Acessibilidade / Reportar erro

“A CABEÇA CONTINUA DE GORDO”: DILEMAS DA GESTÃO DE SI DE PESSOAS SUBMETIDAS A CIRURGIA BARIÁTRICA

“THE MIND IS STILL THAT OF A FAT PERSON”: SELF-MANAGEMENT DILEMMAS OF PEOPLE WHO UNDERWENT BARIATRIC SURGERY

“LA CABEZA TODAVÍA ES DE GORDO”: DILEMAS DE LA GESTIÓN DE SÍ DE PERSONAS SOMETIDAS A CIRUGÍA BARIÁTRICA

Resumo

Buscamos analisar alguns conflitos envolvidos nas experiências de pessoas submetidas a cirurgia bariátrica, recurso adotado após suas tentativas frustradas de controle do peso. Utilizamos uma metodologia qualitativa e realizamos uma observação participante aliada a entrevistas semiestruturadas. Os dados obtidos revelam trajetórias marcadas pela angústia diante de um corpo que escapa ao controle da pessoa e que se configura como ameaça a ela própria. Sentimentos como culpa e vergonha expressam o reconhecimento da falha de seu projeto de autogestão. Os relatos sobre o pós-cirúrgico sugerem a permanência de um processo da racionalização de si constantemente ameaçado pela gordura, o que se reflete principalmente no medo do reganho de peso. Ainda em relação a essa fase, alguns participantes expressaram a dificuldade de gerenciar o novo corpo de acordo com as orientações médicas, enquanto outros expuseram o dilema de não reconhecer-se na nova aparência.

Palavras chave:
Cirurgia bariátrica; Obesidade; Corpo humano; Cultura

Abstract

We analyzed some conflicts involved in the experiences of people who underwent bariatric surgery after failed attempts at controlling their weight. We used a qualitative method and conducted participant observation together with semi-structured interviews. The data gathered reveal life histories full of anguish when facing a body that gets out of control and becomes a threat. Feelings such as guilt and shame express acknowledgment of failure in their self-management processes. Post-surgery reports suggest remaining self-rationalization processes being constantly threatened by fatness, which reflects mainly on their fear of regaining weight. Still on that period, some subjects expressed trouble to manage their new bodies according to medical directions while others described their dilemma for not recognizing themselves in their new appearance.

Keywords:
Bariatric Surgery; Obesity; Human Body; Culture

Resumen

Buscamos analizar algunos conflictos relacionados con las experiencias de personas sometidas a cirugía bariátrica, recurso adoptado tras intentos frustrados de control del sobrepeso. Utilizamos una metodología cualitativa y realizamos una observación participante, junto a entrevistas semiestructuradas. Los datos obtenidos revelan trayectorias marcadas por la angustia ante un cuerpo que escapa al control personal y que se configura como amenaza para uno mismo. Sentimientos como culpa y vergüenza expresan el reconocimiento del fracaso de su proyecto de autogestión. Los relatos sobre el período posquirúrgico sugieren la permanencia de un proceso de racionalización de sí mismo constantemente amenazado por la grasa corporal, lo que se refleja principalmente en el miedo a recuperar peso. Aún en relación a este periodo, algunos participantes expresaron la dificultad de administrar el nuevo cuerpo de acuerdo con las orientaciones médicas, mientras que otros expusieron el dilema de no reconocerse en la nueva apariencia.

Palabras clave:
Cirugía bariátrica; Obesidad; Cuerpo humano; Cultura

1 INTRODUÇÃO

A cirurgia bariátrica é uma técnica indicada para o tratamento da obesidade considerada num nível crítico e quando associada à presença de comorbidades. Foi referenciada pelos participantes deste estudo como uma decisão drástica, adotada após tentativas malogradas de controle do peso e, em alguns casos, de problemas de saúde associados à elevação do índice de massa corpórea. O Ministério da Saúde recomenda que a técnica seja adotada apenas como último recurso, visto que a intervenção cirúrgica se constitui como uma parte do tratamento integral da obesidade, devendo ser priorizados a promoção da saúde e o cuidado clínico:

Para ser um paciente com indicação para a cirurgia, ele não deve ter respondido ao tratamento clínico. Ou seja, recebeu orientação e apoio para mudança de hábitos, realizou dieta, teve atenção psicológica, realizou atividade física e, em alguns casos, fez uso de medicamentos por, no mínimo, dois anos. Esgotadas as possibilidades de tratamento clínico (medidas comportamentais e medicamentos), o paciente poderá ser avaliado para fazer a cirurgia bariátrica1 1 Disponível em http://www.blog.saude.gov.br/entenda-o-sus/50927-cinco-fatos-que-voce-precisa-saber-sobre-a-cirurgia-bariatrica-no-sushtml.html. Acesso em: 18 jul. 2019. .

O tema do estudo está diretamente relacionado aos modelos subjetivos que têm sido produzidos e enaltecidos pela cultura do corpo que marca a contemporaneidade, cenário de uma produção corporal em que a gordura, assim como qualquer traço evocador do envelhecimento (SANT’ANNA, 2016SANT’ANNA, Denise Bernuzzi De. Gordos, Magros e Obesos: Uma História de Peso No Brasil. São Paulo, Estação Liberdade, 2016.), constitui-se como uma ameaça a ser constantemente monitorada pela pessoa. Desse modo, sem desconsiderar os fatores de origem genética, fisiológica, metabólica, hormonal (dentre outros aos quais a obesidade pode estar vinculada), também a percebemos enquanto uma experiência construída em meio aos valores atribuídos ao corpo e aos mecanismos culturais pelos quais organizamos os seus usos.

A fala que constitui parte do título deste trabalho sugere o que pretendemos contemplar aqui: a marca dos excessos que desafiam projetos subjetivos ancorados na possibilidade do controle técnico do corpo. Nessa direção, o objetivo desta análise é compreender os conflitos envolvidos nos processos de autogerenciamento de pessoas submetidas a cirurgia bariátrica.

Ao consagrarem o corpo como emblema de si, conforme sugere Le Breton (2007, p. 31), as sociedades contemporâneas estabelecem uma equivalência entre a condição corporal e as capacidades do sujeito. Os recursos oferecidos pelo campo da biotecnologia e da indústria corporal como um todo, aliados a uma perspectiva de valorização dos esforços pessoais, são elementos nitidamente apropriados nas percepções culturais em torno da pessoa gorda: nesse contexto, não são raras as associações negativas feitas em torno da imagem do seu corpo, assim como também sua subjetividade sofre a interferência dessas padronizações que a associam a preguiça, indisciplina, desleixo, descontrole, falta de força de vontade.

Vemos, contudo, que essas construções são historicamente variáveis. Poulain (2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013.) refere-se a contextos culturais em que a corpulência se constituiu como um atributo desejável, tendo sido “os corpos carnudos relacionados à saúde e à fecundidade”, ao passo que a magreza, por muito tempo, “foi associada à doença, à melancolia e à esterilidade” (POULAIN, 2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013., p. 31). Ao mesmo tempo em que identifica os processos pelos quais a gordura corporal passou a ser estigmatizada, Vigarello (2012) não deixa de considerar as configurações sociais em que foi encarada como sinal de prestígio e poder, e nas quais se pode observar a simultaneidade de elogios e críticas direcionados ao corpo gordo. Sant’Anna (2016) também pontua mudanças históricas ao enfatizar que, em outros momentos, “a preocupação com a falta de alimentos era maior do que a necessidade de emagrecer”, e que foi principalmente a partir de meados do século XX que o ideal de uma “aparência física leve e longilínea” começou a configurar-se como desejável (SANT’ANNA, 2016SANT’ANNA, Denise Bernuzzi De. Gordos, Magros e Obesos: Uma História de Peso No Brasil. São Paulo, Estação Liberdade, 2016., p.16).

