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PRECÁRIOS NO TRABALHO E NO LAZER: UM ESTUDO SOBRE OS PROFESSORES DA REDE ESTADUAL PAULISTA

PRECARIOUS AT WORK AND LEISURE: A STUDY ON SÃO PAULO PUBLIC SCHOOL TEACHERS

PRECARIOS EN EL TRABAJO Y EN EL OCIO: UN ESTUDIO SOBRE LOS PROFESORES DE ESCUELAS PÚBLICAS DE SÃO PAULO

Resumo

Esta pesquisa teve como objetivo geral investigar as manifestações do fenômeno lazer entre trabalhadores docentes que integram o quadro funcional da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Ao mesmo tempo, como objetivo específico, buscou identificar de que forma as oscilações relativas às distintas relações de trabalho, sobretudo a evidente condição de precariedade, influenciam o lazer da categoria em questão. É um estudo de caso, realizado com 29 trabalhadores docentes que atuam em escolas dessa rede de ensino. Utilizou-se da análise documental de legislações que versam sobre o trabalho docente, da aplicação do questionário sobre os usos do tempo e da realização de entrevistas semiestruturadas. Foi constatado que parte do tempo e espaço de lazer dos professores é permeada pelo trabalho. Ademais, foi possível identificar que condições mais precárias de trabalho tendem a refletir também em um lazer precário.

Palavras chave:
Atividade de lazer; Condições de trabalho; Professores escolares

Abstract

The general goal of this study was to investigate leisure activities among teachers employed by the São Paulo State’s Department of Education. At the same time, its specific goal was to find out how oscillations related to various employment relations, especially the clearly precarious working condition, influence their leisure. It is a case study conducted with 29 teachers from São Paulo public’s schools. It conducted documentary analysis of laws on teaching work; it applied a questionnaire on use of time; and it conducted semi-structured interviews. It found that part of teachers’ leisure time and space is pervaded by work. In addition, it was possible to see that more precarious working conditions tend to result in precarious leisure.

Keywords:
Leisure activities; Working Conditions; School Teachers

Resumen

Esta investigación tuvo como objetivo general investigar las manifestaciones del fenómeno ocio entre trabajadores docentes que integran el cuadro funcional de la Secretaría de Educación del Estado de São Paulo. Al mismo tiempo, como objetivo específico, buscó identificar de qué forma las oscilaciones relativas a las distintas relaciones de trabajo, principalmente la evidente condición de precariedad, influencian el ocio de la categoría investigada. Se trata de un estudio de caso, realizado con 29 trabajadores docentes que actúan en escuelas públicas del Estado de São Paulo. Se utilizó el análisis documental de legislaciones que versan sobre el trabajo docente, la aplicación del cuestionario sobre los usos del tiempo y la realización de entrevistas semiestructuradas. Se constató que parte del tiempo y espacio de ocio de los profesores está permeado por el trabajo. Además, fue posible identificar que condiciones más precarias de trabajo tienden a reflejar también un ocio precario..

Palabras clave:
Actividades recreativas; Condiciones de Trabajo; Maestros

1 INTRODUÇÃO

Ao se investigar o lazer de qualquer categoria profissional, é oportuno o direcionamento do olhar também para o tempo de trabalho, sobretudo, para as condições materiais às quais está submetida a categoria em questão. Corroborando esse raciocínio, também é pertinente discutir as características que o mundo do trabalho assume na atualidade, sua organização e consequências para as relações sociais. Afinal, segundo Padilha (2012PADILHA, Valquíria. Shopping center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Boitempo, 2012.), a história do lazer está associada à história do trabalho, de modo que trabalho e lazer formam um sistema em que o movimento de um afeta o movimento do outro.

A escolha por pesquisar o lazer entre professores que atuam no sistema público de educação do Estado São Paulo diz respeito às características pelas quais se configurou o processo de trabalho nessa rede de ensino. Nesse sistema, segundo Souza (2013SOUZA, Aparecida Neri de. Professores, modernização e precarização. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 217-227.), as reformas educacionais, implementadas a partir da década de 1990, objetivaram diversas adequações às políticas neoliberais. Uma das implicações imediatas desse processo foi a precarização e a intensificação1 1 Dal Rosso (2008, p.23) chama de intensificação do trabalho “os processos de quaisquer naturezas que resultam em um maior dispêndio das capacidades físicas, cognitivas e emotivas do trabalhador com o objetivo de elevar quantitativamente ou melhorar qualitativamente os resultados. Em síntese, mais trabalho”. do trabalho docente, que se manifesta, dentre outros elementos, na expressiva quantidade de professores com regimes de trabalho instáveis ou intermitentes em atuação.

A precarização do trabalho é entendida por Castel (1998CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.) como um elemento central na dinâmica de desenvolvimento do capitalismo atual, que, além de estar diretamente relacionada a um processo mais amplo de precarização social, coloca em xeque os pressupostos da “sociedade salarial” e multiplica as formas atípicas de trabalho. Na realidade brasileira, Druck (2013DRUCK, Graça. A precarização social do trabalho no Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 55-74.) aponta que o conteúdo de uma (nova)2 2 Para Druck (2013), a precarização do trabalho no Brasil esteve fortemente presente desde a transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado. Não obstante, considera que há uma nova precarização social do trabalho, pois ela foi reconfigurada e ampliada, levando a uma regressão social em todas as suas dimensões. precarização do trabalho é dado pela condição de instabilidade, insegurança e volatilidade, que fragiliza os vínculos e impõe perdas dos mais diferentes tipos, tanto na esfera do emprego como na vida de todos que vivem do trabalho. Caracteriza-se, também, como um processo de precarização e intensificação do trabalho que atinge a todos os trabalhadores indiscriminadamente, deixando de ser uma condição provisória para se tornar um traço permanente.

