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DO PAPEL DO TREINADOR AO AMBIENTE COMPETITIVO NO FUTEBOL INFANTIL: O QUE ESTÁ EM JOGO?

FROM COACHES' ROLES TO THE COMPETITIVE ENVIRONMENT IN CHILDREN’S FOOTBALL: WHAT’S AT PLAY?

DEL PAPEL DEL ENTRENADOR AL ENTORNO COMPETITIVO EN EL FÚTBOL INFANTIL: ¿QUÉ ESTÁ EN JUEGO?

Resumo

Esta pesquisa teve como objetivo averiguar a percepção dos treinadores sobre o papel do treinador e o ambiente competitivo no futebol da categoria sub-10. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 12 treinadores e observadas cinco partidas das fases finais da competição. Os resultados evidenciam que os treinadores reconhecem o seu papel formador, mas não orientam as suas intervenções para valores e competências mais adequados para essa etapa de formação. Os treinadores percebem a competição como um ambiente de aprendizagem, reconhecendo o jogo e a competição como ambientes de pressão inerentes a outras tarefas da vida, mas salientam que em muitas situações esse ambiente de pressão se torna excessivo, por conta do comportamento dos adultos. Assim, os propósitos dos adultos são sobrepostos às possibilidades de experiência e aprendizado das crianças na competição.

Palavras-chave:
Futebol; Esportes; Comportamento Competitivo

Abstract

This study examines coaches’ views about their role in the U-10 football competitive environment. Semi-structured interviews were conducted with 12 coaches, and 5 matches of the final stages of the competition were observed. The results show that coaches recognize their educational role but do not focus on values and the most appropriate skills in that stage of training. Coaches perceive competition as a learning environment, recognizing the game and competition as a pressure environment inherent to other tasks in life, but they stress that this pressure environment often becomes excessive due to the behavior of adults. Thus, adults’ purposes are often superimposed on children’s possibilities for experiencing and learning in competition.

Keywords:
Soccer; Sports; Competitive Behavior

Resumen

La investigación tuvo como objetivo conocer la percepción de los entrenadores sobre su papel y el ambiente competitivo en el fútbol de la categoría sub-10. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con 12 entrenadores y se observaron cinco partidos de la fase final de una competición en nivel estatal. Los resultados muestran que los entrenadores reconocen su papel como formadores, pero no orientan sus intervenciones hacia el desarrollo de valores y habilidades más apropiados en esta etapa de formación deportiva. Los entrenadores perciben la competición como un ambiente de aprendizaje, así como reconocen los partidos como un ambiente de presión inherente a otras tareas de la vida, pero destacan que en muchas situaciones ese ambiente de presión se vuelve excesivo, debido al comportamiento de los adultos. Así, los propósitos de los adultos a menudo se superponen a las posibilidades de experiencia y aprendizaje de los niños en la competición.

Palabras clave:
Fútbol; Deportes; Conducta Competitiva

1 INTRODUÇÃO

O que está em jogo na competição? O resultado ou a superação? Quando vejo um menino jogando E um pai do lado de fora gritando Logo fico me perguntando… Será que pensa que está ajudando? Gritando junto com o treinador Tornando aquilo que era pra ser aprendizado e prazer, algo constrangedor Será que os adultos enxergam como criança? Ou somente alimentam a esperança E o sonho do filho jogador ( Bettega, 2020 BETTEGA, Otávio Baggiotto et al. A competição na iniciação ao futebol: considerações sobre a organização do jogo e a participação no ambiente competitivo. Motrivivência, v. 32, n. 62, p. 01-17, 2020. )

O apito do árbitro não marca o início, nem tampouco o fim da competição esportiva, pois a competição se estabelece na preparação, nas manifestações do entorno e nas relações complexas entre os personagens participantes (SCAGLIA; MEDEIROS; SADI, 2013SCAGLIA, Alcides José; MEDEIROS, Mara; SADI, Renato. Pedagogia da competição: teoria e proposta de sistematização nas escolas de esportes. In: REVERDITO, Riller; SCAGLIA, Alcides José; MONTGNER, Paulo Cesar (org.). Pedagogia do Esporte: aspectos conceituais da competição e estudos aplicados. São Paulo: Phorte, 2013. p. 193-216.). Nessa perspectiva, ao treinador cabe o desafio de fazer a gestão de um ambiente capaz de oferecer oportunidades de aprendizado aos jogadores, considerando o desenvolvimento físico, cognitivo e social dos jovens (LEONARDO, 2018LEONARDO, Lucas; GALATTI, Larissa Rafaela; SCAGLIA, Alcides José. Relações entre modificações competitivas e oportunidades de participação no handebol para jovens: recomendações a partir de uma pesquisa documental. Revista Brasileira de Ciências do Movimento, v. 26, n. 4, p. 98-107, 2018.), principalmente em relação à competição infantil. Ainda, salienta-se que o treinador necessita atuar de forma conjunta com os coordenadores dos clubes, os organizadores das competições, a equipe de arbitragem, a família e os outros personagens do contexto. Assim, compreender como treinadores percebem a competição poderá oferecer informações fundamentais para promover um ambiente de aprendizagem significativo.

