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HISTÓRIA DE VIDA DE EX-JOGADORES PROFISSIONAIS DE FUTEBOL EM PERNAMBUCO: FORMAÇÃO ACADÊMICA VERSUS FORMAÇÃO ESPORTIVA

LIFE STORIES OF FORMER PROFESSIONAL FOOTBALL PLAYERS IN PERNAMBUCO: ACADEMIC EDUCATION VERSUS SPORTS TRAINING.

HISTORIA DE VIDA DE EX JUGADORES PROFESIONALES DE FÚTBOL EN PERNAMBUCO: FORMACIÓN ACADÉMICA VERSUS FORMACIÓN DEPORTIVA.

Resumo

Tem o objetivo de analisar a relação entre o processo de formação acadêmica e a formação esportiva de ex-jogadores profissionais de futebol em Pernambuco a partir do mapeamento de onze ex-atletas profissionais que atuaram por, pelo menos, um dos grandes clubes do estado. Dada sua especificidade e natureza qualitativa, foi adotada como metodologia a História Oral de Vida. A partir da coleta dos depoimentos, através de entrevista, optamos, para auxiliar a análise do conteúdo, pela utilização do programa de análise qualitativa NVivo ®. Os resultados apontam que, para a maioria dos entrevistados, houve dificuldade de conciliação entre as duas formações, resultando em atrasos, reprovações, mudanças de turno e até mesmo de escola, além do abandono escolar por alguns. Conclui-se desta forma que há problemas de compatibilidade entre o processo de escolarização e formação do jogador de futebol no cenário local, não sendo diferente da realidade brasileira.

Palavras-chave:
Esportes; Educação; Atletas; Futebol

Abstract

The study looks into the relationship between the academic education process and the sports training of former professional football players in the Brazilian state of Pernambuco, based on the monitoring of eleven former professional athletes who played for at least one of the major clubs in the state. Given its specificity and qualitative nature, Oral Life History was adopted as a methodology. We chose the qualitative analysis software NVivo® to conduct content analysis on testimonials collected through interviews. The results show that most respondents faced difficulty in reconciling the two types of training, resulting in delays, school failure, changes in shifts and even schools, in addition to school drop-out. Therefore, the study finds compatibility problems between the schooling process and football players’ training in the local scenario, which follows the Brazilian pattern as a whole.

Keywords:
Sports; Education; Athletes; Soccer

Resumen

Con el fin de analizar la relación entre el proceso de formación académica y la formación deportiva de ex futbolistas profesionales en Pernambuco a partir del mapeo de once ex atletas profesionales que jugaron en al menos uno de los equipos más importantes del Estado. Dada su especificidad y naturaleza cualitativa, se adoptó como metodología la Historia Oral de Vida. A partir de la recopilación de testimonios, a través de entrevista, optamos, para auxiliar el análisis del contenido, por la utilización del software de análisis cualitativo NVivo®. Los resultados apuntan a que los entrevistados, en su mayoría, tuvieron dificultades para conciliar sus dos formaciones, lo que resultó en atrasos, reprobaciones, cambios de turno e, incluso, de escuela, además de causar el abandono escolar de algunos. Se concluye, así, que hay problemas de compatibilidad entre el proceso de escolarización y formación del jugador de fútbol en el escenario local, que no es diferente de la realidad brasilera.

Palabras clave:
Deportes; Educación; Atletas; Fútbol

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos 13 anos o Brasil foi palco de grandes ventos esportivos internacionais, Jogos Pan-Americanos (2007), Jogos Mundiais Militares (2011), Copa das Confederações de Futebol (2013), Copa do Mundo de Futebol (2014) e os Jogos Olímpicos (2016), dentre outros campeonatos mundiais de modalidades específicas. Todo esse processo tem dinamizado o cenário esportivo, impulsionando pesquisas nas mais variadas figurações dessa manifestação. E, ao que parece, um desses vieses que têm despertado relevante interesse de investigação é a formação acadêmica de jovens atletas.

Embora a relação entre o esporte e a educação venha sendo analisada em inúmeras e complexas configurações, das quais o futebol tem participado de maneira peculiar, entende-se que ainda há muito a ser estudado, sobretudo no que diz respeito ao fenômeno futebol e sua relação com o contexto educacional.

De maneira mais específica, a relação entre essa prática esportiva e o processo de escolarização, que, de acordo com Correia (2014CORREIA, Carlus Augustus Jourand. Entre a profissionalização e a escolarização: projetos e campo de possibilidades em jovens atletas do Colégio Vasco da Gama. Rio de Janeiro, 2014. 240 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Educação no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.), pode ser povoada por dilemas, percalços, dificuldades e sacrifícios, notadamente para aqueles atletas em formação, consequentemente em idade escolar, que, invariavelmente precisam dividir sua atenção entre os treinos e a escola.

