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TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS NA PRODUÇÃO DE SENSIBILIDADE NA DANÇA DO VENTRE

POLITICAL CHANGES IN PRODUCTION OF SENSITIVITY IN BELLY DANCING

TRANSFORMACIONES POLÍTICAS EN LA PRODUCCIÓN DE SENSIBILIDAD EN LA DANZA DEL VIENTRE

Resumo

Este artigo trata da produção de sensibilidades no processo de gestar um corpo dançante na dança do ventre e das transformações políticas daí decorrentes. Este trabalho origina-se de dissertação de mestrado em Psicologia Institucional. O campo de investigação desta pesquisa-intervenção foi um projeto de extensão universitário oferecido a sete mulheres que desconheciam essa modalidade de dança. O recurso do registro das aulas em vídeo constituiu a metodologia, que incluiu ainda uma análise qualitativa deste material, norteada pela concepção deuleuzo-guattariana de arte e pela visão crítica acerca do Orientalismo. Um dos principais resultados obtidos foi a desconstrução da política dominante de sentir e mover-se, gerada pelas sensibilidades e gestualidades suscitadas no processo de aprender a dançar. Depoimentos das participantes presentes nos registros permitem concluir que o processo de gestar um corpo dançante porta uma potência de desestabilização das percepções e sentimentos culturalmente assentados.

Palavras chave:
Dança; Egito; Percepção; Política

Abstract

This article addresses sensitivity production in the process of developing a belly dancing body and the political changes resulting from that. This work comes from a Master’s thesis in Institutional Psychology. The research field of this intervention-research was a university extension project offered to seven women who did not know that dance style. Its methodology included recording the classes on video and conducting qualitative analysis of the material under Deuleuze-Guattari’s conception of art and the critical view about Orientalism. One of the main results obtained was deconstructing the dominant feeling and movement politics created by the sensitivities and gestures that arose in the dance learning process. Participants’ statements in these recordings allow us to conclude that the process of developing a dancing body bears power to destabilize culturally settled perceptions and feelings.

Keywords:
Dancing; Egypt; Perception; Politics

Resumen

Este artículo trata de la producción de sensibilidades en el proceso de gestar un cuerpo danzante en la danza del vientre y las transformaciones políticas de allí derivadas. Este trabajo tiene su origen en una disertación de maestría en Psicología Institucional. El campo investigativo de esta investigación-intervención fue un proyecto de extensión universitaria ofrecido a siete mujeres que desconocían esta modalidad de danza. El registro en video de las clases constituyó la metodología, que incluyó, además, un análisis cualitativo de este material, orientado por la concepción deleuzo-guattariana de arte y por la visión crítica del Orientalismo. Uno de los principales resultados obtenidos fue la desconstrucción de la política dominante de sentir y moverse, generada por las sensibilidades y gestualidades suscitadas en el proceso de aprender a bailar. Testimonios de las participantes presentes en los registros permiten concluir que el proceso de gestar un cuerpo danzante es portador de una potencia de desestabilización de las percepciones y sentimientos culturalmente asentados.

Palabras clave:
Baile; Egipto; Percepción; Política

1 INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta a perspectiva conceitual-prática de nossa pesquisa como mestranda, psicóloga, dançarina e coordenadora das oficinas de dança do ventre (entre agosto de 2015 e julho de 2016) no projeto de extensão universitário COMPOR (Coletivo Oficina de Movimentos Poéticos à Revelia)1 1 As oficinas de dança do ventre foram algumas das atividades ofertadas pelo projeto de extensão COMPOR. , ligado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGPSI/UFES).

Essa pesquisa acompanhou a produção de sensibilidades e gestualidades mobilizadoras de desvios e desconstruções de modos dominantes de sentir e mover-se, na relação de aprendizado da dança do ventre, junto a um grupo de sete mulheres com idades entre 19 e 46 anos da região da Grande Vitória (Espírito Santo). Houve vários registros audiovisuais com o consentimento livre e esclarecido das sete participantes que assinaram o termo de autorização para uso do material para a pesquisa. Assim, encontram-se aqui depoimentos de três participantes (designadas por nomes fictícios), que foram transcritos das aulas registradas.

Explanaremos duas dimensões desse regime de sensibilidade e gestualidade concernentes ao processo de aprender dança do ventre, o que nos propiciará apresentar modificações de natureza política nos modos de sentir e agir das participantes do projeto.

Quando falamos em política, tratamos de um âmbito da ação que pode dissimular, perpetuar, inibir ou suspender as forças sócio-históricas atuantes na produção de modos de viver. Partindo disso, o que sentimos e como agimos pode nos tornar cúmplices do dinamismo social predominante, que produz exclusão, segregação e exploração, ou pode nos enveredar a constituir modos de relação cujos elos potencializam singularizações, que desmontam verdades naturalizadas e empobrecedoras do viver. Ora, desmontar uma verdade que nos enfraquece é uma questão de elo - gestar elos com algo ou alguém que nos propicie desarticular o que está pressuposto. Deleuze chama de intercessores os elos propiciadores de um tipo de relação em que a verdade se apresenta como não preexistente, e sim como produto de um sistema de relações (DELEUZE, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.).