Compreendendo a competição esportiva como um relevante ambiente formativo, alguns estudos têm investigado o contexto competitivo de futebol para jovens em diferentes locais do mundo (Brasil, Inglaterra, Espanha, Portugal, Austrália), contemplando aspectos referentes aos objetivos e sentidos da competição, comportamento emocional, desenvolvimento de valores socioeducativos e a competição como ambiente formativo, desenvolvimento da responsabilidade pessoal e social, promoção do desenvolvimento positivo e comportamento dos pais e a fatores que contribuem para o envolvimento com o futebol e a organização de uma nova proposta competitiva para os jovens (ADIE; DUDA; NTOUMANIS, 2010ADIE, James; DUDA, Joan; NTOUMANIS, Nikos. Achievement goals, competition appraisals, and the well- and ill-being of elite youth soccer players over two competitive seasons. Journal of Sport and Exercise Psychology, v. 32, n.4, p. 555-579, 2010.; AGNEW; PILL; DRUMMOND, 2016AGNEW, Debora; PILL, Shane; DRUMMOND, Murray. Investigating the elements that encourage or inhibit the participation of children and youth in Australian Football. Annal of Leisure Research, v. 19, n. 1, p. 27-46, 2016.; ELLIOTT; PILL, 2016ELLIOTT, Samuel; PILL, Shane. Competitive engineering in Junior Australian Football: perceptions and experiences of parents, children and coaches of 9-a-side football in an under-8 competition. South African Journal for Research in Sport, Physical Education and Recreation, v. 38, n. 1, p. 43-57, 2016.; FILGUEIRA; MARQUES, 2020FILGUEIRA, Fabrício Moreira; MARQUES, Renato Rodrigues. Competições de futebol em categorias iniciais: objetivos e sentidos para os dirigentes de clubes e da federação paulista de futebol. Revista Inclusiones, v. 7, p. 196-222, 2020.; MERINO; SABIRÓN; ARRAIZ, 2015MERINO, Abel; SABIRÓN, Fernando; ARRAIZ, Ana. Análisis del escenario de competición en fútbol pre benjamín: un estudio de caso. Retos, v. 28, p. 26-32, 2015.; SANTOS et al., 2016SANTOS, Fernando et al. Personal and social responsibility development: exploring the perceptions of Portuguese youth football coaches within competitive youth sport. Sports Coaching Review, v. 6, n. 1, p. 108-125, 2016;; 2019; TEQUES et al., 2018TEQUES, Pedro et al. Mediating effects of parents’ coping strategies on the relationship between parents’ emotional intelligence and sideline verbal behaviors in youth soccer. Journal of Sport and Exercise Psychology, v. 40, n. 3, p. 153-162, 2018.; VEROZ; YAGÜE; TABERNERO, 2015VEROZ, Rúben; YAGÜE, José María; TABERNERO, Belén. Incidencia de dos modelos de competición de fútbol sobre los valores socio-educativos em prebenjamines, Retos, v. 28, p. 84-89, 2015.).

O treinador necessita reconhecer as características dos jovens que estão sob sua orientação, bem como os problemas e potencialidades do contexto competitivo. Maior deve ser o cuidado ao tratar com crianças. Entre os seis e dez anos, espera-se que as crianças estejam vivenciando uma etapa de experimentação esportiva (CÔTÉ, BAKER, ABERNETHY, 2007CÔTÉ, Jean; BAKER, Joseph; ABERNETHY, Bruce. Practice and play in the development of sport expertise. In: EKLUND, R.; TENENBAUM, G. (eds.). Handbook of Sport Psychology. Hoboken: Wiley & Sons, 2007. p. 184-202.), em seu desenvolvimento, transitando de um pensamento mais lógico e concreto para um pensamento mais abstrato (PIAGET, 2012PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.). Logo, são recomendáveis estruturas de jogo adequadas às características das crianças, diversificação de experiências e o aprendizado de múltiplas competências nessa etapa de formação esportiva (CÔTÉ et al., 2017). O aprendizado ocorre na interação do indivíduo com o contexto (CHOW et al., 2013CHOW, Jia Yi et al. The acquisition of movement skill in children through nonlinear pedagogy. In: CÔTE, Jean; LIDOR, Ronnie (eds.). Conditions of children’s talent development in sport. Morgantown: Fitness Information Technology, 2013. p. 41-60.) e o ambiente de competição deve ser compreendido como um ambiente de aprendizagem, organizado com intenção clara e coerente, estimulando a autonomia e a criatividade, propiciando que os jovens participem de forma ativa de seu desenvolvimento (BETTEGA et al., 2020BETTEGA, Otávio Baggiotto et al. A competição na iniciação ao futebol: considerações sobre a organização do jogo e a participação no ambiente competitivo. Motrivivência, v. 32, n. 62, p. 01-17, 2020.).

A competição, a priori, tende a gerar um ambiente de pressão, pois configura um cenário desafiador e imprevisível, representativo na disputa com uma equipe adversária, e de desequilíbrio, exigindo atitude para situações que emergem do contexto, seja na circunstância direta do jogo ou externas. A adaptação às condições de pressão da competição tende a melhorar o controle das emoções e a gestão da ansiedade e do estresse em diferentes situações da vida (CHOI, JOHNSON; KIM, 2014CHOI, Hong Suk; JOHNSON, Britton; KIM, Young. Children’s development through sports competition: derivative, adjustive, generative, and maladaptive approaches. Quest, v. 66, n. 2, p. 191-202, 2014.), quando inserida adequadamente (LEONARDO; GALATTI; SCAGLIA, 2018LEONARDO, Lucas; GALATTI, Larissa Rafaela; SCAGLIA, Alcides José. Relações entre modificações competitivas e oportunidades de participação no handebol para jovens: recomendações a partir de uma pesquisa documental. Revista Brasileira de Ciências do Movimento, v. 26, n. 4, p. 98-107, 2018.). Logo, se o ambiente de pressão for maximizado pelos adultos através da cobrança por um desempenho elevado e a busca por vitórias e títulos, os jovens tendem a diminuir a motivação para competir, optando muitas vezes pela desistência da prática esportiva (GUZMÁN; KINGSTON, 2012GUZMÁN, Jose; KINGSTON, Kieran. Prospective study of sport dropout: A motivational analysis as a function of age and gender. European Journal of Sport Science, v. 12, n. 5, p. 431-442, 2012.).