Alguns estudos vêm analisando essa temática, a exemplo de Peserico; Kravchychyn e Oliveira (2015PESERICO, Cecília Segabinazi; KRAVCHYCHYN, Claudio; OLIVEIRA, Amauri Aparecido Bássoli de. Análise da relação entre esporte e desempenho escolar: um estudo de caso. Pensar a Prática, v. 18, n. 2, p. 260-277, 2015.), que tratam do progressivo grau de dificuldade entre os conteúdos escolares e as cargas de treinamento. Também em Costa (2012COSTA, Felipe Rodrigues da. A escola, o esporte e a concorrência entre estes mercados para jovens atletas mulheres no futsal de Santa Catarina. 2012. 109 f. Tese (Doutorado em Educação Física) - Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.), o contexto da formação esportiva1 1 Entende-se como o desenvolvimento dos aspectos físicos, psicológicos, técnicos e táticos de um atleta partir de treinamentos específicos de um determinando esporte ao longo do tempo. desenvolvida no Brasil, de certa forma, distancia os jovens atletas do processo de formação educacional2 2 Para Gadotti (2005), a educação formal representa-se, notadamente, pelas escolas e universidades, dependendo de uma diretriz educacional centralizada, havendo um currículo determinado além de estruturas hierarquizadas e burocráticas, estabelecidas nacionalmente, com órgãos do Ministério da Educação. ; em Azevedo e colaboradores (2017AZEVEDO, Marcio Faria de et al. Formação escolar e formação esportiva: caminhos apresentados pela produção acadêmica. Movimento, v. 23, n. 1, p. 185-199, 2017., p. 191), ao analisar a condição de estudante-atleta assumida como condição estatal em alguns países, ou mesmo em Christensen e Sørensen (2009CHRISTENSEN, Mette Krogh; SØRENSEN, Jan Kahr. Sport or school? Dreams and dilemmas for talented Young Danish foot Ball players. European Physical Education Review, v. 15, n. 1, p. 115-133, 2009.), em estudo semelhante na Dinamarca, apontaram que a solução encontrada para aquela realidade foi a possibilidade de flexibilização do currículo escolar para os atletas de elite, permitindo menos horas de aulas por semana.

Ponto comum entre os estudos é que poucos estudantes-atletas conseguirão profissionalizar-se no esporte, e em razão de algumas dificuldades citadas anteriormente, a grande maioria ficaria exposta às dificuldades de posterior inserção no mercado de trabalho.

A ausência de formação acadêmica poderia dificultar e muito a retomada da vida fora dos gramados, haja vista que apenas o capital físico3 3 Caracterizado como capital desenvolvido a partir de treinamentos específicos para o campo profissional esportivo (MCGILLIVRAY; MCINTOSH, 2006). adquirido na formação esportiva não seria suficiente para a reinserção em um mercado de trabalho cada vez mais exigente.

Dessa forma, o objetivo desta pesquisa é discutir como se estabelece a relação entre a formação esportiva simultaneamente à formação acadêmica, procurando compreender se esse processo permite uma qualificação mínima para o ingresso no mercado laboral após o término da carreira como ex-jogadores profissionais de futebol em Pernambuco.

2 MÉTODO

A delimitação do campo de estudo foi formada pela região metropolitana do Recife, uma vez que os três grandes clubes do estado estão localizados nessa região. O grupo de sujeitos da pesquisa foi formado por onze ex-jogadores de futebol profissional com passagem, por, pelo menos, um dos três grandes clubes da capital pernambucana: Clube Náutico Capibaribe, Sport Club do Recife e Santa Cruz Futebol Clube.

Ratificamos, em virtude do objeto selecionado, a natureza qualitativa (MINAYO, 2000MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2000.) da pesquisa e a História Oral (MEIHY; HOLANDA, 2007MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007.), como metodologia de análise, que ressaltam “o momento histórico vivido pelo sujeito, possibilitando ao estudo penetrar em sua trajetória histórica e compreender a dinâmica das relações que estabelece ao longo de sua existência” (SPINDOLA; SANTOS, 2003SPINDOLA, Thelma; SANTOS, Rosângela Da Silva. Trabalhando com a história de vida: percalços de uma pesquisa(dora?). Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 37, n. 2, p. 119-126, 2003., p. 121).

Para coleta de dados, foi utilizada a entrevista (MONTENEGRO, 1992MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto , 1992.), composta por um tema gerador, no qual o entrevistado discorreria de forma livre sobre a temática proposta. As entrevistas foram realizadas entre março e dezembro de 2017, todas de acordo com a disponibilidade dos depoentes. Após a gravação das entrevistas, houve a transcrição delas, para análises e validação do conteúdo transcrito (BARDIN, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.).

Quanto à seleção dos entrevistados, utilizamos uma amostragem intencional, considerando as pessoas que preenchessem os critérios de inclusão para a realização das entrevistas: a) aceitar participar voluntariamente da pesquisa; b) ter sido atleta de futebol profissional; c) ter atuado em algum momento da carreira como profissional em um dos três grandes clubes de futebol de Recife (Clube Náutico Capibaribe, Sport Club do Recife e Santa Cruz Futebol Clube). Foi composta por onze ex-atletas, com idades entre 25 e 46 anos e com variação entre dois e 18 anos de carreira.