Na experiência desta pesquisa-intervenção estivemos farejando, no processo de aprender a dançar das participantes, gestos que nos revelavam um charme, uma distração do controle de si, um encantamento em forma de movimento, que diziam da capacidade de se estar sensível às forças de um mundo em processo de feitura, ou seja, de falseamento de verdades preestabelecidas. Tais sutilezas viriam a funcionar como intercessores da política de produção de novas sensibilidades.

Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos […]. É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle (DELEUZE, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992., p. 218).

Assim, propúnhamos exercícios que requisitavam a sensação como referência: por exemplo, a proposta do movimentar repetido das mãos a ponto de torná-las uma folha caindo da árvore. Dessa maneira, experimentávamos essa capacidade de resistência em que o ato de perceber se liberava do senso de certo ou errado e de bonito ou feio, para, ao invés de interromper, agir junto ao que se passa. Exercícios como esse se tornaram intercessores, invalidando a idéia de se ter um corpo específico para ser dançarina do ventre, pois as participantes do projeto experimentavam sensações afirmativas da potência de um corpo dançante de criar realidades insuspeitas.

[…] Primeiro a gente só precisa ter um corpo […]. Depois, a gente precisa ter uma alma, aquecida como ficam as nossas mãos enquanto dançamos para dar vida pra esse corpo que pulsa no ritmo da dança, moldando como massinha de criança um corpo que vai se criando. […] pode ser a barriga mais quadrada do mundo, que ela consegue trazer uma beleza que é só dela, a gente consegue ver a liquidez do fogo escorrer por todo seu corpo bailarino entregue a uma celebração (depoimento de Flora).

Por político, então, compreendemos todo ato de receptividade e afirmação de modos de experienciar o corpo, sinalizadores do aumento de potência da vida em nós, capaz de mobilizar, deslocar e pôr em xeque a ordem social dominante. Contudo, um ato político não tem por princípio o embate com a ordem dominante; tal enfrentamento é consequência de um modo de existência singular.

Destarte, a primeira dimensão acompanhada foi a ideia de uma sensualidade oriental, que seria inerente à dança do ventre. Esta parecia vir atrelada às concepções estereotipadas e preconceituosas a respeito do Oriente e da mulher oriental (SAID, 2007SAID, Edward Wadie. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.), cuja dança tradicionalmente praticada foi base para a construção da arte que ganhou o estatuto “global” e ficou conhecida como dança do ventre no Brasil, Danse du Ventre na França, Belly Dance nos EUA.

A segunda dimensão diz respeito à concepção de arte tomada de Deleuze e Guattari (1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.), que nos possibilitou afirmar e legitimar o gestar de um corpo dançante como uma experiência em que estética e política são inseparáveis.

Desta forma, vejamos essas dimensões do processo de aprender a dança do ventre, através das quais afirmamos a diferença como vetor de composição e abertura para constituição de um corpo implicado em um sensível político.

2 ORIENTALISMO E A DANÇA DO VENTRE

Nos séculos XIX e XX desenvolveu-se na Europa e, posteriormente, nos EUA, um campo de estudos acadêmicos e extra-acadêmicos denominado Orientalismo, cujo objeto de pesquisa foi delimitado geograficamente como sendo a região ao leste da Europa, designada pelos europeus como Oriente.

Com o Orientalismo, constituiu-se uma autoridade discursiva, racional e científica sobre o que é o Oriente, a partir de estudos livrescos, como o estudo das línguas orientais, com base nos quais se definiram a mentalidade e o caráter do oriental (SAID, 2007SAID, Edward Wadie. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.). Tais definições, assentadas em um arcabouço teórico etnocêntrico e racista, ganharam tamanha legitimidade que as narrativas póstumas de experiências no Oriente não ousaram questionar a generalização cultural e os essencialismos inerentes a essas definições; ao contrário, enriqueceram-nos com mais detalhes descritivos.

[…] um dos desenvolvimentos importantes no Orientalismo do século XIX foi a destilação de idéias essenciais sobre o Oriente - sua sensualidade, sua tendência ao despotismo, sua aberrante mentalidade, seus hábitos de imprecisão, seu atraso […]. Essas informações pareciam ser moralmente neutras e objetivamente válidas (SAID, 2007SAID, Edward Wadie. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p.279).

