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RESPONSABILIDADES DA EDUCAÇÃO FÍSICA PARA COM O “TEMPO DO INÚTIL”: UMA NECESSIDADE DE NOSSO TEMPO1 1 Este trabalho tem por base o resumo expandido publicado nos Anais do CONBRACE 2019. Disponível em: http://congressos.cbce.org.br/index.php/conbrace2019/8conice/paper/viewFile/12320/6521. Acesso em: 27 jun. 2021.

RESPONSIBILITIES OF PHYSICAL EDUCATION TOWARDS THE "USELESS TIME": A NEED OF OUR TIME

RESPONSABILIDADES DE LA EDUCACIÓN FÍSICA HACIA EL "TIEMPO INUTIL": UNA NECESSIDAD DE NUESTRO TIEMPO

Resumo

Este ensaio tem como objetivo refletir sobre a Educação Física (EF) escolar como campo do conhecimento com responsabilidades de propor uma formação para o “tempo do inútil”. Ao longo do texto, procuramos demonstrar que, em tempos de crise, utilitarismos e imediatismos, reconhecer a importância de uma formação para o “tempo do inútil” representaria uma virada paradigmática para a EF, especialmente no contexto escolar.

Palavras-chave:
Educação Física; Conhecimento; Formação

Abstract

This essay aims reflect on the school Physical Education (PE) as a field of knowledge with responsibilities of propose a formation for the "useless time". Throughout the text, we tried to demonstrate that, in times of the crisis, utilitarianisms and immediacies, recognizing the importance of a culture for "useless time" would represent a paradigm change for PE, especially in the school context.

Keywords:
Physical Education; Knowledge; Formation

Resumen

Este ensayo apunta a reflexionar sobre la Educación Física (EF) escolar como un campo del conocimiento con responsabilidades de proponer una formación para el "tiempo de lo inútil". A lo largo del texto, tratamos de demostrar que, en tiempos de crisis, utilitarismos e imediatismos, reconocer la importancia de una cultura por "tiempo de lo inútil" representaría un cambio de paradigma para la EF, especialmente en lo contexto escuelar.

Palabras clave:
Educación física; Conocimiento; Formación

1 INTRODUÇÃO

Em meio a uma série de crises, vivemos tempos nos quais os saberes do mundo são categorizados em “úteis” e “inúteis”, sob a lógica de uma globalização (ultra) neoliberal e a emergência de setores conservadores de extrema direita. Neste complexo cenário, prevalece a “lei do valor”: são considerados válidos os conhecimentos que são úteis, de preferência, para uso imediato, como forma de obtenção de algum tipo de lucro. Se conhecimentos “úteis” são necessários para a vida (e não discordamos disso), cabe examinar melhor a lógica que os coloca nesta condição, bem como, suas consequências para a produção da vida em nosso tempo. Nessa direção, cabe também refletir melhor acerca do que fica de fora desta lógica - uma lógica que vem a tempos colonizando muitos setores, entre eles, campos do conhecimento como a Educação Física (EF).

Neste cenário, a formação escolar vai incorporando em seu cotidiano elementos que vão, especialmente, ao longo do Século XXI, sobrepondo de maneira significativa a ideia de uma ampla formação cultural, fundada na ampla cultura produzida ao longo da história da humanidade 2 2 Não desconsideramos que este processo se coloca de forma intensa também no contexto da formação universitária. Porém, neste ensaio, tomaremos como referência de análise a formação escolar, especialmente no que tange ao campo da EF. . Nessa lógica, vamos percebendo a precarização da formação humanística em detrimento de uma formação voltada exclusivamente para a produção e para o trabalho. Portanto, o que não “cabe” nesta régua, passa a ser considerado improdutivo (no sentido usual do termo), desnecessário, ocupando, ao longo da formação escolar, lugar periférico, marginal, ou até mesmo, sendo paulatinamente retirado dos currículos.

Na contramão desta “tendência” contemporânea, pretendemos neste ensaio, refletir sobre a necessidade e a importância de conhecimentos considerados inúteis se constituírem como referências para a formação escolar, especialmente em um tempo no qual vivemos uma crise sanitária, política, ética, econômica, enfim, uma crise de cultura sem precedentes nos últimos 100 anos. Para tal, a EF, enquanto um campo do conhecimento que lida diretamente com a cultura corporal de movimento, tem responsabilidades significativas de propor uma formação para o “tempo do inútil”. Talvez aqui resida uma perspectiva que possa evidenciar a importância deste campo do conhecimento para a formação escolar e a produção da vida nas mais distintas sociedades contemporâneas. Bem verdade, um pressuposto que não é consenso em muitos setores da escola e da própria EF.

Desta forma, o objetivo central deste ensaio, a partir de uma articulação com elementos da conjuntura contemporânea, é refletir sobre a EF como campo do conhecimento com responsabilidades de propor uma formação para o “tempo do inútil”. Partindo disso, cabe refletir acerca das múltiplas dimensões de conhecimentos que constituem a vida humana, que se edifica também, por experiências para além da lógica do lucro e da utilidade (balizadores da formação escolar).

Nem só do útil vivem os seres humanos e a vida humana se constitui também de experiências que não tem utilidade imediata ou produzem lucro. Mas, se o lucro e a utilidade não esgotam nossas possibilidades de mundo, onde aprendemos, então, sobre conhecimentos “inúteis”? Qual o lugar destes conhecimentos em nosso cotidiano? Quais as responsabilidades da escola frente a questões como estas? Como um campo do conhecimento como a EF vem tratando (ou poderia tratar) a questão do “tempo do inútil” na escola3 3 Kuhn e Camilo Cunha (2021), ao recuar a antiga Grécia para refletir acerca do tempo na cultura ocidental, vão referir que ainda antes de emprestar análises racionais (Logos) os gregos antigos convocaram os mitos para dar um entendimento ao tempo. Para tal, fizeram elevar três representações: Chronos, Kairós e Aeon. Chronos se referia ao tempo cronológico, sequencial, linear que poderia ser medido. Este surge no princípio dos tempos, formado por si mesmo e que designa a continuidade de um tempo sucessivo. O tempo é, nessa representação, a soma do passado, presente e futuro e o presente é o limite entre o que já foi e não é mais (o passado) e o que ainda não foi, portanto ainda não é, mas ainda será (o futuro). Uma das representações de Chronos, retratada por Francisco de Goya (1746-1828), é a de um homem que devora o seu próprio filho (Saturno - Chronos para os Romanos - devorando um filho). Este facto inscreve-se na ideia dos antigos gregos tomarem Chronos como o criador do tempo, logo, de tudo o que existe e pudesse ser relatado e, uma vez que é impossível fugir do tempo, todos seriam mais cedo ou mais tarde vencidos ou devorados por ele. Já Kairós, por seu lado, referia-se a um momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: um tempo existencial no qual os gregos acreditavam ser necessário para enfrentar o cruel e tirano Chronos. Kairós significa medida, proporção, momento crítico, temporada, oportunidade e emerge como uma noção central, pois caracterizava um momento fugaz em que uma oportunidade se abria, devendo ser encarada com força e destreza para que o sucesso fosse alcançado. Aeon, por sua vez, é um tempo sagrado e eterno, sem uma medida precisa, o tempo da criatividade onde as horas não passam cronologicamente. Já nos usos mais antigos significava a intensidade do tempo da vida humana, um destino, uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva, mas intensiva. É também usado em teologia para descrever o "tempo de Deus", enquanto Chronos é o "tempo dos homens". Enquanto Chronos é de natureza quantitativa e objetiva, Kairós e Aeon possuem uma natureza qualitativa e subjetiva, como referência a um momento indeterminado ou a uma experiência oportuna. Estas representações mitológicas acabaram por chegar aos nossos dias através das estruturas linguísticas, corporais e simbólicas, timbradas também pela dimensão racional como representação modelar, exata, linear (Chronos), mas também como manifestação experiencial, criativa, lúdica e da intencionalidade fenomenológica (Kairós e Aeon). Será que o “tempo do inútil” tem no Kairós e no Aeon a sua expressão maior? Será que a EF conhece estas dimensões do tempo em profundidade? Um tempo do inútil que se faz útil pelo inusitado, pela criação e pelo espanto? Em tempo, são questões que ganham sentido ao longo do desenvolvimento do texto. ?