Salienta-se que, à época da pesquisa, embora sua submissão ao Comitê de Ética não fosse exigência do programa de pós-graduação, foi lido e assinado pelos participantes um TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), garantindo o anonimato das identidades e respostas de todos os sujeitos, antes de cada entrevista.

Sobre o tratamento dos dados coletados, foi utilizado o programa de análise qualitativa NVivo ® (versão NVivo11 Pro for Windows®) como um facilitador no processo analítico dos dados (GONDIM, 2019GONDIM, Denis Foster et al. Memória do Judô na cidade do Recife: uma análise a partir de sua relação com a educação e o processo civilizatório. Movimento, v. 25, p. e25075, 2019. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.87957
https://doi.org/10.22456/1982-8918.87957...
). Assim, a partir da leitura dos dados coletados, buscou-se descobrir núcleos de sentidos contidos na fala dos entrevistados, considerando, além da frequência de aparição de palavras, os significados contidos nas ideias apresentadas. Dessa forma é possível uma exploração mais profunda e consubstanciada do gráfico formado pelo software, no formato de nuvens de palavras.

Por conseguinte, depois de feita a exploração do material (codificação, classificação e categorização dos dados), fizemos alocações com trechos de entrevistas concedidos pelos participantes da pesquisa, classificadas de acordo com o problema da pesquisa em três eixos temáticos, a saber: 1)Tensão e possível conciliação entre a formação acadêmica e a esportiva; 2) Relação entre a formação acadêmica e inserção em um novo mercado de trabalho; 3) Possibilidade para aquisição de credenciais educacionais.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dentre os entrevistados, cinco deles possuem graduação, quatro na área de Saúde (dois em Medicina e dois em Educação Física) e outro em Administração de Empresas. Todos trabalham em suas respectivas áreas de formação acadêmica. Dentre os outros seis entrevistados, dois estão com a graduação em curso e os outros quatro não possuem e/ou pretendem fazer alguma graduação.

Com relação ao grau de escolaridade, verificamos uma similitude entre os entrevistados e os respectivos pais, tanto para aqueles que possuem uma graduação, total de cinco, quanto para aqueles que só possuem o ensino fundamental ou médio, total de seis entrevistados, corroborando os achados de Almeida e Souza (2013ALMEIDA, Tobias Benjamin Costa de; SOUZA, Divaldo Martins de. Abandono dos estudos: uma análise dos atletas de futebol em formação nas categorias de base de Belém/PA. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Educação Física) - Universidade do Estado do Pará, Belém, 2013.), em uma pesquisa semelhante realizada com atletas de futebol em formação na cidade de Belém/PA. Percebemos, neste caso específico, que há uma relação direta entre o grau de escolaridade dos entrevistados e dos seus progenitores.

Segundo Silva (2008SILVA, Irailda Leandro da. Lembranças dos caminhos e descaminhos da escola na vida de mulheres negras de Buíque, PE, 1980-1990. 2008. 128 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.):

Existe uma estreita relação entre o perfil da família e o sucesso ou o fracasso escolar de seus filhos, ou seja, a formação cultural dos pais e até de outros antepassados influenciam no processo educacional. Essa herança, diz Bourdieu, define não só o começo da vida escolar, como também nas taxas de êxito da escola. O grau de titulação dos pais, aliás, o nível global da família define todo percurso escolar e o ingresso no ensino superior [sic]. (SILVA, 2008SILVA, Irailda Leandro da. Lembranças dos caminhos e descaminhos da escola na vida de mulheres negras de Buíque, PE, 1980-1990. 2008. 128 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008., p. 14-15)

O pensamento ratifica a influência que os pais exercem sobre os filhos quanto à formação acadêmica, mesmo entendendo que esse fato não pode ser o único determinante para o sucesso ou insucesso na formação acadêmica dos filhos. Essas e outras correlações são discutidas a partir dos eixos.

3.1 TENSÃO E POSSÍVEL CONCILIAÇÃO ENTRE A FORMAÇÃO ACADÊMICA E A ESPORTIVA

O primeiro eixo revela as referências feitas às dificuldades de conciliação entre a formação acadêmica e a formação esportiva, ocasionada por tensões entre os dois processos, o que sempre esteve muito presente na vida de todos os entrevistados. Ver Figura 1.

Figura 1 -
Tensão e conciliação entre as duas formações

Percebe-se dificuldade em alinhar ambas as formações desde muito cedo, ainda na formação acadêmica, como podemos constatar no seguinte relato:

Então, o esporte sempre fez parte da minha vida, desde os 6 anos e eu estou com 33. Nesse tempo inteiro conciliei o esporte com as demais atividades da vida, lazer, profissional e, inclusive, eu já cheguei a trancar os estudos na época de faculdade para me dedicar exclusivamente ao esporte profissional e essa foi a participação que o esporte teve em minha vida. […] dizer que é fácil conciliar seria mentiroso, não é fácil conciliar, mas eu diria que é possível, mas é difícil. Você sabe que vai ter que abrir mão de muitas coisas. (ENTREVISTADO 1).

