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JOGOS DE TABULEIRO COMO AÇÃO TERAPÊUTICA NO TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO DE ADULTOS

BOARD GAMES AS A THERAPEUTIC ACTION IN THE CHEMOTHERAPY TREATMENT OF ADULTS

LOS JUEGOS DE MESA COMO ACCIÓN TERAPÉUTICA EN EL TRATAMIENTO DE QUIMIOTERAPIA DE ADULTOS

Resumo

O estudo investigou o uso dos jogos de tabuleiro como ação terapêutica no tratamento quimioterápico de adultos do Centro de Pesquisas Oncológicas (CEPON) de Florianópolis/SC. Trata-se de uma pesquisa de campo, descritiva e exploratória, com abordagem qualitativa dos dados. Participaram do estudo 31 pacientes adultos, bem como 14 profissionais do setor de quimioterapia do CEPON. Os dados foram obtidos por meio de observações sistemáticas, observações participantes e entrevistas semiestruturadas. Posteriormente, foram organizados no software Nvivo 10 e analisados por meio da técnica de análise de conteúdo. Os jogos de tabuleiro, explorados como ferramentas complementares no tratamento quimioterápico de adultos, facilitaram a interação entre os envolvidos. A utilização das atividades lúdicas, durante as sessões de quimioterapia, fez com que os sinais e os sintomas imediatos do tratamento fossem minimizados, substituídos por sentimentos de alegria e descontração, pilares estruturantes da ludicidade.

Palavras-chave:
Câncer; Atividades de lazer; Jogos e Brinquedos.

Abstract

The study investigated the use of board games as a therapeutic action in the chemotherapy treatment of adults at the Centro de Pesquisas Oncológicas (CEPON) in Florianópolis/SC. This is a field research, descriptive and exploratory, with a qualitative approach to the data. Thirty-one adult patients participated in the study, as well as 14 professionals from the chemotherapy sector at CEPON. Data were obtained through systematic observations, participant observations and semi-structured interviews. Subsequently, they were organized in the Nvivo 10 software and analyzed using the content analysis technique. Board games, explored as complementary tools in the chemotherapy treatment of adults, facilitated the interaction between those involved. The use of recreational activities during chemotherapy sessions minimized the signs and immediate symptoms of the treatment, replaced by feelings of joy and relaxation, structuring pillars of playfulness.

Keywords:
Cancer; Leisure activities; Play and playthings.

Resumen

El estudio investigó el uso de los juegos de mesa como acción terapéutica en el tratamiento de quimioterapia de adultos en el Centro de Investigaciones Oncológicas (CEPON) de Florianópolis (SC). Se trata de una investigación de campo, descriptiva y exploratoria, con abordaje cualitativo de los datos. En el estudio participaron 31 pacientes adultos, así como 14 profesionales del sector de quimioterapia del CEPON. Los datos se obtuvieron a través de observaciones sistemáticas, observaciones participantes y entrevistas semiestructuradas. Posteriormente, se organizaron en el software Nvivo 10 y se analizaron mediante la técnica de análisis de contenido. Los juegos de mesa, utilizados como herramientas complementarias en el tratamiento de quimioterapia de adultos, facilitaron la interacción entre los involucrados. El uso de actividades lúdicas durante las sesiones de quimioterapia minimizó los signos y síntomas inmediatos del tratamiento, que fueron reemplazados por sentimientos de alegría y relajación, pilares fundamentales de la ludicidad.

Palabras clave:
Cáncer; Actividades recreativas; Juegos e implementos de juego.

1 INTRODUÇÃO

Com origem multifatorial e reconhecida como uma das principais doenças crônico-degenerativas da humanidade, o câncer tem como característica o crescimento desordenado de células anormais, potencialmente invasivas (INCA, 2019INCA. Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA, 2019. Disponível em: https://www.inca.gov.br/publicacoes/livros/estimativa-2020-incidencia-de-cancer-no-brasil. Acesso em: 15 maio 2021.
https://www.inca.gov.br/publicacoes/livr...
). De acordo com estimativas do projeto Globocan, da Agência Internacional para Pesquisa em Câncer (IARC, do inglês International Agency for Research on Cancer), da Organização Mundial da Saúde (OMS), houve 19 milhões de novos casos de câncer e um total de 10 milhões de mortes pela doença, em todo o mundo, em 2020 (SUNG et al., 2021SUNG, Hyuna et al. Global cancer statistics 2020: GLOBOCAN estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries. CA: A Cancer Journal for Clinicians, v. 71, n. 3, p. 209-249, 2021.).

Da mesma forma que a doença, o tratamento em pacientes com câncer pode ser considerado agressivo e complexo, o qual necessita, por vezes, da associação de técnicas terapêuticas em razão do enfrentamento desta comorbidade (CARVALHO et al., 2020CARVALHO, Talita Grazielle Pires et al. O brincar durante o período de hospitalização para tratamento de câncer pediátrico. Licere, v. 23, n. 4, p. 299-319, 2020.). A quimioterapia é uma das possibilidades de tratamento para o câncer, a qual busca destruir as células doentes formadoras de um tumor, por meio de medicamentos (INCA, 2020INCA. ABC do câncer: abordagens básicas para o controle do câncer. 6. Ed. Rio de Janeiro: INCA, 2020.). Tal tratamento é realizado em centros oncológicos especializados e pode apresentar alguns efeitos colaterais como: fraqueza, náusea, diarreia, perda ou aumento de peso, feridas na boca, queda de cabelos e pelos pelo corpo, vômitos e tonturas (INCA, 2020INCA. ABC do câncer: abordagens básicas para o controle do câncer. 6. Ed. Rio de Janeiro: INCA, 2020.).