O treinador tem papel reconhecido como fundamental para o acesso a uma prática esportiva de qualidade e desenvolvimento dos jovens (SANTOS, 2016SANTOS, Fernando et al. Personal and social responsibility development: exploring the perceptions of Portuguese youth football coaches within competitive youth sport. Sports Coaching Review, v. 6, n. 1, p. 108-125, 2016;; REVERDITO et al., 2020REVERDITO, Riller Silva et al. Coaching and continuity make a difference: competence effects in a youth sport program. Journal of Physical Education and Sport, v. 20, n.4, p. 1964-1971, 2020.), encorajando a participação, ensinando valores e estimulando o trabalho em grupo, tornando consciente a percepção sobre a realidade social e oportunizando aprendizado em contextos de treino e competição, derrota e vitória (STRACHAN; CÔTÉ; DEAKIN, 2011STRACHAN, Leisha; CÔTÉ, Jean; DEAKIN, Janice. A new view: exploring positive youth development in elite sport contexts. Qualitative Research in Sport, Exercise and Health, v. 3, n. 1, p. 9-32, 2011.). Neste contexto, verifica-se a necessidade de desenvolver um maior número de estudos centrados em ambientes de competição, em que o equilíbrio entre a procura do máximo desempenho esportivo e o desenvolvimento de crianças e jovens é, por vezes, problemático (CAMIRÉ, 2015CAMIRÉ, Martin. Reconciling competition and positive youth development in sport. STAPS, n. 109, 25-39, 2015.).

Assim, entendendo a figura do treinador como preponderante na organização do processo e mediação das relações no ambiente competitivo, a pesquisa tem como objetivo averiguar a percepção dos treinadores sobre o que está em jogo na competição de futebol da categoria sub-10. Especificamente, interessa-nos evidenciar qual o papel percebido por treinadores para sua função na competição esportiva, o que os treinadores esperam que crianças jogadoras de futebol aprendam neste ambiente, e qual a relevância de outros personagens (pais, árbitros) na competição infantil.

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa é caracterizada como qualitativa, do tipo descritiva e é oriunda de uma tese de doutorado de um curso de pós-graduação em Educação Física. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Campinas (CAAE: 92747918.1.0000.5404).

O contexto de investigação foi a competição de futebol da categoria sub-10 organizada pela Nova Liga Gaúcha de Futebol Infantil (NOLIGAFI), com ocorrência no estado do Rio Grande do Sul. A NOLIGAFI foi criada no ano de 2012 a partir da união de oito equipes de categorias de base do estado do Rio Grande do Sul. Inicialmente, a liga foi criada com o intuito de promover competições de futebol para jovens (da categoria sub-10 até a categoria sub-15), reduzindo os custos e proporcionando um convívio entre as principais escolas de futebol do estado. Atualmente, abrange a participação de mais de 3.500 jovens (dos 8 aos 15 anos), em um total de 21 clubes e foi escolhida como contexto de pesquisa por ser a principal competição de categorias de base do estado.

Na categoria sub-10, a NOLIGAFI contou com equipes localizadas na região central, norte e leste do estado, não obtendo clubes das regiões oeste e sul. Na primeira fase da competição, as equipes foram divididas em dois grupos com seis e sete equipes, sendo que os quatro primeiros colocados de cada grupo eram classificados para a fase de quartas de final da competição. Na etapa de quartas de final, as quatro equipes que ganhavam os jogos seguiam para a disputa das semifinais e final na etapa “elite” e as quatro equipes que perdiam seus jogos seguiam para a disputa das semifinais e final na etapa “desenvolvimento”. O regulamento apresentava aspectos relacionados com a participação das equipes (regras e organização das partidas, punições, premiação), sem especificar os objetivos da competição.

Os participantes da pesquisa foram 12 treinadores (idades entre 23 e 59 anos) do total de 15 que iniciaram a competição, sendo que duas equipes desistiram da competição e um treinador optou por não participar da pesquisa. Os treinadores tinham entre três meses e 36 anos de experiencia como treinadores de futebol, sete tinham graduação em Educação Física, três eram acadêmicos e dois atuavam como profissionais provisionados. Todos os treinadores foram entrevistados pessoalmente em suas respectivas cidades com locais e horários previamente agendados e após a assinatura do termo de consentimento.

Foi também realizada a observação não participante de cinco partidas da competição, uma na etapa de quartas de final, duas na etapa de semifinal e duas na etapa final da competição. Estas etapas foram escolhidas por serem consideradas pelos próprios treinadores as fases de maior pressão por resultados. O primeiro autor da pesquisa percorreu mais de 2.000 km pelo estado para realizar as entrevistas e observações, conforme ilustrado na Figura 1. As observações foram realizadas em partidas nas cidades de Santa Maria (três partidas), Santa Cruz do Sul (uma partida) e Teutônia (uma partida) e as entrevistas foram efetuadas em todas as cidades indicadas no mapa.

Figura 1
Disposição das cidades em que foram realizadas as entrevistas e as observações.

Os instrumentos utilizados para a realização da pesquisa foram a entrevista semiestruturada e a observação não participante. A construção do roteiro de entrevista foi sustentada nas diretrizes da pesquisa qualitativa (FLICK, 2009FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. São Paulo: Artmed, 2009.) e contou com a análise de dois professores doutores universitários com ao menos 20 anos de experiência prática no esporte e 15 anos de experiência em pesquisa sobre a formação esportiva de jovens.

