Acessibilidade / Reportar erro

FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM EDUCAÇÃO FÍSICA: HOMOFOBIA, HETEROSSEXISMO E AS POSSIBILIDADES DE MUDANÇAS NA PERCEPÇÃO DOS(AS) ESTUDANTES

PROFESSIONAL FORMATION IN PHYSICAL EDUCATION: HOMOPHOBIA, HETEROSEXISM AND THE POSSIBILITIES OF CHANCES IN STUDENT’S PERCEPTION

FORMACIÓN PROFESIONAL EN EDUCACIÓN FÍSICA: HOMOFOBIA, HETEROSEXIMOS Y LAS POSIBILIDADES DE CAMBIO EN LA PERCEPCIÓN DE LOS ESTUDIANTES

Resumo

Objetivamos conhecer a percepção de estudantes de Educação Física acerca de comportamentos e comentários homofóbicos e heterossexistas presentes na formação profissional, identificando sugestões para torná-la mais receptiva à diversidade de sujeitos. Esta pesquisa mista contou, primeiramente, com 260 estudantes que responderam um questionário que foi analisado a partir da frequência de respostas. Na segunda etapa participaram 19, divididos em 3 grupos focais, cujo conteúdo foi transcrito e submetido a análise de conteúdo com auxílio do software QSRNVivo. Os resultados apontam que é forte a incidência de comportamentos e comentários homofóbicos e heterossexistas entre estudantes, ocorrendo sobretudo entre os homens. Afirmam que os(as) docentes reforçam ou silenciam diante dessas condutas e pouco colaboram para criar um ambiente seguro e livre de preconceitos. Para alterar esse cenário, é necessário cultivar o respeito, problematizar o currículo heteronormativo e oportunizar diferentes ações que envolvam a comunidade acadêmica.

Palavras chave:
Homofobia; Sexismo; Educação Física; Capacitação profissional

Abstract

This study aimed to know the perceptions of physical education students concerning homophobic and heterosexist comments and behaviours in professional education. Also, we identified suggestions to make professional education more suitable to the diversity of subjects. This mixed research was divided into two steps. Firstly, 260 students filled a questionnaire and a descriptive statistical analysis was conducted on the results. Subsequently, 19 students participated in three focal groups. Then, the data was transcribed and the information processed using the software (QSRNVivo). Finally, a content analysis was carried out. A strong incidence of homophobic and heterosexist comments and behaviours is seen, frequently among male subjects. Furthermore, the results show that when confronted teachers were voiceless or reinforced the behaviour, consequently not collaborating to a secure and prejudice-free environment. To change this scenario, it is necessary to cultivate respect, problematize the heteronormative curriculum and opportunize different actions involving the academic community.

Keywords:
Homophobia; Sexism; Physical Education; Professional Training

Resumen

Este estúdio objetivó conocer la percepción de los estudiantes de Educación Física sobre los comportamientos y comentarios homofóbicos y heterosexistas que se encuentran presentes en la formación profesional, identificando las propuestas para cambiarla más receptiva hacia la diversidad de personas. Esta investigación mixta contó, primeramente, con 260 estudiantes que respondieron un cuestionario que fue analizado mediante frecuencias. En la segunda etapa, 19 alumnos que fueron divididos en 3 grupos focales, cuyos datos fueron transcritos y sometidos a análisis de contenido mediante la ayuda de un software (QSRNVivo). Los resultados apuntan una fuerte incidencia de comportamientos y comentarios homofóbicos y heterosexistas entre estudiantes, principalmente entre los hombres. Afirman que los docentes refuerzan o silencian estas conductas y además colaboran poco para crear un ambiente libre de prejuicios. Para cambiar esta situación, es necesario trabajar el respeto, cuestionar el currículo heteronormativo y fomentar diferentes acciones que involucren a la comunidad académica.

Palabras clave:
Homofobia; Sexismo; Educación Física; Capacitación Profesional

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos tempos, avanços e retrocessos na esfera legislativa marcam as ações e os debates acerca da diversidade sexual no Brasil. A falta de consenso acerca do tema dificulta e/ou impede a aprovação de leis e de políticas públicas que promovam a igualdade entre homens e mulheres, independentemente das suas orientações sexuais. Em um cenário pouco animador, as vozes dos(as) estudiosos(as) apontam para a urgência na promoção de políticas públicas que enfrentem a homofobia nas diferentes instâncias sociais (BORRILLO, 2010BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.; JUNQUEIRA, 2009JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia na escola: um problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz. (org.). Diversidade Sexual na Educação. Brasília: MEC/UNESCO, 2009. p. 13-51.; MELLO; REZENDE; MAROJA, 2012MELLO, Luiz; REZENDE, Bruno de Avelar; MAROJA, Daniela. Por onde andam as políticas públicas para a população LGBT no Brasil. Sociedade e Estado, v. 27, n. 2, p. 289- 312, maio/ago. 2012.).

A homofobia foi explicada a partir de diferentes prismas, manifestando-se como um comportamento de hostilidade geral, psicológica e social direcionado às pessoas homossexuais, é expressa por meio de injúrias e insultos cotidianos e, no seu grau máximo, utiliza a violência física. Essas ações ocorrem como efeito da hierarquização das sexualidades, cujo topo é ocupado pela heterossexualidade, sendo as posições subalternas e inferiores atribuídas às orientações não heterossexuais (BORRILLO, 2010BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.). A homofobia é produzida por disputas de poder em que grupos e sujeitos buscam afirmar e reafirmar determinados modos de viver a sexualidade, recorrendo a diversas facetas da violência para legitimar a prevalência da heterossexualidade e discriminando quaisquer sujeitos, expressões e estilos de vida que denotem desvio em relação às normas de gênero, da heterossexualidade e heteronormatividade (ALMEIDA; SOARES, 2012; JUNQUEIRA, 2009JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia na escola: um problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz. (org.). Diversidade Sexual na Educação. Brasília: MEC/UNESCO, 2009. p. 13-51.). Uma tipologia pode ser utilizada para explicar o imbricamento entre a heteronormatividade, o heterossexismo e o preconceito contra a orientação não heterossexual. Primeiramente, na heteronormatividade compartilham-se conhecimentos e noções que denigrem e negam qualquer identidade, comportamentos ou comunidades não heterossexuais. No nível intermediário chamado heterossexismo, o preconceito constitui a estrutura da sociedade, suas instituições e relações de poder que atravessam as diferentes instâncias sociais e, cujos efeitos, resultam na restrição da população LGBT aos direitos fundamentais. O último nível constitui o preconceito contra a orientação não heterossexual e se manifesta em atitudes, condutas e sentimentos negativos em relação a pessoas não heterossexuais produzindo crenças preconceituosas e comportamentos discriminatórios (HEREK, 2002HEREK, Gregory M. Gender gaps in public opinion about lesbians and gay men. Public Opinion Quarterly, v. 66 n. 1, p. 40-66, mar. 2002.). Assim, homofobia e heterossexismo constituem-se em fenômenos culturais em que a sociedade constrói coletivamente a heterossexualidade como o modelo para a humanidade, desvalorizando e menosprezando qualquer outra forma não heterossexual de comportamento, identidade, relacionamento ou comunidade, acreditando e defendendo que apenas a heterossexualidade é o modo normal e correto de viver a sexualidade (HEREK, 2007).

