Acessibilidade / Reportar erro

“CRIANÇA É VIDA1 1 Trecho do diário de Diário de Campo, 20/10/2016. ”: DISCURSOS QUE ATRAVESSAM A RELAÇÃO ENTRE O(A) PROFESSOR(A) DE EDUCAÇÃO FÍSICA E A PROFESSORA REFERÊNCIA NO I CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL

‘CHILDREN ARE LIFE’: DISCOURSES CROSSING THE RELATIONSHIP BETWEEN PHYSICAL EDUCATION TEACHERS AND REFERENCE TEACHERS IN THE 1st CYCLE OF ELEMENTARY SCHOOL

“NIÑO ES VIDA”: DISCURSOS QUE PASAN POR LA RELACIÓN ENTRE LA/EL PROFESORA/OR DE EDUCACIÓN FÍSICA Y LA MAESTRA EN EL PRIMER CICLO ESCOLAR

Resumo:

O presente trabalho analisa as formas pelas quais docentes especialistas de Educação Física e docentes referências vêm assumindo demandas e posições em suas docências no I ciclo. Problematizamos algumas discursividades que nos parecem interpelar as subjetividades dessas(es) docentes, produzindo certos modos de viver a docência no I ciclo. Para tanto, efetuamos um estudo etnográfico em duas escolas da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. Foi possível vislumbrar que há certos discursos, sobretudo aqueles relacionados à infância, que instituem posições às(aos) docentes e estabelecem hierarquias entre o coletivo docente. Nesse cenário, a professora referência se responsabiliza por maiores demandas da turma e é compreendida na cultura escolar como “a” professora da turma; enquanto as(os) docentes de Educação Física, por vezes, apresentam menos legitimidade e autoridade perante a turma; ainda, não costumam estar envolvidos nas demais atividades, como reuniões e conselhos de classe de alguma turma.

Palavras-chave:
Docência; Educação Física; Escola

Abstract:

This work aims to analyse the ways in which teachers specializing in Physical Education and reference teachers have been meeting demands and taking positions in their 1st cycle teachings. In order to do that, an ethnographic study was conducted in two schools from the Municipal School System in Porto Alegre. Certain discourses were found that create hierarchies among teachers - especially those related to childhood. In this scenario, the Reference teacher is in charge of most of the group’s demands and is seen in school culture and by students as ‘the’ class teacher; while specialized teachers meet mostly their own classes’ demands, with little effective participation in collective decision-making or in other activities that take part in the 1st cycle.

Keywords:
Teaching; Physical Education; School

Resumen:

Este estudio analiza las formas en que los docentes especializados en Educación Física y los maestros han asumido demandas y posiciones en su enseñanza en el primer ciclo de la Educación Primaria. Hemos problematizado algunas discursividades que nos parecen interpelar las subjetividades de esas/os docentes, produciendo ciertos modos de vivir la docencia en el primer ciclo. Con este fin, realizamos un estudio etnográfico en dos escuelas de la Red Municipal de Porto Alegre. Fue posible vislumbrar que existen ciertos discursos, especialmente aquellos relacionados con la infancia, que establecen posiciones para las y los docentes y establecen jerarquías entre el colectivo docente. En este escenario, la maestra que es referencia se responsabiliza por mayores demandas de la clase y se entiende, en la cultura escolar, como “la” maestra de la clase, mientras que las/os profesores de Educación Física a menudo se presentan con menos legitimidad y autoridad frente a la clase y, además, no suelen estar involucrados en las demás actividades, como reuniones y consejos de clase.

Palabras clave:
Enseñanza; Educación Física; Escuela

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O trabalho que ora apresentamos aborda a docência do(a) professor(a) especialista de Educação Física e das professoras referências no I ciclo do ensino fundamental em duas escolas da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RMEPOA). Ao tratarmos do I ciclo, importa destacar que, na trajetória de mudanças na organização do ensino no Brasil, denominaram-se de diferentes modos os primeiros anos do ensino fundamental. Diante disso, ainda circulam, na cultura escolar, muitos termos para designar os primeiros anos do ensino fundamental: “CAT”, que faz referência ao Currículo por Atividades, instituído no Parecer 853/1971; séries iniciais, fazendo referência à organização do 1º grau, com duração de oito anos, além das nomenclaturas atuais I ciclo2 2 Considerando-se que o trabalho empírico foi realizado na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, a expressão I ciclo foi predominantemente por nós utilizada para nos referir aos três primeiros anos do ensino fundamental. (correspondente aos três primeiros anos do ensino fundamental nas escolas cicladas) e anos iniciais (correspondente aos cinco primeiros anos do ensino fundamental nas escolas seriadas).

Na RMEPOA, o ensino fundamental é organizado por ciclos de formação. Nessa proposta, o ensino organiza-se em três ciclos compostos por três anos, sendo o ensino fundamental assim constituído: I ciclo - constituído por turmas do 1º, 2º e 3º ano; II ciclo - constituído por turmas do 4º, 5º e 6º ano; III ciclo - constituído por turmas do 7º, 8º e 9º ano.

O coletivo de professores(as) que trabalha no I ciclo na RMEPOA é composto por professor(a) referência, professor(a) itinerante (também conhecida como volante), professor(a) de artes (arte-educação ou música) e professor(a) de Educação Física. Tanto o(a) docente de artes quanto o(a) docente de Educação Física são referidos(as) como especialistas no I ciclo por se diferenciarem da professora referência que trabalha os demais saberes.

Isto posto, objetivamos analisar as formas pelas quais docentes especialistas de Educação Física (EFI) e docentes referências vêm assumindo demandas e posições em suas docências no I ciclo. Ainda, problematizaremos algumas discursividades que nos parecem interpelar as subjetividades dessas(es) docentes. Para tanto, as discussões foram ancoradas na perspectiva dos Estudos Culturais, sob uma abordagem pós-estruturalista, em especial naquelas que se inspiram nas ideias de Michel Foucault.

