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EDUCAÇÃO FÍSICA REFLEXIVA - PROBLEMAS, HIPÓTESES E PROGRAMA DE PESQUISA

REFLEXIVE PHYSICAL EDUCATION - PROBLEMS, HYPOTHESES AND RESEARCH PROGRAM

EDUCACIÓN FÍSICA REFLEXIVA - PROBLEMAS, HIPÓTESIS Y PROGRAMA DE INVESTIGACIÓN

Resumo

Neste texto, esboço alguns cenários e hipóteses de trabalho para constituição de um programa de pesquisa que tem por escopo sugerir caminhos de desenvolvimento alternativos à teoria pedagógica da Educação Física a partir da dinâmica de reflexividade social. Para dar conta dessa agenda, estruturei o argumento em três frentes dialógicas. Na primeira delas, restituo alguns condicionantes epistemológicos e sociais que justificam a emergência de uma EF reflexiva. Em seguida, discuto alguns dos pilares da teoria da modernização reflexiva e identifico aqueles que acredito incidirem na área de EF. Por fim, reafirmo o movimento humano como objeto da EF e sugiro a noção de “biografia de movimento” como categoria êmica de estudo das dimensões biopsicossocioculturais do se-movimentar.

Palavras chave:
Educação Física; Movimento; Epistemologia

Abstract

In this text, I outline some scenarios and working hypotheses for a research program whose purpose is to suggest development paths alternative to the pedagogical theory of Physical Education based on the dynamics of social reflexivity. To account for this agenda, I structured the argument on three dialogic fronts. In the first one, I restore some epistemological and social constraints that justify the emergence of reflexive PE. Next, I discuss some of the pillars of the theory of reflexive modernization and identify those I believe to be focused on the area of ​​PE. Finally, I reaffirm human movement as an object of PE and suggest the notion of “movement biography” as an emic category of study of the biopsychosocial cultural dimensions of movement.

Keywords:
Physical Education; Movement; Epistemology

Resumen

En este texto, esbozo algunos escenarios e hipótesis de trabajo para la constitución de un programa de investigación que tiene por objeto sugerir caminos de desarrollo alternativos a la teoría pedagógica de La Educación Física a partir de la dinámica de reflexividad social. Para cumplir esa agenda, estructuré el argumento en tres frentes dialógicas. En la primera, restituyo algunos condicionantes epistemológicos y sociales que justifican la emergencia de una EF reflexiva. A continuación, discuto algunos de los pilares de la teoría de la modernización reflexiva e identifico a aquellos que creo que inciden en el área de EF. Por último, reafirmo el movimiento humano como objeto de la EF y sugiero la noción de “biografía de movimiento” como categoría émica de estudio de las dimensiones biopsicosocioculturales del movimiento.

Palabras clave:
Educación Física; Movimiento; Epistemología

1 INTRODUÇÃO

Intelectualmente, é sempre mais fácil ser pessimista. Ninguém tem problema para pintar um quadro de decadência, isso qualquer um consegue fazer rapidamente. Muito mais difícil é conceber um cenário no qual talvez se possa firmar pé.

Ulrich Beck, 2003BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. São Paulo: Editora da Unesp, 2003., p. 36

Se a linha de raciocínio que conduz este texto estiver correta, então parte dos ímpetos de desenvolvimento e de renovação crítica que procurou-se imprimir à teoria pedagógica da Educação Física (EF) brasileira, sobretudo a partir do início dos anos 1990, não só foi como continua sendo orientada por categorias cognitivas do passado. Desse descompasso, dentre outras coisas, tem provavelmente também decorrido alguns dos contratempos desse corpus teórico em informar um horizonte de ação - em especial, mas não exclusivamente no âmbito da licenciatura - que tenha maior grau de correspondência com a realidade. Quando então se arrazoa, a título de exemplo, que um dos problemas das aulas de EF no espaço escolar talvez seja a falta de incorporação sistemática de algum modelo teórico, de matiz preferencialmente crítico, na rotina de trabalho dos profissionais, basicamente está se sugerindo que, do ponto de vista da teoria, as coisas estão mais ou menos contemporizadas na área, sendo necessária para equalização dos problemas constitutivos dessa disciplina, ou ao menos de parte deles, a recorrência a alguma teoria de fundo ou, se preferirem, a alguma abordagem pedagógica para informar, orientar, quando senão mesmo guiar a ação profissional.

Mas e se essa tomada de posição, parte da crença que historicamente tem animado e informado alguns dos esforços de reflexão presentes no âmbito da Epistemologia da EF, não for plenamente acertada ou, no mínimo, ter sido constituída de maneira parcial? E se o problema antes não for com quem realiza a prática (desprovida de uma boa teoria), mas com quem a pensa na torre de marfim que, muitas vezes, se constitui o universo acadêmico? Dito em outros termos, e se o problema que está sendo observado for antes de ordem epistêmica ao ponto de algumas abordagens pedagógicas da EF serem pouco investidas nas rotinas dessa disciplina na escola em virtude de possuírem correlação fraca com a realidade complexa que, para bem e mal, nos vemos cada vez mais envoltos na etapa reflexiva da modernização a atuar seletivamente pelo globo? E se, nesse caso, não só a EF como a própria estrutura pedagógica que suporta mais amplamente o sistema educacional se encontrarem, em termos hipotéticos, na obsolescência, pensando e atuando a partir de categorias cognitivas que estão clinicamente mortas, mas se recusam a morrer, não seria de bom tom revisitar reflexivamente o que tem sido, não tem sido ou se propõe a ser a teoria pedagógica da EF no Brasil?

Este texto, de caráter teórico, pretende orbitar em torno dessas questões e, a partir da retomada de aspectos fundantes da teoria da modernização reflexiva (TMR), esboçar alguns cenários e hipóteses de trabalho para constituição de um programa de pesquisa que tem por escopo sugerir caminhos de desenvolvimento alternativos à teoria pedagógica da EF a partir da dinâmica de reflexividade social. Para dar conta dessa agenda, estruturei o argumento em três frentes dialógicas. Na primeira delas, procuro restituir alguns dos condicionantes epistemológicos e sociais que não só concorreram como justificam a emergência de uma EF reflexiva. Em seguida, discuto alguns dos pilares da TMR e identifico aqueles que acredito incidirem mais decisivamente na área de EF. Por fim, reafirmo o movimento humano como objeto da EF e sugiro a noção de “biografia de movimento” como categoria êmica para o estudo das dimensões biopsicossocioculturais do se-movimentar.