A homofobia foi uma das primeiras formas de vigiar as masculinidades e feminilidades dado que qualquer performatividade codificada como gay ou lesbiana constitui-se como um mecanismo de regulação da ordem de gênero (ALMEIDA; SOARES, 2012; ANDERSON; MCCORMACK, 2014ANDERSON, Erin; MCCORMACK, Mark. Cuddling and spooning: heteromasculinity and homosocial tactility among students-athletes. Men and Masculinities, v. 18, n. 2, p. 214-230, mar. 2014.). A noção de performatividade implica considerar que “gênero é um ato que faz existir aquilo que ele nomeia”, ou seja, “um homem “masculino” ou uma mulher “feminina” são efeitos discursivos que, não apenas marcam os sujeitos, sobretudo, constroem e constituem as suas identidades de gênero (BUTLER, 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.). A análise de gênero ancorada na ideia de que é algo “que se faz” e que “vai se fazendo”, que é performativo nas interações (WEST; ZIMMERMAN, 1987WEST, Candance; ZIMMERMAN, Don. Doing gender. Gender & Society, v. 1, n. 2, p. 125-151, 1987.), possibilita um melhor entendimento de como sujeitos aprendem e reconhecem os códigos convencionais de feminilidade e masculinidade, enquadrados no espaço confinado da heterossexualidade e promovidos, afirmados e reafirmados pela heteronormatividade que, por sua vez, regula, policia e restringe as expressões de gênero e a sexualidade dos sujeitos (CLARKE, 2006CLARKE, Gill. Sexuality and Physical Education. In: KIRK, David; MACDONALD, Doune; O’SULLIVAN, Mary. (orgs.). The Handbook of Physical Education. Londres: Sage, 2006. p. 723-739.; PETER; TAYLOR, 2013PETER, Tracey; TAYLOR, Catherine. Queer bullying: how homophobia, biphobia and transphobia hurt students. Herizons, v. 26, n. 4, p. 22-27, 2013.). A heterossexualidade é uma construção que contempla uma dimensão performativa, visto que aprende-se a evitar parecer gay ou lésbica (PEREIRA, 2009PEREIRA, Maria do Mar. Fazendo gênero na escola: uma análise performativa da negociação de género entre jovens. Exaequo, n. 20, p. 113-127, 2009.). Com efeito, mais do que a orientação sexual, o que importa é a performatividade. Ela é pública e visível nos comportamentos do outro, sobretudo, a leitura da orientação sexual é neste caso o mais importante e o que de certa forma é objeto de censura (GRINDSTAFF; WEST, 2011GRINDSTAFF, Laura; WEST, Emily. Hegemonic masculinity on the sidelines of sport. Sociology Compass, v. 5 n. 10, p. 859-881, out. 2011.).

A Educação Física (EF) transita em territórios nos quais os corpos, gêneros e sexualidades são incitados ao discurso (PRADO; RIBEIRO, 2010PRADO, Vagner Matias do; RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Gêneros, sexualidades e educação física escolar: um início de conversa. Motriz, v. 16, n. 2, p. 402-413, abr./jun. 2010.), por isso mesmo o debate sobre a diversidade sexual e de gênero deve ser incluído no currículo de formação profissional, para que os/as futuros/as docentes (FD) possam desenvolver, estratégias de resistência ao currículo heteronormativo (DINIS, 2011DINIS, Nilson Fernandes. Homofobia e educação: quando a omissão também é signo de violência. Educar em Revista, n. 39, p. 39-50, jan./abr. 2011.; FERFOLJA; ROBINSON, 2004FERFOLJA, Tania; ROBINSON, Kerry H. Why anti-homophobia education in teacher education? Teaching Education Journal, v. 15 n. 1, p. 9-25, 2004.;). Entretanto, os conteúdos referentes à sexualidade são pouco frequentes nos cursos universitários (ALTMANN, 2013ALTMANN, Helena. Diversidade sexual e educação: desafios para a formação docente. Sexualidad, salud y sociedad: Revista Latinoamericana, n. 13, p. 69-82, abr. 2013.).

A escassa abordagem das sexualidades na formação de FD, produz múltiplas dificuldades que professores/as das mais distintas disciplinas enumeram quando são convocados/as a abordar a diversidade sexual em suas aulas, argumentando que desconhecem metodologias que envolvam a comunidade escolar e que possam ser utilizadas para tratar pedagogicamente as sexualidades (OLIVEIRA; GODOI; SANTOS, 2014OLIVEIRA, Xênia Ferreira de; GODOI, Marcos Roberto; SANTOS, Luciene Neves. A opinião dos professores de educação física do ensino médio sobre a homossexualidade e a homofobia na escola. Pensar a Prática, v. 17, n. 4, out./dez. 2014.; SEFFNER, 2014SEFFNER, Fernando. Sexualidade: isso é mesmo matéria escolar? Teoria e prática da educação, v. 17, n. 2, p. 67-81, 2014.). Ao mesmo tempo, é preciso considerar que deve ser responsabilidade das instituições formadoras incorporar conhecimentos e práticas anti-homofóbicas e anti-heterosexistas em seus cursos (ROBINSON; FERFOLJA, 2008ROBINSON, Kerry H.; FERFOLJA, Tania. Playing it up, playing it down, playing it safe: queering teacher education. Teaching and teacher education, v.24, n. 4, p. 846-858, 2008.). Todavia, os/as FD se mostram receptivos/as a uma formação profissional que privilegie uma educação para a diversidade antevendo e combatendo as condutas homofóbicas (FERFOLJA; ROBINSON, 2004; REBOLLO CATALÁN et al., 2011REBOLLO CATALÁN, Maria Angeles et al. Diagnóstico de la cultura de género em educación: actitudes del professorado hacia la igualdad. Revista de Educación, n. 355, p. 521-546, maio/ago. 2011.).