Trazer essas considerações não significa negar que existissem limites socialmente estipulados que faziam do corpo gordo um problema, conforme também aponta Poulain (2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013.) ao explicitar que “a obesidade sempre desafiou a medicina […] em função dos conceitos científicos e imaginários sociais ligados a cada época” (POULAIN, 2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013., p. 158). Ainda assim, é preciso ter em mente que essas representações da gordura não tinham os mesmos sentidos que adquiririam posteriormente, sobretudo a partir de um movimento gradual pelo qual se firmou o reconhecimento da obesidade enquanto patologia (POULAIN, 2013).

Cabe dizer, a partir dos estudos de Santolin e Rigo (2015SANTOLIN, Cezar Barbosa; RIGO, Luiz Carlos. O nascimento do discurso patologizante da obesidade. Movimento, v. 21, n. 1, 2015. DOI:https://doi.org/10.22456/1982-8918.46172
https://doi.org/10.22456/1982-8918.46172...
, p. 92), que “a emergência do conceito de obesidade e a patologização dessa condição ocorreram em momentos históricos relativamente recentes no Ocidente”. Nesse sentido, ela legitimou-se, paulatinamente, como tema da medicina, passando a ser vista como “causa de doenças, objeto de uma argumentação sanitária cada vez mais avançada, de uma lenta, porém contínua, medicalização, até ser finalmente designada como epidemia mundial” (POULAIN, 2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013., p.158). Obviamente, isso significou uma reestruturação da análise do corpo gordo a partir dos critérios de avaliação, dos cálculos e das medidas característicos da racionalidade científica.

Vale ressaltar que, apesar dos distintos discursos acerca da gordura que marcaram cada época, as representações mais atuais não deixam de trazer certas ressonâncias de um projeto deflagrado na modernidade, pelo qual o corpo transformou-se em objeto a ser controlado através dos saberes e técnicas que vinham se desenvolvendo. Nesse caminho, instaurou-se uma fragmentação entre ele e a pessoa (o que se faz fundamental para entendermos as lógicas que atravessam as experiências que analisaremos mais adiante). Tal cenário trouxe, por consequência, a valorização dos atributos mentais, ao passo que se consolidou a visão do corpo enquanto domínio a ser administrado e controlado pelo sujeito. Em suma, a capacidade de racionalizá-lo tornou-se o eixo de um novo modelo subjetivo. Essa dinâmica adquire um sentido específico em se tratando da patologização da obesidade, dado que, diante disso, não somente o corpo, mas também a subjetividade da pessoa serão negativamente ressignificados.

A partir do ano de 1997, a obesidade passou a ser classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como epidemia global. Atualmente, tem sido apontada como um dos maiores problemas de saúde pública no mundo. De acordo com Poulain (2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013.), essa designação também contribuiu para a inclusão dos modos de vida e os hábitos alimentares como fatores determinantes, no que vemos um mecanismo importante para a responsabilização da pessoa pela sua própria condição.

Uma breve análise das narrativas e das representações produzidas, seja pelo senso comum, seja pelos veículos midiáticos e pela publicidade da indústria do emagrecimento, indicam uma propensão a situar a questão da obesidade a partir de um enfoque nos comportamento individual, o que também reflete a exacerbação da dinâmica subjetiva que marcou a modernidade, conforme apontamos há pouco. A esse respeito, Mélo (2012MÉLO, Roberta de Sousa. Da visibilidade dos corpos disformes: um estudo sobre cirurgias cosméticas mal sucedidas. 2012. 207 f. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.) identifica, no discurso científico contemporâneo, “o triunfo de uma tendência a reconhecer e controlar aquilo que em nós se revela como perigoso”, e, nesse sentido, somos estimulados a encarar nosso corpo como uma “ameaça à nossa dignidade de sujeito” (MÉLO, 2012MÉLO, Roberta de Sousa. Da visibilidade dos corpos disformes: um estudo sobre cirurgias cosméticas mal sucedidas. 2012. 207 f. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012., p.16).

É precisamente no contexto mais atual que se reconhecem possibilidades inéditas de conhecer, monitorar e modificar o corpo, conforme também destaca a autora. Sob tal lógica, a falta de cuidado em relação a ele torna-se cada vez mais injustificável, sendo o corpo obeso apontado como ilustrativo do controle precário de si mesmo. Temos, portanto, nessa mesma conjuntura, uma ideia de agência sobre o corpo que, na realidade, traduz o dever moral de administrarmos as ameaças à nossa própria vida, no que se inclui a obesidade.

A esse propósito, vale destacar a leitura de Beck, Giddens e Lash (1995BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed.Unesp, 1995.), que enxergam no gerenciamento dos riscos a questão central das sociedades contemporâneas, o que conduziria a um cenário de condições favoráveis à autorreflexão de que nos falam os autores. Nesse sentido, a percepção dos riscos levaria os sujeitos a refletirem sobre as condições de sua própria existência, o que, por consequência, lhes possibilitaria modificá-las.

De acordo com Giddens (1991GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.), os meios de administrarmos essas ameaças seriam, no caso, fornecidos pelo que o autor denomina como “sistemas abstratos”, ao referir-se a um processo através do qual tanto a nossa vida pessoal quanto as relações sociais mais amplas se veem penetradas e organizadas pelo conhecimento especializado e pela autoridade dos sistemas peritos. A escolha de estilo de vida se torna “cada vez mais importante na constituição da autoidentidade e da atividade diária”, e o corpo, por sua vez, torna-se “uma questão de escolhas e opções” (GIDDENS, 2002GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002., p.15). Desse modo, o seu gerenciamento passa a se constituir como um fator determinante da avaliação do êxito ou da precariedade do projeto reflexivo do eu e, portanto, da autogestão, o que traz um problema crucial aos interesses do nosso estudo.

À medida que a gordura oficializou-se como um problema, tanto pelo crivo médico como socialmente (POULAIN, 2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013.), o indivíduo gordo tornou-se igualmente alvo de um monitoramento. Mas, para além de uma questão puramente médica, a leitura que se faz da pessoa gorda é, antes de tudo, de ordem moral: o seu corpo e sua subjetividade são codificados como a denúncia de um processo falho de autogerenciamento e do controle de excessos. Em tal contexto, a obesidade expressa, no limite, o risco vivido pela pessoa, lhe exigindo uma correção (VILHENA; NOVAES; ROCHA, 2008VILHENA, Junia de; NOVAES, Joana de Vilhena; ROCHA, Livia. Comendo, comendo e não se satisfazendo: apenas uma questão cirúrgica? Obesidade mórbida e o culto ao corpo na sociedade contemporânea. Revista Mal-Estar e Subjetividade, v. 8, n. 2, p. 379-406, jun. 2008.), assim como uma transformação profunda de seus hábitos e cuidados cotidianos.

Ela passa também a ser lida como uma questão totalmente autorreferente e que, portanto, se encerra nas próprias escolhas do indivíduo a partir dos riscos à saúde que têm sido amplamente difundidos. Este último é, afinal, tido como “responsável pela sua própria patologia” e, por tal lógica, a obesidade é “deslocada para uma deformação do caráter na qual parece existir espaço para um ato volitivo do sujeito” (VILHENA; NOVAES; ROCHA, 2008VILHENA, Junia de; NOVAES, Joana de Vilhena; ROCHA, Livia. Comendo, comendo e não se satisfazendo: apenas uma questão cirúrgica? Obesidade mórbida e o culto ao corpo na sociedade contemporânea. Revista Mal-Estar e Subjetividade, v. 8, n. 2, p. 379-406, jun. 2008., p.383). Nesse contexto, a opção por submeter-se ao procedimento é parte das ponderações feitas pela pessoa mediante as ameaças que seu corpo representa e, do mesmo modo, se constitui como processo de racionalização de si a partir dos saberes e técnicas fornecidas pelos sistemas peritos.

Gostaríamos de ressaltar que, embora as experiências aqui analisadas envolvam momentos analíticos mais estruturais, dadas as construções negativas da obesidade que permeiam o imaginário cultural em questão, é preciso entender que elas coexistem com formas de produção de significados pela própria pessoa. Afinal, a aversão à gordura que tem orientado os projetos de construção de si característicos da contemporaneidade não se faz sem transgressões ou inversões dessas simbologias.