Na seção que segue, abordaremos algumas noções teóricas acerca desses estudos pós-estruturalistas que fundamentam nossas discussões. Em seguida, situamos metodologicamente a pesquisa, para então trazer as seções analíticas, as quais foram subdivididas em duas seções. Por fim, mas desejando que não cessem as discussões aqui tratadas, apresentamos as considerações finais.

2 CAMINHOS ANALÍTICOS

O pós-estruturalismo se constitui em uma perspectiva que teoriza a linguagem e o processo de significação. Nessa vertente, a linguagem é entendida como um campo de produção de significados (SILVA, 2001SILVA, Tomaz Tadeu. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.). Logo, a linguagem não é vista apenas como representacional, mas sim como constitutiva das coisas. Assim, cabe analisar o sentido das palavras no contexto estudado, ou seja, para além da enunciação da palavra, que efeitos essa nomenclatura produz. Desse modo, a linguagem não faz conexão entre o que pensamos e falamos, ela constitui a realidade.

Entende-se, assim, que a verdade também é uma produção, não algo dado a priori. Evocando as palavras de Foucault, “a verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 21. ed. São Paulo: Graal, 2006., p. 12). Com isso podemos pensar no que engendram supostas verdades, pois elas estabelecem regimes de verdade, os quais controlam e regulam práticas. Essas relações são atravessadas pelo poder, que é visto como um poder em rede. Em uma das obras de Foucault, que emergiu da aula inaugural proferida no Collège de France em dezembro de 1970, ele propõe que pensemos na relação entre o discurso e o poder, mostrando como o discurso pode tornar-se perigoso ao servir a interesses, consolidando diferenças, hierarquias e instituindo posições aos sujeitos.

O discurso - como a psicanálise nos mostrou - não é simplesmente aquilo que se manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é o objeto do desejo; é visto que isto a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mais aquilo, por que, pelo que se luta, poder do qual podemos nos apoderar, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24. ed. São Paulo: Loyola, 2014., p. 11).

Tendo em vista que a materialização de determinados discursos serve para a manutenção de determinadas ordens, Foucault supõe que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24. ed. São Paulo: Loyola, 2014.).

Nessa direção, retomando a ideia de discurso, instituímos práticas mais verdadeiras que outras, que são constituídas por meio de discursos, de como deveriam ser as coisas. Sob essas ideias, entende-se também que as identidades são forjadas por meio do discurso, visto o quanto interpela a subjetividade. Conforme Woodward (2008WOODWARD, Kathyn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz. Tadeu. (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 8. ed. Petrópolis: Vozes , 2008. p. 7-72. ), subjetividade é a compreensão que temos sobre nosso eu, envolvendo nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais. No entanto, conforme salienta a autora, “vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a cultura e a experiência dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual adotamos uma identidade” (WOODWARD, 2008WOODWARD, Kathyn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz. Tadeu. (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 8. ed. Petrópolis: Vozes , 2008. p. 7-72. , p. 55). Com essas ideias, entende-se a identidade como construção e não em um sentido essencialista, dado ao natural, fixo.

Outra noção importante para a compreensão de como constituímos nossas identidades é o de representação, pois é através das representações que estabelecemos nossas identificações. Segundo Silva, a representação é entendida como aquela marca material, visível e palpável do conhecimento (SILVA, 1999SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica , 1999., p. 32). Nessa direção, Hall (1997HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, v. 22, n. 2, jul./dez., 1997.) considera que as representações atuam simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no seu interior.

Valendo-se dos conceitos antes abordados, vincula-se a perspectiva dos Estudos Culturais, da qual nos valemos nesse estudo. Em uma definição sintética, conforme Silva, os Estudos Culturais estão preocupados com as questões que se situam na conexão entre cultura, significação e poder (SILVA, 1999SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica , 1999., p. 134). Sobre essa perspectiva em pesquisas no campo da educação, Meyer e Soares (2005MEYER, Dagmar Elisabeth. E.; SOARES, Rosangela de Fátima. Modos de ver e de se movimentar pelos ‘caminhos’ de pesquisa pós-estruturalista em educação: o que podemos aprender com - e a partir - de um filme. In: COSTA, Marisa V.; BUJES, Maria Isabel E. (org.). Caminhos investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. v. 1. p. 23-44.) elencam algumas possibilidades pretendidas pelos Estudos Culturais na educação, como contestar metanarrativas que prometem descrever e explicar ‘a’ realidade em uma perspectiva totalizante; tensionar as relações usuais que se estabelecem entre saber, poder e verdade; focalizar os processos de diferenciação e hierarquização social e cultural (MEYER; SOARES, 2005MEYER, Dagmar Elisabeth. E.; SOARES, Rosangela de Fátima. Modos de ver e de se movimentar pelos ‘caminhos’ de pesquisa pós-estruturalista em educação: o que podemos aprender com - e a partir - de um filme. In: COSTA, Marisa V.; BUJES, Maria Isabel E. (org.). Caminhos investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. v. 1. p. 23-44., p. 29). À luz dessas ideias, fundamentamos este estudo.

2.1 CAMINHOS METODOLÓGICOS

Neste estudo optamos por realizar uma etnografia. Reconhecemos o debate e as tensões acerca dos usos da etnografia no âmbito dos estudos que tematizam a educação e os processos de escolarização, sobretudo aqueles que criticam a adoção da etnografia na perspectiva de simplificá-la a função instrumental (EZPELETA; ROCKWELL, 1986EZPELETA, Justa; ROCKWELL, Elsie. Pesquisa Participante. São Paulo: Cortez, 1986.; NAKAMURA, 2011NAKAMURA, Eunice. O método etnográfico em pesquisas na área da saúde: uma reflexão antropológica. Saúde e Sociedade, v. 20, n. 1, p. 95-103, Mar. 2011. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902011000100012 . Acesso em: 06 jul. 2020.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201100...
; PEREIRA, 2017PEREIRA, Alexandre Barbosa. Do controverso “chão da escola” às controvérsias da etnografia: aproximações entre antropologia e educação. Horizontes Antropológicos, v. 23, n. 49, p. 149-176, set. 2017. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-71832017000300006 . Acesso em 07 de julho de 2020.
http://dx.doi.org/10.1590/s0104-71832017...
). Ao longo deste estudo, nos pautamos por tomar a etnografia, desde sua ancoragem na reflexão antropológica, como referencial teórico-metodológico, levando em consideração noções caras como cultura, etnocentrismo e estranhamento. Nesse sentido, partimos da premissa de que as ações cotidianas dos(as) professores(as) são interpeladas pela cultura escolar e pelo contexto social, assim a etnografia nos possibilitou estudar não somente aquilo que era visível aos olhos, mas também interpretar gestualidades, falas e demais práticas compartilhadas durante a imersão no trabalho de campo.