No campo da EF é urgente repensar a formação profissional com vistas a combater a homofobia, incentivando o respeito às pessoas, promovendo a aceitação das diferentes orientações sexuais e demonstrando condutas inclusivas (AYVAZO; SUTHERLAND, 2009AYVAZO, Shiri; SUTHERLAND, Sue. Uncovering the secrets: Homophobia in Physical Education. Action in Teacher Education, v. 31 n. 3, p. 56-69, 2009.). A estrutura mais fixa e tradicional dos cursos de formação superior, acarreta dificuldades em operar mudanças nos currículos (ALTMANN, 2013ALTMANN, Helena. Diversidade sexual e educação: desafios para a formação docente. Sexualidad, salud y sociedad: Revista Latinoamericana, n. 13, p. 69-82, abr. 2013.). Porém, esse é um espaço de reflexão sobre os temas abordados, buscando minimizar as dificuldades encontradas nos ambientes de atuação profissional (DINIS, 2011DINIS, Nilson Fernandes. Homofobia e educação: quando a omissão também é signo de violência. Educar em Revista, n. 39, p. 39-50, jan./abr. 2011.).

No Brasil, ainda há poucos estudos acerca da homofobia e do heterossexismo relacionados à EF, seja na esfera escolar ou na formação profissional, seja focalizando os/as estudantes ou os/as docentes. Todavia, a necessidade de investigar esses temas é destacada em diferentes estudos (ALTMANN, 2013ALTMANN, Helena. Diversidade sexual e educação: desafios para a formação docente. Sexualidad, salud y sociedad: Revista Latinoamericana, n. 13, p. 69-82, abr. 2013.; ANDRES; JAEGER; GOELLNER, 2015ANDRES, Suelen; JAEGER, Angelita Alice; GOELLNER, Silvana Vilodre. Educar para a diversidade: gênero e sexualidade segundo a percepção de estudantes e supervisoras do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (UFSM). Revista da Educação Física/UEM, v. 26, n. 2, p. 167-179, 2015.; DINIS, 2011DINIS, Nilson Fernandes. Homofobia e educação: quando a omissão também é signo de violência. Educar em Revista, n. 39, p. 39-50, jan./abr. 2011.).

A partir dessas considerações, objetivamos conhecer a percepção de estudantes de EF acerca de comportamentos e comentários homofóbicos e heterossexistas presentes na formação profissional, identificando o contexto dos insultos e sua recorrência, reunindo sugestões para torná-la mais receptiva à diversidade de sujeitos.

2 PERCURSO METODOLÓGICO

Utilizou-se uma metodologia mista, envolvendo tanto dados quantitativos quanto qualitativos (CRESWELL, 2016CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: método qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Penso, 2016.), os quais foram produzidos em momentos distintos. Após aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa no Brasil1 1 Protocolo nº 38152214.0.0000.5346. , cerca de 800 estudantes regularmente matriculados em dois cursos de Educação Física - Licenciatura e Bacharelado de uma universidade pública situada no sul do Brasil, foram convidados/as a participarem da investigação.

Após assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, 260 estudantes participaram da primeira etapa, sendo 59,2% de homens e 40,8% de mulheres, cuja média de idade foi de 21,9±3,9 anos. Desses/as 94,6% declararam ser heterossexuais, 4,2% homossexuais (1 homem e 10 mulheres) e 1,2% informaram “outra orientação sexual” (3 mulheres).

A primeira etapa consistiu na aplicação de um questionário sobre as percepções de homofobia e heterossexismo na EF já utilizado em pesquisa norte-americana (MORROW; GILL, 2003MORROW, Ronald G.; GILL, Diane L. Perceptions of homophobia and heterosexism in Physical Education. Research Quarterly for Exercise and Sport, v. 74, n. 2, p. 205-214, 2003.), espanhola (PIEDRA et al., 2013PIEDRA, Joaquín et al. Homofobia, heterosexismo y Educación Física: percepciones del alumnado. Revista Profesorado, v. 17, n. 1, p. 326-338, jan./abr. 2013.) e portuguesa (SILVA; JAEGER; VALDÍVIA-MORAL, 2018SILVA, Paula; JAEGER, Angelita Alice; VALDÍVIA-MORAL, Pedro. Percepción de los estudiantes sobre comportamentos homofóbicos y heterosexistas en educación física. Revista de Psicología del Deporte, v. 27, n. 2, p. 37-44, 2018.). O questionário possui quinze perguntas, cujas respostas estão em escala do tipo Likert. Dez indagam acerca de comportamentos e comentários heterossexistas e homofóbicos em contexto de aulas e cinco delas sobre o ambiente da aula e o uso de linguagem inclusiva. Considerando que o questionário foi elaborado para outra realidade cultural, seu conteúdo foi submetido a um processo de tradução/retroversão que garantiu a equivalência semântica e cultural entre as versões original e em português (SILVA; JAEGER; VALDIVIA-MORAL, 2018). Para a versão para o português utilizado no Brasil, poucos sinônimos foram utilizados e, ainda assim, essas alterações foram avaliadas e testadas na sua equivalência por dois especialistas na área da EF. Os dados advindos do questionário foram submetidos a uma análise descritiva de frequência com a utilização de um software.

A segunda etapa, buscou aprofundar os resultados obtidos na primeira fase da pesquisa, realizando três grupos focais, sendo um com sete participantes e dois com seis, totalizando 19 estudantes. O grupo focal é um debate sobre o tema, momento em que as ideias e os pontos de vista são trocados entre os participantes (GASKELL, 2004GASKELL, George. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, Martin; GASKELL, George. (coords.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2004.). Os grupos focais foram organizados a partir de convites realizados em sala de aula, direcionados àqueles/as que já tinham participado da primeira etapa. Cada grupo utilizou entre 35 e 45 minutos para debater os temas, cujo conteúdo foi gravado em um dispositivo digital. Os temas lançados partiram da emergência de comportamentos e comentários homofóbicos e heterossexistas, passando pela conduta dos/as professores/as nessas situações e pela identificação dos alvos dos xingamentos e dos piores insultos homofóbicos, chegando às sugestões dos/as estudantes para mudar esta realidade na formação profissional em EF.

Após o material ser transcrito foi submetido à análise com o auxílio de um software qualitativo com vistas a organizar o material, classificá-lo e codificá-lo. É importante destacar que “a busca informatizada não substitui a leitura e a reflexão, mas pode ajudar para que o exame dos textos e sua análise sejam mais completos e confiáveis” (GIBBS, 2009GIBBS, Graham. Análise de dados qualitativos. Porto Alegre: Artmed, 2009., p. 158). Realizou-se uma análise de conteúdo, cujo processo consistiu na pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados, que compreendem a codificação e a inferência desses resultados (BARDIN, 2016BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.), constituindo três categorias.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 COMPORTAMENTOS E COMENTÁRIOS HETEROSSEXISTAS

Os resultados e análises da categoria que focaliza os comportamentos e comentários heterossexistas reuniu as perguntas (1, 2, 9, 10 e 15) do questionário, identificando que 88% dos/as estudantes afirmam terem sido testemunhas de comportamentos heterossexistas entre seus/uas colegas no decorrer da formação profissional. Assim como, 53% dizem presenciar tais comportamentos partindo de estudantes em relação aos/as docentes. Comentários heterossexistas foram proferidos por 52,7 % dos/as estudantes e 51,9% assumiram que utilizam o termo normal para nomear a heterossexualidade. Por fim, 67% afirmam que em algum momento os/as docentes enfrentaram comportamentos heterossexistas provenientes dos FD no decorrer das aulas.