2 CONDIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS E SOCIAIS DE EMERGÊNCIA DE UMA EF REFLEXIVA

Da socialização acadêmica, em tom quase profético, da ideia de que a EF precisava entrar em crise (MEDINA, 1983MEDINA, João Paulo Subirá. A Educação Física cuida do corpo... e “mente”. Campinas: Papirus, 1983.) para a diagnose ainda ressonante de que a EF necessita sair da crise (FENSTERSEIFER, 2001FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. A Educação Física na crise da modernidade. Ijuí: Editora Unijuí, 2001.), vão-se mais de três décadas de intensa atividade epistemológica na área, o que representou um significativo avanço para a profissão, ao menos do ponto de vista da sofisticação do debate acadêmico-científico entre pares. Oportuno notar que, embora seja possível uma problematização mais criteriosa acerca do devido alcance da noção de crise para dimensionar as mudanças pela qual a EF rumou, o fato é que não só a EF no Brasil como no mundo, com um ponto de inflexão que remonta mais ou menos à década de 1980, mas que vem se radicalizando até os dias atuais, se viu reorientada, em hipótese, por um novo paradigma: o da autoconfrontação reflexiva. Tal dinâmica, por seu turno, tem a ver tanto com a capacidade de os sistemas peritos nela influírem quanto com a própria autonomia do processo modernizador em curso mundialmente, inclusive na periferia do capitalismo.

Se isso que está sendo sugerido é verdadeiro, então o referente institucional subjacente à “virada crítica” da EF nos anos 1980 no Brasil já não pode ser restituído tendo como pano de fundo somente fatos ou variáveis históricas de alcance nacional, a exemplo da abertura política - processo, muitas vezes, narrado como conquista de grupos à (ou identificados com a) esquerda. Isso é uma maneira de ver as coisas, se bem que essa forma de interpretar a história tende a invisibilizar outros elementos em jogo nessa trama. O mais importante, nesse sentido, talvez seja ampliar o olhar para o fenômeno em questão e considerar uma gama de processos de ordem política, econômica, cultural, ambiental etc. interconectados globalmente. Tenho por hipótese de partida que a expansão da reflexividade social em escala transnacional (GIDDENS, 2002GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.) foi e continua sendo um dos elementos decisivos para a confrontação não só da EF brasileira com ela mesma, mas das demais disciplinas escolares, da escola, do esporte, da arte, da religião, da política, da ciência, da economia, do trabalho, da mídia, enfim, de todas as instituições sociais que se chocam com seus próprios fundamentos tradicionais e veem muitas de suas certezas e verdades formulares abaladas.

Essa possibilidade de reinterpretação da história à luz de uma abordagem cosmopolita guiada por forças gerais pode ser instrutiva para entender os fluxos de desenvolvimento que foram imputados à teoria pedagógica da EF por agentes competentes no andar dos anos1980 e 1990. Não é o objetivo aqui fazer esse inventário e, nesse sentido, me contento em chamar atenção, primeiramente, ao fato de que a aparição da teoria pedagógica da EF remonta à gênese histórica dessa profissão que, a despeito de outras, também emergiu em virtude da desincorporação de características que, num contexto passado, lhe predispunham mais como uma ocupação (LOVISOLO, 1996LOVISOLO, Hugo Rodolfo. Hegemonia e legitimidade nas Ciências dos Esportes. Motus Corporis, v. 3, n.2, p.51-72, dez. 1996.; TANI, 1996TANI, Go. Cinesiologia, Educação Física e esporte: ordem emanante do caos na estrutura acadêmica. Motus Corporis, v. 3, n. 2, p. 9-50, dez. 1996.). Com esse ponto de vista quero reiterar, sobretudo, que as propostas subjacentes a uma EF higienista, militarista ou competitivista (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1988GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. Educação Física progressista: a pedagogia crítico-social dos conteúdos e a Educação Física brasileira. São Paulo: Loyola, 1988.), entre outras que marcaram lugar na história, apresentam traços, quando senão mesmo constituem esforços pioneiros, de teorização pedagógica da EF porque materializadas em manuais, tiveram seus fundamentos teóricos explicitados e coadunaram com modelos pedagógicos de ação prática. A partir de Beck (2002BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo XXI de España, 2002., 2011), é possível então apreender e analisar essas proposições pedagógicas, muitas vezes combatidas, desacreditadas ou desqualificadas por tendências da historiografia crítica, como, na verdade, produtos da primeira modernidade e da cientifização simples.

Em segundo lugar, quero pontuar que as condições de reflexividade epistêmica que se intensificaram no campo da EF no contexto de transição dos anos 1980 para 1990, embora informadas por diferentes escolas teóricas que não se reduzem, inclusive, aos domínios do positivismo, do marxismo e da fenomenologia (ALMEIDA et al., 2012ALMEIDA, Felipe Quintão de et al. Classificações epistemológicas na Educação Física: redescrições. Movimento, v. 18, n. 4, p. 241-263, out./dez. 2012.), sinalizam para um descontentamento e mesmo para um afastamento da pedagogia tradicional da EF afirmada na primeira modernidade. Isso é ponto pacífico, e, a modo de sustentação do exposto, cabe citar as abordagens humanista (OLIVEIRA, 1985OLIVEIRA, Vitor Marinho de. Educação Física humanista. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985.), desenvolvimentista (TANI et al., 1988TANI, Go et al. Educação Física Escolar: fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista. São Paulo: EPU, 1988.), construtivista (FREIRE, 1989FREIRE, João Batista. Educação de corpo inteiro: teoria e prática da Educação Física. São Paulo: Scipione, 1989.), crítico-emancipatória (KUNZ, 1991KUNZ, Elenor. Educação Física: ensino & mudanças. Ijuí: Unijuí, 1991.), sistêmica (BETTI, 1991BETTI, Mauro. Educação física e sociedade. São Paulo: Movimento, 1991.), crítico-superadora (SOARES et al., 1992SOARES, Carmem Lúcia et al. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.), plural (DAOLIO, 1995DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas, Papirus, 1995.) da EF brasileira, entre tantas outras que foram possíveis e se atualizaram nas décadas seguintes.

