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YOGA E A BUSCA DO SI MESMO: PENSAMENTO, PRÁTICA E ENSINO

YOGA AND SELF-SEARCHING: THINKING, PRACTICE, AND TEACHING

El YOGA Y LA BÚSQUEDA DEL YO: PENSAMIENTO, PRÁCTICA Y ENSEÑANZA

Resumo

Primeiramente, será realizada uma interpretação do conto zen-budista do boi e o seu pastor, buscando explorar algumas relações a respeito do pensamento oriental e do autoconhecimento. Posteriormente, será feita uma discussão do corpo e suas relações com o yoga, sobretudo na sua vertente mais físico-corporal, o hatha yoga, buscando expor a dimensão essencial e paradoxal de sua raiz originária, ou seja, o despertar de uma concepção de matéria mais sutil que compõe o ser através do estudo e da prática do corpo e do gesto. Por fim, serão explicitados alguns elementos do ensino dos asanas e da meditação para estudantes de Educação Física.

Palavras-chave:
Ioga; Filosofia; Meditação; Ensino

Abstract

First, the Zen-Buddhist short story of the ox and its shepherd will be interpreted to explore some relationships regarding Eastern thought and self-knowledge. Then the body and its relationship with yoga will be discussed, especially its more physical-bodily aspect - hatha yoga - seeking to demonstrate the essential and paradoxical dimension of its original roots, that is, awakening a more subtle view on the matter that makes up beings through study and practice of body and gesture. Finally, some elements of asana and meditation teaching for Physical Education students will be explained.

Keywords:
Yoga; Philosophy; Meditation; Teaching

Resumen

Primero, se llevará a cabo una interpretación de la historia budista zen del buey y su pastor, buscando explorar algunas relaciones con respecto al pensamiento oriental y el autoconocimiento. Posteriormente, se realizará una discusión sobre el cuerpo y sus relaciones con el yoga, especialmente en su aspecto más físico-corporal, el hatha yoga, buscando exponer la dimensión esencial y paradójica de su raíz original, es decir, el despertar de una concepción de materia más sutil que compone el ser a través del estudio y la práctica del cuerpo y del gesto. Finalmente, se explicarán algunos elementos de la enseñanza de asanas y de la meditación para estudiantes de Educación Física.

Palabras clave:
Yoga; Filosofía; Meditación; Enseñanza

1 INTRODUÇÃO

Dentre as oportunidades que o aprendizado de uma prática corporal possibilita, se encontra a observação e maior compreensão de si mesmo. Oportunidade ainda pouco pesquisada e explorada, mas que pode resultar em um processo no qual uma dimensão mais esclarecida1 1 Esclarecimento é a saída da menoridade, um estado/processo de comodidade no qual o ser humano deixa de fazer uso do seu entendimento para se submeter ingenuamente a um poder tutelar alheio (KANT, 1985). do ser humano pode ser cultivada.

Aqui será discutido o autoconhecimento por meio do yoga, um movimento cultural milenar, que se alinha geográfica, histórica e culturalmente a outras manifestações e aspectos do pensamento oriental. Para isso, inicialmente será realizada uma interpretação do clássico conto zen-budista do boi e o seu pastor, obra que faz parte do patrimônio artístico do templo Shokoku-ji da cidade de Kyoto no Japão e que, até os dias atuais, ainda é utilizado como iniciação à prática da meditação e ao entendimento de alguns princípios do pensamento oriental. Essa interpretação se faz necessária para se contrapor a uma concepção bastante comum, a qual reduz o yoga a uma prática de alongamento e contorcionismo.

Depois disso, será realizada uma exposição de algumas relações entre prática corporal e autoconhecimento, buscando realçar o aspecto da consciência de si através do respeito aos limites e as possibilidades do corpo. Para isso, serão apresentados alguns elementos do hatha yoga e da meditação, além de um breve relato de experiência do ensino dessas artes no contexto de formação acadêmica e profissional de estudantes de Educação Física.

2 O BOI E O SEU PASTOR: UM ANTIGO CONTO CHINÊS

O boi e o seu pastor é um antigo conto zen-budista que expõe o processo de conscientização de si mesmo. O budismo zen se assemelha, no Japão, ao budismo chan chinês, uma síntese do budismo mahayana2 2 Mahayana é uma tendência budista conhecida por “grande veículo”, que propõe que todos os seres humanos possuem dentro de si a natureza de Buda e, portanto, são capazes de alcançar a experiência de samadhi, o estado de plena consciência (CHENG, 2008). e do daoísmo3 3 Fazer nada é a proposição básica dos daoístas, assim como sua chave e método de cultivo moral. Neste contexto, fazer nada não significa a inatividade, mas sim a ação perfeita em harmonia com o todo. Também não é simplesmente a fuga do mundo ou da realidade, mas de um agir-sem agir que equivale a deixar ocorrer sozinho, e esse deixar é ativo. (ZHONGWEN; QIAOSHENG, 2011). , e também é equivalente à escola indiana dhyana, a escola meditativa do budismo, na qual prevalece a intuição mais do que a lógica, a experiência mais do que a erudição. Nessas tradições, há uma dimensão mais afetiva no processo de conhecer, portanto, o saber também se relaciona com a experiência emotiva que transforma a existência e resulta em um nível de consciência mais elevado.