Algo nessa direção pode ser vislumbrado a partir de um notável ativismo nas redes sociais que tem como pauta a luta contra a gordofobia, conceito que, de acordo com Rodrigues e Arcoverde (2014RODRIGUES, Ramilla Corrêa; ARCOVERDE, Vanessa Machado. Cinderela não é gorda: análise da personagem Perséfone na novela Amor à Vida. 2014. 76 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Comunicação Social) - Universidade de Brasília, Brasília, 2014.), refere-se às estigmatizações vividas pelas pessoas gordas a partir da interferência de aparatos diversos, como o cultural, o midiático e o médico. Por meio dessa militância, tem-se trazido ao debate formas de questionamento e de enfrentamento dos padrões corporais socialmente estabelecidos e das restrições que eles estabelecem nas vivências cotidianas de pessoas gordas.

De modo semelhante, o posicionamento de adeptos do movimento conhecido como Body Positive2 2 Ver “O que é Body Positive?”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U-R8DslWtKA Acesso em 18 jul. 2019. 3 3 Tal movimento é tributário do Body Positivity, o qual, como explicita a jornalista Amanda Mull, surgiu nos anos 1960 nos Estados Unidos, orientado por uma ideologia crítica ao capitalismo e mobilizando protestos contra a indústria da dieta e a discriminação dos corpos gordos. Mas, embora reconheça o caráter subversivo do movimento em sua origem, a autora se opõe ao modo como o mercado da beleza tem se apropriado do conceito. Ver artigo Body Positivity is a Scam, disponível em: https://www.vox.com/2018/6/5/17236212/body-positivity-scam-dove-campaign-ads. Acesso em 21 Jun. 2019 , que também tem tido importante repercussão nas redes sociais, se destina a estimular, entre as pessoas, a aceitação do próprio corpo, bem como o respeito à diversidade das formas corporais. Com isso solicitam, em suas redes sociais, um olhar crítico em torno das estigmatizações sofridas pelo corpo gordo, sobretudo aquelas que convencionalmente o destituem de saúde, sensualidade, beleza, vaidade, desejo. Para além dessas questões, sugerem que a valorização das diferenças deve se refletir também na acessibilidade e nas possibilidades a serem oferecidas a todos os corpos nos mais variados ambientes e espaços da vida social. Dentro desse panorama, a noção de representatividade se coloca como fundamental.

Logo, o estudo reconhece que o cenário de limites restritivos que se colocam às vivências dessas pessoas é também o de possibilidades de ação, bem como de produção de significações de si e do próprio corpo que são elaboradas a partir das suas experiências cotidianas.

2 METODOLOGIA

O estudo situa-se no campo das relações sociais e da subjetividade humana, motivo pelo qual foi adotada uma metodologia de pesquisa qualitativa4 4 A pesquisa foi realizada mediante análise e aprovação pelo CEDEP - Comitê de Ética e Deontologia em Estudos e Pesquisas da Universidade Federal do Vale do São Francisco (CAAE - 80915317.9.0000.5196). . Utilizamos a observação participante como primeira técnica de investigação, entendendo que tal recurso metodológico se adequa às premissas da pesquisa de campo expostas por Malinowski (1978MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do pacífico ocidental. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural.1978.), que, dentre outros aspectos, trata da importância do contato do pesquisador com a realidade estudada, permitindo, assim, sua aproximação com os atores em seu próprio cotidiano. Seu uso justificou-se pelo nosso interesse em presenciar as reuniões de um grupo de orientação e de acompanhamento de pacientes submetidos a cirurgia bariátrica5 5 O grupo tem por objetivo a conscientização dos riscos e benefícios envolvidos na cirurgia bariátrica, além dos cuidados a serem tomados no período anterior e posterior ao procedimento. , mediante autorização do seu coordenador, um médico especialista em cirurgia do aparelho digestivo.

Os encontros aconteciam uma vez a cada mês e eram abertos a pessoas que cogitavam se operar ou buscar informações sobre o procedimento. Ao longo das observações, registramos os fatos e eventos considerados mais marcantes, bem como nossas impressões acerca das interações e dos diálogos presenciados naquele espaço. Eram comuns os depoimentos de interlocutores que já haviam sido submetidos a cirurgia bariátrica, os quais tinham como foco as mudanças corporais e os aspectos psicológicos envolvidos desde a decisão pelo procedimento até o seu momento atual.

Em relação à plateia, vale ressaltar que havia uma grande rotatividade entre os participantes. A cada reunião, notava-se a presença de novos frequentadores e estagiários. Ao final de cada evento, conversávamos com as pessoas com a finalidade de apresentar o estudo, seguindo os critérios definidos para a seleção dos participantes. Na ocasião, fornecíamos nossos contatos (telefone, email, redes sociais) e, caso desejassem, os possíveis colaboradores também disponibilizavam os seus para que as entrevistas pudessem, então, ser agendadas. O local e o dia do encontro eram sugeridos por eles e, na maior parte das vezes, o lugar escolhido foi a sua residência ou local de trabalho.

O material empírico foi obtido no periodo de outubro de 2017 a maio de 2018 por meio de entrevistas semiestruturadas que, apesar de se orientarem por um roteiro de perguntas básicas e predeterminadas, possibilitam ao entrevistado discorrer sobre o tema proposto sem prender-se a condições prefixadas pelo pesquisador (MINAYO, 1998MINAYO, Maria Cecilia de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 5.ed. São Paulo; Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco, 1998.), ao mesmo tempo em que pode estimular, ao longo do diálogo, o aprofundamento de questões, inclusive das que não estavam previstas. Isso permitiu uma interação mais espontânea com os interlocutores, condição fundamental para uma investigação que parte das narrativas dos sujeitos acerca de suas trajetórias de vida.

A pesquisa contou com 17 participantes, sendo 15 mulheres e dois homens, com idades entre 26 e 56 anos, moradores das cidades de Petrolina/PE e Juazeiro/BA.

Não fizemos, a princípio, nenhum recorte em relação a sexo e gênero. No entanto, como pode ser percebido, os dados da pesquisa foram em sua maioria obtidos através de narrativas de mulheres. É importante situar a discrepância também observada a partir de apontamentos feitos em outros estudos, como o de Oliveira et al. (2014OLIVEIRA, Deíse et al. A decisão da mulher obesa pela cirurgia bariátrica à luz da fenomenologia social. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v.48, n.6, p. 970-976, 2014.). Baseadas em dados de pesquisas nacionais e internacionais, as autoras mostram que, embora não haja uma grande variação em se tratando da prevalência da obesidade entre homens e mulheres, a busca pelo procedimento em questão tem sido mais recorrente entre essas últimas: “As pesquisas […] evidenciaram que, do total de obesos no pré-operatório da cirurgia bariátrica, aproximadamente 80% eram do sexo feminino” (Oliveira et al., 2014, p.971). Entendemos que essas considerações não podem ser dissociadas de uma dinâmica cultural pela qual as mulheres têm sido mais fortemente atingidas pelos imperativos da estética corporal, conforme descrito por Poulain (2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013.) e também por Mélo (2012MÉLO, Roberta de Sousa. Da visibilidade dos corpos disformes: um estudo sobre cirurgias cosméticas mal sucedidas. 2012. 207 f. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.), ao falar de configurações históricas através das quais a preocupação com as questões do corpo se instituiu como elemento marcante das produções de feminilidade. Voltaremos a falar disso mais adiante.

No caso desta pesquisa, quando do momento da nossa inserção nas reuniões do grupo de apoio, verificamos, de fato, a maior presença de mulheres, sobretudo entre as pessoas que já haviam passado pelo processo cirúrgico. Além disso, elas mostraram-se mais receptivas ao convite para participar da pesquisa, ao passo que alguns homens chegaram a desmarcar a entrevista.

Em relação ao perfil profissional, o grupo foi composto por técnica de enfermagem, assistente administrativa, gerente operacional, profissionais autônomos, vendedor, técnica de contabilidade, enfermeira, coordenadora pedagógica, assistente parlamentar, professora, correspodente bancária, administradores, blogueira e estudantes.

De modo a garantir seu anonimato e preservar sua identidade, todos os nomes dos participantes serão referenciados com pseudônimos.