Igualmente, percebemos que tal obstáculo não só costuma acompanhá-los durante toda a formação acadêmica, como se torna mais difícil; ao passo que os estudantes atletas se aproximam dos anos finais do ensino médio, que, na maioria das vezes, coincide com o ingresso na categoria de juniores,4 4 No Brasil, o futebol comumente se divide nas seguintes categorias: mirim (12 a 13 anos), infantil (14 a 15 anos), juvenil (16 a 17 anos) e júnior (18 a 20 anos). pelo menos para aqueles que conseguiram galgar mais esse degrau na formação esportiva. Como podemos constatar no depoimento do Entrevistado 2:

Eu tive de optar por sair do Colégio Boa Viagem5 5 Colégio particular de grande porte do Recife, com mais de cinquenta anos de atuação no mercado, contando atualmente com duas unidades (Boa Viagem e Jaqueira). , porque os juniores já estavam no patamar de treinar de manhã e de tarde, eu tive de trocar a escola para ir para o Colégio Especial6 6 Colégio particular com mais de uma unidade espalhadas pelo Grande Recife, cujo foco principal é o preparatório para os concursos públicos. , porque eu estudava à noite […] agora eu tinha uma rotina de treinar de manhã no Náutico, treinar de tarde e à noite ir para a escola. Então, era assim, era bastante corrido meu dia. (ENTREVISTADO 2).

E completa: Não tinha como alinhar o futebol a um estudo bom, a ter boas notas. Eu estudava o suficiente para poder passar e obter a média para poder concluir (ENTREVISTADO 2). Segundo Melo et al. (2015MELO, Leonardo Bernardes Silva de et al. Jornada escolar versus tempo de treinamento: a profissionalização no futebol e a formação na escola básica. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 38, n. 4, p. 400-406, 2015.), os atletas ficam à mercê dos contratos e das rotinas estabelecidas pelo clube, forçando-os para o ensino noturno, já cansados da rotina diária.

Também identificamos que houve casos em que as dificuldades de conciliação se acentuaram de tal forma que o resultado foi a reprovação por parte de alguns dos entrevistados:

A dificuldade sempre foi grande, eu cheguei a reprovar de ano uma vez, é porque a conciliação entre treino, jogos, viagens e concentrações sempre foi difícil […] eu tinha que treinar porque eu já tinha contrato, já era meu emprego, eu tinha um contrato firmado, não podia descumprir o meu contrato, mas também, por outro lado, eu tinha que estudar. (ENTREVISTADO 3).

As dificuldades continuam acentuando-se à medida que alguns deles conseguem ingressar em alguma graduação, pois, concomitantemente a essa ocasião, para alguns dos entrevistados, realizou-se a tão sonhada e almejada profissionalização no mundo do futebol. É quando os atletas se sujeitam aos rigores e sacrifícios exigidos por essa opção, de maneira especial, os ligados à carga de trabalho corporal e mudança de hábitos sociais. Corroborando exatamente o que foi exposto:

Passei no vestibular de Educação Física na Universidade Federal e daí começou o curso de manhã e tarde, integral, Então chocava muito com os horários de treino e como eu estava nos juniores, manhã e tarde, é o horário dos treinos. […] Consegui fazer até o terceiro período, passei um ano e meio, foi aí que eu subi para o profissional. No profissional, a flexibilidade já não era mais igual à dos juniores, então eu tive que optar, ou universidade ou futebol, e naquele momento, o futebol foi sempre muito presente na minha vida, sempre foi um sonho me tornar jogador profissional […] fiz o meu primeiro contrato, eu resolvi dar prioridade ao futebol, então eu fui jubilado na universidade, perdi meu vínculo com a Universidade Federal. (ENTREVISTADO 4).

A esse respeito, levando em consideração a rotina de treinos, jogos, competições e viagens seguida pelos jogadores de futebol, “o investimento simultâneo na dupla carreira, de atleta e de estudante, as quais ambas exigem tempo e dedicação para um bom desempenho, pode levar o indivíduo a priorizar uma carreira em detrimento da outra” (MELO et al., 2015MELO, Leonardo Bernardes Silva de et al. Jornada escolar versus tempo de treinamento: a profissionalização no futebol e a formação na escola básica. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 38, n. 4, p. 400-406, 2015., p. 401), geralmente tendendo para o abandono escolar.

O Entrevistado 5 relata: “[...] estava com meus 15 ou 16 anos e comecei a procurar clube para fazer teste, eu estava estudando e acabei que viajei para fazer teste em um clube lá no Paraná, e desisti dos estudos.” (ENTREVISTADO 5). Ele segue dizendo:

Cheguei ao Paraná, passei no clube, fiz minha matrícula na escola e acabou que deu a metade do ano e voltei para Guarulhos e parei os estudos. [...] No ano seguinte, voltei para São Paulo e acabei parando os estudos, tinha feito três anos e não tinha terminado. (ENTREVISTADO 5).