Nas observações, o pesquisador procurou um posicionamento nos locais de jogo que facilitasse a visualização dos acontecimentos ocorridos no entorno do campo (família e torcida) e nas situações expressas dentro do campo de jogo (treinadores, jogadores e arbitragem). O diário foi escrito no momento e após a ocorrência das partidas, organizado com base na descrição dos acontecimentos, pensamentos e sentimentos e na avaliação dos fatos positivos e negativos e dos significados estabelecidos (MERINO; SABIRÓN; ARRAIZ, 2015MERINO, Abel; SABIRÓN, Fernando; ARRAIZ, Ana. Análisis del escenario de competición en fútbol pre benjamín: un estudio de caso. Retos, v. 28, p. 26-32, 2015.).

A análise dos dados ocorreu após o processo de transcrição das entrevistas e organização das informações do diário de campo. Os áudios das entrevistas totalizaram 684 minutos e os dados das observações foram estruturados em cinco relatórios (extensão entre 300 e 705 palavras). O processo de análise dos dados ocorreu em cinco etapas: i) Compilação etapa de colocação dos dados em alguma ordem; ii) Decomposição - etapa de decompor os dados em elementos menores; iii) Recomposição - etapa de reorganização dos dados em uma nova ordem; iv) Interpretação - etapa de dar significado aos dados; v) Conclusão - etapa de conceituação dos resultados (YIN, 2016YIN, Robert. Pesquisa Qualitativa: do início ao fim. Porto Alegre: Penso, 2016.).

A sistematização dos dados foi realizada a partir dos temas geradores “Jogo” e “Ambiente Competitivo” e das categorias “treinador” e “jogador”. As questões norteadoras dos resultados foram: o papel do treinador na competição de futebol da categoria sub-10; a competição como ambiente de aprendizagem; ambiente de pressão para os jogadores sub-10 na NOLIGAFI; resultados competitivos e mudanças na condução do treino. A partir dos questionamentos foram estruturadas cinco subcategorias de análise, sendo quatro estabelecidas de forma indutiva: i) Papel do Treinador; ii) Ambiente de Aprendizagem; iii) Ambiente de Pressão; iv) Resultados Competitivos. Uma categoria de análise foi estabelecida de forma dedutiva: i) Reações dos Treinadores.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados estão apresentados conforme as cinco subcategorias de análise: o papel do treinador, o ambiente de aprendizagem, o ambiente de pressão, os resultados competitivos e as reações dos treinadores. Na Figura 2 realizamos uma representação das subcategorias em relação ao que está em jogo no contexto competitivo para jovens.

Figura 2
O que está em jogo na competição de futebol da categoria sub-10.

O que está em jogo na competição parece estar mais centrado nos resultados das partidas e nos comportamentos estabelecidos pelos adultos, treinadores, pais e torcedores. As contribuições que os treinadores relatam que seja relevante proporcionar com base no seu papel de treinador acabam, na maioria das vezes, ficando ocultas na competição. Na sequência, aprofundamos os resultados em cada uma das cinco subcategorias de análise e discutimos com a literatura.

3.1 PAPEL DO TREINADOR

Na percepção dos treinadores, a figura do treinador vai para além do desenvolvimento de conteúdos específicos do futebol e pela busca por resultados. Na Figura 3 temos os principais termos-chave e frases utilizadas pelos treinadores para evidenciar o papel do treinador na categoria sub-10.

Figura 3
Papel do Treinador de futebol na categoria sub-10.

As respostas ressaltam o papel imprescindível que tem o treinador no processo de desenvolvimento dos jogadores. Foram relatados os papéis de facilitador, incentivador, professor, exemplar, espelho e também foi atribuída a função de fazer o ambiente que os jovens queiram ficar e com que se sintam felizes, sendo fundamental para a formação.

Os treinadores relatam que o seu papel deve ser exemplar, espelho, facilitador, professor e necessita formar, incentivar, evoluir as crianças e criar um ambiente positivo. Nessa perspectiva, é relevante refletir sobre o papel do treinador na competição, não como um protagonista, mas como um agente educacional que atua na construção de um ambiente de aprendizagem, no qual as crianças possam se desenvolver e atuar como protagonistas desse contexto. Holt e colaboradores (2008HOLT, Nicholas et al. Do youth learn life skills through their involvement in high school sport? A case study. Canadian Journal of Education, v. 31, n. 2, p. 281‐304, 2008.) ressaltam que os treinadores são uma das principais influências nas experiências dos atletas no esporte, assumindo a responsabilidade de supervisionar, ensinar e liderar adequadamente (LAUER; DIEFFENBACH, 2013LAUER, Larry; DIEFFENBACH, Kristen. Psychosocial training interventions to prepare youth sport coaches. In: GILBERT, Wade; DENISON, Jim (eds.). Routledge Handbook of Sports Coaching. London: Routledge, 2013. p. 467-479.). Isto é, promovendo oportunidades de formação não somente centradas em habilidades técnicas e táticas, mas também em elementos relacionados com o desenvolvimento pessoal e social dos jovens (VELLA; OADES; CROWE, 2012VELLA, Stewart; OADES, Lindsay; CROWE, Trevor. Validation of the differentiated transformational leadership inventory as a measure of coach leadership in youth soccer. Sport Psychologist, v. 26, n. 2, p. 207-223, 2012.).