3 DA BALANÇA AO BISTURI: O ANTES E O DEPOIS DA CIRURGIA

3.1 O CORPO PREGRESSO

De modo geral, as histórias dos nossos interlocutores nos falam de sucessivas situações de descontentamento diante da própria imagem. Trazem em comum uma trajetória de conflitos diante de um corpo que, em maior ou menor medida, sempre escapou de suas vontades, seja pelas suas “faltas”, seja por seus “excessos”. Falam, por outro lado, das suas respostas e das estratégias elaboradas a partir do que foi e do que está sendo corporalmente vivido.

As narrativas iniciais sugerem que as vivências da pessoa gorda envolvem diretamente um processo de perceber em seu próprio corpo uma ameaça à própria vida, de reconhecer em si mesmo o risco de doenças e da própria morte, tal como destacado pelos mais diversos discursos. Desse modo, tanto seu presente quanto seu futuro são fortemente gerenciados a partir da percepção de perigos instalados em si.

Há, contudo, algo fundamental que nos leva à compreensão da obesidade como uma experiência que necessita ser pensada para além de sua categorização como um problema de saúde. Como sugere Poulain (2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013.), ela é uma questão social e, por isso mesmo, seus sentidos só podem ser compreendidos se consideramos as representações culturalmente instituídas de cada contexto. Sendo assim, as dificuldades que emergem nas suas memórias nos dizem, também, de processos de exclusão fundados numa estrutura de aversão à gordura e, portanto, à pessoa gorda, o que marcou profundamente suas interações cotidianas e suas atuações nos mais variados âmbitos de sua vida social. Para muitos, as marcas dessas dinâmicas aparecem já na primeira infância, sendo a escola o primeiro ambiente em que seu corpo se torna o entrave a uma sociabilidade plena.

Ao retomar as lembranças do passado, os entrevistados também se referiram a questões de acessibilidade nos espaços urbanos, descrevendo situações de constrangimento e desconforto com as catracas de ônibus e com o tamanho do cinto do avião, por exemplo.

Outras pessoas, por sua vez, se concentraram nos modos como a gordura do corpo colocou-se como limitante de suas experiências mais íntimas:

[antes da cirurgia] minha relação com o corpo era horrível. Sem motivação, não me olhava no espelho, não tirava foto de corpo inteiro. Não ia para academia, não tinha prazer, e nem vida sexual (Betty, 32 anos).

Ao escolher evitar situações em que seu “defeito” ficasse mais evidente, percebemos as primeiras nuances de um processo de privações que parece relacionado a uma noção de “bom senso” que a sociedade comumente espera das pessoas gordas:

Pra ir uma praia eu ia do jeito que estou aqui: vestida de calça, short. Não tinha quem me fizesse usar um biquíni. E meu marido ficava falando: ‘Menina você não é a única gorda, não’; mas mesmo assim eu não usava (Meire, 34 anos).

No caso acima, identificamos que a própria pessoa se coloca num trabalho de racionalizar seus modos de apresentação corporal em função dos códigos e lugares socialmente atribuídos a seu corpo. Verifica-se, por parte da entrevistada, a assimilação das representações negativas que marcam o corpo gordo em nossas configurações sociais. Isso nos remete às considerações de Poulain (2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013.), inspirado nas elaborações do conceito de estigmatização de Erving Goffman, ao reconhecer que “da simples compra de uma passagem de avião ou de um bilhete para o cinema até a força do olhar estético sobre ele, o obeso é desvalorizado, […] banido da sociedade” (POULAIN, 2013POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013., p.116). O autor também descreve algumas dinâmicas pelas quais a pessoa obesa termina por interiorizar a desvalorização de que é vítima, o que a leva a evitar as situações de exposição de sua “falha”, se fechando em um círculo vicioso.

Muitos também mencionaram a dificuldade em encontrar roupas para o seu tamanho, enfatizando, além disso, que as peças disponíveis geralmente tinham uma modelagem grande e um design que, segundo eles, parecem ter sido criados para esconder as formas do corpo gordo. A esse propósito, alguns ressaltam os aspectos positivos da expansão do mercado plus size6 6 Termo adotado pelo discurso da moda para manequins de tamanho superior ao 44 (LOPES, 2014). , embora não deixem de pontuar sua insuficiência:

Melhorou hoje em dia; hoje existem mais opções. Mas roupas para obeso são sempre as roupas mais ridículas que existem. Sempre parece que obeso tem que vestir roupas de idosos. Antes era só blusa de manga, com as blusas chamadas ‘asas de morcego’, horrorosas; calça jeans que não tinha modelagem nenhuma. Tudo quadrado, parecendo capa de botijão (Rabeche, 30 anos).

Ao trazerem esse tipo de apontamento, sobretudo algumas mulheres buscaram reivindicar a vaidade da pessoa gorda, que, de acordo com elas, é comumente negada pelas representações culturais. Assim, o “gostar de se arrumar”, “ter bom gosto”, “embelezar-se” seriam, a seu ver, processos que são dificultados na sua rotina muito mais por questões externas do que pelas inclinações pessoais. Desse modo, ainda que nos falassem de seu sentimento de “desajuste” em algumas situações, identificaram de forma bastante crítica os mecanismos pelos quais seu corpo e sua identidade são desvinculados dos valores positivos promulgados pelo mercado da beleza.

Ao passo que algumas mulheres associaram a questão do sobrepeso a dificuldades na vida sexual, outras não a compreendiam como destituidora de seu prazer, argumentando que era justamente na esfera da intimidade, na relação de segurança estabelecida com o parceiro, que sentia-se mais à vontade com o próprio corpo.

Houve também quem se referisse à solidão da pessoa gorda, entendendo-a como estimulada, sobretudo, pelos parâmetros culturais de beleza e de desejabilidade. Ainda assim, muitas delas buscavam se distanciar da imagem de uma pessoa assexuada, embora reconhecessem que o sobrepeso pudesse comprometer, muitas vezes, sua performance sexual, mas jamais suas vontades. Nesses casos, a busca pelo prazer e pelo gozo se colocava como algo a ser preservado, incólume diante das representações sociais que, de acordo com elas, tendem a “deserotizar” o corpo e a pessoa gorda.

Em se tratando do olhar da nossa cultura em torno da performance sexual da pessoa gorda, podemos nos remeter à leitura de Kulick (2012KULICK, Don. Pornô. Cadernos Pagu, n.38, p. 223-240, jan./jun. 2012.), dedicada a analisar a atuação de atrizes gordas em filmes pertencentes a um segmento do mercado pornográfico conhecido como “pornografia de gordura”. De acordo com o autor, tais performances carregam consigo enunciados sobre corpos e sexualidade que inverteriam “o valor alocado em corpos magros” (KULICK, 2012KULICK, Don. Pornô. Cadernos Pagu, n.38, p. 223-240, jan./jun. 2012., p. 232), evidenciando, ao invés disso, a pessoa gorda como desejante e desejável (condições essas em que algumas de nossas colaboradoras fizeram questão de se incluir).

Também foram abordadas vivências demarcadas em outros âmbitos de sua vida, como, por exemplo, as experiências profissionais, quando narravam desde os constrangimentos nas entrevistas de emprego até os comentários compartilhados pelos colegas no convívio diário. Mas, como temos destacado, as formas de internalização e assimilação, bem como as reações a cada situação e contexto, nos permitiram reconhecer a variedade de sentidos construídos a partir da experiência como pessoa gorda.

3.2 O PESO DA DECISÃO

Ainda em relação à fase que antecedeu a cirurgia, parte significativa das narrativas se referiu às limitações funcionais em atividades básicas e problemas de saúde ocasionados pelo peso corporal, processos esses que começaram a lhe convocar à resolução do problema:

Uma caminhada, até uma ida a uma padaria, supermercado, eu voltava e parecia que tava morrendo, com falta de ar, com o coração palpitando… (Glória, 42 anos).