Melo (2010MELO, Leonardo Bernardes Silva de. Formação e escolarização de jogadores de futebol no Estado do Rio de Janeiro. 2010. 72 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física)- Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2010.), embasado em Schwartzman e Cossio (2007SCHWARTZMAN, Simon; COSSIO, Maurício Blanco. Juventude, educação e emprego no Brasil. Cadernos Adenauer - Geração Futuro, v. 7, n. 2, p. 51-65, 2007.), analisa que, além dos problemas de conciliação entre escola e formação esportiva, a qualidade do ensino das escolas no Brasil tem contribuído de maneira direta para o afastamento dos jovens da escola. Como consequência, a tendência de optar pelo viés esportivo em detrimento ao acadêmico ganha força, como a decisão de uma carreira profissional precoce.

3.2 RELAÇÃO ENTRE A FORMAÇÃO ACADÊMICA E INSERÇÃO EM UM NOVO MERCADO DE TRABALHO

Ao analisarmos as falas dos entrevistados de ambos os grupos (graduados e não graduados), encontramos uma estreita relação entre o capital cultural institucionalizado com a retomada da vida fora dos gramados, tendo a aquisição ou a ausência dele, influenciado de maneira direta, auxiliando ou até mesmo dificultando, a inserção dos ex-atletas de futebol profissional em novo mercado de trabalho, como mostramos na Figura 2.

Figura 2 -
Relação entre a formação acadêmica e a inserção em novo mercado de trabalho.

Observamos de forma mais clara, na fala dos entrevistados, as dificuldades enfrentadas, principalmente quanto à inserção em novo mercado laboral, sobretudo para aqueles que não possuem graduação, como nos relata o Entrevistado 4:

Você sai do futebol sem nada nas mãos, você não tem um emprego, não tem um curso superior onde você pode buscar um bom salário, então você acaba muitas vezes tendo que fazer algum bico, alguma coisa, porque, no final das contas, todo mundo tem família, todo mundo necessita levar o alimento para casa. (ENTREVISTADO 4).

Realidade semelhante vivida pelo Entrevistado 6:

Logo após parar de jogar futebol, como eu não tinha nenhuma experiência de trabalho, fui procurar trabalho e sempre me alegavam que eu não tinha experiência, tive muita dificuldade para arrumar emprego, tanto é que eu passei muito tempo, mais ou menos um ano, um ano e meio trabalhando com o irmão do meu pai, no caso, o meu padrasto. Pintado, ele é pintor tem uma firma de pintura, trabalhei com ele durante um ano e meio para me manter, o mercado de trabalho era muito difícil. (ENTREVISTADO 6).

Segundo Barreto (2012BARRETO, Paulo Henrique Guilhermino. Flexibilização escolar para atletas em formação alojados em centros de treinamento no futebol: um estudo na Toca da Raposa e na Cidade do Galo. 2012. 106 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012., p.32) “[…] o diploma escolar, em tese, facilita esse processo de recolocação profissional”, o autor ainda pondera que “[…] se a dedicação à carreira esportiva for acompanhada da dedicação à formação escolar poder-se-ia afirmar […], que ao menos os malsucedidos no futebol com capital cultural poderiam ser reinseridos em outros mercados.”.

3.3 POSSIBILIDADE PARA AQUISIÇÃO DE CREDENCIAIS ACADÊMICAS

Do mesmo modo, percebemos, pela análise das entrevistas, assim como Costa (2012COSTA, Felipe Rodrigues da. A escola, o esporte e a concorrência entre estes mercados para jovens atletas mulheres no futsal de Santa Catarina. 2012. 109 f. Tese (Doutorado em Educação Física) - Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.) e Azevedo (2014AZEVEDO, Marcio Faria de. Conciliação entre formação esportiva e formação escolar: um estudo das seleções brasileiras masculinas de basquetebol de base. 2015. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014. ), a existência de uma grande possibilidade de reconversão do capital físico7 7 Caracterizado como capital desenvolvido a partir de treinamentos específicos para o campo profissional esportivo (MCGILLIVRAY; MCINTOSH, 2006). , caracterizado pelas qualidades físicas, técnicas e táticas adquiridas durante a formação esportiva, em capital cultural institucionalizado, ou seja, pela reconhecida capacidade atlética, alguns receberam propostas de bolsa de estudo em instituições privadas de ensino; em contrapartida, passariam a representar essas instituições em torneios e campeonatos da modalidade.

Principalmente para aqueles em condições socioeconômicas desfavoráveis, a aquisição de melhores credenciais acadêmicas e consequentemente ao capital cultural institucionalizado. Como afirma o Entrevistado 2:

Minha família passou por uma dificuldade financeira muito grande, meu pai nesse retorno que a gente teve de Caruaru em 97, foi demitido da empresa; daí a gente voltou porque não tinha perspectiva nenhuma de emprego em Caruaru, então retornamos para Recife. Foi quando eu tive que despertar para o futebol para eu poder ganhar uma bolsa, para poder estudar em um colégio bom, particular! Fiz um teste. Ganhei uma bolsa, eu fiz teste no Colégio Boa Viagem.8 8 Colégio de grande porte do Recife, com mais de cinquenta anos de atuação no mercado, contando atualmente com duas unidades (Boa Viagem e Jaqueira). Caiu como uma luva na família da gente, porque meu pai tinha ficado desempregado e as condições não estavam legais. (ENTREVISTADO 2).