Nesse cenário, a condição de precariedade no trabalho não se restringe à esfera objetiva. Segundo Linhart (2014LINHART, Danièle. Modernização e precarização da vida no trabalho. In: ANTUNES, Ricardo. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo, 2014. p.45-54.) é possível avançar cada vez mais a ideia de uma precariedade subjetiva que, além de afetar os trabalhadores intermitentes, afeta também os trabalhadores com estabilidade empregatícia. Essa forma de precariedade emerge como um componente do trabalho moderno e pode ser compreendida como o sentimento de não dominar seu trabalho, de ter de se esforçar de maneira permanente para se adaptar e cumprir com os objetivos fixados. Como resultado se tem, frequentemente, o medo, a ansiedade e a sensação de insegurança, também chamada comodamente de estresse (LINHART, 2014LINHART, Danièle. Modernização e precarização da vida no trabalho. In: ANTUNES, Ricardo. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo, 2014. p.45-54.).

Não obstante esse cenário, segundo Hypolito (1991HYPOLITO, Álvaro Moreira. Processo de trabalho na escola: algumas categorias para análise. Teoria e educação, n. 4, p. 3-21, 1991.), a escola pública não está totalmente dominada pela lógica capitalista de produção e se constitui como um espaço contraditório, no qual as resistências, as acomodações, as submissões e os conflitos entre diferentes classes e grupos se evidenciam. Nesse sentido, os professores da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEESP) são interlocutores que possibilitam a apreensão da intercorrência do lazer na era da acumulação flexível3 3 Harvey (2002) aponta que a acumulação flexível é marcada pelo confronto com o modelo fordista de produção e se apoia em inovações tecnológicas e organizacionais, assim como na flexibilização dos processos de trabalho, dos mercados, produtos e padrões de consumo. , sendo possível encontrar nessa categoria profissional a coexistência de características que demonstram as diversas facetas do processo de trabalho em mutação.

Postos esses elementos, vale destacar as questões que orientaram a construção desta pesquisa: ao se considerar o atual processo de trabalho na escola, como se desenvolve o lazer dos professores da rede estadual paulista? As distintas condições e contratos de trabalho influenciam o lazer dos professores dessa rede de ensino?

O lazer é aqui compreendido como uma das exteriorizações humanas que ocorrem no tempo e espaço de não trabalho4 4 Entende-se que o tempo de não trabalho diz respeito ao período no qual os seres humanos não realizam o trabalho abstrato estranhado (MARX, 2004). Ou seja, o tempo em que os seres humanos não estranham sua força de trabalho a outrem. , constituído como parte integral do atual modelo de organização societal. Ademais, como aponta Mascarenhas (2003MASCARENHAS, Fernando. Lazer como prática da liberdade. Goiânia: Editora UFG, 2003., p.97), o lazer pode ser entendido como um “fenômeno tipicamente moderno, resultante das tensões entre capital e trabalho, que se materializa como um tempo e espaço de vivências lúdicas, lugar de organização da cultura, perpassado por relações de hegemonia”.

Desse modo, a presente pesquisa teve como objetivo geral investigar e apreender as manifestações do fenômeno lazer entre trabalhadores docentes que integram o quadro funcional da SEESP, tanto de professores com regimes estáveis de trabalho, como dos sem estabilidade empregatícia. Ao mesmo tempo, como objetivo específico, buscou identificar de que forma as oscilações concernentes às distintas relações de trabalho, sobretudo a evidente condição de precariedade, influenciam o lazer desses professores.

Para atingir tais objetivos, o texto está dividido, após o delineamento do percurso metodológico, em três seções. A primeira demonstra características do trabalho docente na SEESP, as condições de precariedade e as particularidades das distintas categorias funcionais. Na sequência, a segunda seção, ao adentrar nas vivências de lazer, discute a constatação de que parte desse fenômeno entre os professores pesquisados é tangenciada pela profissão. Por fim, a última seção, além de demonstrar como os elementos de precariedade do trabalho influenciam o lazer, delimita as características que as vivências de lazer assumem nas distintas formas de contratação docente existentes na rede estadual paulista.

2 PERCURSO METODOLÓGICO

Trata-se de um estudo de caso, baseado em uma abordagem qualitativa, que fez uso de entrevistas semiestruturadas, condicionadas à aplicação da técnica de pesquisa sobre os usos do tempo, e da análise de documentos e legislações que versam sobre o trabalho docente no estado de São Paulo.

Ao levar em conta as distintas realidades salariais, de trabalho e de contratação entre as carreiras docentes, foram selecionadas escolas de ensino fundamental ciclo II e ensino médio, ou seja, que tenham em seu quadro funcional os Professores de Ensino Básico II (PEBII), que atuam entre 6º ano do ensino fundamental e 3º ano do ensino médio. A pesquisa de campo foi realizada com trabalhadores docentes de diversas formações que ministram aulas em treze unidades escolares do município de Campinas, cinco vinculadas à Diretoria de Ensino (DE) Campinas Leste e oito à DE Campinas Oeste.

Por ser uma cidade de grandes dimensões, com variadas e complexas condições econômicas, políticas e sociais, a análise da realidade do trabalho docente em diferentes localidades desse município se constitui como um importante referencial para o estudo dessa categoria de professores no estado de São Paulo. Nessa perspectiva, a pesquisa abrangeu escolas das seguintes regiões de Campinas: distritos do Ouro Verde, Campo Grande, Nova Aparecida e Barão Geraldo, além das regiões Central e Sul.

A escolha das instituições escolares levou em conta o índice de cumprimento de metas (ICM)5 5 O ICM é calculado a partir do Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP) da escola e a meta estabelecida pela SEESP. do ano de 2014. A partir de tal índice foi elaborado um quadro com as instituições divididas em cinco faixas, sendo selecionadas, de maneira aleatória, ao menos duas de cada.