Eu tinha problemas com minha locomoção. Às vezes era difícil subir uma escada, dançar, fazer exercício. Calçar um tênis tava difícil… A pessoa com 114kg, [medindo] 1,54… tava complicado. Eu já tava com obesidade mórbida do grau 4. Eu tomava remédio controlado e mesmo assim a pressão oscilava. Tive também distúrbios hormonais e até meus 38 anos eu vivia meu efeito sanfona de engordar e emagrecer. E todas as vezes que eu relaxava um pouquinho, piorava em alguma coisa: a pressão aumentava, fiquei pré-diabética, triglicerídeo alto, colesterol, tudo isso. E então tinha problema de coluna, no joelho, as articulações. Eu fiz muitas coisas para emagrecer, tomei remédios, aquelas fórmulas… Usei balão, pratiquei aqueles métodos de vigilância do peso, fiz reeducação, mas tudo era temporário (Rosângela, 42 anos).

O dito “efeito sanfona” é emblemático das oscilações de seu processo de autogestão. A fragmentação entre a pessoa e seu corpo aparece, aqui, de forma pungente. Também é importante notar o que foi mencionado em relação aos esforços para praticar atividades físicas. Muitas vezes o corpo se constituía como entrave para a própria melhora, uma espécie de “barreira orgânica” aos seus projetos pessoais:

Desesperador… Eu tentava caminhar e os ossos doíam muito… Eu ficava na tentativa de perder peso e não conseguia. […] Quando eu começava a caminhada eu sentia muitas dores; os ossos doíam muito, mesmo (Joana, 52 anos).

Nesse caso, ainda que se intentasse um “planejamento reflexivamente organizado” da sua rotina de cuidados corporais, ao modo dos processos descritos por Giddens (2002GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002., p.13), esse corpo não cedia.

Por outro lado, é preciso destacar que, muitas vezes, a desmotivação para a prática de atividades físicas esteve fundada num sentimento de inadequação do seu corpo aos padrões estéticos que os participantes entendiam como predominantes nos variados espaços de produção corporal, sobretudo as academias de musculação. Nesse sentido, as representações socialmente difundidas acerca do corpo gordo traziam implicações para a sua expressão nos diversos ambientes. Entendemos que isso levanta uma reflexão importante para áreas como a Educação Física, visto que se desdobra nos sentidos e motivações que orientam as práticas corporais no cenário contemporâneo, o que, por conseguinte, nos leva a pensar sobre o que estaria por trás da não adesão a um projeto de racionalização do corpo por meio desses recursos.

Em outros casos, o indivíduo reconhece a “culpa” pela precariedade de seus antigos mecanismos de administração de si, no que verifica uma falta de comprometimento a ser reparado em sua nova rotina:

Às vezes eu entrava na academia, ia uma semana, faltava três. Eu não tinha esse compromisso comigo mesmo (Rabeche, 30 anos).

Desse modo, se assume a responsabilidade pela própria condição, o que também emerge na narrativa de outro participante:

Quando estava no ensino médio, meus horários eram bagunçados, e aí eu comecei a engordar mais ainda. Cheguei a 120 quilos, depois emagreci. Fui morar fora e aí desleixei mesmo, comia e bebia muito, até que cheguei aos 131 quilos (Vicente, 26 anos).

Por essas e outras narrativas semelhantes entendemos que a “autoculpabilização” aparece como um importante elemento dentro do seu processo reflexivo.

Conforme já sugerimos, nossa análise não esteve, a princípio, focada nas relações de gênero. Contudo, entendemos que se trata de um marcador fundamental dos processos de construção corporal em nossa cultura. É preciso sempre reafirmar que a angústia diante do corpo e a necessidade de controlá-lo são processos históricos, construções culturais que têm tido lugar central nos processos corporais e subjetivos das mulheres. Ademais, faz-se totalmente pertinente pensar a obesidade a partir dessas considerações, dado que as representações de gênero que se consagraram no decorrer de nossa trajetória civilizacional trouxeram em seu âmago a negação dos apetites e desejos femininos (LIRA, 2006LIRA, Luciana Campelo de. Narrativas de Ana: corpo, consumo e self em um grupo pró-anorexia na Internet. 2006. 151 f. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006.). Ao mesmo tempo, é preciso levar em conta as mudanças dos padrões de feminilidade e masculinidade ao longo do tempo, o que significa dizer, por exemplo, que a relação estabelecida entre a mulher e seu corpo no âmbito da contemporaneidade traz diferenças em relação aos mecanismos com que se fez em outras épocas e contextos sociais.

Entendemos que, de algum modo, as representações acima descritas podem ajudar a refletir sobre a maior espontaneidade com que as nossas entrevistadas falaram de seus conflitos com o corpo, de suas insatisfações e também expectativas em relação à sua aparência, ao passo que o tema da busca pela saúde apareceu de forma mais marcante nos discursos dos dois entrevistados. Do mesmo modo percebíamos que, por vezes, eles pareciam querer negar uma preocupação excessiva com a sua imagem.

Além disso, foi sobretudo nas narrativas femininas que notamos uma maior ênfase nas representações de gênero que marcaram tanto a sua experiência do sobrepeso quanto a decisão pela cirurgia. Assim, não foi incomum a evocação da gordura como elemento comprometedor de sua feminilidade.

As alterações estéticas advindas da gravidez também foram trazidas como um importante registro das trajetórias corporais de algumas mulheres:

Eu comecei a ficar obesa a partir da gestação. Quando eu passei o período de amamentar, veio o ganho. Foi rápido, rápido. Muito rápido. Em pouco tempo passei de 55 para 98 quilos (Glória, 42 anos).

Quanto a casos como esse, é importante pontuar que muitas se viram num esforço moral para secundarizar a preocupação com a aparência em prol do exercício da maternidade, o que justificaria, para algumas delas, todos os conflitos com o corpo advindos da gestação. Já outras rememoraram os modos como foram julgadas pela sua aparência ainda no puerpério, tendo frequentemente apontado, pelas outras pessoas, o seu “desleixo” e o consequente risco de não mais despertar o desejo do companheiro.

Em se tratando das atitudes tomadas em função de sua condição corporal, alguns interlocutores relataram que a ansiedade em controlar as instabilidades do corpo os levaram a “burlar” a lógica de segurança e confiança que permeia a dinâmica de organização da vida a partir da gestão do risco, referindo-se à adoção de artifícios nem sempre legitimados pelo conhecimento perito (ainda que a entrevistada abaixo, por exemplo, tenha destacado ser da área da saúde):

Recorri a vários métodos de emagrecimentos, tudo que você imaginar: medicamentos loucos, dietas, o que existia eu fazia. Quando eu cheguei ao meu peso máximo, que foi quando cheguei a 105 quilos, foi onde resolvi fazer a cirurgia (Meire, 34 anos).

Em dado momento de suas trajetórias, os participantes se reconheceram numa situação limítrofe em relação ao próprio corpo, quando, segundo eles, não mais sentiam os seus limites, processo também verificado por Vilhena, Novaes e Rocha (2008VILHENA, Junia de; NOVAES, Joana de Vilhena; ROCHA, Livia. Comendo, comendo e não se satisfazendo: apenas uma questão cirúrgica? Obesidade mórbida e o culto ao corpo na sociedade contemporânea. Revista Mal-Estar e Subjetividade, v. 8, n. 2, p. 379-406, jun. 2008.) num estudo entre mulheres submetidas ou em vias de se submeter à operação para redução de estômago. Quando a instabilidade do corpo lhe aparece como algo intolerável, a cirurgia bariátrica se coloca como tentativa de mediação entre o corpo e a vontade da pessoa.

Importantes elementos para sua decisão também apareceram na referência aquilo que os problemas de saúde de seus familiares, sobretudo pais e irmãos, seriam capazes de sugerir a respeito da sua própria condição, o que exigiu, para algumas pessoas, reflexões mais profundas quanto à sua situação futura:

Eu era muito obesa, desde os meus 12 anos. Meu pai era obeso. Uma irmã chegou a falecer. Ela precisava fazer a cirurgia da vesícula, mas para isso tinha que perder peso. Ela tinha essa missão de perder peso. Ao invés de perder peso, ela chegou a engordar muito, muito, muito, até que passou mal e foi internada. […] Houve muita dificuldade de cuidar dela, porque para ela tudo era mais dificil por causa do peso. Eu olhava e pensava: ‘Meu Deus, eu preciso perder peso, porque a situação da minha irmã é horrível, horrível, horrível’. Foi muito horrível, porque ela estava em crises e não podia fazer a cirurgia (Joana, 52 anos).