Condição socioeconômica parecida com aquela em que se encontrava a família do Entrevistado 4 naquela ocasião, e as qualidades esportivas também podem proporcionar acesso a instituições privadas de ensino. Sobre isso, o entrevistado comenta:

A minha família também não tinha muita condição financeira para que eu pudesse estudar em bons colégios, e meu colégio no bairro não tinha a 4ª série, então aceitei o convite do Anglo9 9 O Colégio Anglo Líder foi fundado em novembro de 1996, contando atualmente com cinco unidades (Cordeiro, São Lourenço, Tamarineira, Camaragibe e Anglo Júnior). No total, são mais de quatro mil alunos matriculados. e fui praticar futsal e depois recebi um convite também para ir para o futebol de campo. […] o futsal para mim foi muito útil, pela bagagem que me deu, mas também porque era um esporte que conseguia me dar meus estudos, que eram parte primordial também da minha formação. (ENTREVISTADO 4).

Possibilidades de acesso ao ensino superior, pelo menos para aqueles que conseguiram concluir o ensino médio, mediante recebimento de bolsa de estudos também foram relatadas, convites esses que surgiram após aposentadoria do futebol profissional. Como nos conta o Entrevistado 2:

Treinando a parte física em Boa Viagem correndo, encontro o diretor de esporte da Universo,10 10 Instituição privada de ensino superior com sede na cidade de São Gonçalo/RJ, tendo hoje unidades nas cidades de Goiânia/GO, Recife/PE, Juiz de Fora/MG, Belo Horizonte/MG e Salvador/BA. que eu já tinha jogado lá, e ele me ofereceu uma bolsa integral, para eu cursar Educação Física. Em contrapartida, eu teria que deixar de jogar no profissional definitivamente, então eu decidi parar de jogar, aceitei a proposta […] é tanto que hoje eu tenho trabalho devido ao futebol, o futebol deu meus estudos do ensino médio e estava dando minha formação acadêmica. (ENTREVISTADO 2).

Notamos mais uma vez que o capital físico obtido ao longo da carreira esportiva pode representar, para alguns, ao término da atividade profissional, o acesso ao ensino superior, consequentemente, a reconversão do capital físico para o capital cultural institucionalizado. Podemos constatar na Figura 3:

Figura 3 -
Possibilidade para aquisição de credenciais acadêmicas.

O mesmo ocorreu com o Entrevistado 3, estudante de Engenharia Civil, igualmente convidado por outra instituição de ensino superior, que pontua:

Também jogo o campeonato universitário, que é uma das coisas mais importantes que aconteceu na minha vida, onde eu adquiri uma bolsa na faculdade para eu poder estudar, em um curso que eu desejo, hoje estou em Engenharia Civil e em troca em tenho que jogar pela faculdade, como se fosse uma troca de favores. (ENTREVISTADO 3).

De acordo com Barreto (2012BARRETO, Paulo Henrique Guilhermino. Flexibilização escolar para atletas em formação alojados em centros de treinamento no futebol: um estudo na Toca da Raposa e na Cidade do Galo. 2012. 106 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012.), Damo (2005DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir de formação de jogadores no Brasil e na França. 2005. 434 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.), Melo (2010MELO, Leonardo Bernardes Silva de. Formação e escolarização de jogadores de futebol no Estado do Rio de Janeiro. 2010. 72 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física)- Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2010.) e Santos (2010SANTOS, Francisco Xavier dos. O valor da educação na Formação do Jovem Atleta para o Futebol Profissional Em Recife. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação)-Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.), no caso em que o jovem for malsucedido no futebol e igualmente não for aproveitado pelo mercado esportivo, existem poucas probabilidades de reconversão do capital físico acumulado em outras ocupações fora do ambiente esportivo.

Nesse contexto, Azevedo (2014AZEVEDO, Marcio Faria de. Conciliação entre formação esportiva e formação escolar: um estudo das seleções brasileiras masculinas de basquetebol de base. 2015. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014. ) afirma que, para uma futura reconversão do capital cultural em capital econômico, seria muito importante identificar estratégias que possibilitassem melhor equilíbrio entre a formação educacional e a esportiva, com a finalidade de dar oportunidade a uma trajetória escolar-esportiva mais tranquila.

Como mencionado por Santos (2010SANTOS, Francisco Xavier dos. O valor da educação na Formação do Jovem Atleta para o Futebol Profissional Em Recife. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação)-Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.), na maioria dos clubes de futebol do Brasil, há uma espécie de abandono educacional, psicológico e social com relação aos jovens atletas das categorias de base, importando, a priori, para os clubes formadores, que tais atletas recebam apenas a formação “técnica” que sua formação profissional exige. Segundo o autor:

Embora saibamos que para jogar futebol não seja necessário o saber escolar […], também sabemos que a integridade da vida das pessoas está além da vida escolar e da vida esportiva. Porém, ambas, à sua maneira, compõem um processo de vida. (SANTOS, 2010SANTOS, Francisco Xavier dos. O valor da educação na Formação do Jovem Atleta para o Futebol Profissional Em Recife. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação)-Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010., p. 67).