A fim de dar conta dos elementos até então apresentados, subdividimos o texto em dois momentos. Inicialmente apresentamos argumentos que pretendem refletir sobre o tempo no qual vivemos, considerando a necessidade de conhecimentos inúteis para a vida em sociedade. Em um segundo momento, procuramos sustentar uma concepção de EF como espaço e tempo de formação para o “tempo do inútil”, algo imprescindível para a vida humana.

2 REFLEXÕES SOBRE NOSSO TEMPO: A NECESSIDADE DE CONHECIMENTOS “INÚTEIS” COMO POTÊNCIA PARA A VIDA EM SOCIEDADE

[...] nenhuma profissão pode ser exercida de forma consciente se as competências técnicas de que requer não estiverem subordinadas a uma formação cultural mais ampla, capaz de estimular o discente a cultivar seu espírito com independência e a deixar livre sua curiositas. Fazer coincidir um ser humano exclusivamente com a sua profissão seria um erro gravíssimo: em qualquer homem há algo de essencial que vai muito além da sua profissão (ORDINE, 2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018., p. 117-118, tradução nossa).4 4 No original: [...] nessun mestiere potrebbe essere esercitato in maneira consapevole se le competenze tecniche che richiede non siano subordinate a una formazione culturale piú vasta, in grado di incoraggiare i discenti a coltivare autonomamente il loro spirito e a lasciare libero corso ala loro curiositas. Far coincidere l’essere umano esclusivamente com la sua professione sabere um erroe gravíssimo: in qualsiasi uomo c’é qualcosa di essenziale che va molto al di lá suo stesso mestiere”. (ORDINE, 2018, p. 117-118).

Em meio a uma pandemia sem precedentes nos últimos 100 anos causada pelo vírus Sars-Cov25 5 Mais conhecido por coronavírus, o SarsCov-2 é o nome oficial do vírus causador da Covid-19, que atinge o mundo em 2020/2021, levando a um estado pandêmico de emergência de saúde pública internacional. O nome foi escolhido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para facilitar a identificação em estudos científicos e também a divulgação na imprensa, além de evitar confusões com outros vírus da mesma família. , vivemos um cenário dramático que, por um lado, vai tornando a vida mais sôfrega, mais individualizada e mais incerta. Por outro, escancara a necessidade de pensá-la como uma produção coletiva, mais solidária, ou seja, um “fazendo junto” (sem idealizações ingênuas) que nos coloca na obrigação de aprender a nobre arte da convivência como princípio fundante para a vida em sociedade.

Em seu livro, Gli uomini non sono isole - i classici ci aiutano a vivere (Os homens não são ilhas - os clássicos nos ajudam a viver6 6 Outras referências importantes, tal como a de Umberto Eco (1989) também debatem a importância de ler os clássicos e a sua dimensão estruturante para o porvir. Para que servem os clássicos? Porque ler os clássicos? Um clássico nunca está acabado, nunca está fechado, está sempre aberto e pronto a ser reinterpretado. Um clássico é uma contínua inscrição hermenêutica, um local de salvação, em um eterno “de novo” como se fosse a primeira vez. ), ainda sem tradução no Brasil, o professor da Universidade da Calábria (Itália), Nuccio Ordine, destaca a necessidade de resgatar a solidariedade e a alteridade como princípios fundantes para a vida em nosso tempo (ORDINE, 2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018.a). Um tempo que vem se caracterizando por posturas individualistas e egoístas, com vistas ao “ter” e “ser para si” (neste caso, estes seriam o télos da vida contemporânea). Como exemplo, Ordine destaca que não conseguiremos derrotar o Sars-Cov2 sozinhos, mas sim, com a evidência de nosso sentimento de vida comunitária e interdependente.

Para tal, além dos deveres da vida privada, temos os deveres da vida pública, ou seja, o dever para com os outros - por isso, muitas pessoas se privam de algumas liberdades. Por exemplo, em tempos de pandemia causada por um vírus que se propaga pelo ar, por meio de gotículas de saliva expelidos na fala, no espirro ou na tosse (o SarsCov-2), temos de evitar aglomerações, usar máscaras7 7 A máscara trouxe uma nova identidade ao corpo/rosto normal. O rosto, elemento distintivo e identitário, passou a ser um elemento quase interdito, fazendo com que muitas pessoas se afastem: a máscara (esta máscara) trouxe com ela o medo. A máscara (do/com a Covid) vai dizer que há um perigo eminente, que o corpo pode adoecer e neste envolvimento as relações sociais dadas pelo rosto, pela presença, pela hospitalidade, pela fala e pela linguagem entram/ficam em suspensão. O rosto, deixou assim, de ser uma expressão e uma narrativa de identidade para sinalizar uma situação de risco. O rosto coberto vai determinar um eclipse da identidade e uma elevação maior da angústia existencial. Para além do real (entidade anatómica) corporal e relacional, perde-se (fica entre parênteses) também a dimensão simbólica do corpo/rosto. O simbólico como uma outra linguagem da existência humana fica também escondido. Certamente, esta dimensão do corpo/rosto/máscara pode ser objeto de inúmeras reflexões. Na esteira de Sohn (2013), Garcia e Costa (2020), entre outros, a erosão do pudor que continuamente temos assistido, recua de forma insólita. e manter distanciamento social, entre outros cuidados. Isso se dá com referência nas diversas pesquisas realizadas a respeito, bem como, em nome do bem comum - ou seja, em nome de nosso compromisso e responsabilidade para com a vida coletiva. Neste caso, especificamente o objetivo maior é diminuir os níveis de contágio ocasionados pela disseminação do vírus8 8 No final do mês de maio 2021, mais de 3.400.000 pessoas morreram no mundo todo em virtude do SarsCov-2. No Brasil, mais de 440.000 pessoas já morreram até o fechamento deste ensaio. Reduzir estes números avassaladores somente será possível com a vacinação em escala planetária, mas também, com o exercício da solidariedade e da responsabilidade individual em nome da vida coletiva. Dados disponíveis em https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019. Acesso em: 21 maio 2021. . Isso significa que não temos liberdade irrestrita, bem como, que não podemos desconsiderar as consequências de nossos atos na ampla esfera pública (liberdade irrestrita seria a morte da própria liberdade).

Neste cenário, tão absurdo quanto desprezar conhecimentos considerados “inúteis”, é fomentar o desprezo ao conhecimento útil produzido pelas distintas ciências, em um irresponsável elogio a ignorância, especialmente em uma era, paradoxalmente, denominada de “sociedade do conhecimento”. Paradoxos desta ordem nos conduzem a um clima cultural que parece desprezar o conhecimento, sem a menor responsabilidade com os impactos de negacionismos na ampla esfera pública. Em tempos de pós-verdade9 9 Terraplanismo, revisionismos ou negacionismos (da pandemia etc.), entre outras narrativas edificadas com base na desconstrução irresponsável, bem como, na crença e no desejo de poder, se manifestam com a pretensão de “redefinir” a história ou a realidade, com vistas a construir uma base de sustentação para projetos político-culturais (no caso em tela, de ordem liberal e conservadora). Nessa esteira, percebemos o crescimento da pós-verdade, expressão utilizada nos últimos anos, que corresponde a narrativas em que fatos objetivos têm menos importância do que paixões, interesses, crenças pessoais e o desejo de estar certo. Se fatos são construções históricas, toda narrativa deve se assentar em critérios de justificação dotados de sentido no mundo comum. Sem isso, não passam de embustes. e egocentrismos opinativos, a máxima cartesiana “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sun), provavelmente, seria substituída por “Acredito, então é verdade” (credo, verum est).