Além disso, é importante ressaltar que o papel do treinador não se configura só no fazer o que as crianças querem, evidenciando somente circunstâncias de êxito e sucesso, mas também pontuando dificuldades e apresentando situações problemas para que as crianças, a partir das suas possibilidades e necessidades, busquem soluções e explorem o ambiente de aprendizagem.

3.2 AMBIENTE DE APRENDIZAGEM

Todos os treinadores evidenciaram a competição como um ambiente de aprendizagem, indicando questões importantes que se aprendem no envolvimento com a competição.

[…] além da competição em si, aprender a ganhar, perder, isso você tem que… o menino tem que gerar isso, mas a parte disciplinar principalmente […]. (Treinador B).

[…] é saber se portar num ambiente competitivo, saber agir sob pressão, saber se relacionar com os companheiros e todos esses valores, de respeito com todos os envolvidos, de união com o seu time, de companheirismo, tu saber perder e tu saber ganhar […]. (Treinador E).

[…] o que mais aprende é a socialização entre eles, a interação entre eles e o conhecimento dos outros lugares […]. (Treinador F).

[…] a questão de aprender que vai perder, vai empatar, vai ganhar, e que vai ter torcida, eles têm que saber que vai ter um cara gritando […]. Seria mais essa questão de aprender e de vivenciar tudo? (Treinador J).

Ah, eu acho que é mais essa questão que eu te falei do trabalho em equipe, de saber respeitar que tem gente que ganha e tem gente que perde […]. (Treinador K).

Os treinadores apontaram a competição como ambiente onde se aprende a perder e a ganhar, ser disciplinado, ter respeito, desenvolver habilidades específicas do futebol, agir sob pressão, estabelecer relacionamentos, trabalhar em equipe, socializar, elevar o nível de desempenho e aprender a competir em diferentes situações da vida. A partir desses relatos, os treinadores salientam alguns valores e habilidades, mas não ressaltam o aprendizado em função da idade dos jovens (entre oito e dez anos). Essa etapa de desenvolvimento deve prezar por uma aprendizagem diversificada e criativa, com muitos jogos e brincadeiras de caráter informal, buscando o desenvolvimento de múltiplas competências e uma prática mais espontânea e divertida (CÔTÉ, 1999CÔTÉ, Jean. The influence of the family in the development of talent in sports. The Sport Psychologist, v. 13, n. 4, p.395-417, 1999.; CÔTÉ; ERICKSON, 2015). Em especial, a justificativa da competição como ambiente para aprender a lidar com pressões nos parece equivocada, na medida em que tratamos de uma fase de experimentação do futebol, que encaminhará para a formação mais específica.

Os dados mostram que os treinadores (B; E; F; J; K;) valorizam o aprendizado sobre saber perder e ganhar, socializar, se preparar para competir, trabalhar em equipe e agir sob pressão:

[…] aprender a ganhar, perder, o menino tem que gerar isso (B); […] saber agir sob pressão, saber se relacionar com os companheiros (E); […] o que mais aprende é a socialização entre eles (F); […] a questão de aprender que vai perder, vai empatar, vai ganhar (J); […] é mais essa questão que eu te falei do trabalho em equipe (K).

Choi, Johnson e Kim (2014CHOI, Hong Suk; JOHNSON, Britton; KIM, Young. Children’s development through sports competition: derivative, adjustive, generative, and maladaptive approaches. Quest, v. 66, n. 2, p. 191-202, 2014.) apontam que a competição gera ansiedade, pressão e estresse, sendo semelhante a outras experiências do cotidiano, como realizar um exame na escola. Além disso, a constante exposição a situações de pressão pode resultar no desenvolvimento da capacidade de funcionar adequadamente em ocasiões estressantes (BRANTA, 2010BRANTA, Crystal. Sport specialization: developmental and learning issues. Journal of Physical Education, Recreation & Dance, v. 81, n. 8, p.19-28, 2010.). Contudo, é importante salientar que a competição abrange crianças de 8 a 10 anos de idade e tem ocorrência no cenário brasileiro. Isto é, a importância que se dá ao futebol no Brasil é levada para a competição das crianças, tornado muitas vezes o ambiente de aprendizagem um contexto de pressão exagerada e experiências negativas.

3.3 AMBIENTE DE PRESSÃO

Os treinadores nessa categoria de análise enfatizaram que o ambiente de pressão é criado a partir da importância da competição e das equipes participantes, da autocobrança dos próprios jogadores, dos pais, dos treinadores e em geral do ambiente que se configura.

Essa pressão muitas vezes não precisa ser, eu vou jogar contra o Grêmio, é uma pressão. Toda a competição ela gera pressão e o que a gente tenta trabalhar com o menino é que a pressão ela não é só da competição, tem que tirar nota boa, é uma pressão […] eu não vejo a pressão como ruim, lógico que o excesso de pressão ele, mas uma pressão em se sentir pressionado faz parte da vida […], então o ambiente competitivo ele te ensina a lidar com a pressão. (Treinador A).

[…] o treino não tem muita pressão e na competição tu tem pressão, pressão do tempo, a pressão do resultado, de tu querer ganhar, por mais que a gente não vá cobrar diretamente, tem que ganhar esse jogo aqui, mas a criança quer ganhar, tem a pressão por querer ganhar ou por de repente tomar um gol, ter que virar o jogo, tem essa questão do ambiente competitivo. (Treinador E).

Depende do treinador, geralmente a gente viaja e se não é contra Grêmio e Inter que tem aquela pressão […] o treinador que bota na cabeça que tem que ir lá e tem que ganhar, aí a pressão aumenta, então tudo depende do ser humano que está ali do lado ajudando. (Treinador F).