Em que pese, no entanto, essa diversidade epistêmica sugerida, tais movimentações apontam para o esforço de autoconfrontação da EF (ainda uma profissão generalista) com suas bases primeiras de ancoragem social, engendrando iniciativas teóricas concorrentes no campo acadêmico, é verdade, mas todas igualmente marcadas por uma vontade de mudança e informadas, ainda que seus proponentes não pudessem ter objetivado essa condição quando da consecução de seus trabalhos, pela necessidade estruturalmente mais ampla de reinvenção do social no contexto emergente daquilo que Beck (2012BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: BECK, Ulrich et al. (Orgs). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. p. 11-87.) qualificou como sociedade de risco ou segunda modernidade e Giddens (2012GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, Ulrich et al. (Orgs). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. p. 89-166.) como sociedade pós-tradicional. Esse, a meu ver, seria o pano de fundo macrossocial - ainda não devidamente dimensionado na área - sob o qual novos ímpetos de desenvolvimento puderam ser conferidos à teoria pedagógica da EF a partir de 1980. Do que se segue, temos atualizações dessas abordagens, expressas no trabalho de seguidores e herdeiros, mas sem modificações substanciais em seus escopos. As razões de rotinização de algumas dessas teorias são múltiplas e requerem uma investigação à parte.

Em termos, portanto, da possibilidade de localizar a atividade epistemológica da EF frente ao processo cego e surdo de ampla mudança social em marcha no globo desde 1970 e intensificado no mundo pós-Guerra Fria, sustenta-se, por hipótese, que as abordagens pedagógicas da área tiveram parte e ainda continuam tendo, algumas mais, outras menos, no conjunto maior de transformações sociais que, para bem e mal, impactam profundamente a vida das pessoas. Em outras palavras, entendo que a elaboração da teoria pedagógica da EF no caminho que tomou a partir do final dos anos 1980, independentemente mesmo do conteúdo interno e do teor das propostas que a constituem, é endêmica à distribuição de maior reflexividade social não só no interior do campo acadêmico-científico como também, em alguma medida a ser investigada, na própria realidade dessa profissão nos diferentes espaços sociais, sobretudo, em duas frentes decisivas: [1] na ampliação dos conteúdos que compõem os programas de EF e esportes e [2] nas formas de aplicá-los e justificá-los. Esse, de modo geral, seria o aspecto internalista ou intrínseco da reflexividade epistêmica da área, um dos fundamentos centrais para levar a cabo o desenvolvimento do programa de pesquisa em pauta neste texto.

No que versa, entretanto, ao grau de correspondência extrínseca da teoria pedagógica da EF com a reprodução de um mundo cada vez mais marcado pela expansão da reflexividade social, há uma série de questões tangenciais ainda a serem enfrentadas. Uma delas se refere à natureza social dos debates teóricos travados no campo. Ademais, existem indícios e pistas significativas para afirmar que a atividade epistemológica na área tem sido marcada por um embate entre os que, por um lado, visam à conservação da realidade e os que, por outro, idealizam sua subversão, ou seja, entre aqueles grupos mais afeitos ao modo de pensar ideológico e aqueles mais inclinados ao pensamento utópico. Uma EF reflexiva, por sua vez, entende, a partir do que argumenta Mannheim (1976MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.), que essas duas formas de pensar são distantes da realidade e que é preciso então, seguindo as pistas de Elias (2011ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia. Lisboa: Edições 70, 2011.), ter por norte formas de pensamento mais realistas, isto é, menos orientadas pela tentativa de conservação saudosista do passado ou pela projeção no presente de um passado que já foi julgado e condenado.

Nesse sentido é que uma abordagem da EF orientada pela e para a realidade prospecta uma “virada reflexiva” no campo científico no sentido não só de objetivar as eventuais desmedidas analíticas que decorreram com as precedentes “viradas crítica e cultural” na área, mas também com o intuito de conferir tratamento aos elementos realistas de novidade social e mudança evidenciados na estrutura da sociedade, elementos estes que, por razões internas ou externas à ciência, não foram percebidos no campo, acabaram sendo subestimados ou mesmo considerados irrelevantes, talvez por serem vistos como tentativa de justificação da ordem, para o desenvolvimento da teoria pedagógica da EF. Disso resulta o caráter revisionista e, portanto, “não-cumulativo do conhecimento” (ALEXANDER, 1999ALEXANDER, Jeffrey Charles. A importância dos clássicos. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (Orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999. p. 23-89.) nesta agenda.

Além disso, foi ao optar por esse método revisionista dos saberes rotinizados que se tornou possível tecer a hipótese de que as abordagens estruturantes da teoria pedagógica da EF apresentam diferentes níveis de envolvimento com a realidade que abrange essa prática e seu escopo de atuação nos múltiplos espaços sociais. Desse direcionamento também decorreu a percepção de que determinados antecedentes epistemológicos para uma EF reflexiva já foram contemplados, por exemplo, nas abordagens humanista e desenvolvimentista que informam a área, em especial porque tais propostas partem de problemas prementes daqueles que vivem cotidianamente a EF, além de não denotarem estranhezas ideacionais com o curso cego de amplas mudanças pelo qual a vida se reinventou em escala global nas últimas três décadas. A propósito, é sobre algumas dessas mudanças sociais que na próxima seção tratarei, tentando localizar os potenciais impactos desse cenário na EF que se realiza.