O número exato de entrevistas não foi estabelecido previamente, mas por meio do critério da saturação das entrevistas (MINAYO, 2009MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2009.). Desse modo, após a constatação da reincidência de informações e de elementos considerados suficientes para responder os questionamentos iniciais, foram feitas 29 entrevistas, 14 com docentes estáveis, 11 com docentes temporários e quatro com docentes eventuais. Dentre esses, 17 são do gênero feminino e 12 do gênero masculino6 6 As especificidades da discussão entre trabalho docente, lazer e as questões de gênero são tratadas em Silvestre e Amaral (2017). .

Após o envolvimento dos professores, a pesquisa foi organizada conforme o seguinte percurso: cada voluntário teve acesso a um diário sobre os usos do tempo, versão impressa ou online, por um período de quinze dias. Após o retorno, os diários foram sistematizados e a análise dos dados permitiu a elaboração, mediante roteiro prévio, de uma entrevista semiestruturada específica para cada trabalhador docente, almejando assim apreender em profundidade as diversas manifestações do lazer de cada um.

A análise dos usos do tempo7 7 No Brasil, esta técnica de pesquisa recebe o nome de “usos do tempo” (AGUIAR, 2010) ou “orçamento-tempo” (BRUSCHINI, 2006). Com a finalidade de padronização na escrita, utiliza-se a expressão “usos do tempo”. baseia-se na descrição das atividades desenvolvidas por uma população durante determinada parcela de tempo. Para esta pesquisa, os diários abarcaram o período de uma semana típica de trabalho mais o final de semana anterior ou subsequente. Nesses diários, os trabalhadores docentes descreveram sua rotina ao longo de 24 horas, em intervalos de 15 minutos, durante sete dias, indicando, caso desenvolvessem mais de uma atividade ao mesmo tempo, qual a prioritária no momento (AGUIAR, 2010AGUIAR, Neuma. Metodologias para o levantamento do uso do tempo na vida cotidiana no Brasil. Revista Econômica, v. 12, n. 1, p. 64-82, 2010.; BRUSCHINI, 2006BRUSCHINI, Cristina. Trabalho doméstico: inatividade econômica ou trabalho não-remunerado? Revista Brasileira de Estudos Populacionais, v. 23, n. 2, p. 331-353, jul./dez. 2006.).

Vale frisar que a realização deste estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa, e que tanto a aplicação dos questionários como as entrevistas semiestruturadas foram realizadas mediante apresentação e aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por parte dos sujeitos da pesquisa8 8 A aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética pode ser consultada pelo CAAE nº 44670315.1.0000.5404. .

3 CONTORNOS DO TRABALHO DOCENTE NA SEESP

Os trabalhadores docentes que compõem o sistema público de educação no Estado de São Paulo formam uma categoria profissional muito heterogênea, como era de se esperar, afinal, é uma das maiores redes de educação da América Latina, com cerca de duzentos mil professores (SÃO PAULO, 2017). Todavia, esses elementos de heterogeneidade não ocorrem simplesmente pela magnitude dessa rede de ensino, mas, sobretudo, pelas condições de precariedade objetiva e subjetiva relacionadas ao trabalho existentes na realidade escolar do Estado de São Paulo.

As condições de precariedade na SEESP foram aprofundadas a partir da última década do século XX. Para Venco e Rigolon (2014VENCO, Selma; RIGOLON, Walkiria. Trabalho docente e precariedade: contornos recentes da política educacional paulista. Comunicações, v. 21, n. 2, p. 41-52, jul./dez. 2014.), foi a partir de 1995, com o lançamento do Comunicado SE s/n. /95, que a educação no Estado de São Paulo passou a ter marcos acentuados de políticas neoliberais.

Baseada na disseminação da teoria do “capital humano”, o projeto neoliberal para a educação busca deslocar a responsabilidade do âmbito do Estado para os indivíduos, de modo que a lógica da polivalência, a mudança na concepção da educação de direito para um serviço, as privatizações, o corte de gastos públicos e a consequente diminuição de concursos públicos podem ser considerados a linha de frente dessas proposições (FRIGOTTO, 1995FRIGOTTO, Gaudêncio. A educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1995.; SOUZA, 2013SOUZA, Aparecida Neri de. Professores, modernização e precarização. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 217-227.).

Em consonância com a orientação neoliberal, a SEESP operacionalizou, a partir da segunda metade dos anos 2000, uma série de políticas que interferiram diretamente no trabalho docente. Dentre elas, vale destacar o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP), que consiste em uma avaliação externa aplicada pela SEESP aos alunos matriculados no 2º, 3º 5º, 7º e 9º anos do ensino fundamental e 3º ano do ensino médio. Tal avaliação se constitui como o elemento central para a composição de índices de desempenho escolar, para o ICM e para o sistema de bonificação de resultado (BR)9 9 Por meio da BR, o valor que o trabalhador docente pode receber, uma vez ao ano, é o equivalente ao cumprimento da meta de sua unidade escolar, podendo variar entre zero e 120% de sua remuneração mensal. .

Tais políticas intensificam e colaboram para tornar precária a relação de trabalho na rede estadual paulista (SOUZA, 2013SOUZA, Aparecida Neri de. Professores, modernização e precarização. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 217-227.; VENCO; RIGOLON 2014VENCO, Selma; RIGOLON, Walkiria. Trabalho docente e precariedade: contornos recentes da política educacional paulista. Comunicações, v. 21, n. 2, p. 41-52, jul./dez. 2014.). A política de bonificação de resultados, em um cenário de remuneração precária, além de responsabilizar o trabalhador docente por um pequeno abono salarial, produz uma série de pressões e incertezas.

Eu acho que, primeiro, não deveria ter bonificação, deveria ser integrado ao salário. Mas, é estranho, às vezes você acha que vai conseguir e não consegue. [...] eu sei que não depende só de mim, só da minha matéria, depende de outras matérias, mas eu acho isso curioso. Às vezes, você está até contando com o dinheiro. Já cheguei estar no outro dia no mercado com o cartão para sacar o dinheiro e não ter nada, nada, nem um centavo. Teve ano que eu recebi treze reais (Entrevista 17).