[…] a pressão ela vem mais agora nesses jogos mais importantes, mas o resultado ele tem que vir com conteúdo, com estrutura, com base, então eu acho que é importante pra eles essa pressão, porque eu acho que a pressão é uma palavra que é o treinador que tem que trabalhar com eles. (Treinador G).

a competição em si já gera essa pressão, mas o fato de ser a NOLIGAFI, de ser o estadual, gera um pouco mais […], porque hoje é o mais importante que a gente tem no estado […]. (Treinador K).

[…] essa parte é tranquila […], eles estão acostumados a ganhar uns jogos ali, mas eles estão preparados também para a derrota e aí a gente trabalha muito a questão psicológica de cada um ali. (Treinador C).

Os treinadores ressaltaram a configuração de um ambiente de pressão excessiva a partir dos treinadores, pais e torcedores. Os treinadores (A; E; F; G; K;) evidenciaram a pressão com base na importância da competição (nível estadual) e também pela grandeza das equipes participantes:

[…] eu vou jogar contra o Grêmio, é uma pressão(A); […] na competição tu tem pressão, pressão do tempo, a pressão do resultado, de tu querer ganhar (E); […] a gente viaja e se não é contra Grêmio e Inter que tem aquela pressão(F); […] a pressão ela vem mais agora nesses jogos mais importantes (G); […] a competição em si já gera essa pressão, mas o fato de ser o estadual, gera um pouco mais (K)].

O treinador C não enfatizou a criação de um ambiente de pressão, somente relatou que os jogadores estavam acostumados e preparados para lidar com as situações : “[…] eles estão acostumados a ganhar uns jogos ali, mas eles estão preparados também para a derrota” (C)]. O treinador A também visualizou a pressão como ponto inerente da competição, da vida […] “uma pressão em se sentir pressionado faz parte da vida” (A)].

Os resultados nas categorias ambiente de aprendizagem e ambiente de pressão apresentam pontos de convergência, indicando que o aprendizado pode ser desenvolvido em situações de pressão, especialmente no que tange ao nível e etapa de enfrentamento da competição e à representatividade das equipes participantes, mas não a partir das situações de pressão excessiva por parte dos adultos. Desse modo, torna-se importante que as crianças saibam lidar com os desafios da competição, pois isso as mantém intrinsicamente motivadas, aumentando a concentração e melhorando o controle das emoções (CHOI; JOHNSON; KIM, 2014CHOI, Hong Suk; JOHNSON, Britton; KIM, Young. Children’s development through sports competition: derivative, adjustive, generative, and maladaptive approaches. Quest, v. 66, n. 2, p. 191-202, 2014.). Entretanto, não devem ser expostas às mesmas cobranças de desempenho que adultos convivem, na medida em que a competição de futebol infantil deveria ter o papel de permitir às crianças conhecer o jogo em seu contexto formal, aprendendo a apreciá-lo, não a obrigatoriedade de vencê-lo. Logo, se a complexidade de jogar já é significativa para as crianças, torna-se inaceitável a pressão estabelecida por meio de cobranças sobre erros e acertos e busca pelo resultado a todo o custo, que geralmente é potencializada pelos adultos.

A competição envolve uma série de valores e sentimentos que alimentam ainda mais o desejo de participação, mas quando não sustentados por uma boa gestão, acabam extrapolando e trazendo consequências negativas para o desenvolvimento dos jovens (SANTOS, 2016SANTOS, Fernando et al. Personal and social responsibility development: exploring the perceptions of Portuguese youth football coaches within competitive youth sport. Sports Coaching Review, v. 6, n. 1, p. 108-125, 2016;). Treinadores e pais na maioria das vezes têm as melhores intenções, mas acabam agindo de forma impulsiva, severa e prescritiva, gerando comportamentos e influências negativas (HOLT et al., 2008HOLT, Nicholas et al. Do youth learn life skills through their involvement in high school sport? A case study. Canadian Journal of Education, v. 31, n. 2, p. 281‐304, 2008.; SHIELDS et al., 2005SHIELDS, David et al. The sport behavior of youth, parents, and coaches the good, the bad, and the ugly. Journal of Research in Character Education, v. 3, n. 1, p. 43-59, 2005.). Além disso, em muitos casos, a pressão e a cobrança exagerada por parte dos adultos acabam levando os jovens a desistirem do esporte (GUZMÁN; KINGSTON, 2012GUZMÁN, Jose; KINGSTON, Kieran. Prospective study of sport dropout: A motivational analysis as a function of age and gender. European Journal of Sport Science, v. 12, n. 5, p. 431-442, 2012.).

3.4 RESULTADOS COMPETITIVOS

Os resultados competitivos foram apontados como importantes na condução do processo, mas não determinantes para a realização de mudanças. Desse modo, os treinadores ressaltaram que priorizam o desempenho da equipe em vez dos resultados competitivos.

[…] o resultado do jogo, ele te engana, tira o resultado, as vezes ele te engana porque tu ganhou ou porque tu perdeu, ah, tu perdeu com aquela bolinha na sub-10 que viajou e passou por cima do goleiro. Mas como foi o jogo, finalizou mais que o adversário? […]. (Treinador A).

Aí depende, eu acho que depende muito da situação de jogo, o que aconteceu no jogo pra mudar, […] então daqui a pouco, um, dois jogadores por categoria, conforme os treinos eles vão evoluindo, mas para ter mudança assim, vai muito do desempenho deles no treino. (Treinador D).

É mais pela questão do desempenho, o resultado, claro que ninguém vai falar que não, […] todo mundo joga para ganhar e tem que ser assim, […] mas não é o nosso principal foco, nosso principal foco é evoluir os meninos, é formar eles para que eles possam ir subindo de categoria […]. (Treinador E).