3 MODERNIZAÇÃO REFLEXIVA E A REINVENÇÃO DOS ESTILOS DE VIDA

A TMR, resultante do trabalho colaborativo levado a cabo por Ulrich Beck e Anthony Giddens, foi formulada com um duplo desafio. Por um lado, responder às perguntas deixadas em aberto pelas diferentes perspectivas teóricas pós-modernas que se assemelham mais a uma espécie de diagnose parcial ou, nos termos de Beck (2003), a um “meio-diagnóstico” que sugere o esgotamento do quadro epistemológico-social moderno, mas não restitui às “causas”, os “comos” e os “por quês” de tal esgotamento. Por outro lado, a TMR questiona o devido alcance das categorias explicativas gestadas no quadro das teorizações clássicas ou mesmo contemporâneas tecidas em referência à primeira modernidade para restituir as dinâmicas da configuração social relativamente renovada que emergiu na segunda modernidade.

De acordo com Beck (2003BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. São Paulo: Editora da Unesp, 2003.), as sociedades da primeira modernidade se definiam e se organizavam no contêiner do Estado Nacional, nas dimensões das lutas de classe e das grandes formações coletivas, no ordenamento normativo e hierárquico da família nuclear, em uma clara distinção entre sociedade e natureza, além de se caracterizarem como sociedades do pleno emprego, uma vez que a participação na democracia se construía a partir da inserção dos indivíduos no trabalho produtivo. Na segunda modernidade, todos esses fundamentos foram abalados e revistos no conjunto de transformações que integram a etapa reflexiva da modernização e através da qual, em linhas gerais, a modernidade se confronta com ela mesma e toma rumo alternativo que não foi previsto a partir de um cálculo de rota original, mas que tampouco foi traçado aleatoriamente e no vácuo.

Esse novo estágio social, fruto da autotransformação não só das instituições sociais, como também das identidades e das relações íntimas, segundo Giddens (2012GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, Ulrich et al. (Orgs). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. p. 89-166.) é marcado pela destradicionalização e individualização. Ambas as dimensões são relacionais, uma vez que é no contexto de modernização reflexiva que o indivíduo, de fato, se libera das estruturas coercitivas tradicionais, não evidentemente por ato solipsista e emancipador, mas porque as dinâmicas de “autorrisco fabricadas” (BECK, 2011BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011.), decorrentes da “socialização da natureza” e da reflexividade social, impõem aos indivíduos a necessidade de constituírem um “projeto de vida biográfico” pautado em decisões sobre o que ser e como agir (GIDDENS, 2001GIDDENS, Anthony. Em defesa da Sociologia: ensaios, interpretações e tréplicas. São Paulo: Editora da Unesp, 2001.).

Em uma ordem social destradicionalizada, abre-se então um espaço de manobras em que o indivíduo emerge como biógrafo de sua vida, condição que, por conseguinte, não significa assumir que a individualização seja forma deliberada de emancipação, liberdade, egoísmo, atomismo ou isolamento social. Ao contrário então do que essas leituras sugerem, a dinâmica de individualização desvelada nos trabalhos de Beck e Giddens não tem conotação valorativa e, em última instância, significa que na modernidade radicalizada “[...] se entra numa dinâmica institucional endereçada ao indivíduo, não ao grupo” (BECK, 2003BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. São Paulo: Editora da Unesp, 2003., p. 69). Por essa razão também é que a individualização e a reflexividade indiscriminada da segunda modernidade são diferentes da individualização e reflexão presentes na primeira modernidade, uma vez que as segundas se desenvolviam no seio das chamadas unidades sociais de sobrevivência, de forma dependente à classe, família, religião, etc. e por isso com um sentimento de segurança muito maior, ao passo que as primeiras remetem a um contrato social em que os indivíduos, para o restabelecimento de suas seguranças ontológicas, são forçados a tomarem decisões em um contexto permeado por dúvidas, incertezas e riscos.

Disso decorre o entendimento de que o crescente processo de individualização, ao arremessar os indivíduos a um universo múltiplo de estilos de vida e possibilidades de existência no qual devem tomar parte no sentido de construírem reflexivamente suas biografias, pressupõe um alto grau de coerção social representada na emergência da sociedade mundial de risco, evidenciando, portanto, que “[...] o microcosmo da vida pessoal está inter-relacionado com o macrocosmo dos problemas globais, terrivelmente insolúveis” (BECK, 2012BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: BECK, Ulrich et al. (Orgs). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. p. 11-87., p. 78). Em outros termos, o cenário de risco da modernidade tardia com todos seus efeitos colaterais indesejados se espraia para múltiplas direções sociais e ninguém lhe escapa, sendo, em um momento ou outro, confrontado e/ou afetado por ele.

Depreende-se então dessa dinâmica de modernização reflexiva, a necessidade cada vez mais premente de os indivíduos produzirem “soluções biográficas para contradições sistêmicas” (BAUMAN, 2008BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.). Esse tipo de enfrentamento, por sua vez, remete aos processos relacionais de autoconfrontação e autotransformação da modernidade, a partir de uma lógica que se fez refletir nos domínios da vida privada e pública, reorganizando, redefinindo e, talvez mesmo, até dissolvendo essa polarização a partir de três condições principais e, muito provavelmente, iniciais de afirmação da atividade alternativa no esforço de ruptura com a racionalidade especializada, quais sejam: “[...] a transição da cientificação simples para a reflexiva, a questão ecológica e a penetração das orientações feministas nas várias profissões e campos da atividade ocupacional” (BECK, 2012BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: BECK, Ulrich et al. (Orgs). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. p. 11-87., p. 82). Trata-se, portanto, de um conjunto de relações que mobilizam agentes e instituições sob o pano de fundo de uma reflexividade institucional que responde a riscos e tanto modela os indivíduos quanto também é utilizada por estes para remodelarem contextos de ação locais e as instituições-motor da modernidade.

Em suma, esse conjunto de aspectos brevemente descritos e articulados dá uma ideia de que a TMR consiste em um quadro teórico atento, sobretudo, às forças gerais que movem o globo, sem, todavia, constituir um corpus analítico que desconsidera os alternativos pontos de contato social com a reflexividade da modernidade - a exemplo da estrutura de desigualdade entre o centro e a periferia do capitalismo e entre as classes sociais na dialética de distribuição e consumo dos riscos globais -, potencializando então a abertura de agendas de pesquisas de caráter comparativo, orientadas por dimensões transnacionais, respaldadas no cosmopolitismo metodológico e a serem replicadas nos mais diferentes campos do saber.