Assim, uma das generalizações depreendidas e bastante exploradas na literatura e pintura orientalistas foi a ideia de uma sensualidade oriental através da qual a mulher é despossuída de atributos que lhe conferem humanidade, sentimentos e pensamentos, tornando-se uma atração turística aos viajantes, romancistas e intelectuais em busca de uma experiência sexual exótica.

Virtualmente nenhum escritor europeu que escreveu sobre o Oriente ou para lá viajou no período depois de 1800 eximiu-se dessa busca […]. O que eles frequentemente procuravam era um tipo diferente de sexualidade, talvez mais libertina e menos assolada pela culpa (SAID, 2007SAID, Edward Wadie. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 263).

Nesse contexto colonialista, machista e etnocêntrico, a figura da dançarina presente no meio urbano egípcio do século XIX ganhou uma reputação licenciosa, sendo descrita segundo as fantasias e os anseios da elite masculina europeia que para lá viajou, presenciou as dançarinas e, direta ou indiretamente, participou das produções literárias e iconográficas orientalistas a respeito delas.

Segundo a historiadora canadense Bunton (2017BUNTON, Robin. British travelers and Egyptian ‘dancing girls’: locating imperialism, gender, and sexuality in the politics of representation, 1834-1870. 2017. 135f. Thesis (Master) - Department of History Faculty of Arts and Social Sciences, Simon Fraser University, British Columbia, 2017. Disponível em: http://summit.sfu.ca/item/17549. Acesso em: 08 maio 2018.
http://summit.sfu.ca/item/17549...
), em seu acesso a arquivos britânicos sobre as dançarinas egípcias, houve relatos de uma não feminilidade, em virtude de serem mulheres financeiramente independentes, apresentando comportamentos insubmissos, tendências ao tabagismo e consumo exagerado de álcool. Para eles, essas atitudes correspondiam ao gênero masculino; entre as práticas que atrelavam licenciosidade a estas mulheres estavam a recusa em velarem-se, o hedonismo, a visibilidade acentuada nos espaços públicos, as vestimentas chamativas e maquiagens carregadas. Algumas dessas práticas eram usuais para as prostitutas europeias, daí a vinculação das dançarinas às cortesãs.

Contudo, em meados do século XIX, circunstâncias políticas, sociais e econômicas restringiram de tal modo a vida das dançarinas que algumas se submeteram às fantasias dos europeus para ganharem a vida. É o caso de Kuchuk Hanem, uma célebre dançarina egípcia com quem o romancista francês Gustave Flaubert viveu experiências sexuais marcantes e que foi inspiração para seus romances de grande circulação na Europa (SAID, 2007SAID, Edward Wadie. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.). Foi por vias como essa, aliadas às concepções unilaterais sobre as dançarinas e aos interesses da emergente indústria turística inglesa de angariar um mercado consumidor, que se veiculou, através de romances, pinturas e fotografias, a ideia de uma dança oriental reduzida a uma performance erótica endereçada ao público masculino (BUNTON, 2017BUNTON, Robin. British travelers and Egyptian ‘dancing girls’: locating imperialism, gender, and sexuality in the politics of representation, 1834-1870. 2017. 135f. Thesis (Master) - Department of History Faculty of Arts and Social Sciences, Simon Fraser University, British Columbia, 2017. Disponível em: http://summit.sfu.ca/item/17549. Acesso em: 08 maio 2018.
http://summit.sfu.ca/item/17549...
).

Destarte, as produções científicas e artísticas orientalistas geraram um discurso e uma imagem do Oriente apartada do que ele era concretamente. Esse domínio discursivo, posteriormente, tornou-se administrativo, econômico e militar, imprimindo transformações nos modos de vida dos povos orientais.

Na primeira metade do século XX, a dança nativa batizada pelos franceses de Danse du Ventre foi uma adaptação da dança oriental ao contexto de palco, com o uso de técnicas de danças ocidentais e apresentada em um traje de cabaré (saia com cinturão e bustiê). Nesse novo formato, com a ocidentalização do Egito em andamento, as apresentações artísticas tornaram-se um entretenimento para orientais e ocidentais em cafés e casas de show na cidade do Cairo e ganharam destaque nas produções cinematográficas egípcias iniciadas na década de 1940.

Passado quase um século, a visão orientalista da dança do ventre se faz presente, por exemplo, quando popularmente no Brasil é identificada apenas como uma dança para desenvolver a sensualidade e o erotismo e, por isso, seria estritamente procurada para satisfazer os desejos de outrem. No projeto de extensão campo de nossa pesquisa, constatamos a cumplicidade com essa visão orientalista da dança em uma das participantes quando vimos se combinar nela a percepção sensual da dança, o desejo de apresentar-se em um contexto de enamoramento de outrem por si e na distinção do âmbito público e privado. A apresentação pública era aterrorizante por ter que expor-se em uma performance corporal. Em contraponto, a apresentação privada, apenas para o marido, era algo confortável e instigante. Para essa aluna do projeto, a perspectiva orientalista da dança era o elixir e, simultaneamente, o adubo do temor frente à proposta de uma apresentação de dança no sarau que estávamos organizando. Esse sentimento ultrajante foi revelado pela aluna no dia do encerramento da primeira parte do projeto, quando compartilhamos nossas vivências.

