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USOS E APROPRIAÇÕES DA CAPOEIRA POR PRATICANTES POLONESES

USES AND APPROPRIATIONS OF CAPOEIRA BY POLISH PRACTITIONERS

USOS Y APROPIACIONES DE CAPOEIRA POR LOS PRACTICANTES POLACOS

Resumo:

Analisa os usos e as apropriações que os praticantes poloneses fazem da capoeira. Trata-se de uma pesquisa descritivo-interpretativa, que utiliza como fontes o grupo focal, realizado com dez capoeiristas poloneses, e a observação participante em um grupo de capoeira de Varsóvia. Verifica-se que está em curso um processo de apropriação e de ressignificação dessa manifestação cultural no país. Ao mesmo tempo em que a capoeira apresenta características singulares, provenientes das tradições locais e das particularidades dos sujeitos que as consomem, aspectos culturais contidos em sua bagagem motora e simbólica também impactam na forma de pensar e agir dos poloneses, configurando um movimento de circularidade cultural. Os poloneses se orgulham da capoeira construída nas últimas três décadas no país, que geram representações identitárias entre eles, articulando aspectos da cultura local com as tradições dessa manifestação afro-brasileira.

Palavras-chave:
Características culturais; Polônia; Construção social da identidade étnica

Abstract:

The work analyzes the uses and appropriations made of Capoeira by the Polish practitioners. It is a descriptive-interpretative research, which uses as sources the focus group, composed by 10 Polish Capoeira players (practitioners), and the participant observation in a Warsaw Capoeira group. It is ascertained the existence of an appropriation and redefinition process regarding such cultural manifestation in the country. At the same time Capoeira presents singular characteristics, deriving from local traditions and the particularities belonging to the ones who practice it, cultural aspects contained in its motor and symbolic baggage can also have an impact in the Polish people's way of thinking and acting, thus, configuring a cultural circularity movement. The Polish are proud of the Capoeira built in the last three decades in the country, which create identity representations among them, articulating local cultural aspects with the traditions present in this Afro-Brazilian manifestation.

Keywords:
Cultural characteristics; Poland; Social construction of ethnic identity

Resumen:

Analiza los usos y apropiaciones que los practicantes polacos hacen de la capoeira. Se trata de una investigación descriptiva-interpretativa, que utiliza como fuentes el grupo focal, realizado con 10 capoeiristas polacos, y la observación participante en un grupo de capoeira en Varsovia. Aseguarse de que en el país se encuentra en marcha un proceso de apropiación y redefinición de esta manifestación cultural. Al mismo tiempo la capoeira tiene características únicas, derivadas de las tradiciones locales y las particularidades de los sujetos que la consumen, los aspectos culturales contenidos en su bagaje motor y simbólico también impactan la forma de pensar y actuar de los polacos, configurando un movimiento de circularidad cultural. Los polacos están orgullosos de la capoeira construida en las últimas tres décadas en su país, que genera representaciones de identidad entre ellos, articulando aspectos de la cultura local con las tradiciones de esta manifestación afrobrasileña.

Palabras clave:
Características culturales; Polonia; Construcción social de la identidad étnica

1 INTRODUÇÃO

A difusão da capoeira no mundo é impulsionada pela crescente mobilidade dos atores de sua transmissão, bem como pelas atuais possibilidades de circulação de informações (ACETI, 2010ACETI, Monica. Ethnographie multi-située de la capoeira: de la diffusion d'une pratique "sportive" afrobrésilienne à un rituel d‟énergie interculturel, ethnographiques.org, Numéro 20 - septembre 2010 Aux frontières du sport [en ligne]. http://www.ethnographiques.org/../2010/Aceti
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). Para além do movimento de “exportação da capoeira”, em que o Brasil se configura como principal polo difusor, essa manifestação cultural vem se desenvolvendo e se consolidando em terras internacionais, ganhando contornos singulares, associados às especificidades dos contextos em que está inserida e às particularidades dos seus praticantes.

No continente europeu, registros documentais indicam que a capoeira chegou ao “velho mundo” na década de 1950, por meio de espetáculos artísticos, como algo exótico ao olhar de seus habitantes (FALCÃO, 2004FALCÃO, José Luiz Cerqueira. A práxis capoeirana: o jogo da capoeira em jogo. 2004. 393 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.). Na Polônia, especificamente, a capoeira foi introduzida na década de 1990, com o arrefecimento da “cortina de ferro” no continente, ocorrido após a queda do Muro de Berlim e a abertura do país para a economia de mercado (NASCIMENTO, 2015NASCIMENTO, Ricardo César Carvalho. Mandinga for export: a globalização da capoeira. 2015. 328 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação da Universidade Nova Lisboa, Universidade Nova Lisboa, Lisboa, 2015.).

Segundo Nascimento (2015NASCIMENTO, Ricardo César Carvalho. Mandinga for export: a globalização da capoeira. 2015. 328 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação da Universidade Nova Lisboa, Universidade Nova Lisboa, Lisboa, 2015., p. 148), foi um jovem polonês, praticante de artes marciais, que iniciou a capoeira no país: “Adam Faba, o professor ‘Sem Memória’, como é conhecido na capoeira, quem primeiro introduziu a capoeira na Polónia, no ano de 1994”. Diferentemente de muitos países, em que a capoeira foi levada por mestres brasileiros, na Polônia, a iniciativa de um jovem de Varsóvia, que de forma autodidata apropriou-se de materiais audiovisuais e impressos, demarcou o início dos trabalhos com essa manifestação cultural no país.