É no lastro dessa agenda teórica que questões sobre mudança social podem ser somadas à área de EF com vistas a imputar reflexões alternativas à dinâmica de renovação da teoria pedagógica da área. Nesse sentido, poder-se-ia inicialmente indagar quais seriam os correlativos das mudanças diagnosticadas por Beck e Giddens em relação à reflexividade institucional nos diferentes contextos em que a EF está inserida. Que implicações de natureza epistemológica adviriam sobre a área ao se assumir a reconfiguração do estatuto do corpo e do movimento humano na modernidade reflexiva? Quais os impactos científicos de compartilhar de uma concepção de estruturas sociais que não somente constrangem e inibem os indivíduos, mas também autorizam e permitem? Supondo-se, além disso, que a destradicionalização e a individualização tenham encorajado outra hierarquia e ética das práticas corporais, o que isso representaria em termos epistemológicos e pedagógicos para a EF?

Para lançar luz sobre essas questões, é importante imediatamente lembrar que o corpo na condição de entidade indivisível do eu se tornou alvo de investimento reflexivo por parte dos agentes. De acordo com Giddens: “Todas as culturas têm sido sistemas de medicina e regimes de treinamento corporal. Mas na era moderna o corpo e seus processos fisiológicos têm sido muito mais profundamente invadidos que antes” (GIDDENS, 2012GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, Ulrich et al. (Orgs). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Unesp, 2012. p. 89-166., p. 123). Essa invasão do corpo pelos sistemas peritos, ao contrário do que se pensa, tem pouca relação com a dominação abstraída do aspecto coercitivo da estrutura, e uma relação muito mais intensa com a dimensão criadora da estrutura, expressa, entre outras coisas, no fato de que a ciência, em especial na etapa reflexiva da modernização, se torna difusa e permeia todos os espaços.

Vale ressaltar que a EF, embora não seja a rigor uma ciência básica, mas um campo no qual se desenvolve atividade científica (BRACHT, 2003BRACHT, Valter. Educação Física e ciência: cenas de um casamento (in)feliz. Ijuí: Ed. Unijuí, 2003.; SOUZA; MARCHI JÚNIOR, 2011SOUZA, Juliano de; MARCHI JÚNIOR, Wanderley. Por uma sociologia da produção científica no campo acadêmico da Educação Física no Brasil. Motriz, v. 17, n. 2, p. 349-360, abr./jun. 2011.), está inserida nessa dinâmica institucional da reflexividade. A produção de um saber-fazer corporal materializada em manuais, livros, artigos, revistas, filmes e outras vias comunicativas abertas pela sociedade da informação tem permitido aos indivíduos construírem suas “biografias de movimento”. Oportuno ressaltar que o que está em tela não é um saber que aprisiona ou emancipa, mas um conhecimento que está disponível aos indivíduos no momento em que eles, mais que nunca, precisam tomar suas decisões, elaborarem suas narrativas, ingressarem na dinâmica reflexiva da modernização.

Insisto: não se trata de saber assimilado passivamente, mas de um saber disponível que é experimentado, testado, medido, confrontado, comparado, reelaborado e abandonado especialmente quando, na perspectiva do ator leigo, esse conhecimento não satisfaz mais suas expectativas e não se enquadra mais coerentemente ao projeto de construção da “narrativa reflexiva do eu”. Tome-se como um dos tantos exemplos possíveis, o trekking, a atividade física mais praticada no país (BRASIL, 2017). É uma prática endereçada ao indivíduo e através da qual eles integram seus corpos nas decisões sobre estilos de vida. Associada ao trekking está toda uma ciência da atividade física e nutricional que extrapolou os muros da cidadela acadêmica. Esse conhecimento se traduz na reorganização do tempo e das finanças, refletindo então em decisões cruciais sobre dieta, indumentária, recorrência ou não aos serviços especializados de profissionais da EF, da Nutrição, da Fisioterapia, etc., sem falar da partilha de experiências que se dão entre os praticantes de trekking a partir de blogs especializados e plataformas de relacionamento como Facebook ou Instagram.

Ademais, sob esse contexto de múltiplas possibilidades abertas, o indivíduo procura acumular conhecimentos sobre os lugares mais interessantes para caminhar, sobre o tempo de caminhada que seria mais indicado aos seus objetivos, sobre as vestimentas adequadas para tal. As questões da ordem no domínio dessa atividade passam a ser, dentre outras possíveis: que ritmo de caminhada adotar? É benéfico caminhar em jejum? O que comer ou não comer após uma caminhada no parque? O quanto se hidratar? Por conseguinte, indagações como as exemplificadas, ao serem formuladas em termos científicos, são dotadas de um conteúdo social que lhes confere estatuto e potencial de confiabilidade. Acontece que, no contexto de reflexividade indiscriminada, esse conhecimento se torna difuso e, por via de mediadores culturais, retorna às pessoas comuns que o integram, ao menos em parte, ao léxico que mobilizam não só para explicar, mas também para atribuir sentido e margem de segurança ao que fazem. Há, além disso, um fluxo ininterrupto do conhecimento, na medida em que enquanto essas pessoas estão confrontando e fazendo uso de tais informações, outras talvez muito mais precisas ou imprecisas podem estar surgindo e se tornando disponíveis.

Deste modo, o trekking como prática social individualizada distribuída massivamente na sociedade de risco em virtude da constituição não só de um mercado legítimo que organiza a prática, mas, acima de tudo, da expansão progressiva de uma reflexividade institucional - uma coisa não exclui a outra -, aponta para uma dinâmica que pode ser lida por outras lentes teóricas no campo da EF. Nesse sentido, o trabalho que os atores reflexivos fazem sobre os seus corpos a partir de atividades físicas como trekking, corridas de rua, slackline, ciclismo, crossfit, musculação ou ainda por meio de terapias, dietas, tratamentos estéticos, cirurgias, recursos ergogênicos, etc. já não se permite explicar devidamente por modelos teóricos que situam o movimento de construção de suas biografias como dialética negativa e opressora, isto é, como se as pessoas fossem, para usar os termos de Beck (2002BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo XXI de España, 2002., p. 233), “[...] meros engrenajes de la máquina gigantesca de la racionalidad tecnocrática y burocrática”.