Quando você falou da apresentação, eu pensei seriamente em adoecer, […] ‘eu vou adoecer nesse dia, eu vou ter uma viagem a trabalho’ […]. Quando eu era criança eu tinha vergonha de dançar quadrilha […] a ideia de alguém me olhando fazer aquilo […] de eu fracassar, de eu errar me deixava aterrorizada. Então, isso sempre me imobilizou, então, foi a primeira vez que eu me apresentei em público […]. Isso foi o desfazimento de um paradigma de uma vida inteira (depoimento de Magnólia, participante mais velha do Projeto).

Esse “desfazimento de um paradigma” aconteceu de modo silencioso e foi revelado assim que superado. Consoante a esse desfazimento, presenciamos a emoção de seu companheiro ao vê-la se apresentando no palco. E aqui designamos o marido como companheiro, pois, naquele instante, nos surpreendemos com a emoção que marejou seus olhos, evidenciando uma potência de diferenciação que também o modificava como homem.

Com esses relatos, notamos um deslocamento duplo, em que a dança do ventre apresentava suas forças artística e política através de uma vivência que a desvinculava do ideal orientalista. Deslocamento artístico por ter produzido impactos insuspeitos no regime dos modos de sentir e pensar, conferindo à apresentação de dança do ventre potências à revelia do Orientalismo; desvio político porque surgiram potências em nossa aluna para além da esperada relação de fetiche orientalista de oferecer uma dança privativa para o marido. Nessa nova relação, presenciamos um homem arrebatado por forças inusitadas em relação à sua companheira que dançava. Assim, nós também éramos arrebatadas pelo avermelhado de seus olhos. Localizamos aí um desvio político também porque o aprender a dançar não se restringiu ao ganho de uma habilidade e/ou ao aprendizado de uma sensualidade oriental. Diferentemente, pôde-se acessar uma dimensão coletiva do grupo, em que foram vivenciadas práticas de cuidado e envolvimento com o processo de gestar um corpo dançante. Houve um trânsito do âmbito privado para o público, de modo que nossa aluna pôde livrar-se de pudores e inseguranças intimistas, experimentando afetos expansivos. Vimos nossa aluna ganhar confiança e dançar para uma plateia sem exigir-se corresponder aos ideais de um suposto corpo “apresentável” para essa situação. A vivência grupal proporcionou experiências de tal valor afetivo que antigos sentimentos que a retiraram tantas vezes do âmbito público simplesmente não tiveram força decisória no dia do sarau.

Eu me sinto bem confortável, eu com meu corpo […] o meu problema todo, na realidade, é com os outros […] eu já expressando pra vocês a minha insegurança com meu corpo em apresentar em público. Isso tudo foi vindo à tona, e vocês foram desconstruindo esses medos, essas angústias […]. Eu agradeço muito o grupo, pois gerou um crescimento, gerou uma autoconfiança de mim mesma (depoimento de Magnólia).

Essa vivência grupal reconhecida por nossa aluna como fundamental na desconstrução de seus medos e angústias não foi fortuita. A constituição dessa dimensão coletiva do grupo foi cuidadosamente tecida ao assumirmos a postura metodológica de ensino em que “o como” e “o que aprender” em uma aula de dança do ventre envolvessem também a produção de um regime de sensibilidade implicado em uma experimentação receptiva às diferenças em sua potência de conectividade. Nesse sentido, estivemos atentas ao que se passava nas aulas, observando que tipo de proposta e/ou surgimento de um pequeno acaso potencializava o aprendizado, assim como que tipo de elemento e/ou exercício podíamos inserir em aula, facilitando a execução dos movimentos aprendidos, tornando-os praticáveis de maneira viva e não mecânica.

Com esse intuito, propúnhamos experimentações em que as técnicas aprendidas pudessem ser exercitadas e incorporadas de modo a comunicarem algo a mais: um sentimento, uma sensação ou um charme. Então, ao mesmo tempo em que aprendíamos uma técnica, aprendíamos a usá-la como meio de expressão do que sentíamos com a música e, consequentemente, experimentávamos a exposição de si. Essas vivências em grupo foram proporcionando uma relação de respeito, apoio, solidariedade e cuidado entre as participantes, de modo que outros modos de sentir, agir e pensar em consonância à constituição de um corpo dançante foram sendo tecidos. Foi se afirmando e ganhando a voz decisória de dizer “sim!” ao que nos tornávamos: diversas do esperado e, no entanto, conectadas à fluidez do que surgia como via de expressão.