Ainda que o universo escolar nos seja familiar, considerando que somos trabalhadoras(es) da educação pesquisando o próprio contexto em que estamos inscritos, buscamos exercitar o estranhamento e a crítica a essa familiaridade, além de revisar e tensionar posições etnocêntricas, como pudemos aprender a partir de etnografias clássicas, como as de Willis (1991WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.) e McLaren (1992MCLAREN, Peter. Rituais na escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação. Petrópolis: Vozes, 1992.). Ao mesmo tempo, no presente estudo procuramos deslizar de posições que enfocassem supostas relações de dominação/opressão para investir na captação e compreensão de arranjos, relações e seus desdobramentos para o fenômeno que nos propomos estudar.

Flick (2009FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. ) afirma que a pesquisa etnográfica implica participação do pesquisador prolongada no contexto estudado. O(a) pesquisador(a) precisa se comprometer e mergulhar no contexto estudado a fim de interpretar e compreender os símbolos compartilhados no referido contexto que permitem compreender os motivos e os sentidos que levam os sujeitos a agirem de determinado modo. Nesse sentido, a fim de ampliar o entendimento e análise do fenômeno estudado, Freitas (2001FREITAS, Antônio Luís. Os conteúdos escolares da Educação Física no ensino fundamental. 199f.l Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, UFRGS, Porto Alegre, 2001.) infere que é importante contar com grande número de variedade e volume de informações, sendo estes resultados da utilização de diferentes técnicas de coleta (FREITAS, 2001FREITAS, Antônio Luís. Os conteúdos escolares da Educação Física no ensino fundamental. 199f.l Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, UFRGS, Porto Alegre, 2001., p. 78)

Valendo-nos dessas ideias, lançamos mão dos seguintes instrumentos para produção de informações: a) Observação participante: acompanhando os(as) professores(as) de Educação Física do primeiro ciclo em suas aulas e nas demais atividades realizadas pelos(as) docentes na escola. Além disso, também acompanhamos as professoras referências em suas aula, participamos de festas realizadas na escola, reuniões, mesmo sem a presença dos(as) professores(as) de EFI; b) Diário de campo: para registrar as lembranças do que foi visto, escutado e sentido no campo durante o período de agosto de 2016 a maio de 2017; c) Entrevista semiestruturada: realizada com as professoras Cristina e Manuela e com o professor Felipe3 3 Os nomes foram substituídos por fictícios para preservar a identidade das pessoas e das instituições. - docentes especialistas de EF que atuam no I ciclo das escolas pesquisadas; d) Análise de documentos: realizamos uma análise de documentos da Secretaria Municipal de Educação (Referencial curricular de 2011 e Documento Orientador Pedagógico de 2016) e dos documentos das escolas, como projeto pedagógico e planejamentos trimestrais das turmas do I ciclo.

Entendemos que a partir dessas diferentes perspectivas - dos sujeitos, através das entrevistas, das pesquisadoras, através dos diários e das informações institucionais, por meio dos documentos oficiais da escola - foi possível ampliar a compreensão do foco do estudo e conferir validez ao estudo. Frisamos ainda que as interpretações e considerações aqui formuladas não têm a pretensão de generalização a toda RMEPOA. Trata-se de um exercício investigativo que nos permitiu examinar e refletir em profundidade sobre dois contextos, cujas aprendizagens abrem espaço para repensar e recriar as docências que se desdobram no I Ciclo do Ensino Fundamental.

2.1.1 Tratamento das informações e cuidados éticos

Após realizar as entrevistas, as transcrevemos na íntegra e as apresentamos aos colaboradores, que puderam fazer ajustes e correções caso julgassem necessário. Esse retorno das entrevistas aos colaboradores foi tomado como primeiro nível de validez do estudo. De posse dessas informações, juntamente com as escritas do diário de campo e com as análises de documentos, realizamos uma triangulação das informações. Entendemos que a partir dessas diferentes perspectivas - dos sujeitos, através das entrevistas; das pesquisadoras, através dos diários de campo e de documentos - foi possível contrastá-los e ampliar a compreensão do foco do estudo, conferindo o segundo nível de validez ao estudo.

Os cuidados éticos durante a realização desta pesquisa seguiram os seguintes passos, ancorados nas recomendações da Resolução 466/2012 do CNS: autorização das escolas através da assinatura do Termo de Consentimento Institucional; negociação de acesso com os(as) docentes, apresentando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido com a possibilidade permanente de desistir do estudo a qualquer momento; substituição dos nomes verdadeiros dos professores e das escolas por nomes fictícios para preservar as suas identidades; devolução das entrevistas para os(as) colaboradores(as) para avaliarem o conteúdo e fazerem algum reparo caso julgassem necessário; cuidado nas descrições e interpretações de modo a evitar gerar prejuízo moral e constrangimento às instituições e aos colaboradores; compromisso com a divulgação das discussões resultantes do estudo a todos os envolvidos durante a pesquisa.

Ressaltamos que este estudo teve como colaboradoras(es) da pesquisa as(os) docentes. Foi a partir da pesquisa realizada com estes(as) colaboradores(as) que emergiram discursividades que serão discutidas na seção seguinte, inclusive as questões relacionadas à infância. Consideramos, portanto, que foram tomados os cuidados éticos necessários para com as(os) docentes colaboradoras(es) e também para com as instituições de ensino pesquisadas.