No budismo chan, as práticas são simples e nenhuma autoridade precisa ser reverenciada. Nele, encontra-se o Buda ao olhar para si mesmo. Essa procura, encontro e conquista do si mesmo é alegoricamente representada nas figuras e palavras que compõem o conto chinês do século XII o boi e o seu pastor, que teria inspirado posteriormente o monge e pintor japonês Tensho Shubun (1432-1460) a pintar as imagens que aqui são apresentadas e o abade Zettai Chushin (1336-1406) a escrever os poemas que acompanham as figuras. Cada imagem simboliza uma determinada dimensão da trajetória do ser humano na busca de si. O boi é o símbolo temporário de si mesmo que está sendo procurado, enquanto o pastor representa o ser que se esforça por atingir a meta de encontrá-lo.

As imagens e palavras desse conto expõem de maneira alegórica4 4 Alegoria refere-se ao conhecimento simbólico que alude a qualidades supra-sensíveis não expressas (ABBAGNANO, 2007). uma dimensão da existência e da busca da autorrealização através do conhecimento de si. As gravuras representam o percurso de quem se depara com a estranheza de aspectos que retratam as diferentes forças internas do ser humano e busca respostas para este conflito, procura por possíveis indicações de caminhos que possam retirá-lo desse desconforto (FLORENTINO NETO; GIACÓIA JÚNIOR, 2013FLORENTINO NETO, Antonio; GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. O Nada absoluto e a superação do niilismo: Os fundamentos filosóficos da Escola de Kyoto. Campinas, SP: Editora PHI, 2013.).

Este conjunto de imagens e palavras constitui uma potente alegoria que apresenta diversas interpretações contemporâneas, visto que foi investigada por diferentes pensadores de distintas áreas do conhecimento.5 5 Para tomar conhecimento de outras versões deste conto ou de outros trabalhos a respeito dele, ver Hortegas (2019). Para a breve hermenêutica realizada neste artigo, utilizaram-se os trabalhos de Shizuteru Ueda, filósofo japonês que, além de ter tido acesso às grandes obras da filosofia em idioma ocidental, também praticava e possuía na sua formação clássica as tradições do pensamento zen-budista, chinês e indiano.

A Figura 1 e a Figura 2 remetem ao pastor que está à procura do seu boi.

Figura 1 -
Na procura do boi.

Figura 2 -
Encontrando pegadas do boi.

Trata-se, portanto, do início de uma jornada em busca de si mesmo. Essas imagens podem ser comparadas ao despertar de algo ainda desconhecido e que irá ocorrer por diversas vezes ao longo da vida, mas que, nesse caso, está associado à busca interior de certo sentido ou, ao menos, a um conforto para algo que incomoda interiormente. Nos poemas atribuídos a essas duas primeiras imagens, encontram-se as seguintes palavras: “Em um ermo sem fim, o solitário pastor dá passos largos entre os densos pastos em busca de seu boi. Muitos buscam o boi, porém são poucos os que o vêem” (UEDA, 2004UEDA, Shizuteru. Zen y filosofia. Barcelona: Herder, 2004., p. 139-141).

Figura 3 -
Boi à vista.

Figura 4 -
A captura do boi.

Na Figura 3 e na Figura 4, é apresentado o encontro do pastor com o seu boi e o que se poderia chamar de educação do boi, ainda que o termo educação associado à imagem alegórica de um animal crie algum desconforto. Trata-se, portanto, de uma primeira constatação da existência de algo mais essencial e que precisa ser lapidado com esforço e perseverança. Nos poemas relacionados a essas imagens percebe-se que:

O pastor topou com o boi. Já não tem necessidade de correr atrás do bramido. Nenhum pincel e nenhum lápis de cor poderiam captar a maravilhosa paisagem. Ali onde as pastagens fragrantes se elevam até o céu, o pastor captura o boi. Nem por um instante deve soltar as rédeas (UEDA, 2004UEDA, Shizuteru. Zen y filosofia. Barcelona: Herder, 2004., p. 143-145).

Figura 5 -
Domando o boi.

Figura 6 -
Retorno para casa nas costas do boi.

Na Figura 5 e na Figura 6, ocorre o processo de harmonização e o refinamento da vigilância interior. Se antes era preciso perseguir ou mesmo lutar com o boi, agora o pastor pode seguir seu caminho com mais tranquilidade, até mesmo soltar as rédeas do boi para poder tocar flauta sobre o seu lombo. Trata-se, portanto, de um nível de maestria em relação às técnicas e ao conhecimento de si mesmo, que permite a consciência e/ou o afastamento das adversidades que poderiam resultar no distanciamento do boi do seu pastor:

Através de um adestramento paciente o boi acostuma-se ao pastor e se amansa. Lenta e firmemente o pastor conduz o boi a sua casa. E na neblina que se estende pela tarde, sua flauta se ouve longe na distância. Sentado outra vez no lombo do boi, volta a sua casa com o coração alegre. O boi não esbanja nenhum olhar para esta pastagem outrora tão atraente (UEDA, 2004UEDA, Shizuteru. Zen y filosofia. Barcelona: Herder, 2004., p. 147-149).

Desde a primeira figura até aqui, o que ocorre é o desenvolvimento da intimidade das relações entre o pastor e o seu boi. No entanto, na próxima figura (Figura 7), o boi já não será mais representado, pois o autoconhecimento possibilitou a superação da dualidade e, ao mesmo tempo, uma concepção mais holística do ser, na qual o pastor e o seu boi tornam-se apenas um.

Figura 7 -
Desaparecendo-se o boi, só resta o pastor.