[…] o foco é a vivência pra vocês agora, se for pra ser campeão, se for pra vencer os jogos é óbvio que é melhor, mas tem que ser com conteúdo, tu tem que enxergar o teu treino rendendo […]. (Treinador G).

[…] o resultado por exemplo não vai pautar, eu planejei a semana inteira, jogamos no domingo eu já tinha planejado a semana no sábado, não vai mudar, de repente eu vou alterar, mas o planejamento não. (Treinador J).

[…] o resultado ele muitas vezes condiciona o teu trabalho, só que nós temos que tomar muito cuidado pois às vezes ele mascara algumas coisas […], os treinadores têm que ter o entendimento de que é um processo geral e não específico do resultado, claro que isso é muito subjetivo por causa de tu estar com um emprego em jogo […], talvez seja um dos aspectos mais difíceis de a gente lidar. (Treinador H).

[…] os resultados são importantes sim, pra que eles não desistam do sonho deles, pra não desmotivar, mas na questão da formação, é um mínimo, eu não penso dessa forma, o importante é eles evoluírem individualmente […]. (Treinador I).

[…] a gente parte do principio de competir, mas também de oportunizar o menino, então se a gente vê que tá um jogo que tá difícil e a gente tá tentando buscar o resultado a gente dificilmente mexe, agora se é um jogo que a gente vê que não vai conseguir reverter, […] a gente acaba mudando bastante peças […]. (Treinador L).

Em geral, os treinadores dizem colocar os resultados competitivos em segundo plano, priorizando a formação dos jovens. Alguns (A; D; E; G; J;) relataram que a análise do resultado deve ser balizada pelo desempenho da equipe na competição e obtendo relação com os conteúdos desenvolvidos no treino […] “o resultado, às vezes ele te engana porque tu ganhou ou porque tu perdeu” (A); “vai muito do desempenho deles no treino” (D); “É mais pela questão do desempenho” (E); “tem que ser com conteúdo, tu tem que enxergar o teu treino rendendo” (G); “[…] o resultado por exemplo não vai pautar, eu planejei a semana inteira” (J)].

Outros treinadores (H; I;) salientaram a importância do resultado no contexto do futebol, como respaldo do trabalho e como forma de motivar os jovens “[…] o resultado ele muitas vezes condiciona o teu trabalho” (H); “os resultados são importantes sim, pra que eles não desistam do sonho deles, pra não desmotivar” (I). Esse é um ponto que pode ser problemático, na medida em que se vincula a motivação ao futebol por crianças a fatores extrínsecos (ganhar e perder jogos) e não ao prazer pela atividade, o que deveria conduzir treinadores a refletir sobre a qualidade da experiência ofertada tanto na competição quanto nos treinos, revendo o tipo de atividade e a qualidade de interação treinador-criança (CÔTÉ et al., 2017CÔTÉ, Jean et al. Quadro teórico para o desenvolvimento de valores pessoais no processo dinâmico de desenvolvimento pelo esporte. In: GALATTI, Larissa Rafaela et al. (orgs.). Múltiplos cenários da prática esportiva: pedagogia do esporte. Campinas: Editora da Unicamp, 2017. v. 2. p. 15-40.). Inclusive, nenhum treinador ressalta em sua fala a competição como um ambiente de aprender a gostar do esporte e a se divertir, o que seria desejado nessa etapa da infância.

Todavia, as observações de campo mostram que os treinadores ficam mais agitados e realizam mais instruções e feedbacks em situações de pressão da torcida, equívocos da arbitragem e erros de seus jogadores, fatores esses relacionados geralmente com situações de resultados de jogo adversos. O Treinador L relata que oportuniza a participação da maioria dos meninos quando o placar está adverso e sem perspectiva de empate ou vitória: “se é um jogo que a gente vê que não vai conseguir reverter, […] a gente acaba mudando bastante peças” (L), isto é, indicando que a oportunidade de participação das crianças muitas vezes é condicionada ao resultado da partida.

Os resultados competitivos geralmente não são entendidos inicialmente como relevantes no futebol de crianças, mas em muitas situações práticas acabam virando um dos principais propósitos da competição, por questões culturais ou dinâmica de cobrança inadequada sobre os treinadores das categorias de iniciação. Flett e colaboradores (2013FLETT, Ryan et al. Tough love for underserved youth: A comparison of more and less effective coaching. The Sport Psychologist, v. 27, n. 4, p. 325-337, 2013.) ressaltaram em sua pesquisa que, em algumas situações da competição, os treinadores direcionam suas condutas com ênfase no resultado competitivo, utilizando uma comunicação mais prescritiva, provocativa e impositiva. Omli e Lavoi (2012OMLI, Jens; LAVOI, Nicole. emotional experiences of youth sport parents I: anger. Journal of Applied Sport Psychology, v. 24, n. 1, p. 10-25, 2012.) indicam que o comportamento dos pais tem ligação direta com a conduta dos treinadores e atitude de outros pais, desencadeando um sentimento de raiva a partir de erros da arbitragem, reclamações de pais com os treinadores, cobranças e críticas na atuação das crianças, brigas entre os pais, promovendo assim um ambiente hostil e de pressão exagerada para participação dos jovens.