2.1.2 Contexto e Colaboradoras(es)

A etnografia foi realizada em duas escolas da RMEPOA, as quais denominamos de Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Alfa e EMEF Beta. Contamos com a colaboração de uma professora e um professor de Educação Física na EMEF Alfa e uma professora de Educação Física na EMEF Beta. Tais docentes foram nomeados de modo fictício como Cristina, Felipe e Manuela.

No decorrer do trabalho de campo, além de acompanhar as aulas de EFI da professora Cristina e do professor Felipe na EMEF Alfa e da professora Manuela na EMEF Beta, foram realizadas observações nas demais aulas e atividades propostas nas turmas do I ciclo destes docentes. Assim, por vezes as observações se deram durante um turno inteiro em uma turma, acompanhando a rotina dessa turma desde o início da manhã, quando ficam em fila esperando a professora referência, até a saída da escola. Nesses casos, acompanhamos a turma A304 4 Na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegra, utiliza-se a nomenclatura A10, A20, A30 para turmas do I ciclo, que correspondem ao 1º, 2º, e 3º ano do ensino fundamental. Nesse sentido, quando há mais de uma turma do mesmo ano ciclo, como ocorre em ambas as escolas pesquisadas, as turmas A10 (correspondem às turmas do 1º ano ciclo) são nomeadas de A11, A12, A13, por exemplo. e a turma A11 na EMEF Alfa. Na EMEF Beta, acompanhamos as turmas A10, A11 e A31. Essa rotina incluiu, também, acompanhar a professora referência, a professora de arte-educação, o momento da hora do conto, a ida ao refeitório para lanchar, o momento de higiene feito na escola e as aulas de Educação Física.

Nesse sentido, além dos(as) docentes de EFI, tomamos como colaboradoras desta pesquisa as professoras referências, bem como as(os) demais trabalhadoras(es) que atuam nas turmas do I ciclo em que os docentes Cristina, Felipe e Manuela trabalham. Para tornar mais compreensivo, apresentamos o Quadro 1 com as demais colaboradoras deste estudo:

Quadro 1 -
Professoras que compõem o coletivo docente do I ciclo.

Ressaltamos que não constam na tabela todas(os) as(os) trabalhadoras(es) do I ciclo das escolas. Apresentamos somente aquelas(es) que serão mencionadas(os) nas discussões deste artigo. Também ressaltamos que para ser compreensível a quem nos referimos, no decorrer da discussão, optamos por escrever o nome da professora juntamente com o cargo, exemplificando: professora referência Maria, professora de arte-educação Ágata.

3 A DOCÊNCIA NO I CICLO NAS EMEFS ALFA E BETA

Desde o início da rotina escolar percebemos algumas diferenciações no trabalho realizado pelas(os) especializadas(os) em relação ao trabalho das referências. Essa rotina iniciava com os(as) estudantes no pátio, em fila, aguardando os(as) docentes. Após serem acolhidos(as) pelas(os) docentes no pátio da escola, os(as) alunos(as) seguiam para sala de aula. Quando estavam com docentes especialistas, ao chegar à sala, era realizada a chamada. Por vezes, as(os) especializados(as) explicavam as atividades na sala, como era o costume da professora Cristina e da professora Manuela. Em seguida, deslocavam-se para o local de aula - ginásio, pátio, sala de artes.

Quando as turmas estavam com as referências, percebemos outros atravessamentos na rotina, conforme visto na aula da referência Maria:

Tocou a sirene para iniciar mais um turno. Então acompanhei a professora referência Maria até o pátio para buscar a turma A31. Ao chegar lá, encontramos a turma aguardando em fila. Algumas mães e avós também aguardavam a professora para conversar. Depois de responder alguns questionamentos das famílias, seguimos com as/os estudantes até a sala de aula. No caminho, a professora Maria perguntou se alguém precisava ir no banheiro. Depois, seguimos até a sala de aula. Ao chegar lá, enquanto as crianças se organizavam, a professora explicou sobre o passeio que realizariam no final daquela semana e em seguida perguntou quem trouxe o dinheiro do passeio. Depois de recolher o dinheiro, a professora fez a chamada e atualizou o calendário da sala de aula. Após, a professora apresentou o livro que seria trabalhado naquele dia, dando início à proposta planejada (Diário de campo, EMEF Alfa, 08/09/2016).

Visto isso, compreendemos que muito mais do que alfabetizadoras, como se intitulam na escola, também competia às professoras referências outras tarefas, como organizar saídas de campo, tendo que lidar com questões de transporte, dinheiro e demais aspectos envolvidos na organização dessas saídas. Ainda, os diálogos entre escola/família, por exemplo, ficavam majoritariamente a cargo das professora referências, visto que essas eram as professoras mais visadas nos horários de entrada e de saída da escola pelas famílias; nessas ocasiões, recebiam informações de medicamento dos(as) alunos(as), reclamações das famílias a respeito de alguma situação ocorrida e realizavam combinações diversas com os(as) responsáveis pelas(os) estudantes.

Nesse âmbito, em relação aos(às) docentes especialistas de EFI, ocorreram algumas situações em que os(as) especialistas não foram avisados(as) de alguns desses tratos, como eventuais saídas mais cedo de alguns alunos da escola. Isso ocorreu em uma aula do professor Felipe em que uma aluna com síndrome de Down saiu mais cedo da escola e no final da aula o professor ficou procurando essa aluna. Somente depois soubemos que haviam combinado com a escola e com a professora referência uma antecipação da sua saída, no entanto não repassaram a combinação a ele.

Além disso, esse ciclo apresenta na sua agenda letiva uma gama de eventos nos quais os(as) estudantes são protagonistas, como participação nas festas promovidas pela escola fazendo performances de dança e de canto. Muitas vezes participamos, sobretudo na EMEF Alfa, de sessões de cinema, de gincanas, de festas, entre outras atividades diferenciadas que integravam as turmas do I ciclo. Por vezes, realizavam esses eventos entre turmas do mesmo ano ciclo; em outras - como nas gincanas e nas festas - integravam todas as turmas do I ciclo. Por conta disso, confeccionar fantasias, adereços, entre outros materiais diversos, fazia parte do rol de atividades realizadas pelas docentes referências do I ciclo. Esse caráter artístico também as diferencia dos(das) demais docentes da escola, na medida em que estão muitas vezes portando folhas coloridas, tesouras, cartazes e balas.