Neste caso, cabe considerar que, mesmo o conhecimento útil, tomado como referência hegemônica de produção de mundo, também passa por um momento de provação, derivado de narrativas que mais confundem do que contribuem com a possibilidade de lidar, por exemplo, com as crises que vivemos. Por consequência, um desprezo ainda maior é dispensado a conhecimentos considerados “inúteis”, colocando-os em uma condição mais subalterna ainda.

De nossa parte, entendemos que isso se funda pela crise de cultura que vivemos, onde uma formação rigorosa e alargada dá lugar a uma formação “enxuta”, cada vez realizada com menor tempo e esforço. Uma crise que vem impactando decisivamente no que a escola vem propondo como formação, produzindo um deslocamento de uma formação cultural ampliada, ainda presente no século passado de forma mais intensa, para uma formação (pretensamente) técnica especializada, paradoxalmente, gestada na segunda metade do mesmo século10 10 Como consequência, percebemos um empobrecimento da própria expectativa dos estudantes com relação a formação. Por exemplo, o mesmo estudante de ensino médio que passa um final de semana “maratonando” sua série preferida, demonstra dificuldades severas de manter a atenção em uma aula que exija a produção de longas cadeias de raciocínio, leitura e interpretação de textos. Da mesma forma, um jovem que se manifesta regularmente e com frequência nas redes sociais, pode “estar invisível” nas aulas. Ou ainda, professores que, na tentativa de “ganhar público” ou manter seu emprego (especialmente no segmento privado), transformam suas aulas em jogos interativos e superficiais, pautados pelo entretenimento. .

Embora não seja possível aprofundar tal deslocamento neste texto, este movimento vem alçando a lógica da pedagogia das competências como referencial exclusivo para a formação (tanto na escola como na universidade). Tal como expresso por Rezer (2020REZER, Ricardo. Pedagogia das competências como princípio de organização curricular: “efeitos colaterais” para a educação superior... Revista do Centro de Educação (UFSM), v. 45, p. e20, p. 1-25, jan./dez. 2020. DOI: https://doi.org/10.5902/1984644435008
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), alçar habilidades e competências, características humanas de segundo nível, a condição de balizador para a formação, se trata de um grande equívoco, com prejuízos incalculáveis para a educação brasileira, especialmente pelo fato de que evidencia uma formação centrada no praticismo, utilitarismo e imediatismo, algo que vem gerando um clima cultural que privilegia a prática (sem a devida reflexão teórica) como centralidade da formação escolar e universitária11 11 Se tomarmos como referência os textos da Base Nacional Curricular Comum (BRASIL, 2018), da Resolução Nº 6/2018 (BRASIL, 2018a), e da Resolução CNE/CP Nº 2/2019 (BRASIL, 2019), o referido deslocamento fica mais evidente ainda. Tal como sinalizado por Rezer (2020), entre outros, um dos problemas desta lógica se refere a ideia de conhecimento válido como conhecimento prático e útil para a resolução de problemas com vistas a uma formação utilitária. Um movimento que impacta a formação escolar e universitária de forma contundente, pois privilegia conhecimentos que deem conta desta lógica, que passam a ocupar espaço privilegiado nos currículos. Assim, conhecimentos que não se coloquem a reboque disso vêm sendo paulatinamente suprimidos ou colocados de forma periférica na formação - isso fica mais claro ao considerarmos o status de disciplinas como EF, Música, Artes, Literatura, entre outras, no currículo escolar em nossos dias. .

Nos últimos anos, considerando as duas primeiras décadas do Século XXI, há uma intensificação deste clima no amplo espectro da sociedade contemporânea, especialmente em realidades como a brasileira (mas não só). Um tempo no qual youtubers, muitas vezes, sem a menor responsabilidade com a verdade, adquirem condição de celebridades (com audiência compatível aos números de grandes mídias), deixa claro o sentido do conhecimento em nosso tempo. Em muitos casos, nos deparamos com vídeos que desconsideram o arcabouço cultural produzido ao longo da história da humanidade, sem a menor responsabilidade com o saber (ver a quantidade de canais do YouTube que versam sobre o terraplanismo, por exemplo).

Exemplos como este mostram a fragilidade da escola em nosso tempo, que tem de “concorrer” com “mídias” das mais distintas “naturezas”. E na tentativa de (re) afirmar sua relevância social, a escola parece apostar decisivamente na formação para o trabalho e para o ingresso na universidade como balizadores exclusivos de suas proposições. Assim, a importância de disciplinas que possam dar conta dessas pretensões fica em evidência, obliterando aquelas que não possuem (em uma leitura rasa) contribuições diretas para com estas finalidades.

Por outro lado, viver e conviver exige formação. Se a escola se coloca como instituição que forma preponderantemente para o ingresso na universidade e para o trabalho, onde as novas gerações aprendem a viver e a conviver? No recreio? Nas redes sociais? Nas palavras de Ordine, “[...] a los jovenes se piede que aprendan uno ofício, para gañar dinero. Se há perdido lá idea de que la escuela e la universidad san una comunidad onde se formam los futuros cidadanos que podrán ejercer su profesión, con una fuerte convicción ética e um profundo sentido de la solidariedade humana e del bien comun”.12 12 Disponível em: https://www.ipp.faud.unsj.edu.ar/nuccio-ordine-sobre-la-educacion-en-tiempos-de-pandemia/. Acesso em: 10 mar. 2021.

Assim, concordando com Ordine (2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018.a), a vida em sociedade só tem sentido e possibilidade de existência se conseguirmos viver com os outros e para os outros. E isso implica em reconhecer a necessidade de formação para isso. E uma formação para “viver junto” necessita de conhecimentos que vão para além daqueles específicos para o exercício de uma profissão ou para o ingresso na universidade (a epígrafe de Ordine presente no início deste tópico evidencia significativamente esta assertiva). Neste caso, conhecimentos considerados inúteis, na lógica em curso, tais como a arte, a música, a EF, mas fundamentais para a produção da vida13 13 Entre tantos exemplos possíveis, a sensibilidade oportunizada por experiências com a música são extremamente necessárias para que possamos aprender sobre a sensibilidade que temos de ter ao tratar com pessoas, com a natureza, enfim, com as coisas do mundo. Da mesma forma, ao aprendermos na EF sobre cuidados com o corpo, podemos também aprender a perceber os corpos para além da ideia de “meios com vistas a fins” (recursos humanos), mas como seres importantes para nossa própria existência, seres que necessitam de cuidados. Certamente, tais exemplos não pressupõem uma relação de causa/efeito, mas são apresentados na direção de sustentar a abertura de horizontes de mundo altamente necessários, que necessitamos aprender a reconhecer e a cultivar. , vão sendo paulatinamente convidados a se retirar da universidade e da escola, juntamente com as ditas “humanidades”.

Para Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, os critérios de mercantilização do cenário global vão reduzindo o valor das diferentes áreas de conhecimento ao seu preço de mercado, a tal nível que “[...] o latim, a poesia ou a filosofia só serão mantidos se algum Macdonald informático ver neles alguma utilidade” (SOUSA SANTOS, 2011SOUSA SANTOS, Boaventura. A encruzilhada da universidade europeia. Revista Ensino Superior, n. 41, jul./set. 2011. Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/A%20encruzilhada%20da%20Universidade%20Europeia_Set11.pdf. Acesso em: 27 jun. 2021.
http://www.boaventuradesousasantos.pt/me...
, p. 1).

Assim, o repertório dos “saberes inúteis” passa a fazer parte de uma “estante de livros” cada vez menos consultada no âmbito da formação (um movimento em escala internacional), sendo reduzida a uma referência cada vez menos valorizada. O risco que corremos é alçar, aos poucos, determinadas leituras de mundo a invisibilidade, ou pior, ao esquecimento, reduzindo de forma absurda a potencialidade humana. Se do ponto de vista da técnica, temos respostas cada vez mais satisfatórias, ainda temos problemas significativos no âmbito das relações humanas que temos de aprender a enfrentar e, quiçá, superar.