Assim como Certeau (2014)CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., compreendemos que a cultura só faz sentido em seus usos e que os praticantes do cotidiano não absorvem passivamente os bens culturais que lhes são ofertados. Nesse processo, as tradições se transformam no diálogo com as contingências culturais locais e pessoais, configurando os contornos polissêmicos e plurais que a capoeira assume em diferentes contextos.

Ao direcionarmos o nosso foco de análise para o local e para os indivíduos de um determinado contexto, para as suas práticas e discursos, não estamos, com isso, desconsiderando as influências estruturais mais amplas, de caráter político, econômico, social e cultural. Para Certeau (1985CERTEAU, Michel de. Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: SZMRECSANY, Maria Irene (org.). Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano: anais do encontro. São Paulo: FAU/USP, 1985. p. 1-19., p. 8), não é possível estabelecer “[...] a diferença entre o individual e o coletivo. Essencialmente pode-se dizer que não há, não pode haver, práticas estritamente individuais”. Assim, é na relação com as normas e com a ordem externamente orientada que Certeau (2014)CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. denominou de estratégias, que os indivíduos vão agindo taticamente, no sentido de fazerem valer os seus interesses, necessidades e possibilidades.

Essa relação entre estratégia e tática, extraída do modelo polemológico, subverte a lógica passiva da reprodução cultural e busca compreender, por meio das microrresistências cotidianas, as formas particulares de apropriação e de ressignificação cultural. Portanto, entre a mensagem emitida pelo enunciador e as práticas de apropriação dos sujeitos, há uma estética da recepção, que denota formas peculiares e contextuais de produção cultural. Essas formas singulares foram denominadas por Certeau (2014)CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014. de consumo produtivo.

Corroborando essa ideia, Ginzburg (2006GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 20), ao analisar as relações entre estruturas sociais e os indivíduos, utiliza a metáfora da jaula flexível para afirmar que as pessoas exercem uma liberdade condicionada: “Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes — uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um […]”. Portanto, mesmo sujeito ao peso dos condicionantes socioculturais, os praticantes do cotidiano encontram possibilidades para uma relativa autonomia e ações autorais, que demarcam as suas agências ao se relacionarem com a cultura.

Este estudo está inserido em um projeto de pesquisa mais amplo, que busca compreender o processo de internacionalização da capoeira a partir das representações de seus praticantes na Argentina, na Polônia e na Itália. Em estudo anterior (LOUREIRO; MARTINS; MELLO, 2021LOUREIRO, Fábio Luiz; MARTINS, Rodrigo Lema Del Rio; MELLO, André da Silva. A internacionalização da capoeira: o consumo produtivo por praticantes argentinos. Confluências Culturais, v. 10, n. 1, p. 108-120, jan./mar. 2021. DOI: 10.21726/rcc.v10i1.804.
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), verificamos que as relações que os capoeiristas argentinos estabelecem com a capoeira estão demarcadas, sobretudo, pela valorização das relações interpessoais e pela busca de um saber-objeto (CHARLOT, 2000CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.), centrado nos fundamentos históricos e nas tradições dessa manifestação cultural.

Diferentemente da Argentina, país fronteiriço com o Brasil, a Polônia apresenta trocas culturais mais restritas com o nosso país, e o próprio movimento de inserção da capoeira em solo polonês ocorreu de forma distinta, como salienta Nascimento (2015)NASCIMENTO, Ricardo César Carvalho. Mandinga for export: a globalização da capoeira. 2015. 328 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação da Universidade Nova Lisboa, Universidade Nova Lisboa, Lisboa, 2015.. Diante desses fatos, indagamos: como os sujeitos de uma cultura tão distinta do Brasil se apropriam da capoeira? De que forma essa manifestação cultural dialoga com os traços culturais locais e pessoais? Essas indagações orientaram a nossa investigação, que tem como objetivo analisar os usos e as apropriações que os praticantes poloneses fazem da capoeira.

2 METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter descritivo-interpretativa. Para Oliveira (2011OLIVEIRA, Maxwell Ferreira. Metodologia científica: um manual para a realização de pesquisas em administração. Catalão/GO: UFG, 2011., p. 11), esse tipo de pesquisa “[…] tem como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno. São incluídas neste grupo as pesquisas que têm por objetivo levantar as opiniões, atitudes e crenças de uma população”.

Participaram da pesquisa dez capoeiristas poloneses, todos pertencentes ao Grupo de Capoeira “Brasil-Polônia”,1 1 Devido as questões éticas da pesquisa, adotamos nomes fictícios para o Grupo e para os mestres/professores. que exerce atividades em Varsóvia há duas décadas. Atualmente, as atividades são desenvolvidas por mestres brasileiros e professores poloneses formados pelo próprio Grupo, que se caracterizam pelo trabalho educativo com a capoeira, utilizando-a como instrumento de emancipação pessoal e social, por meio da valorização cultural.

Utilizamos como critérios de inclusão a maioridade legal (acima de 18 anos) e o tempo mínimo de um ano e seis meses de prática da capoeira. Todos os participantes disponibilizaram-se a colaborar de forma voluntária e se enquadravam nos critérios de inclusão. O Quadro 1 apresenta características gerais dos participantes:

Quadro 1
- Características dos participantes.