Da primeira até a sétima figura, mostram-se em progressivo desenvolvimento os momentos de ensinamento e aprendizagem, através da disciplina, perseverança e também do exercício da meditação:

Agora já não há nenhum boi. Cantando e dançando, o pastor leva uma vida relaxado, nunca mais forçado a fazer nada. O pastor se senta só, quieto e sem fazer nada. Entre o céu e a terra se converteu em dono de si mesmo (UEDA, 2004UEDA, Shizuteru. Zen y filosofia. Barcelona: Herder, 2004., p. 151, grifo nosso).

Figura 8 -
Completo desaparecimento do boi e do pastor.

Figura 9 -
Regresso à fonte e de volta à origem.

Na Figura 8 e na Figura 9, nem o boi e nem o pastor são representados. Percebe-se, nessas imagens, o nada absoluto, o que não quer dizer que nada exista. Trata-se de uma concepção oriental do ser que, diferente da ocidental, ocorre em coexistência e não significa anulação ou completo esvaziamento (SANTOS; MORAES, 2019SANTOS, Eder Soares; MORAES, Symon Pereira de. Pressupostos para o não-saber: do niilismo ao desfazimento do eu e a vacuidade em Nishitani. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, v. 10, n. 2, p. 49-62, 2019.):

O conceito de nada absoluto tem não apenas um sentido negativo, extraído do ato lógico de negação de alguma propriedade ou atributo, mas também, e fundamentalmente um significado positivo, de acordo com o qual é a verdadeira realidade da mente e das coisas, ou seja, da mente como um espelho puro que reflete (ou autorreflete) e das coisas ‘assim como são’. Nessa realidade não há distinção entre mente e coisas e, coerentemente, do ponto de vista lingüístico, trata-se de um nível indizível e último, que não representa mais um terreno para as definições do pensamento, mas para a prática - religiosa, artística ou poética - ou a contemplação. Seu ponto de partida é a experiência pura, que, enquanto tal, prescinde de um sujeito separado da objetividade, sendo a própria consciência uma função de unidade, de maneira que o conhecimento possível da verdade consiste em seguir esse si-próprio superior, e realizá-lo (GIACÓIA JÚNIOR, 2017GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Sortilégios da Individuação: Cooriginação Dependente e Vacuidade. Uma Reflexão a partir de Nagarjuna e Nishida. In: FLORENTINO NETO, Antonio; GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. A Escola de Kyoto e suas fontes orientais. Campinas, SP: Editora PHI , 2017., p. 181).

As figuras anteriores representam o desenvolvimento do tema da conquista e desprendimento do eu, porém, na oitava e nona figura ocorre a dissolução dos diferentes estados mentais para a libertação definitiva do verdadeiro si mesmo, que é desprendido e abnegado.

A oitava figura seria uma imagem do que não é imagem ou da infinita desfiguração, um estado meditativo destituído de quaisquer interpretações ou fenômenos mentais, entendidos como desejos, pensamentos, julgamentos, ideias, imagens etc. A nona figura mostra uma árvore em florescência junto ao fluir de um rio, que simbolicamente representa uma realidade presente do si mesmo, que floresce e flui livre da sobrecarga do eu. Atravessar essa experiência de desvalorização de valores supremos, inclusive de um eu inflamado, demanda pensar a perspectiva de uma existência desprovida de sentido, porém transformando-a paradoxalmente de forma auspiciosa. Significa poder dispensar sentidos ou convicções absolutas e, por causa disso, ressignificar-se enquanto estado de presença integrado ao todo (FLORENTINO NETO; GIACÓIA JÚNIOR, 2013FLORENTINO NETO, Antonio; GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. O Nada absoluto e a superação do niilismo: Os fundamentos filosóficos da Escola de Kyoto. Campinas, SP: Editora PHI, 2013.).

Além disso, no movimento da oitava para a nona figura não se trata mais, como nas imagens precedentes, de um desenvolvimento progressivo e sim de uma copertença, ou seja, de um girar para lá e para cá, duas faces de uma mesma moeda. O nada na oitava figura e a árvore em florescência na nona simbolizam uma perspectiva dupla de copertencimento, que se penetram reciprocamente. Trata-se da vacuidade da tradição budista sânscrita, ou seja, um si mesmo que não pode confundir-se com a sua negação ou inexistência, mas como anterior ao ser e como possibilidade de torná-lo livre a partir do esvaziamento do eu. O movimento de ida e volta entre o infinito nada e o imediato aqui e agora do presente é a liberdade do si mesmo livre do eu, da mudança radical da absoluta negação para o grande sim, o si mesmo presentificado e abnegado (UEDA, 2013UEDA, Shizuteru. O Nada absoluto no Zen em Eckhart e em Nietzsche. In: FLORENTINO NETO, Antonio; GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. O Nada absoluto e a superação do niilismo: Os fundamentos filosóficos da Escola de Kyoto. Campinas, SP: Editora PHI , 2013.).

A Figura 10 simboliza o encontro com o outro e a simplicidade. Um velho e risonho ancião encontra-se com um jovem, pois o verdadeiro si mesmo não deve habitar solitariamente o alto de uma montanha, mas a tão percorrida estrada do mundo, responsável por muitos encontros e pela criação de si por intermédio do outro: “O despertar para o verdadeiro si mesmo só se afirma na medida em que é permitido também ao outro despertar, e precisamente de tal forma que o si mesmo se desperte” (UEDA, 2013UEDA, Shizuteru. O Nada absoluto no Zen em Eckhart e em Nietzsche. In: FLORENTINO NETO, Antonio; GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. O Nada absoluto e a superação do niilismo: Os fundamentos filosóficos da Escola de Kyoto. Campinas, SP: Editora PHI , 2013., p. 211).