Consideremos, por exemplo, a velocidade da produção de vacinas contra o SarsCov-2, mesmo em meio a um aparente “muro” com o qual as mais distintas ciências se depararam. Mesmo em meio a dificuldades severas, a produção de vacinas foi realizada em tempo recorde, demonstrando alta capacidade técnica de enfrentamento a problemas desta ordem. Por outro lado, os processos de vacinação são permeados por conflitos, desde a distribuição de vacinas, até a ordem de vacinação em cada País ou Estado. Qual a sequência mais adequada de vacinação? Primeiro seriam os idosos e profissionais da saúde? Todos os profissionais deste campo ou especificamente aqueles da linha de frente do combate ao COVID? E os professores, que estão sendo pressionados a voltarem ao trabalho (muitos já voltaram) de forma presencial? Sob quais justificativas questões como estas se definem? Entre tantas questões complexas como estas, se faz necessário pensar que tomar decisões desta ordem exige formação técnica (logística, por exemplo), mas também, formação de “natureza” humanística pois, exigem, par i passu, compromisso e responsabilidade ética para com o bem comum.

Assim sendo, viver em sociedade exige formação para lidar com a fluidez do humano, imerso em desafios, paradoxos e contradições. E uma formação desta ordem necessita de conhecimentos das mais diferentes ciências (inclusive das “ciências humanas”), como potência de cultivo do humano dos seres. E este cultivo depende de conhecimentos que, em muitos casos, são considerados “inúteis”, na lógica da produção e do lucro presente em nosso tempo14 14 Concordando com Ordine (2018a), só o ser humano pode, conscientemente, exercitar a possibilidade de usufruir de atos e conhecimentos inúteis, que não tenham pretensões exclusivas de sobrevivência ou de produção. . Conhecimentos como a arte, a literatura, a poesia, a música e a EF, entre outros, que permitem desfrutarmos das potencialidades humanas - saberes a long durée, tal como se refere Ordine (2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018.), que não tem “prazo de validade”. Conhecimentos que nos permitem lidar com nossa dimensão racional/técnica, mas também, estética, ética e política, como possibilidades de existência digna e interdependente no mundo comum.

Assim, entendemos que a formação escolar necessita considerar elementos das mais distintas dimensões, como forma de potencializar uma formação alargada, que possa levar as faculdades humanas a seus planos mais elevados. A seguir, iremos discorrer mais e melhor sobre as especificadas deste pressuposto, bem como, suas conexões com o campo da EF.

3 EDUCAÇÃO FÍSICA COMO POSSIBILIDADE PARA A FORMAÇÃO DE UMA CULTURA PARA O “TEMPO DO INÚTIL”...

De fato, no universo do utilitarismo um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que uma poesia, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é fácil entender a eficiência de um utensílio, enquanto é cada vez mais difícil compreender para que possam servir a música, a literatura ou a arte (ORDINE, 2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018., p. 11, tradução nossa)15 15 No original: Nell’universo dell’utilitarismo, infatti, un martello vale piú di uma sinfonia, um cotello piú di una poesia, una chiave inglese piú di un quadro: perché é facile capire l’efficacia di un utensile mentre é sempre piú difficíle comprendere a cosa possano servire la musica, la letteratura o l’arte. (ORDINE, 2018, p. 11) .

A epígrafe expressa bem o “pano de fundo” deste ensaio. A classificação de determinados conhecimentos como “úteis” ou “inúteis” vem produzindo desdobramentos nas mais distintas formas de produção da vida humana. No caso em tela, a ideia de “inútil” com a qual trabalhamos (doravante mencionado sem aspas), parte, em boa medida (mas não só), dos argumentos de Ordine (2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018.), que vem dedicando parte de seu trabalho a examinar com cuidado este tema.

Em sua obra “L’utilitá dell’inutile: manifesto” (2018) - em português, “A utilidade do inútil: manifesto” (ORDINE, 2016ORDINE, Nuccio. A Utilidade do Inútil: um manifesto. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.), ele procura demostrar que, se deixarmos a dimensão gratuita morrer, se renunciarmos à força geradora do inútil, se escutarmos unicamente o mortífero canto das sereias que nos impele a perseguir o lucro, somente seremos capazes de produzir uma coletividade doente e sem memória, que acabará perdendo o sentido de si mesma e da própria vida. Então, quando a desertificação do espírito nos fizer murchar16 16 Ordine compreende a desertificação do espírito como sintoma e consequência de um modo de produzir a vida que vem promovendo a desumanização do humano. Tal movimento vem produzindo a invisibilidade de potencialidades humanas que não estejam vinculadas ao lucro e ao consumo. Inclusive, concordando com Ordine (2018a), só o conhecimento inútil pode desafiar as leis de mercado. Levar adiante formas de produção da vida que se atenham quase que exclusivamente ao lucro e ao consumo representa apostar na desertificação de nossa possibilidade de ser humano. , será realmente difícil imaginar que o insipiente Homo sapiens ainda poderá ter um papel para tornar a humanidade mais humana.

Em sintonia com isso, os argumentos sinalizados no tópico anterior revelam que estamos em um momento decisivo na história da humanidade: em que medida, mediante a experiência da pandemia, teremos capacidade de reconfigurar nossos modos de ser, pensar e agir? O que faremos com a experiência do que nos aconteceu em 2020 e invade 2021 sem previsão de término, muito menos, de “final feliz” para muitos e muitas? Esta experiência teria o poder de reconfigurar o sentido de ser humano? Ou está em curso um movimento radical de individualização da existência humana, pautada pelo egoísmo e pela renúncia ao mundo comum? Neste caso, como sustentar a vida em sociedade se desejos individuais (ou de pequenos grupos) se sobrepõem a nossa responsabilidade coletiva de viver e conviver com os outros? Ora, concordando com Ordine, não podemos esquecer que, no distanciamento social imposto pela pandemia, podemos perceber de muitas formas, a necessidade de estar juntos, o que evidencia que nossa condição humana não se funda no solipsismo.

Assim, Ordine (2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018.a) nos convida a uma profunda reflexão crítica acerca de nossos modos de ser, pensar e agir que vem predominando nas últimas décadas, especialmente à luz do que vivemos nestes tempos difíceis. Da mesma forma, cabe pensar com profundidade sobre os sentidos de utilidade e inutilidade com a qual trabalhamos na contemporaneidade, como forma de ressignificar seu uso e seus desdobramentos na vida cotidiana, tanto na escola como na universidade, especialmente em campos do conhecimento como a EF. Concordando com Ordine (2018), se útil é tudo aquilo que nos ajuda a ser melhor, vale a pena investir na natureza inútil, gratuita e desinteressada do conhecimento como uma potência que pode nos tornar mais livres, mais tolerantes e mais humanos (a autêntica essência da vida coincide com o bom, não com o útil).

Por outro lado, quando a ideia de que somente são importantes conhecimentos úteis (que promovam lucro) coloniza a vida com radicalidade, nos afastamos de dimensões humanas estranhas aos objetivos intrínsecos a esta lógica. E isso impacta decisivamente na forma de pensar a lógica “oficial” da formação escolar e o sentido de campos do conhecimento como a EF, que, via de regra, se voltam para discursos, temas e conteúdos que comprovem sua “serventia” - campos em fase de afirmação política, pedagógica e epistemológica, ficam ainda mais vulneráveis a esta lógica.

Como exemplo desta condição vulnerável, o trabalho de Rufino e Darido (2013RUFINO, Luiz Gustavo Bonatto; DARIDO, Suraya Cristina. Educação Física no ensino médio: desvendando processos de desvalorização a partir da transferência das aulas para academias de ginástica. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 18.; CONGRESSO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 5. Anais...Brasília, DF, 2013. Disponível em: http://cbce.tempsite.ws/congressos/index.php/conbrace2013/5conice/paper/view/5361. Acesso: 01 jul. 2021.
http://cbce.tempsite.ws/congressos/index...
) analisa a transferência das aulas de EF no Ensino Médio em algumas escolas particulares para academias de ginástica (prática muito comum em vários contextos escolares brasileiros17 17 Nessa lógica, o aluno substitui a aula de EF escolar pela prática de atividades de academia - por exemplo, duas ou três sessões semanais de musculação ou ginástica. Neste caso, a EF se coloca na condição de invisível na já difícil realidade deste campo no ensino médio das escolas brasileiras. ). Os autores concluem afirmando que o processo de transferência das aulas para contextos não escolares corrobora com a desvalorização da EF nesse nível de ensino. De nossa parte, entendemos que isso evidencia ainda mais o caráter instrumental e utilitário atribuído à EF escolar, reduzindo-a a práticas de atividades físicas com finalidades restritas e individualizadas - neste caso, não caberia “perder tempo” com a EF escolar e sua diversidade de possibilidades.