A interlocutora destaca, assim, sua disposição a recusar um destino que lhe parecia provável, criando, ao invés disso, um novo horizonte de possibilidades.

Diante desse tipo de resolução, uma das primeiras atitudes tomadas por essas pessoas foi a participação no grupo de orientação sobre cirurgia bariátrica. Sua intenção era apropriar-se do máximo de informações a respeito da técnica, e, nesse sentido, a rotina passou a ser cada vez mais refletida pelo que apreendiam desses encontros.

É muito importante porque a gente, além de tá ouvindo a experiência dos outros, aprende sobre os riscos envolvidos, sobre as complicações… […] O fato de estar participando da reunião é um incentivo e um estímulo pra gente se manter sempre vigilante (Rabeche, 30 anos).

Outros depoimentos sugerem, ainda, a relevância do grupo como espaço de sociabilidade e, assim, de compartilhamento de uma experiência que, até então, vinha sendo vivida de forma solitária.

A reflexividade do eu exigida nesse momento se expressou na incumbência de decidir entre as ameaças de permanecer obeso ou os riscos envolvidos na cirurgia. Nesse processo, o perigo da morte atravessava suas reflexões:

Eu tive sim medo de morrer na cirurgia. Eu acho que o medo e a vontade de não fazer era maior do que a de fazer, mas aí eu olhava para a questão da saúde. […] Então se eu não fizesse, também seria um risco (Lucia, 32 anos).

Algumas pessoas chegavam falando dos perigos da cirurgia, mas muitas delas estavam se baseando em técnicas muito antigas. Mas hoje em dia eu vejo como mais seguro (Vicente, 26 anos).

O pessoal vinha com uns comentários de morte, […] ou de que eu ia ter um retorno pior, que não ia servir de nada (Marcos, 31 anos).

A autoridade perita constituiu-se como peça fundamental nessas ponderações:

Meu cirurgião falou pra mim que é mais fácil você morrer de gorda que por cirurgia (Tereza, 27 anos).

Outras pessoas discorreram sobre o medo sentido por amigos e familiares, pontuando-o como algo que elas também necessitaram gerenciar a partir da sua decisão pela cirurgia. Nesse sentido, aludiram à postura firme e resistente que precisaram assumir diante desse tipo de aporia que cruzava seu projeto corporal.

A partir da sua opção, vê-se a intensificação de um projeto de valorização do esforço individual para um resultado positivo. Isso se evidenciou, sobretudo, na importância dada às orientações de especialistas, principalmente nutricionistas, psicólogos e o médico-cirurgião, os quais permanecen como agentes importantes para a organização da sua rotina após a cirurgia. Diante disso, buscaram preparar-se para o procedimento através de novas rotinas e hábitos, tentando reestruturar antigas práticas, sobretudo as alimentares. Para eles, esse seria um momento em que a mente e o corpo necessitariam, impreterivelmente, se conciliar:

É uma mudança tão grande no seu corpo que você tem que se preparar psicologicamente. Isso é fundamental para o processo da bariátrica. Pesquisar, pesquisar bastante, […] porque é uma escolha pra sempre (Luíza, 40 anos).

Assim, o sentido de “irreversibilidade” do recurso cirúrgico demandaria um processo de reflexividade mais acentuado por parte da pessoa, já que suas consequências não poderiam ser reparadas. Exigiria, portanto, um rigor ainda maior em relação a todos os compromissos firmados consigo mesmo e com seu corpo ao longo de sua trajetória. A decisão pela cirurgia se inscreve, assim, como um meio de ressignificar o que foi vivido com seu corpo e, ao mesmo tempo, projetar suas experiências futuras.

3.3 A NOVA PELE QUE ME HABITA

Em grande parte, os depoimentos sobre o pós-cirúrgico falam de uma dificuldade fundamental: a de combinar um novo processo identitário com as transformações de um corpo que não se sabe como se darão. Esse dilema foi evidenciado na fala de uma das participantes do estudo e que constitui parte deste título: “A cabeça continua de gordo” (Deuzuíte, 56 anos). Sob essa perspectiva, seria preciso, então, reconstruir-se subjetivamente através de hábitos e escolhas “magras”. Essa nova etapa lhes impôs a necessidade de uma vigilância constante do pensamento.

Foi sobretudo na relação com a comida que se expressou o conflito com esse corpo em processo. Muitos participantes explicaram que não conseguiram racionalizar de imediato algumas de suas antigas pulsões. Não foi rara a associação entre suas habituais práticas alimentares e o estado de ansiedade em que alguns disseram se encontrar. De algum modo, as falas sugeriram um processo em que a pessoa vê-se ainda “perdida”, tentando se encaixar num novo organismo:

A mente de gordo não muda de uma hora para outra [risos]. A gente tem que tá constantemente fazendo terapia, se policiando. Faz cinco anos que eu me operei, mas nunca deixo de fazer terapia, porque o desejo de comer é igual ao de antes. É porque não cabe, mas, se o alimento coubesse no meu estômago, eu comeria. Às vezes estou ansiosa e como a mais do que devia, mas aí eu vomito, entendeu? (Rosângela, 42 anos).

Experiências semelhantes a essa foram descritas por Vilhena, Novaes e Rocha (2008VILHENA, Junia de; NOVAES, Joana de Vilhena; ROCHA, Livia. Comendo, comendo e não se satisfazendo: apenas uma questão cirúrgica? Obesidade mórbida e o culto ao corpo na sociedade contemporânea. Revista Mal-Estar e Subjetividade, v. 8, n. 2, p. 379-406, jun. 2008., p.395), por meio de uma abordagem psicanalítica da questão, quando se referem ao fato de que “a nova identidade corporal não é desprovida da percepção de que outras transformações se fazem necessárias”. Nesse caso, como sugere a narrativa acima, o saber perito aparece, mais uma vez, como recurso indispensável para a automonitoração.

Em outros casos, porém, conseguiu-se controlar os impulsos em relação à comida, e os saberes adquiridos ao longo de seu processo de autogerenciamento, iniciado quando da decisão pela cirurgia, puderam ser inseridos na nova rotina. O ato de comer foi, então, ressignificado:

Eu aprendi a ter uma relação diferente com o alimento, a conhecer, entender pra que serve, quais os nutrientes. Então, assim, eu não sigo uma dieta, mas procuro me alimentar de forma mais saudável possível (Lúcia, 32 anos).

Mudança total em relação aos hábitos alimentares. Hoje eu sempre ando com marmita, lanche na bolsa. Eu me preocupo em não comer besteira, em não comer o que não é autorizado, seguir as instruções médicas. Muda a rotina totalmente (Betty, 32 anos).

De tal modo, a lembrança do antigo corpo é a de uma reflexividade precária, diferente da que caracteriza seu momento atual. A “besteira”, significado que ela dá aos alimentos inadequados que frequentemente consumia no passado, é agora algo que ela se vê capaz de evitar. A experiência da cirurgia fomentou, portanto, a reelaboração do seu estilo de vida, hoje ancorado num disciplinamento que as entrevistadas acima parecem desvincular de algo exaurível, e por meio do qual puderam acessar, de uma nova forma, as suas pulsões e os seus limites. Percebem, assim, uma mudança positiva em suas vidas.

Já no caso de uma entrevistada em específico, o desencontro com o próprio corpo foi significado por um sentimento de culpa. A angústia diante das reações pós-cirúrgicas que transformaram experiências antes prazerosas, como a de comer, numa experiência sofrível, a levou a arrepender-se da cirurgia:

Eu não tive outros problemas por conta da cirurgia. Era só essa questão de começar a comer e vomitar, e aí eu corria para a psicóloga. Eu chorava, dizia a ela que já tinha pedido perdão a Deus por ter me mutilado, por ter tirado um pedaço de mim. Me perguntava por que eu fiz aquilo, dizia que era só ter diminuído no açúcar, diminuído na comida… era só me exercitar que eu podia ter perdido peso (Edineide, 47 anos).