A precarização do trabalho docente na SEESP também pode ser notada por meio das distintas formas de contratação, que no momento assumem os seguintes contornos: os professores com estabilidade empregatícia, composto pelos efetivos (Categoria A) e pelos professores com estabilidade por força da lei (Categoria F); os temporários (Categoria O) e os eventuais (Categoria V) 10 10 A rede estadual paulista conta com aproximadamente 130 mil professores Categoria “A”, 44 mil professores na categoria “F” e 23 mil professores categoria “O”. O número de professores eventuais não é divulgado nos relatórios da SEESP, todavia, no mínimo três portarias para o exercício da função na condição de professor eventual estavam abertas em cada uma das escolas em que a pesquisa foi realizada. Desse modo, apesar da existência de outras categorias funcionais, os trabalhadores docentes se concentram, principalmente, nas quatro categorias demonstradas (SÃO PAULO, 2017). .

Os professores categoria “A” têm a entrada nos quadros do magistério a partir da aprovação em concurso público específico. Os professores estáveis categoria “F” são os admitidos nos termos de Lei nº 500/1974 e que estavam com vínculo ativo no dia 02/06/2007 (SÃO PAULO, 2007). Estes são tratados no mesmo bojo que os efetivos, pois, além da estabilidade empregatícia, gozam de grande parte dos direitos trabalhistas dos professores efetivos.

Por outro lado, os professores categoria “O” têm contrato de trabalho por tempo determinado, sendo que, após cadastro e classificação nas DEs, podem atribuir aulas/classes em unidades escolares que, pelos mais diferentes motivos, estejam com falta de professores. Os critérios de atribuição de aulas para os docentes temporários são regidos pela Lei Complementar 1.093 de 2009, com tempo de duração máximo de um ano, podendo ser renovado por mais um11 11 O interstício entre os contratos de trabalho para os professores temporários é determinado pelo artigo 6º dessa mesma lei: “É vedada, sob pena de nulidade, a contratação da mesma pessoa, com fundamento nesta lei complementar, ainda que para atividades diferentes, antes de decorridos 200 (duzentos) dias do término do contrato” (SÃO PAULO, 2009). Esse mecanismo ficou conhecido entre os professores por “duzentena”, entretanto, de acordo com relatos dos professores temporários, pela própria falta de professores estáveis, os critérios são dinâmicos e alterados com frequência. (SÃO PAULO, 2009).

Os professores categoria “V” não atribuem aulas e não estabelecem contrato de trabalho. Tais professores se cadastram nas DEs e fazem “plantões” nas unidades escolares para que, na ausência do professor responsável por determinada disciplina ou sala, possam substituí-lo.

Apesar das diferentes formas de trabalho e de ingresso na rede, o elemento que aproxima os professores categorias “O” e “V” é a falta de estabilidade empregatícia. Tal característica impossibilita a existência de um plano de carreira e o planejamento do trabalho a longo prazo. Ao mesmo tempo, a condição de professor temporário e eventual pode ser exercida ou alternada por um mesmo sujeito. É usual que professores temporários em “duzentena”, ou que pela classificação não consigam atribuir aulas de imediato, abram portarias de eventual em unidades escolares próximas as suas residências. Na mesma lógica, é recorrente que os professores temporários que não conseguiram atribuir a jornada integral façam plantões em suas unidades escolares, conforme relato abaixo:

São dezenove aulas que a gente dá por semana, então, são quatro aulas de segunda a quinta e na sexta-feira, três aulas. O restante fica como aula eventual. Fico na escola, se surge algo eu pego. [...] Nem sempre eu fico, mas ultimamente, na maioria dos dias, a gente está ficando (Entrevista 21).

Desse modo, ao se considerar as similaridades e diferenças nas formas de contratações e condições de trabalho, é possível dispor os trabalhadores docentes em dois grupos: o dos trabalhadores com estabilidade empregatícia, composto pelos professores categorias “A” e “F” e o grupo sem estabilidade, os professores com trabalho intermitente, formado pelos professores categorias “O” e “V”.

4 O LAZER PERMEADO PELA PROFISSÃO

Para a caracterização do lazer dos trabalhadores docentes aqui investigados, há dois elementos iniciais que merecem ser destacados: (1) há uma parcela dos professores, independentemente da forma de contratação, que apresenta excessiva jornada de trabalho12 12 Considera-se aqui como jornadas de trabalho excessivas as que extrapolam as 44 horas semanais. . Tais professores afirmaram não ter momentos de lazer, ou que o vivenciam em uma parcela de tempo extremamente reduzida; (2) os professores, de maneira geral, foram sucintos quando discorreram sobre suas vivências e práticas de lazer13 13 Tal constatação generalizou-se independentemente de a entrevista ser realizada em local interno ou externo à escola, da ordem, ou da ênfase sobre as questões. Desse modo, foi possível notar que a conversa sobre as concretudes do trabalho ocorreu com maior desenvoltura e tomou a maior parcela do tempo quando de que as questões relativas às vivências de lazer. .

A jornada de trabalho docente é composta pelo tempo de ensino, que concerne ao período de aulas propriamente dito, e pelo tempo de trabalho, referente ao processo de trabalho, à mobilização física e intelectual para a prática docente (SOUZA, 2008SOUZA, Aparecida Neri. Condições de trabalho na carreira docente: comparação Brasil-França. In: Albertina de Oliveira Costa; Bila Sorj; Cristina Bruschini; Helena Hirata (orgs.). Mercado de trabalho e gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p. 355-369.). Assim, a extensa jornada mencionada não ocorre apenas pela quantidade de aulas atribuídas, mas também pelo tempo do trabalho de planejamento individual e coletivo, pelas reuniões pedagógicas e pela intensificação do processo de trabalho, corroborada pelas políticas educacionais de cunho neoliberal implementas pela SEESP, como a BR, o IDESP e o SARESP.