Argumentos desta ordem passam a ser um problema, na medida em que instituem e definem a EF exclusivamente a partir de sua dimensão individualista e utilitária, evidenciando sua condição subalterna no contexto escolar, desconsiderando a enorme potência que ela possui na formação de uma cultura para a solidariedade e para o tempo do inútil. Conhecimentos sobre jogo, dança, esporte, ginástica, entre outros, representam uma potência que permite qualificar distintas dimensões humanas, tendo em vista o tempo de não trabalho, de não produção, um tempo que se constitui como rica oportunidade de qualificar nossas experiências de mundo pelo cultivo de saberes que envolvam as mais distintas dimensões do humano dos seres18 18 Certamente, cabe referenciar as contribuições do Grupo de Trabalho Temático (GTT) “Lazer e sociedade” do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE). Ver sobre a produção do GTT, no Volume 10 da Coleção “Ciências do Esporte, Educação Física e Produção do Conhecimento em 40 Anos de CBCE”, intitulado “Lazer e sociedade”. Disponível: http://www.cbce.org.br/upload/biblioteca/Lazer%20e%20sociedade%20(Ci%C3%AAncias%20do%20esporte,%20educa%C3%A7%C3%A3o%20f%C3%ADsica%20e%20produ%C3%A7%C3%A3o%20do%20conhecimento%20em%2040%20anos%20de%20CBCE%20-%20%20v.%2010).pdf. Acesso em: 12 mar. 2021. .

Do contrário, pressupor que uma educação utilitária e imediatista, sem o amparo de uma formação cultural mais ampla, tal como se refere Dalbosco (2013DALBOSCO, Cláudio Almir. Ética e ciência na educação superior: formação para a cidadania democrática. In: REZER, Ricardo. Ética e ciência na Educação Superior. Chapecó: Argos, 2013. p. 39-66.), seria suficiente para dar conta dos problemas típicos de uma sociedade plural e interconectada, mormente em crise, é se recusar a ver a profundidade complexa que constitui as mais diversas formas da vida humana e social. Isso nos exige refletir continuamente sobre o sentido da formação utilitária oferecida às novas gerações, bem como, sobre nossas responsabilidades como professores em nosso tempo.

Por tais elementos, cabe evidenciar conhecimentos que no contemporâneo são compreendidos como “inúteis”, o que permitiria enfrentar o aparente “menosprezo” a campos do conhecimento como EF, literatura, música, artes, entre outros. Campos como estes permitem qualificar a existência humana através, exatamente, de sua inutilidade. Inclusive, não é de se estranhar que estes saberes, especialmente em tempos de pandemia, tornam situações de isolamento ou distanciamento social menos penosas, mais saudáveis e culturalmente mais diversificadas, pois nos permitem o cultivo de nossas faculdades mais elevadas, o que devemos perceber como um direito ao cultivo de nossa própria humanidade. Neste caso, tomando como referência uma questão expressa em um dos pareceres que analisaram este ensaio, estaria a pandemia, demonstrando com radicalidade, a utilidade dos saberes inúteis?

Concordando com Ordine (2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018.), se faz necessário aprender radicalmente a cultivar a inutilidade como fonte de nossa humanidade, e acrescentamos, especialmente em tempos de crise, tal como a que vivemos. E não podemos esquecer que nossa humanidade é também corporal - neste aspecto, percebemos um ponto cego na obra de Ordine, que abre horizontes muito promissores para a articulação entre sua obra e a EF brasileira.

A EF tem uma função terapêutica, sustentada pela possibilidade do auto-conhecimento como potência para exercitar nossa capacidade de diálogo com os outros e com o mundo. Neste caso, ao invés da negação do outro, característica inerente ao (ultra) neoliberalismo em voga, a consideração do outro passa a representar condição fundante para nossa própria condição de ser humano.

Na EF brasileira, campo que trata diretamente da/com a cultura corporal de movimento, já anos de 1990, obras como as dos professores Elenor Kunz (1991KUNZ, Elenor. Educação Física: ensino e mudanças. Ijuí: Unijuí, 1991.), Valter Bracht (1992BRACHT, Valter. Educação Física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992.), Silvino Santin (1993SANTIN, Silvino. Educação Física: outros caminhos. Porto Alegre: EST, 1993.), entre outros, sinalizavam que a utilidade da EF advém do seu caráter inútil, o que a coloca próxima de uma arte ou de uma sabedoria do bem viver19 19 Conforme Estermann (apud ALCÂNTARA e SAMPAIO, 2017), o conceito do Bem Viver, Bien Vivir ou Vivier Bien surge na região andina da América do Sul - do sul da Venezuela ao norte da Argentina - e se deriva, por um lado, do Quechua (runa simi) e, por outro, do Aimara (aymará jaya mara aru), que são idiomas pré-hispânicos da região andina. Outras línguas indígenas, como os tupí-guaranis, também mencionam esse termo. Muito mais que um slogan, o conceito representa uma cosmovisão construída historicamente pelos povos altiplanos dos Andes, que se tornaram invisíveis frente ao colonialismo, patriarcalismo e capitalismo. Corroborando com os argumentos apresentados neste ensaio, o equatoriano Alberto Acosta considera esta lógica como sendo a única via que de fato pode se contrapor ao capitalismo (ACOSTA, 2016). Na proposição do autor, representa uma perspectiva de mundo fundada em diferentes povos que se organizam a partir da ideia fundante de coletividade (a pandemia escancarou a necessidade de aprendermos a viver e conviver juntos, portanto, escancarou a interdependência dos seres humanos entre si e com a natureza). Não teremos como discorrer mais sobre o tema, em virtude do espaço, mas Bem Viver pode ser entendido, resumidamente, como uma possibilidade de pensar a produção da vida como ato coletivo, sistêmico, interdependente e com vistas ao bem comum. . Ou seja, desenvolver dimensões humanas para além do tempo (útil) de produção, alça a EF, enquanto campo do conhecimento, a um patamar de significativa importância, pois reafirma sua responsabilidade de ensinar a qualificar a compreensão de diferentes práticas corporais que podem ser cultivadas ao longo da vida (ginástica, dança, jogo, entre outros) no “tempo do inútil”.

Concordando os argumentos de Bracht (1992BRACHT, Valter. Educação Física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 1992.), não é por que o trabalho é importante que a EF é importante, mas sim, nas palavras dele, “[...] porque o lazer é importante, que a EF é importante” (p. 51). Há quase 30 anos atrás, ele já afirmava que “A utilidade da EF advém de seu caráter inútil” (p. 51). E o autor segue perguntando: como podemos justificar uma prática pedagógica na escola tendo como referência básica o tempo de não trabalho, em uma sociedade que nem sequer concretizou o acesso ao trabalho?20 20 Na lógica ora expressa, cabe destacar que o trabalho é fonte de dignidade da vida humana, dimensão necessária para um bem viver. Por isso, nossa crítica se refere a centralidade/exclusividade do trabalho na vida humana com vistas ao lucro e consumo. Assim, o problema não é o trabalho, mas sua alienação, que conduz à colonização de outras dimensões da vida por ele - isso se torna mais grave ainda quando assume mote quase exclusivo na formação escolar. Por outro lado, o acesso ao trabalho digno representa um dos grandes problemas de nosso tempo. No momento em que escrevo esta nota, no Brasil há mais de 14 milhões de desempregados, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php. Acesso em: 21 maio 2021. Nessa lógica, Bracht afirma sobre a necessidade de pensar uma mudança paradigmática na EF de forma articulada a transformação da própria sociedade brasileira. Seus argumentos parecem encaixar de forma muito pertinente ao momento que vivemos, mesmo sendo construídos por outros referenciais teóricos, distintos daqueles constituintes deste ensaio.