A análise dos resultados aponta que é forte a incidência de comportamentos heterossexistas entre os/as estudantes de EF da universidade investigada, corroborando com o estudo realizado em contexto norte-americano (MORROW; GILL, 2003MORROW, Ronald G.; GILL, Diane L. Perceptions of homophobia and heterosexism in Physical Education. Research Quarterly for Exercise and Sport, v. 74, n. 2, p. 205-214, 2003.). A realidade parece não ser diferente na Espanha, onde 92,23% dos estudantes afirmam terem sido testemunhas de comportamentos heterossexistas (PIEDRA et al., 2013PIEDRA, Joaquín et al. Homofobia, heterosexismo y Educación Física: percepciones del alumnado. Revista Profesorado, v. 17, n. 1, p. 326-338, jan./abr. 2013.) e em Portugal, destaca-se que as alunas percebem mais que os alunos esses comportamentos (SILVA; JAEGER; VALDÍVIA-MORAL, 2018SILVA, Paula; JAEGER, Angelita Alice; VALDÍVIA-MORAL, Pedro. Percepción de los estudiantes sobre comportamentos homofóbicos y heterosexistas en educación física. Revista de Psicología del Deporte, v. 27, n. 2, p. 37-44, 2018.).

Para melhor compreender os resultados, aprofundou-se a discussão do tema buscando entender em que circunstâncias emerge o heterossexismo e como ele se produz e reproduz nas diferentes instâncias sociais, considerando os excertos:

Nada disso está desvinculado da sociedade, e se a sociedade é heterossexista, se a sociedade é homofóbica, se a sociedade é machista, isso vai ser reproduzido nas outras instâncias da sociedade.

Pois é, eu acho que o guri sofre mais, parece que vem de casa, os pais ficam incentivando o guri, tem que pegar menina! A menina não, tem que ser comportada. Então eles já vêm com um negócio que tem que ficar afirmando que é hetero e para isso o pai tem que xingar ele.

Na maior parte das vezes há falta de apoio em casa. Às vezes o filho vai jogar voleibol e o pai vai lá e fala: isso aí não é esporte de homem né, isso aí é esporte de bichinha, de viadinho. E quando a menina vai jogar o futebol é: isso aí não é coisa de mulher né, é coisa de sapatona, dentre outras coisas.

Eu vejo muito no ambiente da educação física uma associação entre a prática que diz que toda a mulher que se interessa por futebol é, necessariamente, lésbica ou todo o homem que se interessa por dança é, necessariamente, gay.

Analisando o conteúdo dessas manifestações constatamos que a sociedade e a cultura ocupam posições centrais na produção e reprodução da heteronormatividade. Os comportamentos e comentários heterossexistas pronunciados pelos/as FD, familiares e colegas de turma tem por objetivo vigiar e assegurar que a heterossexualidade seja a orientação sexual a ser percorrida. Na tentativa de assegurar tal orientação, as condutas são geridas e controladas em função das atitudes, gestos e aparências adequadas a cada sexo, generificando os corpos dos sujeitos através de um processo cotidiano que afirma e reafirma suas prescrições (WEST; ZIMMERMAN, 1987WEST, Candance; ZIMMERMAN, Don. Doing gender. Gender & Society, v. 1, n. 2, p. 125-151, 1987.). A educação e o controle dos gestos, das posturas, das brincadeiras, das preferências esportivas e das vestimentas constitui a performatividade das masculinidades e das feminilidades, ou seja, é nas redes de relações que o sujeito vai se constituindo homem ou mulher. Como esse é um processo nunca acabado e em constante reavaliação, as diferentes instâncias sociais agem vigiando, restringindo, orientando que homens e mulheres sejam construídos de modo diferenciado (PEREIRA, 2009PEREIRA, Maria do Mar. Fazendo gênero na escola: uma análise performativa da negociação de género entre jovens. Exaequo, n. 20, p. 113-127, 2009.).

Os resultados oriundos do grupo focal apontam que a família, a escola e a EF, também estão imbricadas na produção de um modelo no qual a heteronormatividade, o heterossexismo e a homofobia estão interligadas e funcionam como a tipologia apontada por Herek (2002HEREK, Gregory M. Gender gaps in public opinion about lesbians and gay men. Public Opinion Quarterly, v. 66 n. 1, p. 40-66, mar. 2002.). Na infância os comportamentos e a aparência dos meninos são mais vigiados do que as das meninas. Já na adolescência buscam gerir seus gestos e condutas de modo a não deixar qualquer suspeita acerca de sua orientação sexual. Alunos mais velhos ensinam os mais novos a não parecerem ser homossexuais (PEREIRA, 2009PEREIRA, Maria do Mar. Fazendo gênero na escola: uma análise performativa da negociação de género entre jovens. Exaequo, n. 20, p. 113-127, 2009.).

Nesse contexto, a EF escolar e mesmo as disciplinas da formação profissional assumem destacada posição ao marcar os corpos de sujeitos em decorrência de suas práticas de modo a dividir práticas esportivas adequadas aos homens e outras adequadas as mulheres. Quando uma criança ou um/a estudante escolhe uma prática corporal e esportiva que não é culturalmente associada ao seu sexo, faz-se um rompimento entre a linearidade sexo-gênero-sexualidade e isso faz dela um alvo de manifestações homofóbicas (ANJOS, 2015ANJOS, Luiza Aguiar dos. “Vôlei masculino é pra homem”: Representações do homossexual e do torcedor a partir de um episódio de homofobia. Movimento, v. 21 n. 1, p. 11-23, jan./mar. 2015.), cujo resultado conecta a prática escolhida a uma orientação não heterossexual. Não há como negar, que o pensamento alicerçado na heteronormatividade, alimenta o heterossexismo e o androcentrismo, cujas bases não só garantem a sustentação, como justificam a homofobia em suas ações concretas de sujeitos e instituições (ALMEIDA; SOARES, 2012).

Os resultados apontam que um conjunto de normas e procedimentos são acionados para constranger as pessoas a agirem dentro de um padrão esperado de conduta e, nesse caso, os comentários ganham um lugar central, uma vez que são, recorrentemente, utilizados para marcar os corpos dos sujeitos, sobretudo, exigem que meninos e meninas, homens e mulheres se comportem e façam escolhas que indiquem uma heterossexualidade pretensamente inquestionável. Qualquer gesto ou conduta que os/as afastem daquilo que é normalizado, será imediatamente corrigido e vigiado pela família, pelos/as amigos/as e colegas da EF.

