições sociais que o corpo sintetiza - entre elas as questões de classe, gênero, etnia, deficiência etc. - mas coloca-las em movimento que pudesse ajudar a, por meio do ensino de práticas corporais, superar as tantas desigualdades que a experiência contemporânea nos impõe.

REFERÊNCIAS

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  • VAZ, Alexandre Fernandez; Valter Bracht: admiração, amizade, crítica. In: ALMEIDA, Felipe Quintão; GOMES, Ivan Marcelo (Org.). Valter Bracht e a Educação Física: um pensamento em movimento. Vitória: EDUFES, 2015. p. 13-32.
  • VAZ, Alexandre Fernandez. Uma Europa inventada pelo futebol. Movimento, v. 24, n. 4, p. 1395-1406, 2018.
  • *
    Tomo aqui emprestado o título do livro de José Arthur Gianotti (2000), não porque meus argumentos encontrem eco na laboriosa análise da tradição marxista elaborada por ele, mas porque se trata, lá e cá, de um mesmo fenômeno. O trabalho é resultado parcial do Programa Programa de Pesquisas Teoria Crítica, Racionalidades e Educação (V), financiado pelo CNPq.
  • Apoio:

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Processos 403624/2016-9, 310115/2017-5, 423773/2018-6.
  • 1
    O pequeno e preciso livro de Wanderley Codo e Wilson Senne (1987CODO, Wanderley; SENNE, Wilson. O que é corpolatria. São Paulo: Brasiliense, 1987.), O que é corpolatria, faz uma ótima síntese do movimento de culto ao corpo nos anos 1970 e 1980.
  • 2
    Retomo aqui parte da discussão feita em Vaz (2015VAZ, Alexandre Fernandez; Valter Bracht: admiração, amizade, crítica. In: ALMEIDA, Felipe Quintão; GOMES, Ivan Marcelo (Org.). Valter Bracht e a Educação Física: um pensamento em movimento. Vitória: EDUFES, 2015. p. 13-32.).
  • 3
    Agradeço a Valter Bracht o apoio à reflexão, em particular neste ponto.
  • 4
    Este parágrafo retoma ponto já presente em Vaz (2018VAZ, Alexandre Fernandez. Uma Europa inventada pelo futebol. Movimento, v. 24, n. 4, p. 1395-1406, 2018.).
  • 5
    Uma exceção é o livro de Saraiva (2005SARAIVA, Maria do Carmo. Coeducação Física e esportes: quando a diferença é mito. Ijuí: Edunijuí, 2005.), que trabalha questões de gênero sob proposta de Marcuse para fundamentar aulas coeducativas em Educação Física.
  • 6
    Carmen Soares (1990SOARES, Carmen Lúcia. Fundamentos da Educação Física Escolar. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 71, p. 51-68, 1990., p. 51) não deixou de notar a contribuição que isso poderia trazer para a Educação Física, ao trazer como epígrafe um fragmento de Marx a respeito da arte: “Não foi apenas pelo pensamento, mas através de todos os sentidos que o homem se afirmou no mundo objetivo”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2019
  • Aceito
    04 Set 2019
  • Publicado
    16 Nov 2019
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