Assim, o processo de escolarização torna-se fundamental na formação de qualquer ser humano e, “[…] embora o espaço escolar não seja o único onde aprendemos coisas importantes […], no caso do Brasil, é uma via concreta que se apresenta como forma de ascensão social, além é claro de fornecer elementos para a formação cidadã” (SANTOS, 2010SANTOS, Francisco Xavier dos. O valor da educação na Formação do Jovem Atleta para o Futebol Profissional Em Recife. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação)-Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010., p. 69).

Desse modo, ao considerarmos que a carreira profissional de um atleta de futebol, de modo geral, é bastante curta, parece-nos temerário preterir o processo de educação formal. Segundo Parker (2000PARKER, Andrew. Training for “glory”, schooling for “failure”?: English professional football, traineeship and educational provision. Journal of Education and Work, v. 13, n. 1, p. 61-76, 2000.) e Bourke (2003BOURKE, Ann. The dream of being a professional soccer player: Insights on career development options of Young Irish players. Journal of Sport and Social Issues, v. 27, n. 4, p. 399-419, 2003.), a questão da idade determina, invariavelmente, a duração da carreira, diferentemente de outras profissões convencionais.

Para além dos problemas de investimento e de qualidade que enfrentamos na escola brasileira, esses jovens atletas, em geral, enfrentam variados percalços no processo de escolarização, que são específicos dos jovens trabalhadores: cansaço físico pelo excesso de treinamento; falta de tempo para o estudo e para assistir às aulas, em função das constantes viagens que realizam; falta de motivação pelo insucesso escolar; e interesse central no futebol, tornando a escola um objetivo secundário em suas vidas. (SOARES et al., 2009SOARES, Antonio Jorge G. et al. Mercado, escola e a formação de jogadores de futebol no Brasil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 16.; CONGRESSO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 3., 2009, Salvador. Anais [...] Salvador: CONBRACE/UFBA, 2009, p.1-11.).

Outra informação igualmente importante observada por Melo (2010MELO, Leonardo Bernardes Silva de. Formação e escolarização de jogadores de futebol no Estado do Rio de Janeiro. 2010. 72 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física)- Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2010.), que pode interferir diretamente no processo de conciliação entre as duas formações, é uma espécie de processo migratório, caracterizado pela possibilidade real de mudança de clube, que, muitas vezes, representa também deslocar-se de uma cidade para outra em busca de uma oportunidade ou uma realocação em outro clube formador.

Com o intuito de minimizar os problemas de conciliação entre as duas formações, surge, segundo Barreto (2012BARRETO, Paulo Henrique Guilhermino. Flexibilização escolar para atletas em formação alojados em centros de treinamento no futebol: um estudo na Toca da Raposa e na Cidade do Galo. 2012. 106 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012.) e Correia (2014CORREIA, Carlus Augustus Jourand. Entre a profissionalização e a escolarização: projetos e campo de possibilidades em jovens atletas do Colégio Vasco da Gama. Rio de Janeiro, 2014. 240 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Educação no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.), mesmo que uma tentativa tímida, a implementação de albergamentos, cujos resultados apontaram para um esforço de conciliação, como, por exemplo, a flexibilização das rotinas escolares, das normas concedidas aos estudantes atletas nas escolas ou as oferecidas pelos clubes, assim como abono de faltas e remarcação de provas por motivo de viagens esportivas.

Diante dessa realidade, acreditamos que os clubes de futebol têm a responsabilidade social irrefutável de exigir dos seus atletas não só a frequência, mas o bom aproveitamento escolar, assim como também é imprescindível a participação familiar para o êxito no processo educação dos jovens atletas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os achados da pesquisa dão conta de que há problemas de compatibilidade entre a formação acadêmica e esportiva do jogador de futebol no Brasil, não sendo diferente no Recife, e ratifica que a simultaneidade entre as formações tem acarretado um ambiente de tensão entre ambas, por demandarem grande dedicação de tempo.

Um dos fatos que nos levaram a identificar, em nossa amostra, que há jogadores que têm conseguido êxito após o encerramento de sua carreira de jogador de futebol profissional foi o apoio familiar. Comportamento este que creditamos ao maior grau de escolaridade dos pais ou responsáveis diretos por esses jovens. A ciência da efemeridade profissional, as dificuldades para se profissionalizar, a difícil inserção em cenários de maior visibilidade e necessidade da educação formal foram argumentos que levaram as famílias dos entrevistados a exigir a conciliação entre os dois caminhos até que os jovens decidissem, por eles mesmos, a hora de abrir mão de uma em detrimento da outra.

Por outro lado, observamos que, para aqueles entrevistados que não possuem graduação, a ausência ou a lacuna deixada pela educação formal institucionalizada dificultou consideravelmente a readaptação deles após o fim da carreira profissional na área futebolística, principalmente no que concerne à sua inserção em um novo mercado laboral.