Muitas dessas propostas diferenciadas não eram comunicadas aos(às) demais professores(as) especialistas, e acabavam interferindo nas aulas desses(as) docentes, como ocorreu em uma aula de EFI da professora Manuela.

[…] depois das atividades realizadas no pátio, retornamos para sala de aula, onde a professora Manuela costuma realizar práticas meditativas5 5 Essa atividade faz parte da rotina das aulas dessa professora. No início e no final das aulas, ela realiza práticas meditativas (nomenclatura utilizada no seu planejamento trimestral). com os/as alunos/as. Tudo parecia bem, conforme o esperado para atividade; no entanto, a situação mudou quando começou a tocar uma música no corredor. Algumas crianças começaram a dançar, outras saíram correndo pela sala, outras ficaram estáticas olhando para a professora Manuela. De modo geral, estavam eufóricas com aquele momento. A professora de EF não estava entendendo o que estava acontecendo, o porquê daquela música, então uma aluna disse que era o momento da leitura, no qual os/as alunos/as deveriam pegar um livro para ler. Logo em seguida, chegou a professora referência e esclareceu a situação (Diário de Campo, EMEF Beta, 27/10/16).

Além dessas situações em que os(as) docentes de EFI demonstram pouco conhecimento sobre propostas especiais realizadas com as turmas do I ciclo, outras atividades já institucionalizadas e legitimadas na escola, como o conselho de classe, também se tornavam um dilema para a efetiva participação dos(as) docentes especialistas; pois muitos conselhos de classe ocorriam sem a presença dos(as) especialistas. Isto se dava por motivos diversos, como horários de conselho em momentos que os(as) especialistas estavam ministrando aula para outras turmas.

Retomando as ideias de Foucault (2014FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24. ed. São Paulo: Loyola, 2014.), que entende que os discursos organizam as práticas, haja vista o modo como nos sujeitamos a eles, os discursos também estabelecem hierarquias, segregações. Ao pensar no coletivo docente do I ciclo, percebemos que, embora esse coletivo seja formado por docentes diversas - referência, especialista de Educação Física e especialistas de Arte-educação ou de Música -, há certas hierarquias simbólicas nesse contexto, sendo que as professoras referências ocupam uma posição diferenciado neste coletivo.

Tais questões eram percebidas tanto nos momentos de tomada de decisões coletiva, nas quais as referências eram as professoras legitimadas para decidir o melhor pra turma enquanto as(os) docentes especialistas ficavam apenas como coadjuvantes nas reuniões ou então nem eram partícipes de alguns desses momentos, quanto no modo como as turmas eram vistas na cultura escolar, pois circulava o entendimento de que as turmas lhes pertenciam. Isso se evidenciava em falas como “a minha turma”, proferida pelas referências, e falas como “a turma dela [referência]”, ditas pelos(as) demais professores(as), circulam nas escolas. Isso é tão forte nas escolas que os(as) próprios(as) alunos(as), durante as aulas de EF, dizem: “Vou contar pra sôra6 6 Termo utilizado pelas(os) alunas(os) para referirem-se às professoras. ”, sendo que há outro(a) professor(a) ali, de EF.

Mas como pudemos perceber, não era preciso que os(as) estudantes contassem para professora, pois os(as) docentes especialistas faziam isso. Esse era um recorrente ponto de conversa entre especialista e referência: o comportamento dos(as) alunos. Em muitas trocas de períodos, os(as) especialistas conversavam com as professoras referência acerca do modo como as(os) estudantes haviam participado de suas aulas.

Depois da aula de EF, Cristina encontra a professora referência no saguão do prédio e lhe diz: ‘Eles estavam bem agitados hoje!’ (Diário de Campo, EMEF Alfa, 01/11/2016).

A aula de Educação Física encerrou com a prática meditativa. Em seguida, a professora referência entrou na sala e logo perguntou se eles se comportaram bem, como costuma fazer. Manuela olhou para ela e sinalizou que mais ou menos (Diário de Campo, EMEF Beta, 08/12/2016).

Nesse contexto, por vezes, se tem a impressão de que os docentes especialistas relatam os problemas de comportamento não com o intuito de trocar informações com as referências acerca dos(as) alunos(as) e seus problemas, mas sim em um sentido de delação, de dar satisfação para que as referências tomem providências.

Ainda, em situações nas quais os(as) docentes especialistas entendem que as crianças estão malcomportadas, essas representações acerca de quem tem autoridade/legitimidade/poder perante a turma se fazem ainda mais evidentes. Os(as) especialistas parecem não se sentir com autonomia para resolver conflitos, por exemplo, acabando em muitas vezes ameaçando os alunos(as) de que vão contar às referências que eles(as) não se comportaram. Isso foi visto em uma aula de Manuela:

[…] Manuela propôs a aula no corredor do prédio anexo, pois ali era possível colocar os tatames que utilizaria para as atividades ginásticas. No decorrer da aula, Manuela parou as atividades em vários momentos, pedindo para que as crianças parassem de gritar, pois atrapalharia a aula das turmas daquele corredor. As crianças seguiram correndo por tudo, pelo tatame, fora dele, falavam alto, algumas gritavam. Nesse contexto, Manuela reuniu novamente os/as estudantes e disse: ‘Querem que eu chame a Violeta (professora referência da turma A33)?’. Mais um tempo se passou, e as crianças seguiam agindo como antes. Manuela mostrava-se desolada com a situação e me pareceu que abriu mão de sua proposta, deixando que os/as alunos fizessem o que bem desejassem (Diário de Campo, EMEF Beta, 08/12/2016).