3.2 COMPORTAMENTOS E COMENTÁRIOS HOMOFÓBICOS

Os resultados extraídos das perguntas (3, 4, 5, 6, 7 e 8) do questionário indicam que é alto o índice de comportamentos homofóbicos entre os/as estudantes, visto que 85,3% afirmaram terem sido testemunhas dessas ações. Todavia, as percepções dos/as FD diminuem para 20,5% quando eles/elas são as vítimas. Além disso, 44% deles/as percebem comportamentos homofóbicos de colegas direcionados aos/as professores/as. Outro resultado que merece destaque, refere-se aos 7,3% dos/das estudantes que disseram serem vítimas de comportamentos homofóbicos oriundos dos/as professores/as.

Esses números indicam que a homofobia é fortemente evidenciada nas relações entre FD na formação profissional em EF. Morrow e Gill (2003MORROW, Ronald G.; GILL, Diane L. Perceptions of homophobia and heterosexism in Physical Education. Research Quarterly for Exercise and Sport, v. 74, n. 2, p. 205-214, 2003.) apontam que 20% dos estudantes homossexuais entrevistados indicaram serem vítimas das condutas homofóbicas advindas de seus colegas. No estudo de Piedra et al. (2013PIEDRA, Joaquín et al. Homofobia, heterosexismo y Educación Física: percepciones del alumnado. Revista Profesorado, v. 17, n. 1, p. 326-338, jan./abr. 2013.), 14% dos estudantes afirmam terem sido alvo de comportamentos homofóbicos praticados pelos/as colegas de classe e 7,6% por parte dos professores. No estudo de Silva, Jaeger e Valdívia-Moral (2018SILVA, Paula; JAEGER, Angelita Alice; VALDÍVIA-MORAL, Pedro. Percepción de los estudiantes sobre comportamentos homofóbicos y heterosexistas en educación física. Revista de Psicología del Deporte, v. 27, n. 2, p. 37-44, 2018.), 73,9% dos/as estudantes presenciaram comportamentos homofóbicos entre seus pares e 52,5% afirmaram que os professores não os testemunharam.

Recorrendo as fontes de pesquisa produzidas nos grupos focais, nota-se que a abordagem do tema desencadeou uma discussão acerca da posição privilegiada ocupada pelos/as docentes, especificamente, em relação às suas condutas em aula acerca dos comportamentos e comentários homofóbicos e como impactam no cotidiano pedagógico e na vida dos/as estudantes.

Acho que ambos conseguem perceber, mas o homem, por ter o futebol, essas coisas no seu cotidiano, eu consigo enxergar que o homem pratica muito isso e eu percebo muito também que, tem muito homem que, é homem velho, doutores inclusive, e são homofóbicos.

A gente sabe de professor que faz piadinha, tipo: Ah! para brincar usa alguma coisa, “viadinho”!

Tenho uma experiência de uma professora falando em sala de aula que o que estudar homossexualidade vai interferir na educação física? É, então assim, são pessoas, são formadoras de opinião e que estão ali com uma postura extremamente retrógrada, para não dizer outra coisa.

Tem professores que agem como se as questões de gênero e sexualidade não tivessem influência no futebol, na ginástica, em tudo. E muito professor e muita professora não reconhece que isso é uma questão de identidade, e as pessoas são a sua identidade por mais que ela não seja fixa.

Muitas vezes, o professor ou a professora abafa uma discussão que pode ter surgido em aula e pode ser um momento oportuno para fazer uma discussão sobre o assunto, porque é algo que repercute na nossa vida, sabe? E não faz nada, eu acho que as pessoas têm medo de tocar no assunto e preferem silenciar.

Eu acho que a homofobia atinge a pessoa totalmente, tanto psicologicamente como tudo, eu acho que ela passa a sofrer no trabalho, sofrer no colégio, na faculdade, em qualquer lugar. Se tu não te sentes bem naquele ambiente, tu estás te sentindo ofendido por alguma coisa, acho que não tem como tu conseguir conviver com aquilo né?

As falas dos FD destacam a posição privilegiada ocupada pelos/as docentes com vistas a problematizar comentários homofóbicos, coibir essas condutas ou silenciar diante delas e, ainda, praticá-las nas relações com seus/uas estudantes. Pesquisas mostram que professores/as de EF escolar utilizam linguagens e comportamentos de modo a afirmar e reafirmar a discriminação e o preconceito em relação aos alunos e alunas homossexuais (CUNHA JÚNIOR; MELO, 1996CUNHA JÚNIOR, Carlos Fernando Ferreira da; MELO, Victor Andrade de. Homossexualidade, educação física e esporte: primeiras aproximações. Movimento, v. 3, n. 5, p. 18-24, 1996.), em outros momentos nada fazem para coibir ou evitar situações em que a homofobia emerge em acontecimentos de aula e, cujo silenciamento, acaba reforçando a discriminação de estudantes que não correspondem às condutas socialmente normalizadas para sexo-gênero-sexualidade (LIONÇO; DINIS, 2009LIONÇO, Tatiana; DINIZ, Debora. Homofobia, silêncio e naturalização: por uma narrativa da diversidade sexual. In: LIONÇO, Tatiana; DINIZ, Debora. (orgs.). Homofobia & Educação: um desafio ao silêncio. Brasília: Letras Livres; EdUnB, 2009. p. 47-72.). Ao que tudo indica, a Educação Física opera como legitimadora e reprodutora da ideologia hegemônica, sexista, patriarcal e machista (PEREIRA et al., 2015PEREIRA, Erik Giuseppe Barbosa et al. Os estudos de gênero e masculinidade e seus reflexos para a Educação Física. Revista Brasileira de Ciência e Movimento, v. 1, n. 23, p. 146-156, mar. 2015.). Visões padronizadas acerca da heterossexualidade e da homossexualidade, assim como de masculinidade e de feminilidade, são frequentemente acentuados nos espaços da EF (AYVAZO; SUTHERLAND, 2009AYVAZO, Shiri; SUTHERLAND, Sue. Uncovering the secrets: Homophobia in Physical Education. Action in Teacher Education, v. 31 n. 3, p. 56-69, 2009.). Os/As FD afirmam que os/as docentes reproduzem e reforçam essas representações e, muitas vezes, não compreendem e não reconhecem a EF como um espaço homofóbico, sobretudo, secundarizam, invisibilizam ou ignoram esta imbricada relação. As piadas, brincadeiras e comentários que os professores/as fazem em aula, geralmente, sustentam uma representação estereotipada que busca identificar na aparência e nos comportamentos dos/as estudantes uma pretensa homossexualidade, cuja orientação, na maioria das vezes, ainda, é representada como desviante e anormal (OLIVEIRA; GODOI; SANTOS, 2014OLIVEIRA, Xênia Ferreira de; GODOI, Marcos Roberto; SANTOS, Luciene Neves. A opinião dos professores de educação física do ensino médio sobre a homossexualidade e a homofobia na escola. Pensar a Prática, v. 17, n. 4, out./dez. 2014.). Em razão dessas condutas, a EF é considerada como um espaço onde o heterossexismo, a heteronormatividade e a homofobia subsistem fervorosamente, sendo o primeiro, ainda, muito celebrado neste contexto (MCCAUGHTRY et al., 2005MCCAUGHTRY, Nate et al. Sexuality sensitive schooling. Quest, v. 57, n. 4, p. 426-443, 2005.).