Entendemos, nesse caso específico, que por ambas as formações exigirem dedicação e tempo para a otimização do desempenho, estes indivíduos deram prioridade à formação esportiva, chegando ao ponto, em alguns casos mais extremos, que simplesmente abandonaram os estudos, retornando à sala de aula só após o término da carreira futebolística. Há, assim, uma desvalorização da educação formal por parte destes entrevistados enquanto atuaram profissionalmente como jogadores de futebol.

Algo que também nos chamou a atenção neste estudo foi a possibilidade de aquisição de uma educação formal institucionalizada, tendo o capital físico adquirido pelo próprio futebol servido como porta de entrada tanto para a formação educacional básica quanto acadêmica.

Por outro lado, diferentemente de outros estudos aqui apresentados, não identificamos no nosso estudo, por meio das respostas dos entrevistados, as mesmas estratégias por parte dos clubes onde atuaram que valorizam a conciliação entre as duas formações, por exemplo, a flexibilização de horários, desconsideração de atrasos, avaliações perdidas em virtude dos compromissos esportivos e horários alternativos para a resolução de dúvidas. A escola é, nesse caso específico, por sua flexibilização, uma importante ferramenta na construção dessa rotina de conciliação entre as duas formações apoiadas principalmente em um bom relacionamento com as instituições escolares.

Sem a pretensão de concluir o tema, mas com a certeza de que ainda existem muitas questões a serem analisadas, surgem mais dúvidas do que apontamentos, por exemplo: é possível um currículo específico para estudantes atletas? Faltam políticas públicas que normatizem a conciliação entre as carreiras? Como exigir de jovens de baixa renda - cuja esperança de mudança de vida de toda uma família está depositada no sucesso desse jovem atleta - uma educação formal institucionalizada? Como o esporte deveria ser fomentado nas escolas de maneira que possibilitasse a conciliação das carreiras? Se esses sujeitos da pesquisa tivessem tido melhores oportunidades (os que preteriram a carreira no futebol), ter-se-iam dedicado aos estudos? Qual papel de suporte dos clubes aos atletas estudantes?

Esses e muitos outros questionamentos são, seguramente, combustível para novas pesquisas sobre essa controversa temática, que vai além do esporte, mas reverbera incertezas e possibilidades na vida de milhares de jovens que sonham em ingressar no mundo do futebol.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Entende-se como o desenvolvimento dos aspectos físicos, psicológicos, técnicos e táticos de um atleta partir de treinamentos específicos de um determinando esporte ao longo do tempo.
  • 2
    Para Gadotti (2005GADOTTI, Moacir. A questão da educação formal/não-formal. Sion, Suisse: Institut International dês Droits de l’Enfant, 2005. Disponível em: Disponível em: https://aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php/305950/mod_resource/content/1/Educacao_Formal_Nao_Formal_2005.pdf . Acesso em: 20 jul. 2020.
    https://aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php...
    ), a educação formal representa-se, notadamente, pelas escolas e universidades, dependendo de uma diretriz educacional centralizada, havendo um currículo determinado além de estruturas hierarquizadas e burocráticas, estabelecidas nacionalmente, com órgãos do Ministério da Educação.
  • 3
    Caracterizado como capital desenvolvido a partir de treinamentos específicos para o campo profissional esportivo (MCGILLIVRAY; MCINTOSH, 2006MCGILLIVRAY, David; MCINTOSH, Aaron. Football is my life: theorizing social practice in the Scottish professional football field. Sport in Society, v. 9, n. 3, p. 371-387, 2006.).
  • 4
    No Brasil, o futebol comumente se divide nas seguintes categorias: mirim (12 a 13 anos), infantil (14 a 15 anos), juvenil (16 a 17 anos) e júnior (18 a 20 anos).
  • 5
    Colégio particular de grande porte do Recife, com mais de cinquenta anos de atuação no mercado, contando atualmente com duas unidades (Boa Viagem e Jaqueira).
  • 6
    Colégio particular com mais de uma unidade espalhadas pelo Grande Recife, cujo foco principal é o preparatório para os concursos públicos.
  • 7
    Caracterizado como capital desenvolvido a partir de treinamentos específicos para o campo profissional esportivo (MCGILLIVRAY; MCINTOSH, 2006MCGILLIVRAY, David; MCINTOSH, Aaron. Football is my life: theorizing social practice in the Scottish professional football field. Sport in Society, v. 9, n. 3, p. 371-387, 2006.).
  • 8
    Colégio de grande porte do Recife, com mais de cinquenta anos de atuação no mercado, contando atualmente com duas unidades (Boa Viagem e Jaqueira).
  • 9
    O Colégio Anglo Líder foi fundado em novembro de 1996, contando atualmente com cinco unidades (Cordeiro, São Lourenço, Tamarineira, Camaragibe e Anglo Júnior). No total, são mais de quatro mil alunos matriculados.
  • 10
    Instituição privada de ensino superior com sede na cidade de São Gonçalo/RJ, tendo hoje unidades nas cidades de Goiânia/GO, Recife/PE, Juiz de Fora/MG, Belo Horizonte/MG e Salvador/BA.

NOTAS EDITORIAIS

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    Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Ivone Job*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira* *Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2020
  • Aceito
    14 Jul 2020
  • Publicado
    18 Set 2020
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