Não obstante a progressiva intensificação e precarização do trabalho docente, foi possível identificar que o fato de os professores terem alto grau de comprometimento com o magistério é uma das causas do tempo de trabalho ocupar a maior parte do seu discurso.

Para Souza (2008SOUZA, Aparecida Neri. Condições de trabalho na carreira docente: comparação Brasil-França. In: Albertina de Oliveira Costa; Bila Sorj; Cristina Bruschini; Helena Hirata (orgs.). Mercado de trabalho e gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p. 355-369.), o ato de ensinar é um trabalho que se faz o tempo todo, toma conta tanto da esfera pública como da esfera privada. Nesta perspectiva, os voluntários na pesquisa, no decurso das entrevistas, não expressaram que estão na condição de professor, o que poderia indicar uma situação transitória, mas, sim, que são professores, que a sua profissão faz parte integral da dinâmica de vida.

Assim, observou-se que muitas das vivências de lazer são tangenciadas pela profissão, ou seja, foram encontrados indícios de que os professores projetam e vivenciam o lazer tendo em vista a sua prática pedagógica (vide quadro 1).

Quadro 1
Relação de práticas de lazer com o trabalho entre os professores14 14 Para sistematização do Quadro 1 foram considerados os dados dos diários sobre os usos do tempo e das entrevistas semiestruturadas. A categorização em torno dessas três atividades (filmes, livros e leitura de revistas e jornais) se justifica por terem sido as que mais demonstraram a estreita relação entre o lazer e o trabalho docente.

Apesar de as atividades descritas no quadro acima não terem sido registradas por todos os professores, vale destacar que, com maior ou menor frequência, todos afirmaram buscar práticas de lazer relacionadas com a perspectiva de trabalho da carreira docente.

Essa relação também se explicitou em uma das atividades que ocorre de forma predominante no tempo e espaço de lazer dos trabalhadores docentes: a prática de navegar na internet (incluindo o uso de redes sociais).

A utilização cada vez mais frequente de meios digitais opera alterações tanto nas dinâmicas de trabalho como na esfera da vida privada. A transição do paradigma da materialidade para a imaterialidade, para Dal Rosso (2008), acompanha uma séria de implicações. O trabalho apoiado por computadores e demais aparelhos tecnológicos tende a romper com o padrão do tempo de trabalho nitidamente separado do tempo de não trabalho. Assim, as fronteiras entre trabalho e não trabalho se tornam difusas, afetando a vida individual e coletiva.

Nessa mesma linha, Mascarenhas (2005MASCARENHAS, Fernando. Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do lazer. 2005. 308f. (Tese de Doutorado) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.) aponta que está em curso uma “colonização” do tempo de não trabalho pelo tempo de trabalho. No caso dos professores pesquisados, o processo de intensificação do trabalho também se manifesta por meio da tomada do tempo e espaço de lazer. O trecho da entrevista abaixo expressa um dos exemplos desse processo.

Faço parte de um grupo do Facebook e de WhatsApp só de gente da escola. Chega muita coisa que eu acho divertida, mas tem vezes que você está lá no sábado e vem uma mensagem de alguém da direção te lembrando que na próxima semana tem simulado do SARESP. Pronto, acabou o meu final de semana (Entrevista 15).

Assim, foi possível observar, tendo em vista os relatos sobre os usos do computador e de aparelhos celulares, a sobreposição de assuntos ou práticas relacionadas ao trabalho em momentos considerados de lazer. Além disso, tal condição também exprime o fato de que parcela do tempo e espaço de lazer dos professores investigados é permeada pelo trabalho.

5 PRECÁRIOS NO TRABALHO E NO LAZER

Apesar das características anteriormente evidenciadas - o lazer permeado pela profissão -, não se pode afirmar que a totalidade do lazer dos professores está relacionada à sua dinâmica de trabalho. Ao se corroborar a tese de que o lazer é perpassado por relações de hegemonia e fruto de múltiplas determinações, conclui-se não se tratar de um fenômeno homogêneo.

A Figura 1 foi elaborada para ilustrar o lazer relatado pelos professores ao longo de uma semana. Ao lado esquerdo estão agrupadas as atividades correspondentes aos professores com estabilidade empregatícia (Categorias “A” e “F”) e, ao lado direito, as dos professores com regime de trabalho intermitente (Categorias “O” e “V”). O tamanho das palavras expressa a frequência de realização, ou seja, quanto mais horas semanais dispendidas, maior foi a fonte utilizada na representação de tal atividade.

Figura 1
Nuvem de palavras (Atividades de Lazer: Professores Estáveis e Intermitentes)

Além do uso da internet, retratado na nuvem de palavras pelas expressões “computador” e “celular”16 16 Apesar de o uso da internet, incluindo as redes sociais, ter se mostrado prevalente, as expressões “computador” e “celular” também sintetizam outras atividades pertinentes ao tempo e espaço de lazer que podem ser realizadas nesses equipamentos como, por exemplo, os jogos eletrônicos. , as práticas de assistir televisão e a ida ao shopping center17 17 Vale destacar que outras atividades como, por exemplo, confraternização com amigos, comer fora e cinema, para parcela dos professores investigados, também foram realizadas em shopping centers. Todavia, para elaboração da Figura 1 foram consideradas as atividades vinculadas, prioritariamente, à lógica do consumo. figuraram, independente da forma de contratação, como as de maior recorrência. Na medida em que se compreende que trabalho e lazer se influenciam mutuamente, a frequência de tais atividades pode ser relacionada às características de intensificação e precarização que o trabalho docente assume na SEESP e, em âmbito geral, à própria dinâmica de mutação do mundo do trabalho e processos de retiradas de direitos postos em prática por políticas neoliberais.