Figura 10 -
Entrada no mercado com as mãos abertas.

A décima figura também retoma o tema da procura da primeira, pois o encontro entre o ancião e o jovem poderá resultar no despertar da procura do verdadeiro si mesmo para um e a confirmação para o outro, que o encontro consigo se dá também no entre, na relação.

Portanto, as três últimas figuras mostram um mesmo fenômeno que, paradoxalmente, ocorre de diferentes formas no tripé nada-natureza-eu/outro: “Somente com esse movimento, o eu verdadeiro surge, seja desaparecendo no nada sem deixar vestígios, seja florescendo livre de si mesmo ao lado das flores, seja no encontro com o outro, no qual seu outro eu se reconhece livre” (UEDA, 2004UEDA, Shizuteru. Zen y filosofia. Barcelona: Herder, 2004., p. 104).

Assim, esse conto zen-budista pode ser tomado como um caminho a ser trilhado pela busca de si mesmo. Desde o sentimento de perda, a busca e as pistas usadas na procura, o embate contra o eu, a meditação e o desprendimento do eu que se completará na oitava e na nona figura, em que estaria representada a superação de si próprio, o vazio. Todos os desejos foram abandonados, inclusive o desejo de não ter desejo. Por fim, o desfecho do ciclo através de um retorno seguro das profundezas de si para o encontro com o outro, de tal modo que, mesmo na presença do outro, o eu apresente-se de maneira singela e, por isso, promova também o despertar do outro.

Essa espécie de trilha traz a ideia de que há um fim e uma meta a ser atingida. Na verdade, o processo de autoconhecimento é contínuo e pressupõe sempre o devir, pois a vida é mudança, é transitoriedade permanente. Neste contexto, pode-se invocar o hatha yoga e a meditação, como formas de se atingir mais consciência de si e também de unidade com o Todo, através do corpo e do gesto, pois a prática dessas artes, possivelmente, coloca o ser humano diante de si mesmo, para se conhecer mais, reconhecer seus limites e possibilidades. Conhecer a si mesmo significa saber identificar interiormente as reais motivações dos pensamentos, emoções e ações que se pratica no mundo. Esse processo é alcançado por meio do direcionamento da visão para o conhecimento de si, através, principalmente, da meditação, que também pode ser tomada como uma jornada para o interior de si e para a compreensão de uma realidade que ultrapassa o dualismo si mesmo/mundo.

3 PRÁTICA CORPORAL, YOGA E AUTOCONHECIMENTO

Uma prática corporal pode ampliar a compreensão de si a partir da investigação e realização de técnicas corporais que melhor se familiarizem com a pessoa que as realiza (SANTOS; BRAGANÇA, 2018SANTOS, Gilbert de Oliveira; BRAGANÇA, Analiz Pergolizzi Gonçalves de. O Estudo e a Prática do Tai Chi Chuan: a busca de si através do gesto. EXTRAMUROS: Revista de Extensão da UNIVASF, v. 6, n. 2, p. 37-51, 2018.). O termo prática corporal, neste trabalho, será entendido como as diferentes manifestações culturais, de caráter lúdico, nas quais o corpo e o gesto têm papel preponderante na expressão/apreensão de sentidos e significados, tais como os jogos, as danças, as ginásticas, os esportes, as artes marciais, entre outras (SILVA; LAZZAROTTI FILHO; ANTUNES, 2014SILVA, Ana Márcia; LAZZAROTTI FILHO, Ari; ANTUNES, Priscilla de Cesaro. Práticas Corporais. In: GONZÁLEZ, Fernando Jaime; FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. (orgs.). Dicionário Crítico de Educação Física. Ijuí: Ed. Unijuí, 2014.).

Já a expressão técnica corporal será apresentada como uma maneira de fazer uso do corpo no âmbito de uma determinada prática corporal. Marcel Mauss entendia as técnicas corporais como as maneiras pelas quais, de forma tradicional e eficaz, servimo-nos de nossos corpos, e apontava o corpo como o primeiro e, ao mesmo tempo, meio técnico do qual nos servimos (MAUSS, 1974MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU, 1974.). Este pensador francês contribuiu para uma interpretação menos naturalizada dos gestos humanos:

É um gesto determinado que o homem criou, transmitiu aos seus descendentes e, se persistiu, foi porque atendia a um conjunto de necessidades materiais e simbólicas desse mesmo homem, sendo, conseqüentemente, eficaz. Possui, portanto, significados que fazem sentido e orientam as ações desse grupo específico (DAOLIO, 2001DAOLIO, Jocimar. A antropologia social e a educação física: possibilidades de encontro. In: CARVALHO, Yara Maria de; RUBIO, Kátia (orgs.). Educação Física e Ciências Humanas. São Paulo: Hucitec, 2001., p. 34).

Neste contexto, a técnica corporal de equilibrar-se sobre uma perna na postura da árvore, por exemplo, está inserida na prática corporal do hatha yoga.