Faz-se importante destacar que foram inúmeras as vezes que presenciamos Manuela buscando diálogo com as turmas, sobretudo com uma das turmas do 3º ano. Entretanto, quando a situação lhe fugia ao controle, a professora referência tornava-se representativa da ordem. Em situações semelhantes, em algumas vezes Felipe abriu mão de ministrar suas propostas de aula, mas não conversava com a professora referência a respeito, e sim levava os alunos ao coordenador pedagógico. Houve uma vez em que Felipe desistiu de tentar explicar um jogo para os(as) alunos(as) da turma A32; foi nesse contexto que ele veio até mim e disse: “Eu não tenho perfil para trabalhar com eles (referia-se às(aos) estudantes do I ciclo)” (Diário de Campo, EMEF Alfa 15/09/2016).

Essa dificuldade expressada por Felipe e por Manuela parece produzir - ou ser produto - dessa representação de referência, que, como contraponto, tem uma ideia de não referência: um(a) especialista.

Outrossim, problematizamos que essa hierarquia simbólica no coletivo docente produza nos(as) professores(as) especialistas um sentimento de pertencimento limitado à turma na medida em que as professoras referências parecem sentir-se sempre responsabilizadas pela turma, mesmo quando não estão no espaço-tempo da escola destinado a elas, ou seja, mesmo quando os(as) alunos(as) estão nos períodos de EF ou artes. Ao encontro disso, a professora referência Ângela da turma A11 expressa suas angústias e demonstra seus sentimentos em relação às crianças:

[…] enquanto aguardava na sala dos professores o término da aula de música para turma na qual é referência, Ângela expressou sua preocupação com os/as alunos/as. Tratava-se do último período da manhã, logo, caberia ao professor de música descer com as crianças até o pátio e esperar as famílias buscarem todos/as. Mesmo que coubesse ao professor de música aguardar que todos fossem embora, Ângela disse-me que ia descer para dar uma ‘espiada’ e ver se estava tudo bem, pois eles são muito pequenos. Depois de expressar suas angústias, Ângela refletiu sobre a situação que me contou e afirmou que se sentia como ‘a galinha e os pintinhos’, haja vista que onde a turma ia, ela queria ir atrás pra conferir se estavam bem (Diário de Campo, EMEF Beta, 16/08/2016).

Essa manifestação de Ângela vai ao encontro de outras situações semelhantes, como na ocasião em que a professora Manuela estava na sala de aula da turma A33 escrevendo no quadro as atividades que pretendia trabalhar naquele dia quando entra a professora referência dessa turma e diz: “Só pra ver se era tu que estava aí” (Diário de Campo, EMEF Beta, 09/11/2016).

Esses momentos nos conduziram a pensar no quanto as referências se preocupam e zelam pelos(as) estudantes, responsabilizando-se pela turma como se fosse responsabilidade delas em todo o período escolar, mesmo quando havia outro(a) professor(a), ou seja, outro(a) adulto(a) referência com as crianças. Nesse cenário, as(os) especialistas de EF parecem em constante vigilância pelas professoras referências. O que contribui para que enfrentem dificuldade em se legitimar na responsabilização de diferentes demandas da turma, para além dos minutos em que estão ministrando aula de Educação Física.

Na seção seguinte, discutimos certas discursividades que circulam sobre os(as) alunos(as) do I ciclo, que nos parecem fundantes no modo de pensar e organizar a docência nesse ciclo.

3.1 ATRAVESSAMENTOS NA DOCÊNCIA

Durante o trabalho de campo, começamos a tensionar a reincidência de certos enunciados ao perceber o conjunto de práticas que eles instituem. A começar pelo termo “os pequenos”, que circula recorrentemente em ambas as escolas para se referir aos(às) estudantes do I ciclo. Entendemos que essa denominação de “os pequenos” já é produto e produz uma idealização da infância como pequenez a qual coloca as crianças em uma posição de dependentes. Visto isso, fomos conduzidas a deslocar a compreender os(as) estudantes na condição símbolos da cultura do I ciclo, os quais carregam valores, ideias de uma sociedade.

Ao encontro disso, em uma conversa com a supervisora Ana da EMEF Alfa, ela nos narra que sente falta de atuar como professora referência e relata gostar de ir para sala de aula substituir as professoras quando alguma delas falta eventualmente, pois, em suas palavras, “criança é vida!” (Diário de Campo, EMEF Alfa, 20/10/2016). Entendemos que essa fala expressa essa idealização acerca dos(as) estudantes do I ciclo.

Acerca dessa ideia, ao estudar a infância, Corazza (2000CORAZZA, Sandra Mara. História da infância sem fim. Ijuí: Unijuí, 2000.) entende que este ser infantil não é natural, mas sim um produto da cultura, e lança mão da linguagem figurada para caracterizar este ser infantil construído culturalmente. Em suas palavras:

[…] mundo maravilhoso e encantado; jardim das delícias; paraíso de pureza e inocência pletóricas; viveiro de felicidades; subterrâneo não socializado - selvagem, arcaico, primitivo, insondável, belo, inato, perfeito, livre -, onde mora o que foi reprimido posteriormente; em suma, aurora de nossas vidas […] Não é que este ser - ora soberano de lídima pátria, ora súdito renegado - não tivesse existido antes; mas é que por não ser um fato da natureza, mas de cultura - cuja história é das culturas que o dizem infantil e o governam (CORAZZA, 2000CORAZZA, Sandra Mara. História da infância sem fim. Ijuí: Unijuí, 2000., p. 17).

Essas idealizações acerca das crianças, por sua vez, estabelecem regimes de verdades sobre a docência no I ciclo. Cabe, aqui, retomar as ideias de Foucault, que nos ajudam a pensar que “[…] a verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 21. ed. São Paulo: Graal, 2006., p. 12).

Sob essas verdades que vão se produzindo, compreendemos que foi sendo produzido também o entendimento de que crianças precisam de referência. Essa questão nos chamou atenção durante o trabalho de campo ao passo que percebemos a centralidade da professora Referência no I ciclo. Tal ideia é forte não somente nos contextos pesquisados, como abordamos anteriormente, mas se concretiza nas próprias diretrizes educacionais para escolarização inicial, a começar pelo modo como se organizam os anos iniciais, com uma professora denominada - nos documentos referenciais do Município - de professora Referência.