Os comentários, críticas e insultos homofóbicos também ganharam relevância nesta pesquisa. Os dados mostram que 54,4% dos/as FD afirmam terem feito críticas ou usado insultos homofóbicos no decorrer da formação profissional, assim como, 75,2% deles/as assumiram que em algum momento utilizaram comentários e críticas sexistas homofóbicas ao chamarem os homens de bichas e as mulheres de sapatas. Em outros estudos também é constada a manifestação de comentários homofóbicos oriundos entre estudantes (PIEDRA et al., 2013PIEDRA, Joaquín et al. Homofobia, heterosexismo y Educación Física: percepciones del alumnado. Revista Profesorado, v. 17, n. 1, p. 326-338, jan./abr. 2013.; SILVA; JAEGER; VALDÍVIA-MORAL, 2018SILVA, Paula; JAEGER, Angelita Alice; VALDÍVIA-MORAL, Pedro. Percepción de los estudiantes sobre comportamentos homofóbicos y heterosexistas en educación física. Revista de Psicología del Deporte, v. 27, n. 2, p. 37-44, 2018.), convergindo com os resultados encontrados no Brasil. Ao aprofundar esse tema nos grupos focais, identificou-se os alvos preferenciais dos comentários e os piores insultos na percepção dos/as estudantes.

Eu acho que em geral os homens seriam mais insultados... a mulher ela só é insultada no caso de ter algo físico, aparente que mostre. O homem não!

Eu acho que o pior mesmo é a questão da homofobia, tanto para o homem quanto para a mulher, falando de uma forma bem senso-comum: sapatão, bicha.

Particularmente acho que os homens percebem mais isso, por causa da masculinidade. Se tu não és aquela figura masculina tu és gay, tu és veadinho, tu és puto.

Mas eu ainda acho que o pior é veadinho. Muito pior, é mais pejorativo ainda! Veadinho, além de veado, é diminutivo!

Sapatão ou machorra é aquela imagem que a pessoa passa né? Não corresponder a uma feminilidade completa, não usar saia e vestido.

Machorra porque traz muita a questão da masculinidade, o que diferencia de lésbica. “Ah é lésbica”. A primeira coisa que me vem à cabeça, normalmente, é aquela coisa mais de um fetiche assim, duas mulheres lindas, maravilhosas.

Os insultos homofóbicos são mais frequentes entre os FD homens e os mesmos são as vítimas preferenciais, o que corrobora com outro estudo, cujos resultados apontam que os homens utilizam com maior frequência a linguagem heterossexista e homofóbica (PIEDRA et al., 2013PIEDRA, Joaquín et al. Homofobia, heterosexismo y Educación Física: percepciones del alumnado. Revista Profesorado, v. 17, n. 1, p. 326-338, jan./abr. 2013.). Os insultos e comentários homofóbicos constituem a performatividade da masculinidade referente, ou seja, a utilização de expressões homofóbicas serve para regular as condutas dos rapazes. Seus comportamentos, os gestos, a aparência, as escolhas esportivas são monitoradas pelos/as colegas de modo a demarcar qualquer manifestação que se afasta de um padrão heterossexual, identificando-a como inapropriada (PEREIRA, 2009PEREIRA, Maria do Mar. Fazendo gênero na escola: uma análise performativa da negociação de género entre jovens. Exaequo, n. 20, p. 113-127, 2009.). Embora, os homens sejam as vítimas mais frequentes de comportamentos e comentários homofóbicos, as mulheres não estão isentas de serem alvo destas ações, basta não seguirem os atributos da feminilidade normalizada.

Os excertos que mostram os piores insultos indicam uma hierarquização entre as expressões. Quando as mulheres ouvem insultos elas são chamadas de lésbica, “sapata” ou “machorra”, cujas representações assumem conotações diferentes. A primeira vincula-se as mulheres que performatizam uma feminilidade padrão e vivem seus desejos e prazeres com outras mulheres. A segunda e a terceira remetem as representações associadas à masculinidade, seja no corte de cabelo, nas roupas, adereços ou práticas esportivas. Em relação aos homens, os piores insultos são marcados pelas expressões: gay, “viado”, “puto” e “viadinho”. O impacto negativo da linguagem é inquestionável. Todavia, o último xingamento é o que mais machuca e reverbera na identidade dos estudantes, pois além do insulto marcar o sujeito, ainda o diminui, sendo duplamente depreciativo. Sykes (2004SYKES, Heather. Pedagogies of censorship, injury, and masochism: teacher responses to homophobic speech in physical education. Journal of Curriculum Studies, v. 36, n. 1, p. 75-99, 2004.) aponta que expressões como duke, fag e queer são frequentemente utilizadas entre estudantes para insultar colegas. É a força da linguagem ao ser utilizada violentamente para marcar os/as estudantes desviantes ou que parecem desviar-se das normas de gênero (PEREIRA, 2009PEREIRA, Maria do Mar. Fazendo gênero na escola: uma análise performativa da negociação de género entre jovens. Exaequo, n. 20, p. 113-127, 2009.). A linguagem pejorativa é um dos mecanismos utilizados na EF para oprimir alunos homossexuais (CLARKE, 2006CLARKE, Gill. Sexuality and Physical Education. In: KIRK, David; MACDONALD, Doune; O’SULLIVAN, Mary. (orgs.). The Handbook of Physical Education. Londres: Sage, 2006. p. 723-739.).

3.3 INCLUSÃO E POSSIBILIDADES DE MUDANÇA

A análise das frequências de respostas mostrou que 95,8% dos/as FD dizem utilizar linguagem inclusiva nos espaços de formação profissional, assim como afirmam que 57,1% dos/as docentes utilizaram pelo menos uma vez personagens homossexuais para exemplificar situações em aula. Espaços de inclusão e livres de discriminação foram criados pelos/as professores/as na opinião de 86,1% dos/as estudantes. Nota-se que a formação profissional em EF apresenta algumas iniciativas e ações para tornar o ambiente mais receptivo à diversidade de sujeitos. Embora esses resultados inspirem otimismo, essas ações ainda são insuficientes, como observou-se nos altos percentuais de comportamentos e comentários heterossexistas e homofóbicos percebidos pelos/as FD em aula.