Se o autoconhecimento pode ser discutido sob a ótica do corpo e do gesto, uma técnica corporal também pode desenvolver um estado de presença e contato com as sensações que, pouco a pouco, favorecerá a tomada de consciência de si e, por conseguinte, da vida:

Nós precisamos de um conhecimento somático mais aprimorado para melhorar nosso entendimento e nossa performance das diversas disciplinas e práticas que contribuem para o domínio da mais elevada das artes - a arte de viver vidas melhores (SHUSTERMAN, 2012SHUSTERMAN, Richard. Consciência corporal. São Paulo: É Realizações, 2012., p. 29).

O autoconhecimento, através de uma prática corporal, propõe o reconhecimento das próprias tendências de movimento no caminho oposto da automatização. No caso do hatha yoga, por exemplo, além da realização das posturas de equilíbrio, extensão, flexão, torção etc., é preciso uma condução que permita ao praticante buscar encontrar o equilíbrio entre a zona de conforto e a ultrapassagem dos próprios limites na realização dessas posições, pois o entendimento dos limites e das potências do corpo e a conscientização do que é mais peculiar de realizar como gesto resulta em um nível mais elevado de compreensão (HEMSY DE GAINZA, 1997HEMSY DE GAINZA, Violeta. Conversas com Gerda Alexander: vida e pensamento da criadora da eutonia. São Paulo: Summus, 1997.).

Nessa lógica mais encarnada, a dimensão corpórea também tem a condição de atuar de maneira significativa no processo de atribuição/apreensão de sentidos e significados, resultando em uma compreensão arquitetada a partir da experiência corporal que é aquém e além da verbalização. Assim, o corpo pode ser tomado como ponto de partida para uma concepção de subjetividade mais refinada, ampla e profunda do que a noção tradicional de consciência:

Por trás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, se encontra um poderoso senhor e um sábio desconhecido - ele se chama Si-Próprio. Ele habita o teu corpo, ele é o teu corpo. Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria. E quem sabe, aliás, para que o teu corpo necessita justamente da tua melhor sabedoria? Teu Si-Próprio se ri do teu eu e de seus saltos orgulhosos. ‘O que são para mim esses saltos e essas asas do pensamento?’, diz ele consigo. Um desvio das minhas finalidades (NIETZSCHE, 1980NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Berlim: De Gruyter, 1980., p. 40 apudGIACÓIA JÚNIOR, 2012GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche x Kant: uma disputa permanente a respeito de liberdade, autonomia e dever. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; São Paulo: Casa do Saber, 2012., p. 219).

O que ocorre é que as manifestações corporais foram influenciadas pela visão dualista que separou o sujeito do seu corpo, privilegiando as experiências cognitivas e desconsiderando o corpo como elemento fundamental do processo de compreensão e produção de conhecimento. Contudo, é importante destacar que, no Oriente, a cisão entre mente e corpo não foi tão contundente quanto no Ocidente, pois, nessa cultura, ainda persistem com maior ênfase formas mais sutis de conhecimento que não necessariamente se sustentam apenas pelo pensamento lógico e racional:

Fazendo emergir o princípio da liberdade, os gregos foram os primeiros a poder apreender o objeto em sua relação com o sujeito, em vez de continuar a se dissolver na substância universal, como faz o oriental, e deixar a consciência desaparecer nela, na Grécia o indivíduo de desprende dela e, repousando em si mesmo, posando de sujeito, empreende determinar a substância como objeto (JULLIEN, 2000JULLIEN, François. Um sábio não tem ideia. São Paulo: Martins Fontes , 2000., p. 71).

A tradição do Ocidente oportuniza e favorece que as manifestações ligadas ao corpo e a sua expressão tornem-se desprestigiadas ou então sejam orientadas por uma razão instrumental que pressupõe o movimento humano mais econômico e eficiente para agir em favor de performances cada vez mais vigorosas e hipercinéticas. Entretanto, o yoga em seu contexto originário, é um meio capaz de favorecer a meditação hipocinética e seus fins metafísicos superiores e sutis (GÓIS JATOBÁ; SILVA; ZOBOLI, 2017GÓIS JATOBÁ, Ana Paula; SILVA, Renato Izidoro da; ZOBOLI, Fabio. A concepção do yoga segundo periódicos da educação física brasileira. Práxis Educacional, v. 13, n. 24, p. 259-283, dez. 2017.). O objetivo, no hatha yoga e na meditação, é dirigir-se à consciência pura por meio do gesto sem, no entanto, venerar o corpo:

Yoga é definido como o controle sobre as aberrações da mente. Para controlar a mente, é necessário que primeiro ela seja absorvida na concentração em algum objeto; então, ela é gradualmente retirada deste objeto e volta-se interiormente para o ser (IYENGAR, 2016IYENGAR, Bellur Krishnamachar Sundararaja. Luz sobre o yoga: yoga dipika. São Paulo: Pensamento, 2016., p. 126).

O yoga é um dos seis sistemas ortodoxos do pensamento hindu e surgiu na Índia há aproximadamente cinco mil anos. Até hoje, grande parte da população da Índia adota o yoga como prática norteadora de vida, pois não apenas na Índia como também na China e no Japão, filosofia e religião são, originalmente, indiferenciadas e inseparáveis, portanto, a verdade do conhecimento se confunde com a verdade da vida prática, e vice-versa (MICHELAZZO, 2017MICHELAZZO, José Carlos. A noção de anātman em Nishitani: o caráter dessubstancializante do ego e suas raízes em Dōgen e Nāgārjuna. In: FLORENTINO NETO, Antonio; GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. A Escola de Kyoto e suas fontes orientais. Campinas, SP: Editora PHI , 2017.).