Quando falamos em “diversa do esperado”, nos referimos àquilo que é vivo e tem capacidade de produzir elo. Ao estarmos atentas à produção de uma dança que expressasse algo vivo, as ideias que cada aluna tinha do que era a dança do ventre foram sendo desarticuladas, assim como as ideias do que cada uma se via sendo capaz. O acesso a essa dimensão coletiva imprimia um outro olhar para si e para o que buscavam no encontro com a dança. Nessa experiência, a visão orientalista sobre a dança, afinada aos interesses imperialistas de dominação, não teve força de composição em um contexto em que o trabalho se efetivava através de elos cuja potência era a celebração da vida em sua expansão e conectividade. As músicas, os exercícios e a parceria entre as alunas funcionavam politicamente como o que Deleuze chamou de intercessores, ou seja, como conectores de elos para feitura de uma estética nova, de uma expressividade nova. Expansão como capacidade de agir e conectividade como ação empreendedora na produção de harmonia. Dessa maneira, cada uma se viu transformada em um aspecto inesperado de si, cujo processo se desenhava dentro de uma experiência compartilhada, em que nos tornávamos capazes de construir algo juntas.

Assim, a produção de uma arte cuja matéria de expressão era o movimento de nossos corpos em uma relação de harmonia, empreendida por aberturas diferenciais em cada uma, gerou a experiência de desmontagem de ideias orientalistas. Feminilidades se gestavam juntamente e através da dança, como consequência da ativação de um regime de sensibilidade afirmador de tudo que vinha ao encontro de uma vida em expansão; regime este constituído através de conexões inusitadas e fortalecedoras dessa dimensão coletiva do grupo.

3 ARTE E POLÍTICA

Há uma colocação de Artaud (2006ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.) bem-vinda para pensarmos sobre a relação entre arte e política: o autor aborda a maneira como a serpente é tocada pela música. Para ele, se a música age sobre as serpentes é porque elas são compridas e se enrolam longamente sobre a terra, tocando-a com quase todo seu corpo; com isso, as vibrações musicais percorrem a terra e atingem a serpente como uma sutil e demorada passagem. Partindo dessa percepção, as serpentes nos ensinam que sentir é um modo de relação: não basta ter um corpo comprido; é preciso dispor-se de um modo particular ao contato com a terra, para que as vibrações musicais sejam sentidas de maneira sutil e demorada.

Transpondo essa maneira de pensar para o processo de gestar um corpo dançante, compreendemos que propiciar esse aprendizado exige uma composição de forças que efetive a experiência de mover-se na qualidade dançante. Essa composição de forças que agencia a passagem de movimentos para o sentido dançante também provoca, em quem as experiencia, mutações nas maneiras de estar, perceber e se posicionar no mundo.

Se, para Artaud, sentir é modo de relação, então, o que sentimos é sempre produção de um corpo tomado como uma composição de forças, ou, sob o ponto de vista de Deleuze e Guattari, um corpo sem órgãos, que não se confunde com o corpo individualizado feito organismo biológico, e nem o objetificado como sujeito.

Assim, o corpo sem órgãos nunca é o seu, o meu… É sempre um corpo. […] É uma involução, mas uma involução criativa e sempre contemporânea. Os órgãos se distribuem sobre o CsO; mas, justamente, eles se distribuem nele independentemente da forma do organismo; as formas tornam-se contingentes, os órgãos não são mais do que intensidades produzidas, fluxos, limiares e gradientes (DELEUZE; GUATTARI, 1996DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1996. v. 3, p. 28).

Dessa maneira, quando falamos em sentir, não estamos nos referindo aos sentimentalismos, nem às respostas condicionadas aos sistemas de juízo que nos colocam em situação de reconhecimento, ou seja, de reprodução do corpo como sujeito. Quando tomado como sujeito, o movimento do corpo é interceptado pelo organismo, que se impõe, funcionando conforme um sistema hierárquico de órgãos estabelecido. É à revelia dessa sistemática que jaz um corpo sem órgãos. Despossuído de pronomes possessivos, ele se inicia na abertura do corpo às conexões que possibilitam uma organização própria. Os órgãos, nesse novo plano constituinte, são agenciados pelas conexões e fluxos. É a partir desse modo de relação que intensidades circulam pelo corpo gerando um regime de sensibilidade aos processos a-subjetivados.

Abaixo temos a descrição de uma aluna sobre a vivência2 2 Nessa vivência, o propósito era que cada uma criasse um movimento a partir da música e o passasse para outra colega; assim que os movimentos se sintonizassem, a pessoa que havia recebido criava outro movimento a partir do que estava fazendo. Esse jogo acontecia com todas sentadas em roda. Os movimentos eram da cintura para cima. de um dos exercícios de experimentação com movimentos de mãos e braços, junto ao grupo, que exemplifica esse sentir a-subjetivo.