Para Santin (1993SANTIN, Silvino. Educação Física: outros caminhos. Porto Alegre: EST, 1993.), a EF reclama por educadores que falem a linguagem da corporeidade humana, para além do trabalho produtivo. Para ele, “[...] cada um de nós precisa conhecer-se a si mesmo através do aprendizado da leitura do livro que nós mesmos somos. Este livro é o próprio corpo” (p. 72). E ser corpo não se constitui apenas de funções vitais, mas também de situações nas quais a produção com vistas ao lucro não se coloca de forma predominante. Viver uma peça musical com o corpo através da dança transcende a necessidade de obter algum tipo de lucro, ou ainda, de expressar a utilidade de tal experiência por meio de métricas. Mais do que isso, significa poder apreciar corporalmente o jogo estético a que nos deixamos submeter pela experiência da música e da dança, sem vistas a um fim imediato.

E a EF, como campo do conhecimento, se caracteriza como uma possibilidade de ensinar e aprender sobre práticas corporais, tais como a dança, por exemplo, tendo em vista o usufruto da cultura corporal de movimento produzida ao longo da história da humanidade como uma potencialidade para um bem viver, para além da especificidade utilitária que também a habita. Neste caso, a EF seria uma possibilidade de diálogo do ser humano consigo mesmo e com o mundo, por meio de práticas corporais, entendendo-as como experiências de ser-no-mundo.

Certamente, uma interpretação como essa não “fecha” a discussão (nem temos tal pretensão), mas pode nos permitir manter em movimento possibilidades de pensamento sobre o campo no qual trabalhamos em nosso cotidiano, especialmente se considerarmos os desdobramentos de tal concepção de EF para a formação escolar. Ou seja, mais do que compensação das agruras do mundo do trabalho, a EF escolar se trata de um espaço e tempo que se responsabiliza pela formação de uma cultura que qualifique nosso “tempo do inútil”.

Um reconhecimento desta ordem perpassa pela valorização dos saberes do corpo (para além da noção de corpo como ferramenta). Se sabemos razoavelmente como aprendemos cognitivamente, ainda temos um longo caminho na direção de compreender melhor e valorizar um saber corporal, que se constitui e se institui como um fenômeno que permite cultivar nossa humanidade. Para isso, se faz necessário reconhecer o saber corporal como saber constituinte do humano, para além da eficiência (no sentido stricto do termo) e da utilidade. Apreciar e vivenciar práticas corporais de forma crítica (assim como a arte, a música, a literatura, entre outros) possibilitaria um alargamento das possiblidades de experiência de mundo, com desdobramentos significativos em nossos modos de ser, pensar e agir. De forma análoga a Ordine (2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018.a), quando se refere aos clássicos da literatura, a EF permitiria uma contribuição significativa na direção de um melhor viver, exatamente em função de sua inutilidade.

Talvez aí resida uma potência da EF escolar que potencializaria uma virada paradigmática em seu interior: assumir radicalmente sua condição de campo do conhecimento que também forma para o tempo do inútil (para além do Chronos), como forma de resistência frente a barbárie do lucro, possibilitando compreender e experimentar a cultura corporal de movimento como dimensão inerente a um bem viver, ao longo da vida, para além da lógica do utilitarismo rasteiro.

Se cabe considerar que a EF pode potencializar a funcionalidade corporal humana (o que não é, em si, um problema, pelo contrário, é outra de suas possibilidades), cabe reconhecer também, que as possibilidades da experiência corporal como possibilidade de vida são para muito além da utilidade, pois representa a possibilidade de aquisição e produção de conhecimentos inúteis e não quantificáveis sobre nós mesmos e nossa relação para com os outros e com o mundo. Desta forma, teríamos maior facilidade em reconhecer a utilidade inútil da EF escolar como característica teleológica do campo, com desdobramentos significativos para as distintas epistemologias que transitam em seu interior, bem como, para a formação universitária.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes de se tornar ciência, antes de constituir-se em profissão liberal, a Educação Física é uma sabedoria de viver, uma exigência pessoal e existencial, isto é, uma tarefa educativa (SANTIN, 1993SANTIN, Silvino. Educação Física: outros caminhos. Porto Alegre: EST, 1993., p. 70).

Em tempos de crise, vivemos uma explosão de paradoxos de alta complexidade. Se percebemos a necessidade de saberes considerados úteis como possibilidades de produção de soluções para os desafios do mundo, também vemos emergir o cultivo da ignorância como motor de muitos discursos. Um clima cultural desta ordem, sustentado pela tensão e pela disputa, solapa ainda mais a possibilidade de considerar a inutilidade do conhecimento como uma forma de resistência a barbárie do utilitarismo de nosso tempo, em uma lógica que banaliza a vida, privatiza o lucro e socializa as perdas.

Não desconsideramos, tal como evidenciado ao longo do texto, a necessidade de saberes úteis ao longo de um processo de formação, porém, questionamos a exclusividade destes saberes. Em tempos de pedagogia das competências, a inutilidade do conhecimento representa uma postura política frente ao risco da produção da invisibilidade de saberes necessários a um bem viver - só o saber pode desafiar as leis de mercado. Para Ordine (2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018.), o inútil, aparentemente silencioso e inofensivo, representa um perigo pelo simples fato de existir, tendo em vista seu caráter de afronta à lógica dominante. Viver em sociedade exige saberes (para além da produção e do lucro) para o cultivo da convivência, saberes que residem nos saberes inúteis que também constituem a produção da vida em sociedade.

Ao levar tal discussão para o campo da EF, cabe levar a sério o pensamento de Santin expresso na epígrafe, que permitem pensar que a EF, antes do saber científico, do trabalho produtivo, tem um compromisso com a complexidade da vida, com a boa vida, no sentido aristotélico da expressão. Assim sendo, os argumentos apresentados permitem compreender melhor a paradoxal finalidade imprescindível da EF escolar: tratar a cultura corporal de movimento como potência para a formação de uma cultura para o tempo do inútil como possibilidade inerente a um bem viver.

Nessa lógica, aprender sobre jogar, correr, dançar, conhecer o próprio corpo, conviver, entre outros, representam conhecimentos fundamentais para qualificar as possibilidades de um bem viver e conviver, para além do lucro e da utilidade. E isso pode ser contemplado, potencializado, sentido e vivido na EF escolar, por mais óbvio que possa parecer. Nietzsche, na “Ciência Gaia” (2001NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.), já afirmava sobre o perigo do óbvio - para ele, o óbvio é o mais difícil de ser conhecido, pois, aparentemente, reside no campo do “já sabido” (e, via de regra, sobre o “já sabido”, paramos de pensar).

Tais argumentos poderiam se constituir como referenciais introdutórios para uma discussão mais alargada no campo da EF (na formação escolar e universitária), o que representaria uma “virada” na constituição do campo enquanto disciplina escolar, campo científico e/ou campo de formação e atuação profissional. Em tempos de obscurantismos e utilitarismos rasteiros, reconhecer a importância da EF como campo que possui responsabilidades significativas para a formação de uma cultura para o “tempo do inútil” representaria uma virada paradigmática para o campo, especialmente nos contextos escolar e universitário, com desdobramentos significativos para outros contextos de intervenção do próprio campo.

Mas, se mesmo com os argumentos apresentados, a EF deve se constituir como um campo do conhecimento útil, cabe parafrasear o romeno Eugéne Ionesco (1909-1994), citado por Ordine (2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018.): se for absolutamente necessário que a EF sirva para alguma coisa (Ionesco se refere a Arte), seria também para ensinar as pessoas que existem dimensões da vida que não tem utilidade e, que por isso mesmo, são indispensáveis que existam.