A palavra yoga é derivada do sânscrito yuj, que pode ser traduzida por atar, reunir, ligar, focar e concentrar a atenção em algo; significa também união e comunhão (IYENGAR, 2016IYENGAR, Bellur Krishnamachar Sundararaja. Luz sobre o yoga: yoga dipika. São Paulo: Pensamento, 2016.). Da própria etimologia do termo pode-se extrair a essência do yoga, ou seja, a união consciente com o divino, para formar um com o Todo.

Patanjali em sua obra clássica - yoga sutras - compila, organiza e sistematiza oito setores6 6 Compõem os outros seis setores: Yama (mandamentos morais); Niyama (autopurificação por meio da disciplina); Pranayama (controle da respiração); Pratyahara (recolhimento e emancipação da mente do domínio dos sentidos); Dharana (concentração); Samadhi (estado de supraconsciência gerado pela meditação profunda) (IYENGAR, 2016). para o processo de conscientização do divino. Neste trabalho, será dada maior atenção para dois destes, os asanas (posturas) e dhyana (meditação), ambos intimamente associados ao corpo físico e ao hatha yoga, que é uma das ramificações do yoga mais difundida no Ocidente, justamente por sua profunda imbricação com o corpo e o gesto.

O termo hatha pode ser traduzido como esforço determinado (IYENGAR, 2016IYENGAR, Bellur Krishnamachar Sundararaja. Luz sobre o yoga: yoga dipika. São Paulo: Pensamento, 2016.). Etimologicamente “ha” significa sol e “tha”, lua. Hatha simboliza o equilíbrio entre dois polos (HERMÓGENES, 1993HERMÓGENES, José. Autoperfeição com Hatha Yoga. Rio de Janeiro: Record, 1993.). Portanto, o hatha yoga aponta para o equilíbrio entre o preservar e o gastar durante a realização de suas técnicas, administrando o princípio de consumo e manutenção do vigor físico e frescor mental.

Os asanas são posturas psicofísicas que visam possibilitar maior consciência corporal, fortalecendo o corpo físico e mental. Potencializam qualidades físicas e possibilitam um funcionamento mais dinâmico do corpo como um todo, pois mobilizam grandes grupos musculares, além de promover o trabalho corporal em posições de equilíbrio, torção, flexão, extensão etc., utilizando todos os segmentos do corpo ou partes isoladas. No entanto, é importante destacar que, embora os asanas desenvolvam, de maneira proeminente, as capacidades físicas, o genuíno praticante dessa arte busca aperfeiçoar outros aspectos: “Os asanas asseguram um físico harmonioso, forte e elástico, que não é restrito por uma musculatura excessiva. Mas sua importância real reside na maneira como treinam e disciplinam a mente” (IYENGAR, 2016IYENGAR, Bellur Krishnamachar Sundararaja. Luz sobre o yoga: yoga dipika. São Paulo: Pensamento, 2016., p. 44).

Atualmente, o hatha yoga tem chamado a atenção da comunidade científica e dos governos por sua potência econômica e terapêutica. Trata-se de uma prática corporal que pode ser realizada sem a obrigatoriedade de grandes espaços e/ou equipamentos, pois os próprios membros do corpo proporcionam os pesos e contrapesos necessários. Os asanas podem ser praticados por qualquer pessoa em diferentes níveis de intensidade e objetivos, entretanto, devido à tonicidade e serenidade inerente à técnica, é comum o praticante se livrar de enfermidades físicas e distrações mentais através da prática dos asanas (IYENGAR, 2016IYENGAR, Bellur Krishnamachar Sundararaja. Luz sobre o yoga: yoga dipika. São Paulo: Pensamento, 2016.).

A meditação não deixa de ser um asana, afinal, trata-se de permanecer sentado consigo, de maneira firme e confortável, sem fazer nada. Há diversas formas de meditação, no entanto, em um nível prático, todas as formas compartilham de um núcleo comum de treinamento mental e podem ser divididas em três categorias principais: as formas de treinamento da atenção através do foco em algo como, por exemplo, a respiração, um mantra, uma imagem etc.; as formas construtivas que visam cultivar qualidades virtuosas, tais como a bondade e a empatia, e se caracterizam por pensamentos positivos direcionados; e as formas desconstrutivas que visam reduzir o apego através da auto-observação (GOLEMAN; DAVIDSON, 2017GOLEMAN, Daniel; DAVIDSON, Richard. A ciência da meditação: como transformar o cérebro, a mente e o corpo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.).

Muitas pesquisas comprovam que a meditação pode gerar uma série de respostas físicas e psicológicas que auxiliam na prevenção de diversas condições deletérias à saúde, sobretudo aquelas associadas ao estresse (MENEZES; DELLAGLIO, 2009MENEZES, Carolina Baptista; DELLAGLIO, Débora Dalbosco. Os efeitos da meditação à luz da investigação científica em Psicologia: revisão de literatura. Psicologia: ciência e profissão, v. 29, n. 2, p. 276-289, jun. 2009.). Entretanto, é importante destacar que originariamente, a meditação não foi criada para tratar enfermidades, por isso, os impactos mais interessantes da meditação não são a saúde melhorada ou um desempenho mais efetivo no trabalho, mas, antes, um alcance maior no aperfeiçoamento do ser humano. Assim, enquanto, nas tradições do Oriente, a meditação está associada a uma busca de excelência, no Ocidente, em especial nas pesquisas científicas, meditar é melhorar a saúde.