Ao admitir-se, portanto, com a TMR que os agentes sociais, por um lado, são cada vez mais forçados à libertação das estruturas tradicionais para tomarem decisões na construção de seus estilos de vida - e é a isso que a tese da individualização remete - e que essa lógica, por outro lado, também se faz distribuir na área de EF por meio da expansão de uma reflexividade social que ela mesma ajudou a constituir, há então que apontar qual seria o papel dos profissionais em EF frente a esse cenário. De forma preliminar, me arrisco a dizer que o raio de ação do bacharel em EF consiste em planejar, organizar, dirigir e avaliar, com base em conhecimentos científicos e em orientações pedagógicas, programas de EF e esportes nos múltiplos espaços sociais extraescolares e nos quais os indivíduos procuram construir seus estilos de vida pelo se-movimentar. Por sua vez, o licenciado em EF, ainda que na prática possa se valer desses mesmos artefatos e ações para atuar nas escolas, precisa pôr estes para funcionar como conjunto sistemático e articulado de conhecimentos “do”, “pelo” e “sobre” o se-movimentar, estimulando os escolares a fazerem uso de tais saberes em prol deles próprios a partir de uma relação prazerosa, ampla, durável e, ao mesmo tempo, respeitosa aos demais.

As implicações e ganhos desse redirecionamento para uma EF reflexiva orientada pela realidade, mas que ainda assim prospecte horizontes para a profissão e para aqueles que dela se beneficiam a partir da preconização daquilo que Giddens (1996GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita: o futuro da política radical. São Paulo: Editora da UNESP, 1996.) denominou de “utopia realista”, isto é, passível de ser realizada, são múltiplos. Não há espaço aqui para encarar essa discussão em todos seus meandros, de modo que o que procuro fazer na sequência, à maneira de fechamento do argumento, é tentar pontuar que se esse campo de ação que estou sugerindo para a EF sob o pano de fundo da TMR for procedente, então há razões suficientes para se assumir um discurso unificador de identidade epistemológica de área a partir do objeto historicamente construído pelos sistemas peritos - e, ao que indica, aceito pelos atores leigos - para definir a especificidade da profissão. Passo a dar algumas indicações nesse sentido.

4 ALGUMAS RELAÇÕES PRELIMINARES ENTRE MOVIMENTO HUMANO E “BIOGRAFIA DE MOVIMENTO”

A redução da distância entre a EF que se pensa e a EF que se realiza continua sendo um dos principais desafios para área. Esse diagnóstico, já presente em Betti (1996BETTI, Mauro. Por uma teoria da prática. Motus Corporis, v. 3, n.2, p. 73-127, dez. 1996.), aponta para a necessidade de se constituir uma “teoria da prática” da EF sem ressentimentos, sem dogmatismos, sem teleologias autoritárias, sem irrealismos. Uma “virada reflexiva”, ainda inarticulada teoricamente, mas que vem ganhando força, unindo vozes e recuperando alguns movimentos teóricos “esquecidos” no campo da EF, está de pleno acordo com isso e reabilita, portanto, de forma crítica, o estatuto do conhecimento dos atores leigos da modernidade reflexiva - conhecimento este constituído pela ação de sistemas peritos e pelas estruturas de informação e comunicação - para fundamentar-se epistemologicamente como abordagem, orientada para a realidade complexa que desde sempre envolveu e envolve o se-movimentar, mas que, não obstante esse elemento invariante, apresenta particularidades atuais que têm sido sistematicamente negadas ou indevidamente tratadas em muitas frentes no campo da EF.

Admitindo então o movimento humano como forma prototípica de conhecimento, de reconhecimento e de estar no mundo, na verdade, “um aspecto crítico da vida” (Tani et al., 1988TANI, Go et al. Educação Física Escolar: fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista. São Paulo: EPU, 1988.) e que permitiu aos indivíduos e grupos construírem praticamente tudo o que existe, inclusive as ciências e práticas pedagógicas que lhe reivindicam como objeto próprio de suas expertise, o passo seguinte, imprescindível a uma abordagem da EF que se apeteça reflexiva, é identificar se, por ventura, não está acontecendo ou se já não aconteceu uma reconfiguração do objeto da EF em virtude da rotinização e apropriação, por parte dos atores leigos, daqueles conceitos, categorias, produtos e processos produzidos pelos peritos da área. Minha hipótese de trabalho, informada pela teoria da estruturação de Giddens (2009GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2009.), e que ainda requer uma averiguação empírica sistemática, acena assertivamente, mas com reservas, para este cenário.

Há que se reconhecer, portanto, a partir de uma tentativa de interlocução crítica com a literatura acadêmica especializada, que se, por um lado, a teoria pedagógica da EF presa no passado e orientada para a grande transformação social tem subestimado a reconfiguração de seu próprio objeto, por outro lado, a teoria pedagógica da EF “liberta” do passado admite que o objeto que lhe é caro tem sido motivo de mudanças, mas as origens dessas mudanças são, no limite, misteriosas e centradas em uma noção questionável de cultura porque muitas vezes é empregada de forma atávica, idealista, essencialista ou reificada. Ademais, a sensação que se tem dos problemas teóricos colocados por algumas dessas abordagens é que sempre está a faltar algo no movimento humano: criticidade, cultura, reflexão, política, potencial criativo... os nomes são muitos, a lista é extensa.

No entanto, ainda que tudo isso possa ser verdade, pressupondo que esse indivíduo passivo que se movimenta algum dia tenha existido, suspeito que os esforços de teorização normativa que não só identificam “carências socioculturais” no objeto da EF como também apontam a necessidade de reorientá-lo com o intuito de suprir, ao menos no plano conceitual, essas supostas “carências”, não deram conta de constituir um novo objeto que fosse fim e razão de ser da EF enquanto profissão e prática social. Evidente que é um ato legítimo e importante pesquisar os significantes sociais e culturais do movimento humano e desenvolvê-los a rigor, mas o desejo de impô-los na condição de norte pedagógico alternativo da EF, em resposta a uma teoria positiva que tem informado a área, trata-se muito mais de uma arma na luta por demarcação territorial, por prestígio e poder no campo acadêmico, do que algo que possua correspondência forte com a realidade social (daí sua dificuldade em realizar-se).