Finalizando, é no “tempo do inútil” que se encontra o “homo-ludens”. É no “tempo do inútil” que podemos radicalizar nosso encontro com o lúdico, uma linguagem que nos torna de fato, seres humanos. É pelo lúdico que o homem se conhece, conhece o outro e conhece o mundo. Portanto, o “tempo do inútil”, constituiu-se como “o tempo mais útil” de todos os tempos para os seres humanos (homo-mito, homo-cogito, homo-faber, homo-politicus, homo-economicos, homo-tecnicus etc.). É este tempo que faz a síntese do humano e abre portas ao passado, ao presente e ao futuro; onde se encontra a morada originária da imaginação, do sonho, e da utopia; onde os poetas e escritores se dizem e se mostram. É este tempo (Kairós e Aeon) que não poderia ser esquecido na formação, tanto na escola como na universidade…

REFERÊNCIAS

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    » http://dx.doi.org/10.5380/dma.v40i0.48566
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  • BRASIL. Resolução CNE/CP Nº 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Brasília, CNE/MEC, 2019.
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    » http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/A%20encruzilhada%20da%20Universidade%20Europeia_Set11.pdf
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • 1
    Este trabalho tem por base o resumo expandido publicado nos Anais do CONBRACE 2019. Disponível em: http://congressos.cbce.org.br/index.php/conbrace2019/8conice/paper/viewFile/12320/6521. Acesso em: 27 jun. 2021.
  • 2
    Não desconsideramos que este processo se coloca de forma intensa também no contexto da formação universitária. Porém, neste ensaio, tomaremos como referência de análise a formação escolar, especialmente no que tange ao campo da EF.
  • 3
    Kuhn e Camilo Cunha (2021KUHN, Roselaine; CAMILO CUNHA, António. A criança e o brincar. Tempo e temporalidades (im) possíveis. Santo Tirso: Whitebooks, 2021.( Coleção Educação e Movimento Humano).), ao recuar a antiga Grécia para refletir acerca do tempo na cultura ocidental, vão referir que ainda antes de emprestar análises racionais (Logos) os gregos antigos convocaram os mitos para dar um entendimento ao tempo. Para tal, fizeram elevar três representações: Chronos, Kairós e Aeon. Chronos se referia ao tempo cronológico, sequencial, linear que poderia ser medido. Este surge no princípio dos tempos, formado por si mesmo e que designa a continuidade de um tempo sucessivo. O tempo é, nessa representação, a soma do passado, presente e futuro e o presente é o limite entre o que já foi e não é mais (o passado) e o que ainda não foi, portanto ainda não é, mas ainda será (o futuro). Uma das representações de Chronos, retratada por Francisco de Goya (1746-1828), é a de um homem que devora o seu próprio filho (Saturno - Chronos para os Romanos - devorando um filho). Este facto inscreve-se na ideia dos antigos gregos tomarem Chronos como o criador do tempo, logo, de tudo o que existe e pudesse ser relatado e, uma vez que é impossível fugir do tempo, todos seriam mais cedo ou mais tarde vencidos ou devorados por ele. Já Kairós, por seu lado, referia-se a um momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: um tempo existencial no qual os gregos acreditavam ser necessário para enfrentar o cruel e tirano Chronos. Kairós significa medida, proporção, momento crítico, temporada, oportunidade e emerge como uma noção central, pois caracterizava um momento fugaz em que uma oportunidade se abria, devendo ser encarada com força e destreza para que o sucesso fosse alcançado. Aeon, por sua vez, é um tempo sagrado e eterno, sem uma medida precisa, o tempo da criatividade onde as horas não passam cronologicamente. Já nos usos mais antigos significava a intensidade do tempo da vida humana, um destino, uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva, mas intensiva. É também usado em teologia para descrever o "tempo de Deus", enquanto Chronos é o "tempo dos homens". Enquanto Chronos é de natureza quantitativa e objetiva, Kairós e Aeon possuem uma natureza qualitativa e subjetiva, como referência a um momento indeterminado ou a uma experiência oportuna. Estas representações mitológicas acabaram por chegar aos nossos dias através das estruturas linguísticas, corporais e simbólicas, timbradas também pela dimensão racional como representação modelar, exata, linear (Chronos), mas também como manifestação experiencial, criativa, lúdica e da intencionalidade fenomenológica (Kairós e Aeon). Será que o “tempo do inútil” tem no Kairós e no Aeon a sua expressão maior? Será que a EF conhece estas dimensões do tempo em profundidade? Um tempo do inútil que se faz útil pelo inusitado, pela criação e pelo espanto? Em tempo, são questões que ganham sentido ao longo do desenvolvimento do texto.
  • 4
    No original: [...] nessun mestiere potrebbe essere esercitato in maneira consapevole se le competenze tecniche che richiede non siano subordinate a una formazione culturale piú vasta, in grado di incoraggiare i discenti a coltivare autonomamente il loro spirito e a lasciare libero corso ala loro curiositas. Far coincidere l’essere umano esclusivamente com la sua professione sabere um erroe gravíssimo: in qualsiasi uomo c’é qualcosa di essenziale che va molto al di lá suo stesso mestiere”. (ORDINE, 2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018., p. 117-118).
  • 5
    Mais conhecido por coronavírus, o SarsCov-2 é o nome oficial do vírus causador da Covid-19, que atinge o mundo em 2020/2021, levando a um estado pandêmico de emergência de saúde pública internacional. O nome foi escolhido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para facilitar a identificação em estudos científicos e também a divulgação na imprensa, além de evitar confusões com outros vírus da mesma família.
  • 6
    Outras referências importantes, tal como a de Umberto Eco (1989ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.) também debatem a importância de ler os clássicos e a sua dimensão estruturante para o porvir. Para que servem os clássicos? Porque ler os clássicos? Um clássico nunca está acabado, nunca está fechado, está sempre aberto e pronto a ser reinterpretado. Um clássico é uma contínua inscrição hermenêutica, um local de salvação, em um eterno “de novo” como se fosse a primeira vez.
  • 7
    A máscara trouxe uma nova identidade ao corpo/rosto normal. O rosto, elemento distintivo e identitário, passou a ser um elemento quase interdito, fazendo com que muitas pessoas se afastem: a máscara (esta máscara) trouxe com ela o medo. A máscara (do/com a Covid) vai dizer que há um perigo eminente, que o corpo pode adoecer e neste envolvimento as relações sociais dadas pelo rosto, pela presença, pela hospitalidade, pela fala e pela linguagem entram/ficam em suspensão. O rosto, deixou assim, de ser uma expressão e uma narrativa de identidade para sinalizar uma situação de risco. O rosto coberto vai determinar um eclipse da identidade e uma elevação maior da angústia existencial. Para além do real (entidade anatómica) corporal e relacional, perde-se (fica entre parênteses) também a dimensão simbólica do corpo/rosto. O simbólico como uma outra linguagem da existência humana fica também escondido. Certamente, esta dimensão do corpo/rosto/máscara pode ser objeto de inúmeras reflexões. Na esteira de Sohn (2013SOHN, Anne-Marie. O corpo sexuado. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (org). História do corpo. Lisboa: Círculo de Leitores, 2013. v. 5.), Garcia e Costa (2020), entre outros, a erosão do pudor que continuamente temos assistido, recua de forma insólita.
  • 8
    No final do mês de maio 2021, mais de 3.400.000 pessoas morreram no mundo todo em virtude do SarsCov-2. No Brasil, mais de 440.000 pessoas já morreram até o fechamento deste ensaio. Reduzir estes números avassaladores somente será possível com a vacinação em escala planetária, mas também, com o exercício da solidariedade e da responsabilidade individual em nome da vida coletiva. Dados disponíveis em https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019. Acesso em: 21 maio 2021.
  • 9