Atualmente, os benefícios da meditação são constatados cientificamente, podendo ser reunidos de acordo com o grau de aprofundamento e número de horas praticadas. Para os iniciantes, os benefícios podem ser incremento na atenção, menos divagação mental e memória de trabalho aumentada. Já para praticantes de longo prazo, estes benefícios são mais sólidos e mais amplos tais como, uma atenção seletiva mais potente, lapsos de atenção diminuídos, prontidão ampliada, respiração mais lenta. E os iogues “profissionais” - praticantes com mais de 27 mil horas de meditação ao longo da vida -, além de todos estes benefícios citados, possuem cérebros que envelhecem mais vagarosamente, comparados ao de outras pessoas na mesma faixa etária (GOLEMAN; DAVIDSON, 2017GOLEMAN, Daniel; DAVIDSON, Richard. A ciência da meditação: como transformar o cérebro, a mente e o corpo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.). No entanto, mesmo para aqueles que não são ou mesmo não pretendem se tornar iogues “profissionais”, o simples fato de relaxar e alcançar um estado de concentração maior já é suficiente para difundir essa técnica corporal milenar de aperfeiçoamento da consciência humana e também capaz de promover mais saúde física e mental.

4 O ENSINO DO HATHA YOGA PARA ESTUDANTES DE EDUCAÇÃO FÍSICA

O objetivo aqui é apresentar um breve relato da experiência frente à disciplina eletiva hatha yoga, que compõe a matriz curricular do curso de bacharelado em Educação Física da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, campus de Diamantina-MG. Nessa instituição, o curso de bacharelado em Educação Física foi criado posteriormente ao curso de licenciatura, procurando dotar certa especificidade à formação do bacharel, sobretudo no que tange ao campo da saúde.

Nesse relato, será dada maior ênfase ao processo de ensino dos asanas e da meditação, ainda que outras técnicas yogis, tais como os pranayamas, bandhas, mantras etc., também sejam desenvolvidas nessa disciplina.

Os asanas proporcionam alongamento muscular, flexibilidade articular, força, equilíbrio e outras diversas qualidades físicas aprimoradas. Além disso, desenvolvem a consciência corporal e possuem a finalidade de preparar o praticante para as técnicas mais introspectivas.

Dentro do processo pedagógico, procura-se articular referenciais de matrizes diferentes do conhecimento. A ideia é que os acadêmicos tenham acesso ao estudo prático e teórico dos asanas e suas interfaces com a arte, a ciência e a filosofia em suas diferentes concepções e abordagens do conhecimento e do ser humano, possibilitando-os perceber novas visões de corpo, saúde e educação.

São centenas de asanas catalogados, por isso, nessa disciplina, é organizado um conjunto que possibilite explorar todos os segmentos corporais. Para isso, são estudadas as posturas de equilíbrio e força em pé, posturas sentadas, posturas de inversão corporal, posturas de joelhos e posturas em decúbito dorsal e ventral. Por exemplo, o asana do guerreiro ou virabhadrasana. Virabhadra é o nome de um poderoso herói mitológico hindu (IYENGAR, 2016IYENGAR, Bellur Krishnamachar Sundararaja. Luz sobre o yoga: yoga dipika. São Paulo: Pensamento, 2016.). Trata-se de uma postura em que o olhar e os braços dirigem-se para cima como se estivesse abraçando uma grande bola, os pés se afastam produzindo flexão no joelho e no quadril da perna da frente e realiza-se a extensão da perna de trás. A base ampla dos pés e a busca do equilíbrio na posição auxiliam no entendimento de como organizar uma postura que seja, ao mesmo tempo, firme e confortável, duas qualidades aparentemente divergentes, mas que precisam se harmonizar em benefício do desenvolvimento da consciência corporal do estudante. Nesta postura, ocorre a expansão do peito, facilitando a respiração profunda. A postura de virabhadrasana também reduz a rigidez dos ombros, costas e do pescoço, além de tonificar os tornozelos e os joelhos (IYENGAR, 2016IYENGAR, Bellur Krishnamachar Sundararaja. Luz sobre o yoga: yoga dipika. São Paulo: Pensamento, 2016.).

Nas atividades cotidianas, o esforço muscular tende a concentrar-se nas cadeias musculares mais periféricas do corpo, criando tensões em regiões que poderiam estar mais livres e disponíveis ao movimento. O trabalho com os asanas possibilita aos acadêmicos a percepção das cadeias musculares mais profundas, o que gera liberdade de movimento e maior qualidade de presença e postura corporal.

Por fim, é importante destacar que, embora os acadêmicos percebam o desenvolvimento de suas capacidades físicas ao longo da disciplina, procura-se enfatizar o aperfeiçoamento de outros aspectos, tais como a abnegação da vaidade do corpo e o esvaziamento do eu. Afinal, se há um culto ao corpo baseado na busca de modelos de beleza que reforçam o narcisismo e o ego exagerado (SILVA, 1996SILVA, Ana Márcia. Das práticas corporais ou porque "narciso" se exercita. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 3, n. 17, p. 244-251, maio 1996.), os asanas são técnicas corporais que, trabalhadas a partir dos seus referenciais de origem, podem se contrapor aos modelos hegemônicos de corpo e prática corporal que alimentam o egocentrismo, justamente o contrário do que ocorre no conto zen-budista anteriormente interpretado.