Os participantes possuem uma média de 9,2 anos de experiência com a prática da capoeira e são, majoritariamente, pertencentes ao gênero feminino (80%). A média de experiência é relativamente longa, o que nos leva a deduzir que os participantes tiveram vivências diversificadas com essa manifestação cultural. Já a média etária é de 29,4 anos e metade dos participantes (50%) já veio ao Brasil praticar a capoeira e aprender o português, sinalizando o interesse deles em aprofundar os conhecimentos sobre essa manifestação afro-brasileira.

No processo de produção dos dados, utilizamos a técnica do grupo focal. Nessa técnica, o fluxo comunicativo tem uma sinergia própria, com a mínima interferência do mediador, que só intervém para lançar os temas geradores e/ou para reaproximar a conversa ao objeto de estudo, quando percebe que ela está se afastando dele. De acordo com Gatti (2012GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e humanas. Brasília: Liber Livro, 2012., p. 7), os participantes do grupo focal: “[…] devem ter alguma vivência com o tema a ser discutido, de tal modo que a sua participação possa trazer elementos ancorados em suas experiências cotidianas”.

O grupo focal foi realizado na Escola Médica Superior, em Varsóvia, local onde são realizadas as aulas de capoeira do Grupo “Brasil-Polônia”. O encontro ocorreu no dia 12 de junho de 2018 e teve a duração de, aproximadamente, duas horas. O grupo focal ocorreu com ajuda de uma intérprete e tradutora, os registros foram efetuados na língua vernácula. Posteriormente, os dados foram transcritos e traduzidos por essa profissional.

Em caráter complementar ao grupo focal, realizamos uma observação participante de 4 a 12 de junho de 2018. Nesse período, participamos de diversas ações do Grupo “Brasil-Polônia”, como aulas de capoeira, curso de formação e batismo/graduação, além de participarmos de relações informais, estabelecidas nos momentos de lazer, que permitiu identificarmos algumas características culturais e as dinâmicas nas interações pessoais. Os dados produzidos na observação participante foram registrados em diário de campo. A Ilustração 1 apresenta o evento de batismo de que participamos com o referido Grupo:

Ilustração 1
Roda de batismo.

Recorremos à Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.), que nos auxiliou a identificar a recorrência e a frequência dos termos utilizados pelos participantes e a agrupá-los pelas relações que estabelecem entre si. Ressaltamos que esse método de análise, de caráter estrutural, não se sobrepôs às singularidades das falas de cada sujeito, que foram reconhecidas e valorizadas na interpretação dos dados. Nesse sentido, o caminho percorrido no processo interpretativo partiu de aspectos mais gerais presentes nas falas dos participantes até chegar às particularidades de cada narrativa, indicando os usos e as apropriações que os praticantes poloneses fazem da capoeira.

A interpretação dos dados foi mediada por conceitos de autores vinculados à História Cultural: Michel de Certeau, Carlo Ginzburg e Roger Chartier. Embora o nosso interesse não seja historiográfico, esses autores fornecem uma chave de interpretação cultural que reconhece e valoriza as produções culturais do homem (e da mulher) ordinário, rechaçando, dessa forma, a ideia de reprodução cultural.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO DOS DADOS

Submetemos os dados ao processo de codificação (BARDIN, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.). Após a organização, classificação e agregação, buscamos sistematizar os dados, em que os elementos constitutivos formaram um conjunto por diferenciação e, em seguida, por reagrupamento segundo o gênero, em razão das características comuns desses elementos. A Tabela 1 demonstra o processo de codificação e de agrupamento dos termos, de acordo com as relações que estabelecem entre si nas narrativas dos participantes:

Tabela 1
- Contagem frequencial das palavras e agregação.

O primeiro conjunto de palavras da Tabela 1 (treino, aula, movimento, acrobacia, música, roda, ritmo), que aparece com maior frequência nas narrativas dos participantes da pesquisa, denota que os praticantes poloneses compreendem a capoeira em sua complexidade motora, rítmica, histórica e cultural, como evidenciam as seguintes narrativas:

Eu vou falar, para mim o que dá mais valor na capoeira é aquela parte que cada pessoa, qualquer pessoa que seja, criança, adulto, não sei, magro, gordo, cada pessoa pode ser boa numa parte da capoeira, que tem tantas coisas na capoeira música, história, atividade física (Capoeirista 1).

[…] gosto do ritual que existe na capoeira, porque a bateria e a roda elas criam uma ordem dentro desse mundo bagunçado em que nós vivemos, apesar de que não tenha tanta estrutura, tanta organização, tem coisas que precisa saber para se comportar dentro da roda (Capoeirista 2).

[…] dentro da capoeira tem tantas coisas e você pode escolher no que você é melhor ali, por exemplo, nas acrobacias, vai tocar berimbau e cada um vai ficar dentro da capoeira, mas fazendo coisas diferentes (Capoeirista 9).