Por conseguinte, se essa crítica se aplica, penso então que é epistemologicamente previsível e razoável que uma das contribuições dadas por uma abordagem reflexiva à teoria pedagógica da EF consista em recuar teoricamente um ou alguns passos (visando a ganhos epistemológicos e pedagógicos subsequentes) e assumir o movimento humano como objeto insofismável da área, escopo de seu esforço científico e de sua realização social:

O movimento é reconhecido como sendo o objeto de estudo e aplicação da Educação Física. Seja qual for a área de atuação, a Educação Física trabalha com o movimento e [...] é inegável a sua contribuição ao desenvolvimento global do ser humano, desde que estes trabalhos sejam adequados. Da mesma forma, é também inegável a sua responsabilidade perante a comunidade, no sentido de assumir que os objetivos propostos serão realmente alcançados. Frequentemente, observa-se o estabelecimento de inúmeros objetivos para a Educação Física, muitos provavelmente inatingíveis. O centro das preocupações e interesses da Educação Física está no movimento humano (TANI et al., 1988TANI, Go et al. Educação Física Escolar: fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista. São Paulo: EPU, 1988., p. 13, grifos meus).

Evidente que o objeto da EF não é estático e imutável, mas tampouco penso que tais modificações pelas quais constantemente passa em diferentes frentes relacionais e ritmos sejam sugestivas da necessidade de enquadramentos conceituais supostamente mais completos e que abarcariam melhor a especificidade do se-movimentar. Não que esforços dessa natureza não sejam possíveis e louváveis, mas, nesse caso, requereriam uma precisão conceitual que muitas vezes se perde, em virtude, sobretudo, da penetração de crenças de ordem extracientífica na atividade científica (ELIAS, 2011ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia. Lisboa: Edições 70, 2011.). Nesse sentido, penso que o termo movimento humano, de uma simplicidade, mas extrema precisão, daria conta de garantir e abranger a especificidade da EF, uma vez que todas as ações que os profissionais da área vêm desenvolvendo, ao longo da história, nos diferentes espaços de intervenção têm como centro de seus esforços pedagógicos o movimento humano ou, em outras palavras, os indivíduos que se movimentam. Ao assumir, no entanto, essa conotação para se reportar ao seu objeto, uma EF reflexiva não minimizaria ou se esqueceria das dimensões culturais e sociais do se-movimentar.

Por sinal, suspeito eu que onde há pessoas se movimentando, há também produção de cultura. Ela é endêmica ao movimento humano, além de não haver evidências de que agregar ou não o correlativo cultura à designação do objeto da área encoraje ou desencoraje uma prática pedagógica em que as dimensões culturais sejam, de fato, tematizadas, a não ser que o que esteja em jogo seja a proposição de uma “cultura de movimento” com feições teleológica e judicativa afirmadas com o objetivo de apresentar aos indivíduos que frequentam aulas ou programas de EF e esportes uma série de significações idealistas e normativas “do” e “sobre” o se-movimentar, em estratégia diferente de defender e ensinar que há padrões globais de movimento humano culturalmente orientados, mas que ainda assim serão apropriados, significados e ressignificados de forma muito particular e inventiva pelos agentes como parte do processo de construção de suas “biografias de movimento”.

A propósito, com a noção de “biografia de movimento” não ambiciono produzir mais um ou um novo objeto para EF brasileira. Longe disso. A pretensão é apenas apresentar um conceito que entendo ser capaz de apreender de forma realista as significações sociais cada vez mais reflexivas do se-movimentar. A ideia tampouco consiste em lançar no mercado acadêmico mais um discurso da EF a partir de uma tentativa de interlocução entre uma ciência básica (Sociologia) e a possível ciência aplicada do movimento humano (EF), mas, sim, propor um conhecimento mais seguro sobre a temática em tela, sem perder de vista o que esse saber pode representar para o desenvolvimento de uma abordagem da EF que tenha como meta possibilitar formas mais diversificadas, prazerosas e pedagógicas dos seres humanos viverem seus corpos e se movimentarem. Em outras palavras, o objeto da EF continuaria sendo o movimento humano, e a noção de “biografia de movimento”, por seu turno, apenas cumpriria a função propedêutica e heurística de categoria êmica no programa de pesquisa reflexivo aqui sugerido para tratar das dimensões biopsicossocioculturais do se-movimentar.

Em linhas gerais, com a noção de “biografia de movimento”, procuro me referir, em diálogo não só com os preceitos da TMR, mas também com aspectos teóricos já tratados nas abordagens humanista, desenvolvimentista, construtivista e crítico-emancipatória da EF, ao fato de que a escrita da vida dos indivíduos, como traço indelével da existência dos seres humanos, passa pelo se-movimentar. Note-se que esse se-movimentar não se constrói e se orienta apenas por dimensões biológicas, psicológicas ou sociais. Tampouco faz sentido, com base na ciência aplicada do movimento humano, defender uma hierarquização entre essas dimensões ou outras. O que talvez seja mais apropriado a sustentar, do ponto de vista das construções teóricas aqui acionadas e apreciadas a partir de uma atitude epistemológica revisionista, é que existem cursos de ação e linhas desenvolvimentistas que os indivíduos em movimento e pelo movimento irão seguramente trilhar ao longo de suas vidas (MANOEL, 2008MANOEL, Edison de Jesus. A Abordagem Desenvolvimentista da Educação Física Escolar -20 anos: uma visão pessoal. Revista da Educação Física da UEM, v. 19, n. 4, p. 473-488, out./dez. 2008.). Soma-se a isso a existência de aspectos variantes e invariantes no processo de construção das “biografias de movimento”, podendo estes serem estudados tanto da perspectiva do ator individualizado quanto do grupo.