A proposta de meditação ocorre, geralmente, ao término das aulas, pois é mais fácil permanecer por mais tempo na postura, após a organização e preparação corporal. Os estudantes são orientados a sentarem-se sobre os ísquios com as pernas cruzadas e a pousar as mãos sobre as coxas, relaxando os ombros. Procura-se chamar a atenção para a extensão axial da coluna vertebral, através de uma leve elevação da cabeça e a harmonização da firmeza e do conforto durante a permanência na postura. Além disso, os estudantes são estimulados, inicialmente, a manter o foco sobre a respiração (treinamento da atenção) para, posteriormente, observar apenas as sensações e os pensamentos, sem apego (auto-observação). Trata-se de uma forma de treino da atenção e de auto-observação, aspectos importantes em tempos de tantas distrações digitais.

5 CONCLUSÕES

O conto o boi e o seu pastor exibe uma espécie de saga mágica enraizada em nossa cultura e bastante explorada em diferentes lugares. No entanto, diferentemente da ideia de sobrepujar inimigos externos ou vencer obstáculos para conquistar algo, o conto propõe o caminho do autoconhecimento, do olhar para dentro de si. Também a antiga expressão de origem grega “Conhece-te a ti mesmo” lembra-nos que, também no Ocidente, foi chamada a atenção para a importância do conhecimento de si. No entanto, no yoga, o autoconhecimento visa trazer à tona um eu menos inflamado e mais correlacionado.

O hatha yoga é uma arte corporal muito potente, afinal, seu objetivo último seria vencer a nobre verdade do sofrimento humano que reside no apego às coisas do mundo, e aqui se inclui o próprio eu solipsista. Entretanto, trata-se de uma concepção de conhecimento intrinsecamente ligada a uma concepção de vida prática que é extraordinariamente difícil de ser atingida. Apenas seres humanos supremos que conquistaram a verdade sobre si mesmo, dissipando as ilusões e delírios de arrogância e vaidade, são capazes de atingir tal nível de união mística. Para os demais, ampliar a consciência de si e do gesto, já é algo extraordinário e suscetível de incentivo, sobretudo na formação acadêmica e profissional em Educação Física.

Os resultados conquistados pela disciplina hatha yoga na formação em Educação Física são promissores, pois os estudantes relatam ao final de cada semestre que conquistaram uma condição mais favorável para lidar com a fadiga física e mental. Além disso, muitos são despertados para um olhar mais sensível e entusiasmado em relação ao hatha yoga e à meditação, sobretudo quando constatam a melhora dos aspectos da atenção e concentração conquistada durante as aulas.

Na atualidade, o hatha yoga e a meditação inserem-se em duas perspectivas que podem ou não se complementar. Uma perspectiva do sagrado, associada a uma dimensão filosófica e espiritual da condição humana, e outra profana, associada a uma dimensão do âmbito da melhoria da saúde. Acredito que uma perspectiva não precisa excluir a outra e, tampouco, uma necessariamente precisa incluir a outra.

REFERÊNCIAS

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  • ZHONGWEN, Shi; QIAOSHENG, Chen. Cultura China. Beijing: China Intercontinental, 2011.
  • 1
    Esclarecimento é a saída da menoridade, um estado/processo de comodidade no qual o ser humano deixa de fazer uso do seu entendimento para se submeter ingenuamente a um poder tutelar alheio (KANT, 1985KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? (Aufklärung). In: KANT, Immanuel. Textos Seletos. Petrópolis, RJ: Vozes , 1985.).
  • 2
    Mahayana é uma tendência budista conhecida por “grande veículo”, que propõe que todos os seres humanos possuem dentro de si a natureza de Buda e, portanto, são capazes de alcançar a experiência de samadhi, o estado de plena consciência (CHENG, 2008CHENG, Anne. História do pensamento chinês. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.).
  • 3
    Fazer nada é a proposição básica dos daoístas, assim como sua chave e método de cultivo moral. Neste contexto, fazer nada não significa a inatividade, mas sim a ação perfeita em harmonia com o todo. Também não é simplesmente a fuga do mundo ou da realidade, mas de um agir-sem agir que equivale a deixar ocorrer sozinho, e esse deixar é ativo. (ZHONGWEN; QIAOSHENG, 2011ZHONGWEN, Shi; QIAOSHENG, Chen. Cultura China. Beijing: China Intercontinental, 2011.).
  • 4
    Alegoria refere-se ao conhecimento simbólico que alude a qualidades supra-sensíveis não expressas (ABBAGNANO, 2007ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.).
  • 5
    Para tomar conhecimento de outras versões deste conto ou de outros trabalhos a respeito dele, ver Hortegas (2019HORTEGAS, Monica Giraldo. O Boi e o Pastor e a Mística Zen. TEOLITERARIA - Revista de Literaturas e Teologias, v. 9, n. 17, p. 243-257, maio 2019.).
  • 6
    Compõem os outros seis setores: Yama (mandamentos morais); Niyama (autopurificação por meio da disciplina); Pranayama (controle da respiração); Pratyahara (recolhimento e emancipação da mente do domínio dos sentidos); Dharana (concentração); Samadhi (estado de supraconsciência gerado pela meditação profunda) (IYENGAR, 2016IYENGAR, Bellur Krishnamachar Sundararaja. Luz sobre o yoga: yoga dipika. São Paulo: Pensamento, 2016.).

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Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Ivone Job*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira* *Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2020
  • Aceito
    21 Jul 2020
  • Publicado
    21 Ago 2020
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