As Capoeiristas 1 e 9 destacam as inúmeras possibilidades que a capoeira oferece para se relacionar com ela, considerando as limitações, os interesses e as particularidades individuais. Diferentemente de outras lutas, em que o vigor físico e a performance são imperativos, a capoeira proporciona vias alternativas de autorrealização: “[...] sou lerda como um panda, mas eu gosto mais dessa parte da musicalidade e instrumentação” (Capoeirista 9). Cantar, tocar, jogar e fazer acrobacias são possibilidades de vivenciar a capoeira e que se manifestam na roda, espaço coletivo de expressão dessa manifestação cultural. Para Araújo (2004)ARAÚJO, Rosângela Costa. Iê, viva meu Mestre: a capoeira angola da “escola pastiniana” como práxis educativas. 2004. 236 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004., a roda de capoeira é considerada o espaço para onde todas as ações se encaminham.

Para a Capoeirista 2, o ritual e a roda da capoeira criam uma ordem em um mundo caótico. Segundo Bauman (2001)BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., vivemos em tempos de modernidade liquida, em que as certezas, os valores, as identidades e as estruturas sociais são efêmeros e se dissolvem em alta velocidade, destituindo os indivíduos das referências simbólicas que os constituíram. Nesse sentido, a roda de capoeira com as suas tradições e rituais preservam um certo grau de ordem e de estabilidade, importantes para o indivíduo contemporâneo.

Entretanto, apesar das diferentes possibilidades que a capoeira oferece, traços da cultura polonesa, ligados à especialização, fazem com que alguns participantes da pesquisa foquem somente em uma dimensão nas relações que estabelecem com essa manifestação afro-brasileira. As seguintes narrativas denotam essa característica cultural dos poloneses:

‘Se você faz tudo, você não faz nada’, é um ditado polonês. Se você faz muitas coisas, nunca fará uma coisa perfeita (Capoeiristas 1).

Vivemos numa cultura de especialização, em que as pessoas estão acostumadas que têm que se especializar em algumas coisas só, então, quando na capoeira você tem que fazer muitas coisas ao mesmo tempo, muitos elementos ao mesmo tempo, as pessoas perguntaram o que fazer com isso? Elas estão acostumadas a escolher uma coisa onde você é bom e se especializar nela (Capoeirista 5).

Se você é para tudo, você é para nada (Capoeirista 10).

A especialização é uma característica das sociedades capitalistas, em busca da eficácia e da máxima produtividade. O fato de a Polônia ingressar recentemente nesse modo de produção social (fins dos anos de 1980) faz com que esse princípio esteja em voga nas representações de sua população, sobretudo, entre os mais jovens. É uma espécie de passaporte para entrada na economia de mercado. Dentre os aspectos relativos à especialização, sobressaem aqueles relacionados à performance física, voltados para a dimensão de luta ou para a realização de acrobacias. As palavras treino, movimento, acrobacia e luta, presentes nos Grupos 1 e 3 (Tabela 1), denotam a valorização dessas dimensões. As seguintes narrativas evidenciam o gosto de alguns participantes pelas acrobacias e pela luta na capoeira:

[…] o que me interessa é mais jogo competitivo, flexibilidade e uma boa forma física (Capoeirista 9).

[...] gosto dessa mistura de música com luta e acrobacia, todas essas coisas juntas. Ela também tinha experimentado em outras lutas, mas não se achava nessas outras manifestações (Capoeirista 5).

Hoje em dia a tendência é que as pessoas continuem a fazer capoeira quem gosta de pular. Chegou até estagiário muito bom de acrobacia, ele só faz isso. Naquela época não tinha Le Parkour como atividade legalizada, não tinha a luta em gaiola (Capoeirista 6).

No início o que mais chamou a atenção foram os movimentos e o condicionamento físico, as acrobacias que você faz quando faz capoeira (Capoeirista 7).

Embora os professores brasileiros trabalhem com a capoeira em suas diferentes dimensões (motora, musical, rítmica, ritualística e histórica), temos a hipótese de que os códigos da luta e das acrobacias se sobressaem por serem linguagens universais, presentes em diferentes modalidades esportivas. Como ressalta Souza (2020)SOUZA, Adriano Lopes. “É como se fosse uma olimpíada de verdade”: sentidos construídos por atletas de elite nos Jogos Olímpicos da Juventude de Buenos Aires 2018. 2020. 207 f. Tese (Doutorado em Educação Física) - Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2020. o esporte é um fenômeno de abrangência mundial, sendo praticado, estudado e ensinado em contextos diversificados. Essa hipótese é reforçada pelo Capoeirista 6, quando compara a capoeira ao Le Parkour e à luta de gaiola (MMA - Mixed Martial Arts). Nessa mesma direção, a Capoeirista 9 destaca que a capoeira pode assumir uma dinâmica mais competitiva entre os participantes do Grupo.

A influência de Faba, pioneiro da capoeira polonesa e praticante de artes marciais, pode ter contribuído para que os participantes desta pesquisa se identifiquem com a dimensão de luta dessa manifestação cultural: “[...] foi o trabalho desenvolvido por Adam Faba que permitiu fazer crescer a capoeira na Polônia, sendo que muitos grupos que hoje existem derivam do seu trabalho inicial [...]” (NASCIMENTO, 2015NASCIMENTO, Ricardo César Carvalho. Mandinga for export: a globalização da capoeira. 2015. 328 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação da Universidade Nova Lisboa, Universidade Nova Lisboa, Lisboa, 2015., p. 249).