Mesmo que os resultados competitivos tenham importância dentro do contexto do futebol brasileiro, o propósito fundamental da competição para crianças entre 8 e 10 anos deve estar centrado no desenvolvimento e aprendizado de competências através de um ambiente lúdico. Essa é ainda uma etapa de iniciação esportiva, tampouco a tratamos como formação. Nesse sentido, torna-se relevante que os clubes sustentem o seu processo formativo a partir de um currículo (OLIVEIRA et al., 2017OLIVEIRA, Elson et al. Currículo de formação no futebol: interface da teoria bioecológica e a pedagogia do esporte. Corpoconsciência, v. 21, n. 3, p. 97-108, 2017.), com diretrizes claras e coerentes e que balizem o trabalho nas diferentes categorias de iniciação e formação.

3.5 REAÇÕES DOS TREINADORES

A reação dos treinadores nos jogos observados variou em determinados momentos, tornando-se por vezes dependente dos resultados das partidas. A participação da torcida e o desempenho dos jogadores também foram fatores que influenciaram na reação dos treinadores. No Quadro 1 são apresentadas algumas situações referentes às reações dos treinadores em contexto competitivo.

Quadro 1
Relato sobre as reações dos treinadores.

De maneira geral, os treinadores no contexto competitivo foram bastante prescritivos, realizando constantemente instruções e feedbacks. As reações dos treinadores foram frequentemente influenciadas pela reação da torcida, desempenho dos jogadores, resultado da partida, marcações da arbitragem e até mesmo por condições ambientais, como indicado no jogo 3. Nessa perspectiva, Camiré (2015CAMIRÉ, Martin. Reconciling competition and positive youth development in sport. STAPS, n. 109, 25-39, 2015.) evidencia que em contextos de competição os treinadores são pressionados na busca de resultados e acabam perdendo os objetivos do esporte como elemento educacional e de responsabilidade social.

A pressão por resultados realizada por gestores de clubes e pais tende a levar os treinadores à gestão entre a exigência de atingir resultados esportivos e contemplar os objetivos e necessidades para o desenvolvimento dos jovens (COAKLEY, 2016COAKLEY, Jay. Positive youth development through sport: myths, beliefs, and realities. In: HOLT, Nicholas (ed.), Positive youth development through sport. 2nd . ed. London: Routledge, 2016. p. 21-33.; SANTOS et al., 2018). A construção de um cenário significativo de desenvolvimento dos jovens na competição requer a contribuição conjunta das ligas, dos clubes, das famílias e também dos treinadores, personagens fundamentais no processo (LAUER et al., 2010LAUER, Larry et al. Parental behaviors that affect junior tennis player development. Psychology of Sport and Exercise, v. 11, n. 6, p. 487-496, 2010.). Assim, não é negar a competição à criança, mas criar um ambiente de aprendizagem para a criança explorar ao máximo os desafios inerentes ao conflito de objetivos gerados ao jogar contra e com o outro na prática esportiva.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os treinadores reconhecem o seu papel formador e verbalizam preocupação com o aprendizado dos jovens na competição, mas não sinalizam para valores e competências mais adequados para serem desenvolvidos nessa etapa de formação (categoria sub-10). Os treinadores percebem o seu papel e a competição como ambiente de aprendizagem, principalmente a partir das possibilidades que o jogo apresenta. Entretanto, em muitas situações predomina o ambiente de pressão excessiva, potencializado por meio do comportamento da família, dos torcedores e dos próprios treinadores, colocando os propósitos dos adultos sobrepostos às possibilidades de experiência e aprendizado e divertimento das crianças.

O que esteve em jogo na competição se pautou em muitas situações pela busca de resultados competitivos, gerando um ambiente de pressão exagerada, ocultando os propósitos educacionais da competição e desvirtuando o papel do treinador, tornando suas reações mais diretivas e impulsivas. O papel do treinador e o ambiente de aprendizagem ficaram frequentemente condicionados aos propósitos e comportamentos desregulados dos adultos participantes do cenário competitivo. Assim, é relevante que o treinador obtenha uma formação ampla e qualificada, conseguindo visualizar a complexidade do ambiente competitivo e para além dele, agindo de forma coerente com as necessidades, possibilidades e potencialidades das crianças.

Além disso, a competição deve ser organizada de forma conjunta pelos organizadores, clubes e treinadores, pontuando diretrizes sobre o papel do treinador, sobre o que é importante que as crianças aprendam, sobre o comportamento adequado por parte dos adultos e deixando claro o que está em jogo, ou seja, quais os propósitos da competição de futebol na categoria sub-10. Entendemos que uma mudança drástica na cultura do resultado no futebol brasileiro (em nível de confederação e federações), nesse caso, na categoria sub-10, configura um processo complexo e distante. Entretanto, acreditamos que algumas ações, como estabelecer objetivos para a competição, aumentar o nível de participação, orientar o comportamento dos adultos, possibilitar situações formativas para que os treinadores reflitam sobre a competição no futebol infantil, possam alterar em médio e longo prazo os rumos da formação esportiva em alguns contextos. Esperamos que este artigo possa inspirar uma discussão acerca da necessidade de uma mudança de paradigma no modo como se compreende a utilidade do esporte, em especial da competição nessa etapa de formação.

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  • LICENÇA DE USO

    Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o trabalho original seja corretamente citado. Mais informações em: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Bolsa de Doutorado, Processo n. 141554/2016-9.
  • ÉTICA DE PESQUISA

    O projeto de pesquisa foi encaminhado e aprovado pelo CEP da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Protocolo n. 92747918.1.0000.5404.
  • RESPONSABILIDADE EDITORIAL

    Alex Branco Fraga *, Elisandro Schultz Wittizorecki *, Ivone Job *, Mauro Myskiw *, Raquel da Silveira *

    * Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2020
  • Aceito
    23 Ago 2021
  • Publicado
    08 Out 2021
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