Assim, mesmo após sua medicalização, o corpo continua sugerindo à pessoa o fracasso de seu processo reflexivo. Aqui, a referência aos recursos que poderiam ser utilizados se soma a uma moralidade que sugere limites para a manipulação corporal que a entrevistada sente que desrespeitou.

Algumas falas nos mostram que o emagrecimento como efeito da cirurgia não trouxe necessariamente uma experiência de satisfação plena:

[Mesmo tendo emagrecido], infelizmente eu estou no quadro de depressão, que está sendo tratado. Eu acho que é também por causa dessa questão da aceitação, porque sou muito perfeccionista, então eu fico procurando muito defeito, tem que ser muito certinho e eu sei que não existe isso. É uma questão da minha cabeça, um padrão que não existe. Hoje eu vejo a importância do acompanhamento psicológico, é tanto que eu retornei. Eu tinha parado depois da cirurgia, porque eu achava que era besteira (Lúcia, 32 anos).

Como também analisam Vilhena, Novaes e Rocha (2008VILHENA, Junia de; NOVAES, Joana de Vilhena; ROCHA, Livia. Comendo, comendo e não se satisfazendo: apenas uma questão cirúrgica? Obesidade mórbida e o culto ao corpo na sociedade contemporânea. Revista Mal-Estar e Subjetividade, v. 8, n. 2, p. 379-406, jun. 2008.) nas experiências a que tiveram acesso, entendemos que há uma falta que é anterior à cirurgia e que não é suprida. Há uma insatisfação com o próprio corpo que resiste à sua medicalização. A nosso ver, isso, em certa medida, problematizaria o vínculo imediato entre o padrão corporal promovido pela indústria da beleza e as sensações de bem-estar e felicidade igualmente validadas por ela.

Em alguns casos, as simbologias da gordura continuaram se fazendo presentes na rotina corporal de alguns participantes:

Hoje [o problema] é o excesso de pele, mas hoje em dia uso tudo. Barriguinha de fora, aquela coisa toda. Mas aí tenho que usar corpetes, pular para a calça entrar, mas uso (Rebeca, 40 anos).

Nesse caso, o corpo apresenta um nível de excesso que é, ao menos, manejável pela pessoa. A possibilidade de ocultar o traço de insatisfação estética ao olhar alheio traz à interlocutora a sensação de domínio da sua apresentação corporal.

De todo modo, a menção a problemas como estrias, flacidez e celulite associados ao processo de emagrecimento do pós-cirúrgico revela a persistência de uma insatisfação com a imagem, ainda que em outro nível, já que os desconfortos são agora tidos como mais maleáveis do que antes, passíveis de serem amenizados por meio de outros recursos tecnicamente orientados, como cirurgia plástica e tratamentos estéticos menos invasivos. Por sua vez, alguns veem nisso uma motivação para a melhoria dos seus hábitos:

Tô vendo que depois da cirurgia eu tô precisando enrijecer minha massa muscular, porque eu tô com um déficit nisso. […] Mas eu melhorei acho que oitenta por cento; não digo cem porque não tô na academia (Glória, 42 anos).

Alguns depoimentos também sugerem um “não reconhecer-se” diante do novo corpo, sem que isso tenha necessariamente se colocado como algo negativo, visto que a pretendida racionalização dos riscos parecia concretizar-se progressivamente:

Hoje me sinto feia [risos] porque quando olho no espelho que me vejo… não é exatamente o corpo, é mais o rosto… eu acho muito seco, muito… ‘chupado’ seria a palavra certa. É aquela coisa: eu não me reconheço, eu olho e não me reconheço. Só isso. Mas em relação à saúde, essa questão da hipertensão, da pré-diabetes, isso aí pra mim foi maravilhoso. A parte ortopédica também. A questão é que você tem que ir cuidando, e é o que venho fazendo direto (Edineide, 47 anos).

Ou seja, ainda que o corpo, em parte, perturbe o seu autorreconhecimento, pode-ser dizer que se confirmou, mesmo que parcialmente, a eficácia do projeto reflexivo do eu que gera realização e controle (GIDDENS, 2002GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.).

Além das já apontadas, outras transformações decorrentes da cirurgia também foram citadas:

Após a cirurgia mudei tudo. A parte de sono, eu não sinto mais sono durante o dia; tenho disposição o dia todinho. Mudou tudo. Hoje faço exercícios todos os dias. Antes fazia quatro quilômetros e já morria; hoje em dia começo a fazer cinco quilômetros, seis quilômetros, direto correndo, com tempo muito curto. Pedalo hoje duas horas, com disposição, sem cansar (Marcos, 31 anos).

Hoje mudei principalmente em relação à atividade física, que hoje eu pratico no mínimo quatro vezes por semana. Quero fechar a semana vindo os cinco dias (Rabeche, 30 anos).

Melhorou muito a minha disposição, estímulo também, mais ainda. Posso dizer que melhorou muitas coisas, sabe? Então estou mais ativa. E a questão de abandonar os remédios também (Rosângela, 42 anos).

Vê-se, portanto, a ênfase num novo sentido de saúde e qualidade de vida. Alguns depoimentos referiram-se também aos impactos dos resultados da cirurgia em sua vida afetivo-sexual, tanto pela melhoria na capacidade física quanto pelo fato de se sentirem mais à vontade no contato com a outra pessoa.

Mesmo em meio ao reconhecimento dos benefícios obtidos, um risco principal se traduzia entre os interlocutores: o medo do reganho do peso era uma possibilidade que lhes afetava de forma unânime.

Eu vou lutar para permanecer. Com acompanhamento com a psicóloga e a nutricionista, você não volta a engordar. E, assim, eu era obesa no corpo e na cabeça. Eu pensava assim: ‘Meu Deus, eu operei o estômago, mas o principal é a minha cabeça’. Então a luta é para manter o esforço, a luta (Joana, 52 anos).

Eu quero me espelhar nessas pessoas que estão bem; não quero entrar no índice dos que voltam a engordar. Porque sei que isso é possível. Porque como o estômago da gente é um músculo, se você vai trabalhando para ele ir crescendo ele vai acabar dilatando, como antes (Rabeche, 30 anos).

De tal modo, apesar dos desafios e intempéries que marcam sua trajetória pós-cirúrgica, também foi notório o novo sentido dado à responsabilização de si e ao autocuidado. Em meio a todos os conflitos, percebemos o prazer mobilizado pelas mudanças, pelos novos desenhos do corpo e pela maior autonomia reconhecida em cada gesto corporal que muitas dessas pessoas se veem, agora, capazes de desempenhar. Não se pode desconsiderar, portanto, a agência que se expressa nas escolhas feitas por elas em relação ao próprio corpo e ao seu destino, bem como no modo como reorientam sua vida a partir das consequências de sua decisão.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabe-se que toda visibilidade é política. Por consequência, as experiências individuais aqui descritas não estão desconectadas da atual cultura imagética em que se estabeleceu uma aversão ao corpo gordo a partir de determinados critérios, alguns já elencados aqui. Cada momento histórico apresenta lógicas particulares de exclusão a partir dos valores que o movem. Seria, contudo, um objetivo inalcançável contemplar todos os sentidos subjacentes às construções culturais da pessoa gorda na contemporaneidade. Para esse momento, portanto, propomos uma reflexão acerca da responsabilidade dos diversos peritos e agentes que orientam a produção corporal em nossos dias, assim como a ressonância dos seus discursos nas construções de si que abordamos aqui. Afinal, se, como dissemos no início desse tópico, todo processo de visibilização é politicamente interferido, importa reconhecer os mecanismos pelos quais a imagem da pessoa gorda tem se estabelecido em nossos dias: que interesses, valores e prioridades subjazem os aparatos de manipulação, medicalização e normalização do seu corpo e de sua subjetividade? Em que medida os distintos campos do conhecimento operadores das narrativas e práticas que afetam nossas vidas (dentre esses, a Educação Física) têm se alinhado a tais processos ou, ao invés disso, reconhecido a necessidade de refletir sobre sua própria exegese?