No período em que estivemos inseridos no cotidiano do Grupo “Brasil-Polônia”, em Varsóvia, observamos e participamos das rodas de capoeira, apresentações artísticas, batismo e entrega de graduações. Nessas diferentes situações, constatamos como os praticantes poloneses apreciam e valorizam os movimentos acrobáticos, na capoeira chamados de floreios, como também a dimensão de combate dessa manifestação cultural, caracterizada por movimentos de ataque, de defesa, de contra-ataque e por golpes desequilibrantes. Notamos que as acrobacias e o combate eram as características predominantes no jogo dos poloneses, que ocorriam, geralmente, no ritmo de São Bento Grande.2 2 Toque acelerado do berimbau, que determina o “jogo dentro”, mais combativo entre os capoeiristas.

Para Certeau (2014)CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., há uma estética da recepção no consumo dos bens culturais. Os sujeitos não são passivos nesse processo, mas o transformam de acordo com os seus interesses, jogam com as cartas disponíveis na mão, agindo taticamente. Dessa forma, quando a capoeira foi apresentada aos participantes da pesquisa,3 3 Os participantes da pesquisa, em sua maioria, tiveram o primeiro contato com a capoeira por meio de apresentações artísticas ou de material audiovisual, que a representa em forma de espetacularização. pela via do entretenimento e da dança, por vezes, como algo exótico (NASCIMENTO, 2015NASCIMENTO, Ricardo César Carvalho. Mandinga for export: a globalização da capoeira. 2015. 328 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação da Universidade Nova Lisboa, Universidade Nova Lisboa, Lisboa, 2015.), por conferir um certo charme a quem a pratica, ou como uma prática física vigorosa, que faz bem à saúde (PORTO-DA-ROCHA; STREHLAU, 2016PORTO-DA-ROCHA, Mariana Bussabi; STREHLAU, Vivian Iara. Gingando na Alemanha: o significado da capoeira além do Brasil. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO DA ESPM, 11. e SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO E MARKETING, 11. [Anais...]. São Paulo, n. 107- Artigo Completo, p. 1.13, 2016.), o grupo de praticantes poloneses percebeu que havia algo a mais e que poderiam se apropriar daquela prática, aproximando-a de seus interesses como uma atividade de luta.

Essas aprendizagens relacionadas à dimensão motora possuem uma apreensão mais imediata, pois são diretamente observáveis, diferentemente, por exemplo, das questões históricas e ritualísticas, que são mediadas, em grande parte, pela linguagem verbal. Nessas situações, a língua portuguesa se configura como uma barreira para aprendizagens simbólicas mais elaboradas, como evidenciam as seguintes narrativas:

[...] eu decidi aprender português depois da minha primeira viagem para o Brasil, porque lá eu percebi que principalmente quando você procura a capoeira, capoeira às vezes como na capital do Rio de Janeiro, na Bahia, ah, tem que falar pelo menos um pouco o português [...] capoeira que também não é só movimento, mas para perguntar, uma conversa não tem como, eu me senti muito decepcionado porque eu estava pensando entrar num curso muito rápido, intensivo antes da viagem [...] (Capoeirista 6).

Para mim o esquema é o seguinte: na vida privada geral, se você quiser conhecer alguma pessoa mesmo, conhecer ela, você tem que se comunicar com ela em uma língua que você pelo menos consegue entender as duas partes. Como a gente quer pegar o ensinamento do mestre, como por exemplo, que é uma pessoa referência na capoeira para conhecer ele, entender ele, entender o pensamento e a filosofia que ele quer passar tem que falar a língua, não tem jeito. Ou ele tem que aprender a sua língua, mas você que está buscando, é você quem tem que correr atrás (Capoeirista 1).

Aspectos relacionados à língua portuguesa não são novidade em estudos que discutem a internacionalização da capoeira. As pesquisas de Bouchard (2021)BOUCHARD, Marie-Eve. Popular Brazilian Portuguese through capoeira: from local to global. Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia Etnografica, v. 25, n. 1, p. 95-116, 2021. DOI: 10.4000/etnografica.8751
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e de Falcão (2008)FALCÃO, José Luiz Cerqueira. A internacionalização da capoeira. Revista Textos do Brasil, v. 1, n. 14, p. 123-133, 2008. destacam que os praticantes estrangeiros buscam aprender o português para se apropriar de questões históricas, simbólicas e ritualísticas associadas à capoeira. Essas aprendizagens estão circunscritas, sobretudo, nos materiais impressos em língua portuguesa e na oralidade dos mestres/professores, que, geralmente, são brasileiros. Trata-se de um saber ancestral, em que os mestres são considerados os seus detentores.

Para o Mestre João Grande, um dos velhos mestres da Bahia e que ensina a capoeira em Nova Iorque desde 1990, o professor “[...] tem que falar português para ensinar capoeira. Os mestres têm que ‘ensiná’ os alunos a ‘falá’ português. Todos os alunos do Japão cantam em português” (sic). Nessa direção, Falcão (2008)FALCÃO, José Luiz Cerqueira. A internacionalização da capoeira. Revista Textos do Brasil, v. 1, n. 14, p. 123-133, 2008. afirma que o desejo dos alunos estrangeiros em aprender a língua portuguesa converge com os interesses dos mestres/professores brasileiros em mediar os seus ensinamentos por meio de sua língua nativa:

Convém destacar que o grande interesse dos estrangeiros pela capoeira se desdobra imediatamente em dois desejos: conhecer o Brasil e falar o português. Muitos mestres e professores que ministram aulas no exterior, em busca de um apelo ao mais ‘tradicional’, fazem questão de se expressarem no idioma português. Na luta por uma identidade baseada na tradição afro-brasileira, muitos professores chegam a proibir nos seus trabalhos que se façam traduções de nomes de golpes, de movimentos, de cantigas e de instrumentos de capoeira. Falar português nas aulas de capoeira é um requisito que opera como uma espécie de ‘selo de qualidade’ e vem contribuindo para abrir campos de trabalhos antes impensáveis (FALCÃO, 2008FALCÃO, José Luiz Cerqueira. A internacionalização da capoeira. Revista Textos do Brasil, v. 1, n. 14, p. 123-133, 2008., p. 126).