    Terraplanismo, revisionismos ou negacionismos (da pandemia etc.), entre outras narrativas edificadas com base na desconstrução irresponsável, bem como, na crença e no desejo de poder, se manifestam com a pretensão de “redefinir” a história ou a realidade, com vistas a construir uma base de sustentação para projetos político-culturais (no caso em tela, de ordem liberal e conservadora). Nessa esteira, percebemos o crescimento da pós-verdade, expressão utilizada nos últimos anos, que corresponde a narrativas em que fatos objetivos têm menos importância do que paixões, interesses, crenças pessoais e o desejo de estar certo. Se fatos são construções históricas, toda narrativa deve se assentar em critérios de justificação dotados de sentido no mundo comum. Sem isso, não passam de embustes.
  • 10
    Como consequência, percebemos um empobrecimento da própria expectativa dos estudantes com relação a formação. Por exemplo, o mesmo estudante de ensino médio que passa um final de semana “maratonando” sua série preferida, demonstra dificuldades severas de manter a atenção em uma aula que exija a produção de longas cadeias de raciocínio, leitura e interpretação de textos. Da mesma forma, um jovem que se manifesta regularmente e com frequência nas redes sociais, pode “estar invisível” nas aulas. Ou ainda, professores que, na tentativa de “ganhar público” ou manter seu emprego (especialmente no segmento privado), transformam suas aulas em jogos interativos e superficiais, pautados pelo entretenimento.
  • 11
    Se tomarmos como referência os textos da Base Nacional Curricular Comum (BRASIL, 2018), da Resolução Nº 6/2018 (BRASIL, 2018a), e da Resolução CNE/CP Nº 2/2019 (BRASIL, 2019), o referido deslocamento fica mais evidente ainda. Tal como sinalizado por Rezer (2020REZER, Ricardo. Pedagogia das competências como princípio de organização curricular: “efeitos colaterais” para a educação superior... Revista do Centro de Educação (UFSM), v. 45, p. e20, p. 1-25, jan./dez. 2020. DOI: https://doi.org/10.5902/1984644435008
    https://doi.org/10.5902/1984644435008...
    ), entre outros, um dos problemas desta lógica se refere a ideia de conhecimento válido como conhecimento prático e útil para a resolução de problemas com vistas a uma formação utilitária. Um movimento que impacta a formação escolar e universitária de forma contundente, pois privilegia conhecimentos que deem conta desta lógica, que passam a ocupar espaço privilegiado nos currículos. Assim, conhecimentos que não se coloquem a reboque disso vêm sendo paulatinamente suprimidos ou colocados de forma periférica na formação - isso fica mais claro ao considerarmos o status de disciplinas como EF, Música, Artes, Literatura, entre outras, no currículo escolar em nossos dias.
  • 12
    Disponível em: https://www.ipp.faud.unsj.edu.ar/nuccio-ordine-sobre-la-educacion-en-tiempos-de-pandemia/. Acesso em: 10 mar. 2021.
  • 13
    Entre tantos exemplos possíveis, a sensibilidade oportunizada por experiências com a música são extremamente necessárias para que possamos aprender sobre a sensibilidade que temos de ter ao tratar com pessoas, com a natureza, enfim, com as coisas do mundo. Da mesma forma, ao aprendermos na EF sobre cuidados com o corpo, podemos também aprender a perceber os corpos para além da ideia de “meios com vistas a fins” (recursos humanos), mas como seres importantes para nossa própria existência, seres que necessitam de cuidados. Certamente, tais exemplos não pressupõem uma relação de causa/efeito, mas são apresentados na direção de sustentar a abertura de horizontes de mundo altamente necessários, que necessitamos aprender a reconhecer e a cultivar.
  • 14
    Concordando com Ordine (2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018.a), só o ser humano pode, conscientemente, exercitar a possibilidade de usufruir de atos e conhecimentos inúteis, que não tenham pretensões exclusivas de sobrevivência ou de produção.
  • 15
    No original: Nell’universo dell’utilitarismo, infatti, un martello vale piú di uma sinfonia, um cotello piú di una poesia, una chiave inglese piú di un quadro: perché é facile capire l’efficacia di un utensile mentre é sempre piú difficíle comprendere a cosa possano servire la musica, la letteratura o l’arte. (ORDINE, 2018ORDINE, Nuccio. L´utilittà dell´inutile: Manifesto. Bompiani. Firenze: Bompiani, 2018., p. 11)
  • 16
    Ordine compreende a desertificação do espírito como sintoma e consequência de um modo de produzir a vida que vem promovendo a desumanização do humano. Tal movimento vem produzindo a invisibilidade de potencialidades humanas que não estejam vinculadas ao lucro e ao consumo. Inclusive, concordando com Ordine (2018a), só o conhecimento inútil pode desafiar as leis de mercado. Levar adiante formas de produção da vida que se atenham quase que exclusivamente ao lucro e ao consumo representa apostar na desertificação de nossa possibilidade de ser humano.
  • 17
    Nessa lógica, o aluno substitui a aula de EF escolar pela prática de atividades de academia - por exemplo, duas ou três sessões semanais de musculação ou ginástica. Neste caso, a EF se coloca na condição de invisível na já difícil realidade deste campo no ensino médio das escolas brasileiras.
  • 18
    Certamente, cabe referenciar as contribuições do Grupo de Trabalho Temático (GTT) “Lazer e sociedade” do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE). Ver sobre a produção do GTT, no Volume 10 da Coleção “Ciências do Esporte, Educação Física e Produção do Conhecimento em 40 Anos de CBCE”, intitulado “Lazer e sociedade”. Disponível: http://www.cbce.org.br/upload/biblioteca/Lazer%20e%20sociedade%20(Ci%C3%AAncias%20do%20esporte,%20educa%C3%A7%C3%A3o%20f%C3%ADsica%20e%20produ%C3%A7%C3%A3o%20do%20conhecimento%20em%2040%20anos%20de%20CBCE%20-%20%20v.%2010).pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.
  • 19
    Conforme Estermann (apud ALCÂNTARA e SAMPAIO, 2017), o conceito do Bem Viver, Bien Vivir ou Vivier Bien surge na região andina da América do Sul - do sul da Venezuela ao norte da Argentina - e se deriva, por um lado, do Quechua (runa simi) e, por outro, do Aimara (aymará jaya mara aru), que são idiomas pré-hispânicos da região andina. Outras línguas indígenas, como os tupí-guaranis, também mencionam esse termo. Muito mais que um slogan, o conceito representa uma cosmovisão construída historicamente pelos povos altiplanos dos Andes, que se tornaram invisíveis frente ao colonialismo, patriarcalismo e capitalismo. Corroborando com os argumentos apresentados neste ensaio, o equatoriano Alberto Acosta considera esta lógica como sendo a única via que de fato pode se contrapor ao capitalismo (ACOSTA, 2016ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária/Elefante, 2016.). Na proposição do autor, representa uma perspectiva de mundo fundada em diferentes povos que se organizam a partir da ideia fundante de coletividade (a pandemia escancarou a necessidade de aprendermos a viver e conviver juntos, portanto, escancarou a interdependência dos seres humanos entre si e com a natureza). Não teremos como discorrer mais sobre o tema, em virtude do espaço, mas Bem Viver pode ser entendido, resumidamente, como uma possibilidade de pensar a produção da vida como ato coletivo, sistêmico, interdependente e com vistas ao bem comum.
  • 20
    Na lógica ora expressa, cabe destacar que o trabalho é fonte de dignidade da vida humana, dimensão necessária para um bem viver. Por isso, nossa crítica se refere a centralidade/exclusividade do trabalho na vida humana com vistas ao lucro e consumo. Assim, o problema não é o trabalho, mas sua alienação, que conduz à colonização de outras dimensões da vida por ele - isso se torna mais grave ainda quando assume mote quase exclusivo na formação escolar. Por outro lado, o acesso ao trabalho digno representa um dos grandes problemas de nosso tempo. No momento em que escrevo esta nota, no Brasil há mais de 14 milhões de desempregados, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php. Acesso em: 21 maio 2021.

Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga *, Elisandro Schultz Wittizorecki *, Ivone Job *, Mauro Myskiw *, Raquel da Silveira *
* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2021
  • Aceito
    21 Jun 2021
  • Publicado
    26 Jul 2021
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