A negativização do corpo gordo nos faz pontuar, por outro lado, as pressões, sacrifícios, conflitos e formas de adoecimento que podem estar implícitos até mesmo na aparência do “corpo em forma”, adequado aos parâmetros, o que reitera o argumento de que a experiência da obesidade nos fala, também, de uma questão socialmente mobilizada e, portanto, não reduzida à pessoa obesa.

Mesmo os discursos de qualidade de vida e saúde não anulam a relevância de se considerar os impactos que eles próprios podem trazer às experiências dessas pessoas. Cabe, então, refletir sobre como os seus signficados têm sido construídos, difundidos e assimilados.

É importante mencionar as situações vividas por alguns entrevistados em decorrência de estigmatizações e comentários constrangedores e/ou jocosos vindos dos mais diversos profissionais a quem recorreram ao longo de sua vida, desde médicos a professores de Educação Física. A esse respeito, entendemos que se faz crucial pensar nos aspectos éticos que orientam essa relação.

Outro colaborador, por sua vez, aludiu ao fato de esses agentes muitas vezes não considerarem as particularidades de cada corpo e de cada história de vida, o que, a seu ver, dificultou sua adesão às recomendações dadas por eles. Sugere-se, assim um olhar mais atento às nuances próprias que a experiência da obesidade adquire quando pensada a partir das vivências individuais e, portanto, únicas.

Algo que também nos chamou atenção, mas que não pudemos investigar de forma mais aprofundada, diz respeito à ausência de educadores físicos na equipe de peritos atuantes no grupo de orientação sobre cirurgia bariátrica. Não chegamos a questionar esse fato, mas por vezes tivemos a impressão de que, em se tratando das representações de boa parte dos entrevistados a respeito desses profissionais e, portanto, das contribuições que eles poderiam dar, eram percebidos como coadjuvantes em relação à atuação de peritos dos demais campos. Por exemplo, alguns interlocutores referiram-se ao fato de terem recorrido à cirurgia justamente por sua “impaciência” em esperar pelos possíveis resultados obtidos por meio da prática de atividades físicas, ou por não conseguirem adequar-se a uma rotina de exercícios, enquanto outros viam nessa última um novo recurso a ser posto em prática apenas após a cirurgia, para garantir os seus efeitos. Isso sugere questões relevantes em torno do imaginário e das expectativas relacionadas a esse campo, bem como de suas ressonâncias tanto no senso comum quanto entre as outras áreas do conhecimento. Ao mesmo tempo, nos instiga a uma leitura da cultura de resultados imediatos que caracteriza nossos tempos, e que também coloca importantes desafios à Educação Física.

O estudo também nos despertou a intenção de, futuramente, abordarmos a temática a partir de outros marcadores, tais como gênero (conforme já explicitamos), mas também classe social. Em relação a esse último, pode-se ter como inspiração o trabalho de Ferreira et al. (2010FERREIRA, Vanessa et al. Desigualdade, pobreza e obesidade. Ciência & Saúde Coletiva, v.15 (Supl.1), p.1423-1432, 2010.) a respeito das relações entre obesidade e pobreza. Por esse recorte, pretendemos refletir sobre os suportes, recursos e gerenciamentos de si que são acessados ou negados a essas pessoas a partir de seus diversos contextos.

Concluímos considerando, mais uma vez, a intermitência dos processos aqui analisados. Entendemos, assim, que as disposições corporais e afetivas mobilizadas nas experiências dos nossos entrevistados seguem sendo ressignificadas à medida que essas pessoas adentram novos espaços, repensam seus percursos e os vínculos estabelecidos ao longo de suas vidas.

REFERÊNCIAS

  • BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed.Unesp, 1995.
  • FERREIRA, Vanessa et al. Desigualdade, pobreza e obesidade. Ciência & Saúde Coletiva, v.15 (Supl.1), p.1423-1432, 2010.
  • GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.
  • GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
  • KULICK, Don. Pornô. Cadernos Pagu, n.38, p. 223-240, jan./jun. 2012.
  • LE BRETON, David. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus Editora, 2007.
  • LIRA, Luciana Campelo de. Narrativas de Ana: corpo, consumo e self em um grupo pró-anorexia na Internet. 2006. 151 f. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006.
  • LOPES, Michele Aparecida Pereira. Da moda do corpo ao corpo da moda: descontinuidades discursivas sobre o sujeito “gordo”. Trabalhos Completos ALED BRASIL, v. 1, n. 2, 2014.
  • MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do pacífico ocidental. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural.1978.
  • MÉLO, Roberta de Sousa. Da visibilidade dos corpos disformes: um estudo sobre cirurgias cosméticas mal sucedidas. 2012. 207 f. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.
  • MINAYO, Maria Cecilia de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 5.ed. São Paulo; Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco, 1998.
  • OLIVEIRA, Deíse et al. A decisão da mulher obesa pela cirurgia bariátrica à luz da fenomenologia social. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v.48, n.6, p. 970-976, 2014.
  • POULAIN, Jean-Pierre. Sociologia da Obesidade. São Paulo, Senac, 2013.
  • RODRIGUES, Ramilla Corrêa; ARCOVERDE, Vanessa Machado. Cinderela não é gorda: análise da personagem Perséfone na novela Amor à Vida. 2014. 76 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Comunicação Social) - Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
  • SANT’ANNA, Denise Bernuzzi De. Gordos, Magros e Obesos: Uma História de Peso No Brasil. São Paulo, Estação Liberdade, 2016.
  • SANTOLIN, Cezar Barbosa; RIGO, Luiz Carlos. O nascimento do discurso patologizante da obesidade. Movimento, v. 21, n. 1, 2015. DOI:https://doi.org/10.22456/1982-8918.46172
    » https://doi.org/10.22456/1982-8918.46172
  • IGARELLO, Georges. As metamorfoses do gordo: história da obesidade. Petrópolis, Vozes, 2012.
  • VILHENA, Junia de; NOVAES, Joana de Vilhena; ROCHA, Livia. Comendo, comendo e não se satisfazendo: apenas uma questão cirúrgica? Obesidade mórbida e o culto ao corpo na sociedade contemporânea. Revista Mal-Estar e Subjetividade, v. 8, n. 2, p. 379-406, jun. 2008.
  • Apoio:

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
  • 1
  • 2
    Ver “O que é Body Positive?”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U-R8DslWtKA Acesso em 18 jul. 2019.
  • 3
    Tal movimento é tributário do Body Positivity, o qual, como explicita a jornalista Amanda Mull, surgiu nos anos 1960 nos Estados Unidos, orientado por uma ideologia crítica ao capitalismo e mobilizando protestos contra a indústria da dieta e a discriminação dos corpos gordos. Mas, embora reconheça o caráter subversivo do movimento em sua origem, a autora se opõe ao modo como o mercado da beleza tem se apropriado do conceito. Ver artigo Body Positivity is a Scam, disponível em: https://www.vox.com/2018/6/5/17236212/body-positivity-scam-dove-campaign-ads. Acesso em 21 Jun. 2019
  • 4
    A pesquisa foi realizada mediante análise e aprovação pelo CEDEP - Comitê de Ética e Deontologia em Estudos e Pesquisas da Universidade Federal do Vale do São Francisco (CAAE - 80915317.9.0000.5196).
  • 5
    O grupo tem por objetivo a conscientização dos riscos e benefícios envolvidos na cirurgia bariátrica, além dos cuidados a serem tomados no período anterior e posterior ao procedimento.
  • 6
    Termo adotado pelo discurso da moda para manequins de tamanho superior ao 44 (LOPES, 2014LOPES, Michele Aparecida Pereira. Da moda do corpo ao corpo da moda: descontinuidades discursivas sobre o sujeito “gordo”. Trabalhos Completos ALED BRASIL, v. 1, n. 2, 2014.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2019
  • Aceito
    13 Set 2019
  • Publicado
    21 Nov 2019
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: movimento@ufrgs.br