Diante desses resultados, os/as estudantes foram desafiados a sugerir ações que pudessem ser incorporadas à formação profissional de modo a possibilitar mudanças em relação aos comportamentos e comentários heterossexistas e homofóbicos, tornando o espaço mais receptivo às diferentes performatividades de gênero e orientação sexual. Diante de tal provocação, responderam:

Acho que pelo menos as pessoas deveriam ser instigadas a respeitar o próximo, porque antes da nossa sexualidade ou gênero, seja lá o que for, a gente é uma pessoa, sabe?

Eu acho que conhecimento e informação, quanto mais esse assunto for difundido, mais as pessoas vão tratar isso como uma coisa que acontece. E para o preconceito a única coisa que se salva é informação e conhecimento.

Para a gente mudar o nosso comportamento e fazer alguma diferença é preciso não aceitar o comportamento dos professores, e dos colegas que acabam cada vez mais estimulando preconceito.

Então a gente pode mudar isso construindo mesas redondas, uma semana acadêmica, mais cadeiras obrigatórias, também, seria interessante, disciplinas que dialoguem para além das DCGs [Disciplinas Complementares de Graduação].

Entre as sugestões levantadas destaca-se o respeito como um valor a ser cultivado entre as pessoas, independente da sua performatividade de gênero ou orientação sexual. O currículo e, sobretudo, as disciplinas foram apontadas como elemento central para oportunizar aos/as estudantes conhecimentos e debates que problematizem o contexto da EF, destacando a atuação dos/as professores/as e as relações entre colegas buscando não silenciar ou invisibilizar as condutas heterossexistas e homofóbicas que emergem nas aulas. Além disso, destacam a secundarização que esses temas têm enfrentado, tanto na estrutura da formação profissional, na hierarquização dos conteúdos e nas condutas dos/as docentes que não entendem a EF e o esporte como espaços em que o heterossexismo e a homofobia são produzidos e reafirmados. Em suma, é fundamental admitir que a homofobia e o heterossexismo estão ocultos nos currículos (SYKES, 2004SYKES, Heather. Pedagogies of censorship, injury, and masochism: teacher responses to homophobic speech in physical education. Journal of Curriculum Studies, v. 36, n. 1, p. 75-99, 2004.). Esse reconhecimento exige que os/as docentes perscrutem suas práticas pedagógicas, inquirindo acerca das representações de pessoa, de sociedade e de mundo que ancoram as suas ações. Sobretudo, é importante que criem condições para desenvolver as suas aulas em um ambiente física e emocionalmente seguro para todos/as estudantes (AYVAZO; SUTHERLAND, 2009AYVAZO, Shiri; SUTHERLAND, Sue. Uncovering the secrets: Homophobia in Physical Education. Action in Teacher Education, v. 31 n. 3, p. 56-69, 2009.). Tais ações passam pelo reconhecimento da fluidez das identidades e as múltiplas possibilidades que as feminilidades e as masculinidades assumem nas diferentes práticas esportivas, alimentando uma nova cultura de gênero (AZZARITO; KATZEW, 2010AZZARITO, Laura; KATZEW, Adriana. Performing identities in physical; (Em)gendering fluid selves. Research Quaterly for Exercise & Sport, v. 81, n. 1, p. 25-37, 2010.) que respeite a diversidade de sujeitos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo a percepção dos/as FD os comportamentos e comentários heterossexistas e homofóbicos marcam fortemente a formação profissional em EF. Tais condutas emergem na sociedade e na cultura e como um fenômeno em cascata reverberam na família, na escola e na EF. Embora os meninos e homens sejam os alvos mais frequentes e são os mais vigiados, as meninas e as mulheres também são vítimas quando apresentam qualquer gesto, aparência ou escolha esportiva que se afaste do que é normalizado como pertencente às mesmas.

A homofobia e o heterossexismo marcam profundamente a vida pessoal e profissional dos sujeitos e a EF tem se constituído como um território em que esses comportamentos são constantemente estimulados e reafirmados, seja na conduta dos/as docentes, na estrutura curricular, na hierarquia entre as disciplinas e seus conteúdos, nas representações que marcam certas temáticas de estudo. Enfim, é preciso admitir que a heteronormatividade atravessa a formação profissional. Diante desse reconhecimento, é imprescindível promover ações e debates com vistas a compreender que a performatividade de gênero e a sexualidade são diversas e constituem o caráter marcadamente plural da nossa sociedade.

Embora a pesquisa tenha focalizado o sul do Brasil e, sendo esse um território marcado por uma cultura conservadora, não foi possível afirmar que os resultados obtidos se afastem daqueles encontrados em Espanha (PIEDRA et al., 2013PIEDRA, Joaquín et al. Homofobia, heterosexismo y Educación Física: percepciones del alumnado. Revista Profesorado, v. 17, n. 1, p. 326-338, jan./abr. 2013.) e em Portugal (SILVA; JAEGER; VALDÍVIA-MORAL, 2018SILVA, Paula; JAEGER, Angelita Alice; VALDÍVIA-MORAL, Pedro. Percepción de los estudiantes sobre comportamentos homofóbicos y heterosexistas en educación física. Revista de Psicología del Deporte, v. 27, n. 2, p. 37-44, 2018.). Assim, assumimos que essa é uma limitação do estudo e sugerimos que novas pesquisas sejam realizadas focalizando diferentes contextos culturais. A ausência de referências ás pessoas trans no contexto da formação profissional em EF, também constitui uma limitação do estudo. Tal silenciamento pode ser efeito do enfoque do questionário e/ou da invisibilidade trans entre os/as estudantes, uma vez que a questão não despontou nas discussões produzidas nos grupos focais, o que nos faz destacar a urgência dessa temática em estudos futuros. Por fim, destacamos que a comunidade acadêmica deve se sentir envolvida em um currículo que privilegie a diversidade e seja suporte ao exercício de uma profissão pautada em uma conduta ética, alinhada ao combate da homofobia, da transfobia e do heterossexismo e voltada para uma formação profissional inclusiva e livre de preconceitos. Essa é a Educação Física que desejam estudantes e docentes que construíram esta pesquisa.