O desejo em aprender a falar o português também se manifesta entre os praticantes poloneses. A palavra falar, associada à língua portuguesa, foi uma das expressões mais recorrentes nas narrativas dos participantes do grupo focal (Grupo 2 da Tabela 1). Para além das narrativas, esse desejo também se revela no número de participantes que já vieram ao Brasil (cinco em um grupo de dez pessoas). Entretanto, com base em Certeau (2014)CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., ressaltamos que há diferenças significativas entre linguagem e fala, assim, mesmo que os sujeitos dominem as regras de um determinado sistema simbólico (linguagem), os problemas associados aos sentidos podem permanecer.

Para Certeau (2014)CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014., a palavra é polissêmica, por isso, a fala só pode ser compreendida em seu contexto de produção. Fora dele, corre-se o risco de interpretações equivocadas, distante dos sentidos atribuídos pelos seus enunciantes. As falas associadas ao Grupo 4 da Tabela 1 (apelido, mandinga e cultura) explicitam essas incongruências. Verificamos, nas narrativas a seguir, que as diferenças culturais entre capoeiristas brasileiros e poloneses geraram compreensões discursivas conflituosas, pois assumiram diferentes conotações para os sujeitos provenientes de contextos socioculturais distintos:

Precisa de uma definição como se fosse uma tradição mais da filosofia francesa, Descartes, precisa de uma definição. Se você bota uma definição, entendo, é luta, vou entender, é dança, agora, é luta e dança, não sei. No Brasil, fomos lá nesse curso... relaxa, relaxa e depois leva um chute. O que é isso? Mandou balançar e depois me bateu (Capoeirista 6).

Por exemplo, já ouvi algumas histórias dos apelidos que os mestres, alguns mestres colocaram com maldade mesmo, que a pessoa não entendia e até ficava feliz de ganhar um apelido que significava uma coisa não muito agradável, né?! Eu não achei muito legal, né?! Porque esse tipo de zoação destrói as pessoas (Capoeirista 1).

Para o Capoeirista 6, é difícil compreender a capoeira, simultaneamente, como luta e dança: “Se você bota uma definição, entendo, é luta, vou entender, é dança, agora, é luta e dança, não sei”. O contexto histórico e social em que a capoeira foi gerada e se desenvolveu, cuja intenção combativa precisava ser dissimulada como dança, para que a repressão sobre ela fosse amenizada, é um aspecto cultural que não é apropriado de imediato pelos praticantes estrangeiros. Soma-se a isso que, para além da dimensão de luta, a capoeira também se constituiu como um movimento de resistência simbólica e cultural, em que as dimensões musicais, religiosas, a ancestralidade e a corporeidade afrorreferenciada encontravam, na roda de capoeira, momentos de catarse e de expressão.

A gênese da capoeira, a partir de uma leitura certeauriana, pode ser compreendida como uma ação tática dos negros escravizados e dos cidadãos marginalizados. A tática é a arte do mais fraco, daquele que, em uma relação assimétrica de poder, precisa agir de maneira subversiva e astuciosa, sem explicitar a sua verdadeira intenção, para fazer valer os seus interesses e necessidades (CERTEAU, 2014CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.).

Portanto, essa oscilação entre luta e dança, essa linha tênue entre o combate e a festa, que faz parte da complexa arquitetura cultural e simbólica da capoeira, impacta nas relações comunicativas. Os poloneses interpretam as informações passadas para eles em seu sentido literal, contudo, se decepcionam quando os fatos divergem de sua compreensão: “No Brasil, fomos lá nesse curso […] relaxa, relaxa e depois levei um chute. O que é isso? Mandou balançar e depois me bateu”.

A questão do apelido, citada pela Capoeirista 1, é um outro ponto conflituoso que perpassa pelas questões culturais associadas à linguagem. Na tradição da capoeira, o apelido é um costume que remete aos primórdios dessa manifestação cultural, em um momento histórico que era necessário que os seus praticantes não fossem identificados, uma vez que ela era proibida (SOARES, 2004SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.; HOLLOWAY, 1997HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997.). Embora seja algo que precise ser superado, quando pensamos em relações que respeitem a diversidade e a diferença, no contexto da capoeira brasileira há uma certa tolerância com os apelidos jocosos.

Contudo, na Polônia é diferente, pois as relações interpessoais são mais formais. Os próprios capoeiristas poloneses reconhecem essa diferença cultural em relação ao Brasil: “[...] pra muita gente na Polônia, [o Brasil] significa um país muito mais relaxado, divertido, com muita alegria [...]” (Capoeirista 6). A zoação e a brincadeira, traços culturais brasileiros que demarcam a convivência entre os capoeiristas, quando transpostos para o contexto polonês, encontram resistência e causam fortes impactos negativos: “Porque esse tipo de zoação destrói as pessoas” (Capoeirista 1). A narrativa do Capoeirista 6 reforça o incômodo dos poloneses com alguns apelidos: “No evento de um dos mestres, eles me chamaram de ‘macaco branco’, [...] eu achei meio preconceituoso”.