Como última observação, destaco que, no que se refere ao domínio investigativo dos aspectos biopsicossocioculturais do movimento humano, a potencialidade empírico-teórica da noção de “biografia de movimento” não se limita ao contrato social da segunda modernidade, mas também abrange a solidariedade social em voga na primeira modernidade. A diferença substancial é que se na primeira modernidade as “biografias de movimento” eram construídas e vividas muito mais como destinos coletivos, em uma lógica passível de ser apreendida a partir da noção bourdieusiana de habitus de classe (BOURDIEU, 2008BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008.), por seu turno, na segunda modernidade - marcada pela diversificação das práticas sociais a ponto, inclusive, de novas hierarquias de oferta, distribuição e apropriação reflexiva das atividades corporais e dos esportes terem emergido -, as formas de movimentar-se são tendencialmente liberadas dos contextos de ação tradicionais e das verdades formulares da tradição. Sob esse pano de fundo estrutural e cognitivo, as “biografias de movimento” - e o mercado dos estilos de vida que as suportam - são reinventadas na modernidade reflexiva e, dessa diagnose social, outros desafios se abrem à teoria pedagógica da EF no Brasil e no mundo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seguir as pistas de novos conceitos, que já se mostram em meio aos cacos dos antigos, é empreendimento difícil. Para uns, soa a ‘mudança sistêmica’ e cai na área turva de competência dos serviços de inteligência. Outros se encapsularam em convicções irrevogáveis e, diante de uma fidelidade aos princípios sectários sustentada mesmo contra o impulso mais íntimo - e ela pode ter muitos nomes: marxismo, feminismo, pensamento quantitativo, especialização -, começam agora a se bater contra tudo aquilo que lembra o cheiro da dissidência extraviada.

Ulrich Beck, 2011BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011., p. 14-15.

Entre teoria positiva e teoria normativa preponderantes na área de EF, mas não só nela, há caminhos alternativos a serem traçados, especialmente com o intuito de possibilitar novos direcionamentos teóricos ao processo de formação inicial que se procura oferecer àqueles que a elegem como futura profissão. Ao expor alguns dos problemas e hipóteses que compõem o programa de pesquisa em pauta neste texto, procurei reunir e articular argumentos em favor da compreensão de que uma abordagem reflexiva da EF pode cumprir tal desígnio. Em outras palavras, os esforços aqui mobilizados se deram no sentido de apresentar fundamentos iniciais para estruturação de uma abordagem da EF que pretensamente possa atender aos anseios reais de professores e alunos (em sentido amplo) envolvidos no campo de ação prática.

Os principais pontos aqui delineados na exposição deste programa investigativo, não necessariamente na ordem em que apareceram no texto, podem ser assim sintetizados:

  1. No centro de uma abordagem pedagógica da EF informada pela reflexividade social se encontra a dimensão do “como” se-movimentar. Se as abordagens positivas ao tratarem tal dimensão o fizeram subtraindo-lhe de um “o que” movimentar (condicionantes biológicos e biodinâmicos da ação motora) e se, em resposta, as abordagens normativas preconizaram um “como” se-movimentar abstraindo-lhe de um “por quê” se-movimentar (significantes sociais e culturais da ação motora), uma abordagem reflexiva procura posição intermediária entre as duas frentes, tendo como eixo organizador a dimensão procedimental do “como”.

  2. Abordagem pedagógica não está sendo tratada nesse programa de pesquisa como equivalente de teoria pedagógica, afinal esta última é mais ampla e corresponde a um nível imediatamente superior na lógica de construção do conhecimento sistemático que pretende ordenar a prática. Nesse sentido, é no mínimo discutível a ideia de que tenhamos constituídas várias teorias pedagógicas da EF, cada uma delas operando a partir de um objeto autônomo e próprio. Reticente a tal posicionamento, o programa de pesquisa aqui exposto entende que as abordagens pedagógicas da EF lançaram olhares parciais para o objeto da área, de modo que não seria descabido o esforço de apreender e mesmo articular esses diferentes olhares em suas afinidades e complementaridades constitutivas de uma única, porém ampla, teoria.

  3. O estatuto reflexivo subjacente ao programa de pesquisa em tela é garantido pelo fato de que uma abordagem reflexiva da EF se pensa enquanto se faz - reflexão sobre a reflexão -, além de ser estruturada com e contra aquilo que já foi teoricamente pensado na área (reflexividade epistêmica). Mas esse veio de reflexividade não se esgota aí e extrapola os limites do campo científico. É Sociologia da Ciência sendo feita, mas também Sociologia do Conhecimento. Nesse último domínio, inclusive, é que se assenta um dos elementos de novidade do programa exposto, a saber, a reabilitação do estatuto do conhecimento dos atores leigos da modernidade reflexiva, observando que esse saber social, em medida significativa, foi informado e formado em relação íntima e reflexiva com a ação dos sistemas peritos.

  4. As trajetórias de vida dos indivíduos não só se constroem como se reconstroem pelo movimento. Programas de EF e esportes são expressão histórica e resultado dessa tendência geral. Nisso, inclusive, consiste a defesa de que o objeto da EF tem bases ontológicas, afinal, ele próprio foi determinante para a existência e emergência desta profissão, com diferentes nomenclaturas e sob a influência de experiências pedagógicas relativamente particulares, é verdade, mas ainda assim com elementos em comum. O contexto da modernização reflexiva é favorável para restabelecer essas pontes epistêmicas, desde que estejamos dispostos.

  5. É função precípua da EF contribuir para que os indivíduos construam “biografias de movimento” suficientemente amplas, prazerosas, criativas, autônomas, colaborativas, a partir de um saber-fazer durável, significativo e reflexivo para suas vidas. Sob essa perspectiva, licenciados ou bacharéis não estariam a cultivar terrenos tão distintos.

  6. Uma potencial ciência aplicada do movimento humano ganharia em termos de força teórica e consistência interna se recuasse dos serviços de subserviência epistemológica que tem prestado a outras áreas, produzindo conhecimento mais do interesse delas do que nosso. Não se pode perder de vista que a investigação rigorosa dos aspectos biopsicossocioculturais do movimento humano pode trazer contribuições inovadoras à teoria pedagógica da EF.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2017
  • Aceito
    27 Jul 2018
  • Publicado
    01 Mar 2019
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