REFERÊNCIAS

  • ALMEIDA, Marco Bettine; SOARES, Alessandro da Silva. O futebol no banco dos réus: caso da homofobia. Movimento, v.18, n. 1, p. 301-321, jan./mar. 2012.
  • ALTMANN, Helena. Diversidade sexual e educação: desafios para a formação docente. Sexualidad, salud y sociedad: Revista Latinoamericana, n. 13, p. 69-82, abr. 2013.
  • ANDERSON, Erin; MCCORMACK, Mark. Cuddling and spooning: heteromasculinity and homosocial tactility among students-athletes. Men and Masculinities, v. 18, n. 2, p. 214-230, mar. 2014.
  • ANDRES, Suelen; JAEGER, Angelita Alice; GOELLNER, Silvana Vilodre. Educar para a diversidade: gênero e sexualidade segundo a percepção de estudantes e supervisoras do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (UFSM). Revista da Educação Física/UEM, v. 26, n. 2, p. 167-179, 2015.
  • ANJOS, Luiza Aguiar dos. “Vôlei masculino é pra homem”: Representações do homossexual e do torcedor a partir de um episódio de homofobia. Movimento, v. 21 n. 1, p. 11-23, jan./mar. 2015.
  • AYVAZO, Shiri; SUTHERLAND, Sue. Uncovering the secrets: Homophobia in Physical Education. Action in Teacher Education, v. 31 n. 3, p. 56-69, 2009.
  • AZZARITO, Laura; KATZEW, Adriana. Performing identities in physical; (Em)gendering fluid selves. Research Quaterly for Exercise & Sport, v. 81, n. 1, p. 25-37, 2010.
  • BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.
  • BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
  • BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
  • CLARKE, Gill. Sexuality and Physical Education. In: KIRK, David; MACDONALD, Doune; O’SULLIVAN, Mary. (orgs.). The Handbook of Physical Education. Londres: Sage, 2006. p. 723-739.
  • CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: método qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Penso, 2016.
  • CUNHA JÚNIOR, Carlos Fernando Ferreira da; MELO, Victor Andrade de. Homossexualidade, educação física e esporte: primeiras aproximações. Movimento, v. 3, n. 5, p. 18-24, 1996.
  • DINIS, Nilson Fernandes. Homofobia e educação: quando a omissão também é signo de violência. Educar em Revista, n. 39, p. 39-50, jan./abr. 2011.
  • FERFOLJA, Tania; ROBINSON, Kerry H. Why anti-homophobia education in teacher education? Teaching Education Journal, v. 15 n. 1, p. 9-25, 2004.
  • GASKELL, George. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, Martin; GASKELL, George. (coords.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2004.
  • GIBBS, Graham. Análise de dados qualitativos. Porto Alegre: Artmed, 2009.
  • GRINDSTAFF, Laura; WEST, Emily. Hegemonic masculinity on the sidelines of sport. Sociology Compass, v. 5 n. 10, p. 859-881, out. 2011.
  • HEREK, Gregory M. Gender gaps in public opinion about lesbians and gay men. Public Opinion Quarterly, v. 66 n. 1, p. 40-66, mar. 2002.
  • HEREK, Gregory M. Confronting sexual stigma and prejudice: theory and practice. Journal of social issues, v. 63, n. 4, p. 905-925, 2007.
  • JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia na escola: um problema de todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz. (org.). Diversidade Sexual na Educação. Brasília: MEC/UNESCO, 2009. p. 13-51.
  • LIONÇO, Tatiana; DINIZ, Debora. Homofobia, silêncio e naturalização: por uma narrativa da diversidade sexual. In: LIONÇO, Tatiana; DINIZ, Debora. (orgs.). Homofobia & Educação: um desafio ao silêncio. Brasília: Letras Livres; EdUnB, 2009. p. 47-72.
  • MCCAUGHTRY, Nate et al. Sexuality sensitive schooling. Quest, v. 57, n. 4, p. 426-443, 2005.
  • MELLO, Luiz; REZENDE, Bruno de Avelar; MAROJA, Daniela. Por onde andam as políticas públicas para a população LGBT no Brasil. Sociedade e Estado, v. 27, n. 2, p. 289- 312, maio/ago. 2012.
  • MORROW, Ronald G.; GILL, Diane L. Perceptions of homophobia and heterosexism in Physical Education. Research Quarterly for Exercise and Sport, v. 74, n. 2, p. 205-214, 2003.
  • OLIVEIRA, Xênia Ferreira de; GODOI, Marcos Roberto; SANTOS, Luciene Neves. A opinião dos professores de educação física do ensino médio sobre a homossexualidade e a homofobia na escola. Pensar a Prática, v. 17, n. 4, out./dez. 2014.
  • PEREIRA, Erik Giuseppe Barbosa et al. Os estudos de gênero e masculinidade e seus reflexos para a Educação Física. Revista Brasileira de Ciência e Movimento, v. 1, n. 23, p. 146-156, mar. 2015.
  • PEREIRA, Maria do Mar. Fazendo gênero na escola: uma análise performativa da negociação de género entre jovens. Exaequo, n. 20, p. 113-127, 2009.
  • PIEDRA, Joaquín et al. Homofobia, heterosexismo y Educación Física: percepciones del alumnado. Revista Profesorado, v. 17, n. 1, p. 326-338, jan./abr. 2013.
  • PETER, Tracey; TAYLOR, Catherine. Queer bullying: how homophobia, biphobia and transphobia hurt students. Herizons, v. 26, n. 4, p. 22-27, 2013.
  • PRADO, Vagner Matias do; RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Gêneros, sexualidades e educação física escolar: um início de conversa. Motriz, v. 16, n. 2, p. 402-413, abr./jun. 2010.
  • REBOLLO CATALÁN, Maria Angeles et al. Diagnóstico de la cultura de género em educación: actitudes del professorado hacia la igualdad. Revista de Educación, n. 355, p. 521-546, maio/ago. 2011.
  • ROBINSON, Kerry H.; FERFOLJA, Tania. Playing it up, playing it down, playing it safe: queering teacher education. Teaching and teacher education, v.24, n. 4, p. 846-858, 2008.
  • SEFFNER, Fernando. Sexualidade: isso é mesmo matéria escolar? Teoria e prática da educação, v. 17, n. 2, p. 67-81, 2014.
  • SILVA, Paula; JAEGER, Angelita Alice; VALDÍVIA-MORAL, Pedro. Percepción de los estudiantes sobre comportamentos homofóbicos y heterosexistas en educación física. Revista de Psicología del Deporte, v. 27, n. 2, p. 37-44, 2018.
  • SYKES, Heather. Pedagogies of censorship, injury, and masochism: teacher responses to homophobic speech in physical education. Journal of Curriculum Studies, v. 36, n. 1, p. 75-99, 2004.
  • WEST, Candance; ZIMMERMAN, Don. Doing gender. Gender & Society, v. 1, n. 2, p. 125-151, 1987.
  • Apoio financeiro:

    Recebido através do edital 004/2014-PRPGP/UFSM e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 00. This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -Finance Code 001.
  • 1
    Protocolo nº 38152214.0.0000.5346.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2018
  • Aceito
    06 Maio 2019
  • Publicado
    19 Jun 2019
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: movimento@ufrgs.br