A comunicação não é um desafio de mão única, relacionado ao domínio da língua portuguesa pelos poloneses. Os próprios mestres/professores brasileiros, sem conhecer as peculiaridades linguageiras dos países em que desenvolvem os seus trabalhos com a capoeira, acabam incorrendo em situações constrangedoras com os alunos, como revela a seguinte narrativa:

Eu também ganhei um apelido no parque, quando passeava na rua. Renato olhou para mim, depois falou com Aldo que eu parecia um pardal, pois, quando eu jogo a cabeça se movimenta, parece um pardal, um pássaro. Mas meu irmão e meus colegas do bairro falaram: ‘pô, o cara [o mestre] te chamou Pedal?’ Pedal aqui é homossexual [...] é uma palavra muito próxima. Então meus amigos falaram: ‘não aceite’ (Capoeirista 7).

A especialização, a formalidade nas interações pessoais e as questões relativas à fala (a língua em ação) caracterizam as relações que o grupo de capoeiristas poloneses participantes da pesquisa estabelecem com a capoeira. Essas relações, demarcadas por questões culturais típicas do contexto polonês, geram usos e apropriações peculiares da capoeira nesse país. Porém, como nos ensina Carlo Ginzburg (2006)GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., a cultura está submetida a um processo por ele denominado de circularidade cultural.

Assim, ao mesmo tempo em que a forma de consumir a capoeira está atrelada às contingências socioculturais da Polônia, por outro lado, a própria bagagem cultural que a capoeira traz em sua estrutura simbólica e motora também influencia no comportamento dos praticantes poloneses, alterando a forma de pensar e se relacionar com os outros e com a própria cultura. O Grupo 5 da Tabela 1 reúne palavras (vida, mundo, sentir, viagem) que expressam esse movimento de circularidade, como apontam as seguintes narrativas:

Que a gente aprende as coisas brasileiras além da língua, pensamento, a gente até eu acredito que a maioria que é mais próxima leva para vida privada também. Até cria problemas na vida com os poloneses às vezes, sério! Porque muda pensamento e a gente fica mais aberto para algumas coisas e os poloneses não conseguem entender, mudar esse pensamento e da vida geral né? (Capoeirista 1).

[...] vejo que tem grande improvisação, isso quer dizer que é universal para se sentir [...] muitas pessoas já viajaram ao Brasil, por isso acho que vale também para o amante da capoeira, chama atenção porque às vezes a gente faz um jogo mais competitivo, mas sempre acontece algumas coisas antes, porque tem a música (Capoeirista 6).

O pensamento muda (Capoeirista 9).

Na verdade, a minha cabeça era muito diferente, tinha crescido numa vila de poloneses, não tinha viajado, agora já viajei para o México, não tinha essa experiência. [...] dentro da minha cabeça e da minha cultura, isso tinha mais senso, agora eu já vejo outras coisas (Capoeirista 10).

Verificamos que os poloneses não absorvem passivamente a capoeira ofertada pelo Grupo “Brasil-Polônia”, que nesse país é mediada por mestres brasileiros, mas, ao mesmo tempo, aquilo que é proveniente do Brasil faz com que os seus praticantes, pelo menos entre os participantes da pesquisa, questionem os seus próprios padrões culturais. Nesse complexo amálgama, os poloneses buscam uma identidade própria para a capoeira no país, algo que demarque a sua singularidade e, de certa forma, a sua autonomia, como denotam as seguintes narrativas:

A gente pode sentir o espírito brasileiro, mas não se sentir brasileiro, não falta nada, eu nasci polonesa, eu sou polonesa (Capoeirista 1).

Quero dizer que a capoeira tem as origens afro-brasileiras, mas que agora se misturam um pouco e não tem que precisar, que a brasileira, que a polonesa, mas que ela mistura, não divide, mas ela soma as pessoas (Capoeirista 5).

A gente conversou muito e, no final dessa conversa, concordamos que em alguns casos ocorre o fenômeno que podemos chamar de capoeira polonesa. O que quer dizer que a capoeira aqui tem mais de 20 anos de história, os primeiros cursos da capoeira começaram em 94 e 95. Então, mais do que 20 anos (Capoeirista 6).

Estamos orgulhosos de ser poloneses. [...] na formatura de um dos mestres do grupo, ele estava jogando com os outros mestres, então, na bateria, não tinha um mestre brasileiro, tinha um contramestre polonês que dirigia a roda e dois instrutores brasileiros, nos berimbaus, mas quem dirigia a roda era um polonês, contramestre, formado por um mestre brasileiro. Perguntaram se estou surpreso com a situação. Um pouco (Capoeirista 7).

Tem coisas que se misturam e tem coisas que vocês irão achar bem diferente. Vocês podem aceitar ou não (Capoeirista 10).

Diante desse cenário, questionamos: é possível concebermos uma capoeira polonesa ou ela sempre será brasileira? Ao analisarmos o fenômeno de internacionalização dessa manifestação cultural por meio dos usos e das apropriações que os poloneses dela fazem, constatamos que existem movimentos discursivos que produzem uma identidade coletiva, que colabora com a compreensão de si mesmo e do outro. Conforme afirma Chartier (1990CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1990., p. 28), “[...] a caracterização das práticas discursivas como produtoras de ordenamento, de afirmação de distâncias, de divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação”.