[…] tava pensando uma coisa meio doida, não sei se vai fazer sentido, porque na hora que ela me deu o movimento e depois quando ela parou, que era hora de eu fazer o meu, parece que teve um segundinho assim que você não sabe bem o que fazer, mas não de desespero, porque é muito a música, você com a música, depois veio aquela forma que eu fiz assim, […] me chamou a atenção, até chegar a forma, tem um momentinho assim tão bom, que não tem essa forma assim primeiro (depoimento de Flora).

Notemos a ausência do uso do pronome possessivo para descrever o “segundinho” de algo que se passou com ela e, no entanto, não foi designado como sendo dela. Essa não referenciação da ação a si própria nos apresenta a constituição de um si não subjetivado. Ademais, o “segundinho” em si foi não catalogável, ou seja, não havia signos a referenciá-lo; por isso a narrativa acerca de um antes e um depois para sinalizar a passagem de uma movimentação insuspeita que modificara “seu” regime de sensibilidade. Essa movimentação “até chegar a forma” e “não de desespero” foi o corpo funcionando como corpo sem órgãos. Assim, vemos nessa narrativa a experimentação de suspensão dos automatismos de um corpo-organismo.

Para melhor compreendermos esse processo, vejamos o que Deleuze e Guattari dizem a respeito do corpo tomado numa composição de forças, em que os modos constituídos se afirmam. Segundo esses autores, existem três grandes estratos relacionados a nós, quais sejam: “o organismo, a significância e a subjetivação” (DELEUZE; GUATTARI, 1996DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1996. v. 3, p. 22). Cada um desses estratos incide sobre uma superfície de relação do ser humano: o organismo age sobre a articulação de nosso corpo biológico, social, cultural e científico, estruturando-os em sistemas fechados de funcionamento utilitário; a significância diz respeito a todos os atos serem remetidos a signos prontos, ou seja, há sempre algo a ser interpretado dos atos; e a subjetivação remete os acontecimentos e enunciados a um sujeito pressuposto. Dessa forma, sob essa perspectiva do organismo, pensamos, sentimos e agimos sempre tendo como parâmetros demarcações individualizantes, hierarquizadas, que fixam todo e qualquer tipo de fluxo: material, de pensamento, de pessoas e de afectos.

Sendo assim, quando falamos do corpo como corpo sem órgãos, trazemos à tona modos de relação vivos e expansivos, que se dão por meio da abertura às novas conexões que arrastam os códigos e as significações ao abismo, colocando em risco verdades e morais através de acontecimentos a-subjetivos e a-significantes, pelos quais o corpo faz-se invenção de si. Nessa mesma direção, esses autores trazem uma noção de arte que muito nos é bem-vinda, pois ela passa pela via política, em que se pensa a produção de um regime de sensibilidade a partir de experimentações cuja potência é a emergência de sentidos a-subjetivos. Esses sentidos colocam os corpos, passíveis de subjetivação, no regime inventivo de si e, consequentemente, questionador da ordem dominante.

Aqui, vale retomar a noção de político já debatida. Indicamos o político como uma ação que se inicia na abertura do corpo a novas maneiras de experienciá-lo. Seria o exercício dessa capacidade inventiva que o tornaria não apenas insubmisso ao sistema de juízo - que o toma como organismo, sujeito - mas, também, ativo no falseamento de verdades preestabelecidas.

Para exemplificarmos esse modo ativo, vale trazermos um depoimento dessa mesma aluna que contou de sua vivência do “segundinho”. Esse depoimento nos apresenta seus questionamentos sobre um modo de relação em que se vê subjetivada. Vemos que a abertura às potências de experienciar o corpo em sua inventividade a favor da expansão da vida lhe dá a ver as maldades fabricadas contra o corpo.

Eu me percebo sempre muito frágil, eu me coloco frágil em alguns lugares, eu deixo isso acontecer assim […] e, ao mesmo tempo, como que a dança […] estar aqui foi me fortalecendo em algumas coisas do corpo […] já conversei com algumas pessoas que me viram e experienciaram isso no dia do sarau. Eu me percebo como eu me faço frágil e me pergunto por que a gente faz essas maldades com a gente [depoimento de Flora].

Dessa maneira, compreendemos junto a Rancière (2009RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.) a inseparabilidade entre o político e a estética; o questionamento da ordem dominante - que uniformiza os modos de viver - implica a produção de um regime de sensibilidade, pois é a potência de receptividade às novas existências que escancara as violências de ações e sentimentos que hierarquizam, segregam e suprimem a diferença.

Existe, portanto, na base da política, uma ‘estética’ […] pode-se entendê-la num sentido kantiano - eventualmente revisitado por Foucault - como o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, das palavras e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer (RANCIÈRE, 2009RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009., p.16-17).