Acerca disso, corroboramos a ideia de que “[…] as palavras que fornecem significados às coisas. Portanto, é por meio de nomeações, descrições e concepções que construímos conhecimentos e podemos agir sobre nós mesmos e sobre os outros” (TRAVERSINI; BALEM; COSTA, 2007TRAVERSINI, Clarice Salete; BALEM, Nair; COSTA, Zuleika. Que discursos pedagógicos escolares são validados por professores ao tratar de metodologias de ensino? CONGRESSO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO UNISINOS: Pedagogias (Entre) Lugares E Saberes, 5., São Leopoldo. Anais [...]. São Leopoldo: Casa Leria, 2007.). Nessa direção, a nomenclatura referência já representa uma de suas atribuições, ser referência.

Além disso, o modo de organizar o I ciclo, com menos docentes, ou somente com uma professora - dependendo da rede de ensino - também é uma materialização de um ideal sobre aquilo que se considera melhor para as crianças. Relembro que na Educação Infantil e nos cinco primeiros anos iniciais do ensino fundamental é facultativa a presença de docentes com formação específica das áreas de artes e Educação Física; o que é assegurado é o trato dos conhecimentos relacionados à Educação Física e às artes.

Sobre isso, Costa (2002COSTA, Jociane R. M. A pedagogia nas malhas de discursos legais. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002.), ao fazer uma análise de discurso da legislação educacional brasileira, entende que os discursos legais evocam saberes socialmente sancionados, reconhecidos e considerados verdadeiros para constituir o campo de ação para a pedagoga (COSTA, 2002COSTA, Jociane R. M. A pedagogia nas malhas de discursos legais. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002., p. 14). Pensando com essa autora, entendemos que as diretrizes educacionais, tanto em nível nacional quanto municipal, vão reafirmando esses entendimentos das crianças infantis como incompletude, heteronomia, por sua vez sustentando um governamento necessário de alguém que se supõe referência.

Nessa perspectiva, alguns estudos do campo da EFI também problematizam a legitimidade e a importância de haver um(a) professor(a) especialista em EFI nesta etapa de ensino. A esse respeito, reconhecemos alguns estudos voltados à discussão sobre a facultatividade do professor formado em Educação Física, e, em alguns destes, os autores eram enfáticos em afirmar a necessidade de um professor habilitado em EFI para a Educação Infantil e nos anos iniciais, entre os quais Silva e Krug (2008SILVA, Marcio Salles da; KRUG, Hugo Norberto. A formação inicial em Educação Física e Pedagogia: preparação para atuação nos anos iniciais. Revista Teoria e Prática da Educação, v.11, n.1, p.23-32, jan./abr. 2008.). Por sua vez, Fonseca et al. (2014FONSECA, Denise et al. Vamos abrir a caixa? Um estudo sobre as aulas de educação física com professoras unidocentes. Didática Sistêmica, v. 1, n. 1, Edição especial, p. 20-274, 2014. ) problematizam os sujeitos formados a partir das metodologias e dos conteúdos que compõem as aulas de EF ministradas pelas unidocentes, e convidam a pensar nos muitos conhecimentos que são privados aos alunos, tensionando as escolhas das unidocentes.

Esses estudos nos trazem questões importantes acerca das especificidades da EFI e das ideias pedagógicas sobre a organização do trabalho com crianças. Mas novamente questionamos esse modo diferente de pensar a organização da docência no I ciclo. Sem cair na polarização de discutir se ter referência no I ciclo é bom ou ruim, se ter professor(a) especialista é bom ou ruim; importa-nos, sim, pensar nessa concepção como um modo diferenciado de organizar o I ciclo com uma professora referência, buscando não fragmentar o conhecimento.

Além disso, atributos conferidos à professora referência são férteis para outro elemento fortalecido na cultura escolar, o fato de todas as professoras referências, nas duas escolas estudadas, serem mulheres, e também de o coletivo de professoras do I ciclo ser constituído majoritariamente por mulheres. A esse respeito, Costa (2006COSTA, Marisa V. O magistério na política cultural - identidade, discurso e poder. In: COSTA, Marisa (org.). O magistério na política cultural.Canoas: Ed. ULBRA, 2006, p. 09-17.) nos diz:

[…] a escolarização fundamental como obrigação do Estado e direito inalienável das crianças e jovens expande um campo de trabalho adequado e recomendável aos contingentes femininos. São preceitos culturais tipicamente patriarcais e moralistas que contribuem para direcionar as mulheres ao trabalho docente. Discursos religiosos, biológicos e pedagógicos articulam-se nesse mesmo sentido ao ponto de naturalizar a docência como ‘trabalho de mulher’ (COSTA, 2006COSTA, Marisa V. O magistério na política cultural - identidade, discurso e poder. In: COSTA, Marisa (org.). O magistério na política cultural.Canoas: Ed. ULBRA, 2006, p. 09-17., p. 10).

Esse entendimento de que a docência é um trabalho de mulher ainda circula, sobretudo, no I ciclo. Essas discursividades sobre gênero se atravessam também no entendimento de quem está mais legitimada a trabalhar como especialista no I ciclo. A esse respeito, a professora volante Luiza é categórica em afirmar que professores homens não permanecem muito tempo atuando como especialistas no I ciclo, pois, segundo ela, “eles perdem o controle dos pequenos quando descem ‘pro’ pátio”. (Diário de Campo, EMEF Beta, 06/04/2017). Compreendendo que essa feminização não é natural, mas sim uma construção: o convite é para pensarmos que ser feminina está no rol dos atributos legitimados na cultura escolar para trabalhar com os pequenos. Questões de gênero, portanto, estão imbricadas também na produção de verdades sobre a docência do I ciclo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar as formas pelas quais docentes especialistas de Educação Física e docentes referências vêm assumindo demandas e posições em suas docências no I ciclo do ensino fundamental, compreendemos que as professoras referências incorporam sua identidade referencial e assumem muitas demandas, como organizar festas e saídas de campo (lidando com o dinheiro dessas saídas) e confeccionar materiais diferenciados para os pequenos. Também se entendem mais responsáveis pela turma, prezando pelo zelo e cuidado das crianças mesmo quando não estão em suas aulas, sob seus olhares. Os(as) especialistas, por outro lado, parecem assumir a especialidade de suas áreas, sem muito envolvimento nas atividades diferenciadas propostas na agenda do I ciclo, sem, muitas vezes, poder participar das reuniões desse ciclo e dos conselhos de classe de alguma turma. Assim, problematizamos que essa hierarquia simbólica no coletivo docente produza nos(as) professores especialistas um sentimento de pertencimento limitado à turma na medida em que as professoras referências parecem sentir-se sempre responsabilizadas pela turma