Os dados dão indícios de que os poloneses desejam afirmar as suas próprias representações sobre a capoeira, o que, por vezes, conflita com as dos brasileiros: “Vocês podem aceitar ou não” (Capoeirista 10). As representações se configuram em determinações sociais que fornecem matrizes de classificação e ordenação do mundo real. Assim sendo, há uma “luta de representações”, uma disputa pela hegemonia discursiva, que busca produzir reconhecimento de um grupo em sua capacidade de unidade e identidade (CHARTIER, 1990CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1990.).

Esse movimento de afirmação identitária pode ser interpretado, com base em Certeau (1985)CERTEAU, Michel de. Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: SZMRECSANY, Maria Irene (org.). Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano: anais do encontro. São Paulo: FAU/USP, 1985. p. 1-19., como uma necessidade histórica de existir dos sujeitos. Indica o caráter ético das práticas, pela qual os praticantes do cotidiano exercem suas capacidades autorais, não se submetendo passivamente à ordem estabelecida. Loureiro, Martins e Mello (2021)LOUREIRO, Fábio Luiz; MARTINS, Rodrigo Lema Del Rio; MELLO, André da Silva. A internacionalização da capoeira: o consumo produtivo por praticantes argentinos. Confluências Culturais, v. 10, n. 1, p. 108-120, jan./mar. 2021. DOI: 10.21726/rcc.v10i1.804.
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observam que, por meio de um consumo produtivo, o movimento de ressignificação da capoeira e luta por afirmação identitária também está presente no contexto argentino. Para os referidos autores, “[…] o que os indivíduos fazem dos bens culturais não transforma a sua estrutura, no entanto esses bens são adequados às características culturais e pessoais dos seus consumidores” (p. 116).

Nesse sentido, os nativos estrangeiros da Polônia têm vivenciado o processo de apropriação e de ressignificação da capoeira ao longo de três décadas. Nesse percurso, essa manifestação cultural de origem afro-brasileira ganha novos contornos e passa a fazer parte da cultura polaca influenciando e sendo influenciada pelas contingências locais e pelas singularidades pessoais, evidenciando a imbricação entre contexto e indivíduo, entre estrutura e ação.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisarmos a internacionalização da capoeira, por meio dos discursos e das práticas dos poloneses, verificamos que está em curso um processo de apropriação e de ressignificação dessa manifestação cultural no país. O Grupo pesquisado está se estruturando e com as primeiras graduações de mestres e contramestres na Polônia, assim como de estagiários, vem ganhando forma e identidade própria. Isso não significa um abandono das raízes brasileiras, mas, ao mesmo tempo em que os poloneses buscam aprender a língua portuguesa para aprofundar os seus conhecimentos sobre a capoeira, em suas práticas cotidianas de consumo, eles empreendem contornos singulares a essa manifestação cultural no país.

Esse processo de consumo é influenciado pelas contingências culturais locais, sobretudo pela especialização e pela formalidade nas relações interpessoais. No que tange à especialização, sobressai a dimensão performática da prática da capoeira, seja ela pela via das acrobacias ou pela sua valorização como luta. Embora os poloneses se dediquem a aprender o português e a viajar ao Brasil para aprofundar o seu conhecimento sobre a capoeira, barreiras linguísticas, especialmente aquelas vinculadas à fala em ato, em que a mensagem só pode ser compreendida em seu contexto de produção, geram determinadas incompreensões sobre o universo da capoeira, interferindo nas interações pessoais.

Ao mesmo tempo em que a capoeira praticada por integrantes do Grupo “Brasil-Polônia” de Varsóvia apresenta características singulares, provenientes da cultura local e das particularidades dos sujeitos que a consomem, aspectos culturais contidos em sua bagagem motora e simbólica também impactam na forma de pensar e agir dos poloneses, configurando o movimento de circularidade cultural presente nas manifestações populares.

Os poloneses se orgulham da capoeira que está sendo construída no país, que gera representações identitárias entre eles, articulando aspectos da cultura local com tradições dessa cultura afro-brasileira. Não temos a pretensão de generalizar os dados encontrados neste estudo para toda a capoeira polonesa, por isso, consideramos que novos estudos são necessários, com diferentes grupos de capoeira e sujeitos, para identificarmos permanências e alteridades em relação à pesquisa aqui realizada.

  • 1
    Devido as questões éticas da pesquisa, adotamos nomes fictícios para o Grupo e para os mestres/professores.
  • 2
    Toque acelerado do berimbau, que determina o “jogo dentro”, mais combativo entre os capoeiristas.
  • 3
    Os participantes da pesquisa, em sua maioria, tiveram o primeiro contato com a capoeira por meio de apresentações artísticas ou de material audiovisual, que a representa em forma de espetacularização.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • *
    Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

ÉTICA DE PESQUISA

O projeto de pesquisa seguiu os protocolos das Resoluções 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil.

REFERÊNCIAS

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Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL
Alex Branco Fraga * * Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil. , Elisandro Schultz Wittizorecki * * Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil. , Mauro Myskiw * * Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil. , Raquel da Silveira * * Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2021
  • Aceito
    15 Fev 2022
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