Retomando a narrativa de nossa aluna, “o segundinho” foi emergência de um regime inventivo, expresso na qualidade de uma potência de sentir inseparável de uma potência de agir, que a lançou a compartilhar com o grupo a sua experiência, procurando descrever o indescritível que lhe empurrava a criar uma maneira de expressá-lo. Esse regime inventivo alterou o campo das visibilidades e dizibilidades sobre o gestar um corpo dançante, propiciando uma narrativa que, por si própria, era a afirmação e a legitimação da diferença como potência. Por isso é que diríamos encontrar aí um acontecimento estético-político em que o que é dito passa a ser a respeito dos gestos dançantes que emergiam como um corpo sem órgãos de movimento, formado pela composição entre os corpos das alunas e a música; o que é visto passa a ser a sutil translação da sensibilidade em direção à expressão de um gesto esposado com a música.

Destarte, estamos de acordo com a noção de arte na qual o artístico diz respeito à produção de um ser de sensação (DELEUZE; GUATTARI, 1992DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.), um ser que tem vida própria e atuante no desfazimento da tríplice organização de percepções, sentimentos e opiniões - faculdades próprias de um sujeito tomado por ideias socialmente dominantes. Os seres de sensação são compostos de perceptos e afectos (DELEUZE; GUATTARI, 1992) e surgem quando ao mundo se acrescenta uma nova variedade expressiva, que torna sensíveis as forças invisíveis que o povoam.

Portanto, perceptos e afectos se diferem de percepções e sentimentos pelo fato de serem um composto de forças liberado das formas prefixadas e fabricadas para e por um sujeito. É segundo esse regime de relação que o humano também se libera de si e das percepções e afecções que lhe dizem respeito para entrar num campo de relações não humanas. Segundo essa concepção, a arte nos desloca do reino das opiniões, em que acessamos sentimentos e percepções referenciados em um modelo, para um sensível produzido junto aos perceptos e afectos que nos arrebatam com visões e sentires completamente novos. Nessa direção é que, nessas oficinas de dança do ventre, estivemos interessadas nos seres de sensação produzidos na dança e na potência destes em produzir questionamentos políticos pela via da afirmação de modos de relação feitos potentes no delicado cultivo de abertura do corpo para a dança.

Gil (2004GIL, José. Movimento total. São Paulo: Iluminuras, 2004.), em sua leitura sobre a dança como um corpo sem órgãos cuja matéria é o movimento, diz que o trabalho de quem dança incide na captação das linhas de força do corpo; é por essa via que ocorre o desvio das percepções e dos sentimentos atuais que subjetivam o corpo. Uma dança nunca se inicia do repouso - pois o corpo sempre é um novelo de linhas de tensões em uma ininterrupta produção de micromovimentos - e nem se relaciona com um espaço tangível; “o gesto dançado abre no espaço a dimensão do infinito” (GIL, 2004GIL, José. Movimento total. São Paulo: Iluminuras, 2004., p. 14), pois esburaca o espaço, cavando-o a partir de uma linha de força começada antes do corpo e que se prolonga depois dele. O problema do bailarino é como produzir um corpo-espaço de maneira que não haja mais espaço interno e externo, mas uma matéria plástica moldada por forças invisíveis que povoam o mundo, ou seja, seres de sensação, compostos de perceptos e afectos.

Abaixo temos a descrição de uma experimentação em grupo (mencionada em nota anterior) que nos indica essa continuidade entre o externo e interno como uma matéria plástica única de onde saltam sutilezas sensoriais em um prolongamento do sentir e agir como uma linha força que compõe o corpo da participante, sem se encerrar nela.

[…] com o tempo das aulas passando parece que é mais fácil a gente se concentrar em olhar, receber, pensar e passar, porque eu sou muito ansiosa, eu quero já pegar e passar, só que agora é mais fácil de conseguir olhar a expressão dela e continuar meu movimento sem perder e passar e ver a mudança do olhar dela, quando ela recebe o movimento para ela botar o dela. Achei isso tão gostoso! (depoimento de Girassol).

Nessa narrativa, embora permeada por pronomes possessivos que sugerem a separação de corpos como sujeitos, há uma tranquilidade em estar presente no jogo de corpos cuja emergência de percepções sinaliza a produção de uma composição coletiva de forças. Nesse breve intervalo em que algo acontece, há um composto de forças liberado de um modo sujeito denominado ansioso. A ausência de ansiedade nessa vivência anuncia a abertura do corpo da aluna para uma experiência de expansão em que seu corpo é continuidade do que supostamente estaria fora: um corpo sem órgãos de movimento. Era tecido ali um corpo sem órgãos dançante, coletivo, desvinculado de sensações e percepções pré-fabricadas, mas conectado ao ser de sensação que rasgava o espaço e as sensibilidades para dar a existir uma nova variedade estético-expressiva.