A emergência do neoliberalismo, para Mascarenhas (2005MASCARENHAS, Fernando. Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do lazer. 2005. 308f. (Tese de Doutorado) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.), alterou o quadro que vigorava até a década de 1990 no Brasil, no qual era possível observar a subsunção formal do lazer ao capital, processo em que o lazer se vinculava à necessidade de produção e reprodução da força de trabalho. Destarte, estabeleceu-se um processo de “refuncionalização” do lazer, marcado pela sua subsunção real18 18 Mascarenhas (2005) discute o conceito de subsunção real do lazer ao capital a partir dos conceitos de subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital. Marx (1978) em O Capital capítulo VI (inédito) distingue essas formas de subsunção: “A característica geral da subsunção formal continua sendo a direta subordinação do processo de trabalho - qualquer que seja, tecnologicamente falando, a forma em que se efetue - ao capital. Nessa base, entretanto, se ergue o modo de produção tecnologicamente específico que metamorfoseia a natureza real do processo de trabalho e suas condições reais: o modo capitalista de produção. Somente quando este entre em cena se dá a subsunção real do trabalho ao capital” (MARX, 1978, p.66). à forma mercadoria, no qual esse fenômeno passou a ser subordinado aos interesses econômicos de uma nascente indústria do lazer diretamente ligada à produção e reprodução do capital.

Nessa perspectiva, quando o lazer se configura como uma mercadoria, o acesso a determinadas vivências e fruições passa a ser definido pela lógica do mercado e, em última análise, pela relação de compra e venda da força de trabalho (alienação/estranhamento)19 19 Emprega-se aqui o conceito de estranhamento do trabalho como sinônimo de alienação, no sentido negativo do termo, como forma específica de exteriorização humana sob o domínio do trabalho assalariado no capitalismo (MARX, 2004). , o que limita a possibilidade de escolha e acesso às condições materiais e financeiras de cada sujeito.

Ao mesmo tempo, para Alves (2006ALVES, Giovanni. Trabalho, subjetividade e lazer: estranhamento, fetichismo e reificação no capitalismo global. In: PADILHA, Valquíria (org.). Dialética do lazer. São Paulo: Cortez, 2006. p.19-49.), o estranhamento e subjetividade são determinações reflexivas inelimináveis no mundo do capital, de modo que a exacerbação da subjetividade estranhada é o fenômeno que pode explicar os diversos fenômenos estético-culturais que “dilaceram o imaginário ocidental”. Nesse cenário, a precarização atinge as diversas relações sociais, tanto o trabalho como o tempo e espaço de lazer, instaurando “superfluidades e virtualidades espúrias no campo de objetos e valores, que são apropriadas pela indústria cultural, tornando-se ícones (e signos) do suposto tempo livre” (ALVES, 2006ALVES, Giovanni. Trabalho, subjetividade e lazer: estranhamento, fetichismo e reificação no capitalismo global. In: PADILHA, Valquíria (org.). Dialética do lazer. São Paulo: Cortez, 2006. p.19-49., p.35). Assim, pode-se dizer que o processo de precarização do trabalho - e da vida como um todo - reflete em práticas de lazer estranhadas, reificadas e fetichizadas.

Soma-se a esses processos o limitado acesso ao lazer como um direito social. Para Santos e Amaral (2010), o lazer nunca se consolidou no Brasil como uma política de Estado, mas, sim, como políticas de governos difusas e com parco financiamento. Na própria Constituição Federal de 1988, o lazer, diferentemente da saúde e educação, não apresenta mecanismos infraconstitucionais que garantam o seu financiamento.

Nesse cenário, não é de se surpreender que as atividades ligadas ao consumo - de produtos materiais ou imateriais - como os próprios meios digitais, a prática de assistir televisão e a presença contumaz em shopping centers20 20 Para Padilha (2012), a ocupação do tempo de não trabalho em shopping centers sinaliza um fenômeno de submissão do lazer ao mercado. , ocorram com maior frequência entre os professores pesquisados.

Sem dúvida, as relações de hegemonia e os elementos contraditórios que perpassam o lazer, assim como em outros fenômenos sociais, possibilitam disputas de sentidos nas práticas relatadas. Todavia, tais atividades, sobretudo o tempo destinado à televisão e o uso constante de meios digitais, caracterizam-se por uma dada flexibilidade em sua realização, ou seja, podem ser realizadas sem grandes planejamentos, dispêndio de energia ou deslocamento. Dessa forma, compartilham com o trabalho precário, dentre outros elementos, as características de flexibilidade e volatilidade. O quadro abaixo sistematiza o diálogo estabelecido nas entrevistas sobre a prática de assistir televisão e a impressão dos professores sobre tal atividade.

Quadro 2
Síntese da análise das entrevistas (questões relativas ao ato de assistir televisão)

Vale destacar que parcela importante dos entrevistados demonstrou insatisfação não somente com a quantidade de horas dedicadas ao lazer, ou mesmo com número de horas destinadas à televisão, mas, também, com a falta acesso a espaços como teatros, shows, exposições, dentre outros interesses culturais do lazer21 21 Apesar deste artigo não se fiar nas teses desenvolvidas por Joffre Dumazedier, consideram-se as importantes contribuições deste autor para o campo dos estudos do lazer no Brasil, como as discussões sobre os interesses culturais, classificados em: físicos, artísticos, manuais, intelectuais e sociais (DUMAZEDIER, 1980). .

Quando dá pra fazer, eu gosto muito de passeios culturais [...] mas aí, vou gastar combustível, o ônibus, essas coisas assim. Gosto muito de ir a shows realizados em praças, esses eventos mesmo de apresentação de filmes, algumas apresentações de teatro, mas são poucos, né... tudo é pago, e caro (Entrevista 12).

Nesse sentido, a relação entre a falta de direito social ao lazer, a ascensão da sua forma como mercadoria e o próprio processo de intensificação do trabalho são indicativos que podem explicar o fato de o ato de assistir televisão figurar como a atividade prevalente entre os trabalhadores docentes investigados.

Em suma, é possível dizer que as condições de reificação, fetichização e estranhamento, alinhadas à ausência do direito social ao lazer e à prevalência de vivências flexíveis, supérfluas e voláteis, conformam as peculiaridades do lazer precário.