Acerca desse contexto, entendemos que enunciados como o termo “os pequenos”, que circula fortemente nas escolas, parece reiterar a idealização dos(as) alunos(as) como seres infantis, os quais precisam de uma referência, feminina, que zele e seja responsável por elas(as). Isso tem implicações na docência da(o) especialista de Educação Física que atua nesta etapa, na medida que estabelece hierarquias entre as(os) docentes, conforme exposto anteriormente. Assim, infância e gênero atravessam a docência das(os) especialistas de Educação Física no I ciclo, instituindo posições aos sujeitos trabalhadores desse ciclo.

REFERÊNCIAS

  • CORAZZA, Sandra Mara. História da infância sem fim. Ijuí: Unijuí, 2000.
  • COSTA, Jociane R. M. A pedagogia nas malhas de discursos legais. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002.
  • COSTA, Marisa V. O magistério na política cultural - identidade, discurso e poder. In: COSTA, Marisa (org.). O magistério na política cultural.Canoas: Ed. ULBRA, 2006, p. 09-17.
  • EZPELETA, Justa; ROCKWELL, Elsie. Pesquisa Participante. São Paulo: Cortez, 1986.
  • FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
  • FONSECA, Denise et al Vamos abrir a caixa? Um estudo sobre as aulas de educação física com professoras unidocentes. Didática Sistêmica, v. 1, n. 1, Edição especial, p. 20-274, 2014.
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 21. ed. São Paulo: Graal, 2006.
  • FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24. ed. São Paulo: Loyola, 2014.
  • FREITAS, Antônio Luís. Os conteúdos escolares da Educação Física no ensino fundamental. 199f.l Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, UFRGS, Porto Alegre, 2001.
  • HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, v. 22, n. 2, jul./dez., 1997.
  • MCLAREN, Peter. Rituais na escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação. Petrópolis: Vozes, 1992.
  • MEYER, Dagmar Elisabeth. E.; SOARES, Rosangela de Fátima. Modos de ver e de se movimentar pelos ‘caminhos’ de pesquisa pós-estruturalista em educação: o que podemos aprender com - e a partir - de um filme. In: COSTA, Marisa V.; BUJES, Maria Isabel E. (org.). Caminhos investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. v. 1. p. 23-44.
  • NAKAMURA, Eunice. O método etnográfico em pesquisas na área da saúde: uma reflexão antropológica. Saúde e Sociedade, v. 20, n. 1, p. 95-103, Mar. 2011. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902011000100012 Acesso em: 06 jul. 2020.
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902011000100012
  • PEREIRA, Alexandre Barbosa. Do controverso “chão da escola” às controvérsias da etnografia: aproximações entre antropologia e educação. Horizontes Antropológicos, v. 23, n. 49, p. 149-176, set. 2017. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-71832017000300006 Acesso em 07 de julho de 2020.
    » http://dx.doi.org/10.1590/s0104-71832017000300006
  • SILVA, Marcio Salles da; KRUG, Hugo Norberto. A formação inicial em Educação Física e Pedagogia: preparação para atuação nos anos iniciais. Revista Teoria e Prática da Educação, v.11, n.1, p.23-32, jan./abr. 2008.
  • SILVA, Tomaz Tadeu. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
  • SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica , 1999.
  • TRAVERSINI, Clarice Salete; BALEM, Nair; COSTA, Zuleika. Que discursos pedagógicos escolares são validados por professores ao tratar de metodologias de ensino? CONGRESSO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO UNISINOS: Pedagogias (Entre) Lugares E Saberes, 5., São Leopoldo. Anais [...]. São Leopoldo: Casa Leria, 2007.
  • WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
  • WOODWARD, Kathyn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz. Tadeu. (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 8. ed. Petrópolis: Vozes , 2008. p. 7-72.
  • 1
    Trecho do diário de Diário de Campo, 20/10/2016.
  • 2
    Considerando-se que o trabalho empírico foi realizado na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, a expressão I ciclo foi predominantemente por nós utilizada para nos referir aos três primeiros anos do ensino fundamental.
  • 3
    Os nomes foram substituídos por fictícios para preservar a identidade das pessoas e das instituições.
  • 4
    Na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegra, utiliza-se a nomenclatura A10, A20, A30 para turmas do I ciclo, que correspondem ao 1º, 2º, e 3º ano do ensino fundamental. Nesse sentido, quando há mais de uma turma do mesmo ano ciclo, como ocorre em ambas as escolas pesquisadas, as turmas A10 (correspondem às turmas do 1º ano ciclo) são nomeadas de A11, A12, A13, por exemplo.
  • 5
    Essa atividade faz parte da rotina das aulas dessa professora. No início e no final das aulas, ela realiza práticas meditativas (nomenclatura utilizada no seu planejamento trimestral).
  • 6
    Termo utilizado pelas(os) alunas(os) para referirem-se às professoras.

NOTAS EDITORIAIS

  • LICENÇA DE USO

    Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons atribuição Não Comercial 4.0 (CC BY-NC 4.0), que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o trabalho original seja corretamente citado, com a restrição que impede o uso para fins comerciais. Mais informações em: https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho foi realizado sem qualquer apoio financeiro.
  • COMO REFERENCIAR

    ASSIS , Amanda Dória de; WITTIZORECKI, Elisandro Schultz. Movimento, v.26, p. e26072, jan./dez. 2020. Disponível em: Acesso em:........ DOI: 10.22456/1982-8918.102490
  • RESPONSÁVEIS EDITORIAIS

    Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Ivone Job*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira* *Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2020
  • Aceito
    31 Jul 2020
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: movimento@ufrgs.br