Assim, vimos que pudemos, através dos conceitos filosóficos de corpo sem órgãos e seres sensação, constituir uma visão artística que nos guiou na criação de condições e afirmação dos acontecimentos vivos experimentados em aula. Essa bússola foi sendo apreendida por nossas alunas ao se colocarem ao lado dos processos que lhes ocorriam. A experimentação de um corpo sempre grávido de perceptos e sentires a-subjetivos foi dando seus acenos políticos: ao nos diferenciarmos daquilo que éramos em outros contextos, passamos a questionar os modos sujeitos estáticos e refratários à potência da diferença.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo apresentamos alguns relatos de experiência do processo de gestar um corpo dançante na dança do ventre, que elucidaram a inseparabilidade entre política e estética. Essa indissociabilidade apresentou-se em duas dimensões desse processo.

A primeira dimensão estético-política correspondeu à constituição de uma concepção de celebração das forças metamorfoseantes do viver através da dança do ventre, que desconstruiu visões machistas e etnocêntricas enviesadas pelo Orientalismo. Numa perspectiva celebrativa da dança, esta se tornou uma prática que gesta uma feminilidade viva, em que o encantamento se dá pela afirmação da diferença, e não pelo decalque de uma imagem de mulher. Assim sendo, a dança do ventre deixou de ser encarada como um instrumento de sedução caricato, ou, em contraposição ao machismo, uma vivência apenas intimista ou reservada apenas às mulheres.

A segunda dimensão estético-política disse respeito à produção de um corpo coletivo dançante, que se constituiu e foi constituinte de um regime de sensibilidade inventivo, alterador de modos sujeitos, cujas capacidades limitantes e segregativas eram vistas como um obstáculo intransponível ou um poder ultrajante de si. Essas modificações se fizeram através de relações de respeito, cuidado e solidariedade entre as participantes do projeto, que aprendiam, cada vez, a acolher e afirmar as potências insuspeitas surgidas em cada uma. Esse exercício contínuo e sutil de gestar um corpo dançante coletivo fez comparecer na dança potências de sentir e agir que colocaram em xeque, precisamente, certas morais e expectativas que as subjugavam a um lugar de menosprezo de si.

Com base nos conceitos filosóficos deleuzo-guattarianos de corpo sem órgãos e seres de sensação, assumimos uma postura metodológica de ensino em que “o como” e “o que aprender” em uma aula de dança do ventre envolvessem a produção desse regime de sensibilidade inventivo, implicado uma experimentação receptiva às diferenças em sua potência de conectividade. Dessa maneira, essa receptividade atuante no grupo não foi fortuita, e sim tecida delicadamente sob um propósito ético-político, o de acompanharmos e propiciarmos a constituição de experiências em que as alunas se vissem empreendendo capacidades inusitadas para si. Esse plano povoado de inesperados foi tecido a partir da abertura à composição de um corpo sem órgãos e do desaparecimento de modos sujeitos solapados por forças sócio-históricas dominantes que inferiorizam, excluem e debocham das diferenças.

É esta, enfim, a dupla força do corpo dançante da dança do ventre: a de desbastar a sensibilidade de intercalações morais e de fazer tremeluzir linhas de novas sensibilidades mobilizadas por seres de sensação. Dançar a dança do ventre é, pois, tornar a sensibilidade corporal um campo de batalha estético-político e, mais ainda, um espaço de tessitura de modos de relação singulares.

REFERÊNCIAS

  • ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  • BUNTON, Robin. British travelers and Egyptian ‘dancing girls’: locating imperialism, gender, and sexuality in the politics of representation, 1834-1870. 2017. 135f. Thesis (Master) - Department of History Faculty of Arts and Social Sciences, Simon Fraser University, British Columbia, 2017. Disponível em: http://summit.sfu.ca/item/17549 Acesso em: 08 maio 2018.
    » http://summit.sfu.ca/item/17549
  • DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1996. v. 3
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
  • GIL, José. Movimento total. São Paulo: Iluminuras, 2004.
  • RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.
  • SAID, Edward Wadie. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • Apoio:

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil. Finance Code 001.
  • 1
    As oficinas de dança do ventre foram algumas das atividades ofertadas pelo projeto de extensão COMPOR.
  • 2
    Nessa vivência, o propósito era que cada uma criasse um movimento a partir da música e o passasse para outra colega; assim que os movimentos se sintonizassem, a pessoa que havia recebido criava outro movimento a partir do que estava fazendo. Esse jogo acontecia com todas sentadas em roda. Os movimentos eram da cintura para cima.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2018
  • Aceito
    11 Jun 2019
  • Publicado
    11 Dez 2019
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