Além da compreensão de que as práticas predominantes de lazer entre os trabalhadores docentes da SEESP como um todo estão vinculadas a elementos de precariedade, foi possível apreender que as vivências desse fenômeno entre os intermitentes, quando comparadas aos professores com estabilidade empregatícia, apresentam menor número de horas e variedade limitada, conforme demonstrado na Figura 1.

Tal constatação se torna ainda mais evidente ao se relacionar as categorias sistematizadas na nuvem de palavras com os interesses culturais do lazer. As vivências de lazer dos professores intermitentes estão concentradas principalmente nos interesses virtuais22 22 Além dos interesses culturais descritos por Dumazedier (1980), Schwartz (2003) acrescenta e discute os interesses virtuais. e não há atividades que estabeleçam diálogos com os interesses artísticos, manuais e turísticos.

Desse modo, é possível identificar que quanto mais precária a relação de trabalho, mais precário também será o lazer. Essa constatação se evidencia de duas formas: (1) pelo processo de precarização que permeia a categoria dos trabalhadores docentes da SEESP como um todo, no qual constatou-se que as vivências precárias são a forma predominante de lazer; (2) em relação às diferenças inerentes aos contratos empregatícios, nos quais observa-se que as condições mais precárias de trabalho - características dos professores sem estabilidade - reverberam em vivências de lazer com acentuados traços de precariedade.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos atuais processos de trabalho na escola, marcados pela intensificação e precariedade, esta pesquisa se propôs a apreender e refletir sobre os contornos assumidos pelo tempo e espaço de lazer de professores da SEESP. Além disso, buscou identificar de que forma as distintas relações de trabalho influenciam o lazer dos docentes em questão.

Nessa perspectiva, por meio da análise de documentos pertinentes ao trabalho docente e da realização de entrevistas semiestruturadas, condicionadas à aplicação dos diários sobre os usos do tempo, chegou-se às seguintes constatações:

  • a) parte do lazer dos trabalhadores docentes pesquisados é permeada pela profissão;

  • b) há um avançar do tempo de trabalho sobre as demais esferas da vida cotidiana;

  • c) as vivências de lazer entre os professores pesquisados apresentam elementos de precariedade;

  • d) condições precárias de trabalho tendem a refletir em um tempo e espaço de lazer também precários.

Além desses pontos, ao se considerar a escola pública como um espaço contraditório (Hypolito, 1991HYPOLITO, Álvaro Moreira. Processo de trabalho na escola: algumas categorias para análise. Teoria e educação, n. 4, p. 3-21, 1991.), no qual as resistências, as acomodações, as submissões e os conflitos se evidenciam, ainda vale destacar que a dinâmica de vida dos trabalhadores docentes da SEESP também é perpassada por diversos processos de resistência.

Apesar desses processos não terem figurado como foco de análise deste artigo, os elementos de resistência podem se tornar caros objetos de pesquisas futuras, pois são observáveis tanto em relação à organização geral da categoria - greves e demais movimentos que englobam o ambiente escolar na rede estadual paulista - como no tempo e espaço de lazer. Afinal, quando se pontua que os trabalhadores docentes elegem atividades de lazer, principalmente as ligadas à leitura ou audiovisual, que apresentam relação com a docência e com sua prática pedagógica, é possível identificar que tais movimentações se configuram como forma de resistência à lógica da prescrição da ação pedagógica, da degradação e precarização do trabalho docente na SEESP.

REFERÊNCIAS

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  • Apoio:

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001. This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Finance Code 001.
  • 1
    Dal Rosso (2008, p.23) chama de intensificação do trabalho “os processos de quaisquer naturezas que resultam em um maior dispêndio das capacidades físicas, cognitivas e emotivas do trabalhador com o objetivo de elevar quantitativamente ou melhorar qualitativamente os resultados. Em síntese, mais trabalho”.
  • 2
    Para Druck (2013DRUCK, Graça. A precarização social do trabalho no Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 55-74.), a precarização do trabalho no Brasil esteve fortemente presente desde a transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado. Não obstante, considera que há uma nova precarização social do trabalho, pois ela foi reconfigurada e ampliada, levando a uma regressão social em todas as suas dimensões.
  • 3
    Harvey (2002) aponta que a acumulação flexível é marcada pelo confronto com o modelo fordista de produção e se apoia em inovações tecnológicas e organizacionais, assim como na flexibilização dos processos de trabalho, dos mercados, produtos e padrões de consumo.
  • 4
    Entende-se que o tempo de não trabalho diz respeito ao período no qual os seres humanos não realizam o trabalho abstrato estranhado (MARX, 2004MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução: Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.). Ou seja, o tempo em que os seres humanos não estranham sua força de trabalho a outrem.
  • 5
    O ICM é calculado a partir do Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP) da escola e a meta estabelecida pela SEESP.
  • 6
    As especificidades da discussão entre trabalho docente, lazer e as questões de gênero são tratadas em Silvestre e Amaral (2017SILVESTRE, Bruno Modesto; AMARAL, Silvia Cristina Franco. O Lazer dos Professores da Rede Estadual Paulista: Uma Investigação Comparativa Entre os Gêneros. Licere, v. 20, n. 1, p. 60-87, 2017.).
  • 7
    No Brasil, esta técnica de pesquisa recebe o nome de “usos do tempo” (AGUIAR, 2010AGUIAR, Neuma. Metodologias para o levantamento do uso do tempo na vida cotidiana no Brasil. Revista Econômica, v. 12, n. 1, p. 64-82, 2010.) ou “orçamento-tempo” (BRUSCHINI, 2006BRUSCHINI, Cristina. Trabalho doméstico: inatividade econômica ou trabalho não-remunerado? Revista Brasileira de Estudos Populacionais, v. 23, n. 2, p. 331-353, jul./dez. 2006.). Com a finalidade de padronização na escrita, utiliza-se a expressão “usos do tempo”.
  • 8
    A aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética pode ser consultada pelo CAAE nº 44670315.1.0000.5404.
  • 9
    Por meio da BR, o valor que o trabalhador docente pode receber, uma vez ao ano, é o equivalente ao cumprimento da meta de sua unidade escolar, podendo variar entre zero e 120% de sua remuneração mensal.
  • 10
    A rede estadual paulista conta com aproximadamente 130 mil professores Categoria “A”, 44 mil professores na categoria “F” e 23 mil professores categoria “O”. O número de professores eventuais não é divulgado nos relatórios da SEESP, todavia, no mínimo três portarias para o exercício da função na condição de professor eventual estavam abertas em cada uma das escolas em que a pesquisa foi realizada. Desse modo, apesar da existência de outras categorias funcionais, os trabalhadores docentes se concentram, principalmente, nas quatro categorias demonstradas (SÃO PAULO, 2017).
  • 11
    O interstício entre os contratos de trabalho para os professores temporários é determinado pelo artigo 6º dessa mesma lei: “É vedada, sob pena de nulidade, a contratação da mesma pessoa, com fundamento nesta lei complementar, ainda que para atividades diferentes, antes de decorridos 200 (duzentos) dias do término do contrato” (SÃO PAULO, 2009). Esse mecanismo ficou conhecido entre os professores por “duzentena”, entretanto, de acordo com relatos dos professores temporários, pela própria falta de professores estáveis, os critérios são dinâmicos e alterados com frequência.
  • 12
    Considera-se aqui como jornadas de trabalho excessivas as que extrapolam as 44 horas semanais.
  • 13
    Tal constatação generalizou-se independentemente de a entrevista ser realizada em local interno ou externo à escola, da ordem, ou da ênfase sobre as questões. Desse modo, foi possível notar que a conversa sobre as concretudes do trabalho ocorreu com maior desenvoltura e tomou a maior parcela do tempo quando de que as questões relativas às vivências de lazer.
  • 14
    Para sistematização do Quadro 1 foram considerados os dados dos diários sobre os usos do tempo e das entrevistas semiestruturadas. A categorização em torno dessas três atividades (filmes, livros e leitura de revistas e jornais) se justifica por terem sido as que mais demonstraram a estreita relação entre o lazer e o trabalho docente.
  • 15
    A elaboração desta nuvem de palavras considerou as atividades de lazer descritas nos diários sobre os usos do tempo confrontadas com as entrevistas semiestruturadas. Após a sistematização das categorias de atividades, foi atribuído, proporcionalmente à quantidade de horas, um determinado tamanho de fonte para cada expressão. Além disso, para marcar a diferença observada entre as distintas formas de contratação, as vivências de lazer presentes apenas entre os professores estáveis foram representadas na cor cinza.
  • 16
    Apesar de o uso da internet, incluindo as redes sociais, ter se mostrado prevalente, as expressões “computador” e “celular” também sintetizam outras atividades pertinentes ao tempo e espaço de lazer que podem ser realizadas nesses equipamentos como, por exemplo, os jogos eletrônicos.
  • 17
    Vale destacar que outras atividades como, por exemplo, confraternização com amigos, comer fora e cinema, para parcela dos professores investigados, também foram realizadas em shopping centers. Todavia, para elaboração da Figura 1 foram consideradas as atividades vinculadas, prioritariamente, à lógica do consumo.
  • 18
    Mascarenhas (2005MASCARENHAS, Fernando. Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do lazer. 2005. 308f. (Tese de Doutorado) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.) discute o conceito de subsunção real do lazer ao capital a partir dos conceitos de subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital. Marx (1978MARX, Karl. O Capital, Livro I, Capítulo VI (Inédito). São Paulo: Ciências Humanas, 1978. v. 1.) em O Capital capítulo VI (inédito) distingue essas formas de subsunção: “A característica geral da subsunção formal continua sendo a direta subordinação do processo de trabalho - qualquer que seja, tecnologicamente falando, a forma em que se efetue - ao capital. Nessa base, entretanto, se ergue o modo de produção tecnologicamente específico que metamorfoseia a natureza real do processo de trabalho e suas condições reais: o modo capitalista de produção. Somente quando este entre em cena se dá a subsunção real do trabalho ao capital” (MARX, 1978MARX, Karl. O Capital, Livro I, Capítulo VI (Inédito). São Paulo: Ciências Humanas, 1978. v. 1., p.66).
  • 19
    Emprega-se aqui o conceito de estranhamento do trabalho como sinônimo de alienação, no sentido negativo do termo, como forma específica de exteriorização humana sob o domínio do trabalho assalariado no capitalismo (MARX, 2004MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução: Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.).
  • 20
    Para Padilha (2012PADILHA, Valquíria. Shopping center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Boitempo, 2012.), a ocupação do tempo de não trabalho em shopping centers sinaliza um fenômeno de submissão do lazer ao mercado.
  • 21
    Apesar deste artigo não se fiar nas teses desenvolvidas por Joffre Dumazedier, consideram-se as importantes contribuições deste autor para o campo dos estudos do lazer no Brasil, como as discussões sobre os interesses culturais, classificados em: físicos, artísticos, manuais, intelectuais e sociais (DUMAZEDIER, 1980DUMAZEDIER, Joffre. Valores e conteúdos culturais do lazer. São Paulo: Sesc, 1980.).
  • 22
    Além dos interesses culturais descritos por Dumazedier (1980DUMAZEDIER, Joffre. Valores e conteúdos culturais do lazer. São Paulo: Sesc, 1980.), Schwartz (2003SCHWARTZ, Gisele Maria. O conteúdo virtual: contemporizando Dumazedier. Licere, v.2, n.6, p.23-31, 2003.) acrescenta e discute os interesses virtuais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2018
  • Aceito
    19 Dez 2018
  • Publicado
    04 Abr 2019
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