Desta maneira, torna-se fundamental colocar em evidência as demais necessidades envolvidas na vida dos pacientes oncológicos, além do tratamento tradicional, com vistas a reforçar a ideia de completude do ser biopsicossocial, preconizada pela OMS. Em 2000 foi criado o Programa Nacional de Humanização da Atenção Hospitalar, posteriormente substituído pela Política Nacional de Humanização (PNH). A PNH busca, por meio do respeito, da corresponsabilização e do cuidado, fomentar uma cultura de humanização solidária, democrática e crítica na rede hospitalar atrelada ao Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 2001BRASIL. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2001. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pnhah01.pdf. Acesso em: 10 maio 2021.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
).

Nessa perspectiva de humanização dos processos hospitalares e de cuidados com a saúde, alguns estudos têm apresentado a experiência lúdica como estratégia promissora para ressignificar tais experiências, tanto aos pacientes (crianças e adolescentes), quanto aos profissionais responsáveis pelos cuidados técnicos (MANFROI et al., 2018MANFROI, Miraíra Noal et al. Singing group: the playful present in health promotion. In: BENIWAL, Anju; JAIN, Rashmi; SPRACKLEN, Karl (org.). Global leisure and the struggle for a better world. Cham: Palgrave Macmillan, 2018. p. 49-74.; WERLE et al., 2018WERLE, Verônica et al. Possibilidades lúdicas e humanizadas no contexto de atuação da Educação Física no Sistema Único de Saúde (SUS). Journal of Physical Education, v. 29, n. 1, p. e2976, 2018.; BATAGLION; MARINHO, 2016BATAGLION, Giandra Anceski; MARINHO, Alcyane. Familiares de crianças com deficiência: percepções sobre atividades lúdicas na reabilitação. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 10, p. 3101-3110, 2016.; LIMA; SANTOS, 2015LIMA, Kálya Yasmine Nunes; SANTOS, Viviane Euzébia. O lúdico como estratégia no cuidado à criança com câncer. Revista Gaúcha Enfermagem, v. 36, n. 20, p. 76-8, 2015.; MARQUES et al., 2016MARQUES, Elisandra et al. Lúdico no cuidado à criança e ao adolescente com câncer: perspectivas da equipe de enfermagem. Escola Anna Nery, v. 20, n. 3, p. e20160073, 2016.; MOTTA; ENUMO, 2010MOTTA, Alessandra Brunoro; ENUMO, Sônia Regina Fiorim. Intervenção psicológica lúdica para o enfrentamento da hospitalização em crianças com câncer. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 26, n. 3, p. 445-454, 2010.; CARVALHO et al., 2018CARVALHO, Talita Grazielle Pires et al. O olhar do paciente sobre o câncer infantojuvenil e sua percepção acerca de seus sentimentos e emoções diante do viodeogame ativo. Movimento, v. 24, n. 2, p. 413-426, 2018.). A partir desses estudos com crianças e adolescentes, pode-se supor que a experiência lúdica, também no contexto oncológico com adultos, seja uma possibilidade fértil para auxiliar e humanizar os processos de tratamento do câncer; uma vez que, imersos na complexa realidade da doença, tanto adultos quanto crianças apresentam necessidades que transbordam os aspectos orgânicos do corpo.

O lúdico, por sua vez, é compreendido neste estudo como um elemento constituinte do ser humano, que não se restringe à infância, com fim e significado em si mesmo, o qual pode ser observado na manifestação humana e se caracteriza pela imersão, envolta em sentimentos de alegria e de prazer (MARINHO, 2004MARINHO, Alcyane. Repensando o lúdico na vida cotidiana: atividades na natureza. In: SCHWARTZ, Gisele Maria. (org.). Dinâmica Lúdica: novos olhares. São Paulo: Manole; 2004. P. 189-204.; HUIZINGA, 2008HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.; MEIRELLES; ECKSCHMIDT; SAURA, 2016MEIRELLES, Renata; ECKSCHMIDT, Sandra; SAURA, Soraia Chung. Olhares por dentro do brincar e jogar, atualizados no corpo em movimento. In: MARIN, Elizara Carolina; GOMES-DA-SILVA, Pierre Normando (org.). Jogos tradicionais e Educação Física escolar. Curitiba: Editora CRV, 2016. p. 63-78.). Na sociedade, o lúdico pode se manifestar na cultura por meio dos jogos e brincadeiras, em seus sentidos mais amplos. Em uma pesquisa com jogos no contexto oncológico com crianças e adolescentes, Carvalho et al. (2018)CARVALHO, Talita Grazielle Pires et al. O olhar do paciente sobre o câncer infantojuvenil e sua percepção acerca de seus sentimentos e emoções diante do viodeogame ativo. Movimento, v. 24, n. 2, p. 413-426, 2018. mencionam a necessidade de estudos que explorem os aspectos socioculturais da Educação Física no âmbito da oncologia, bem como aprofundem conhecimentos sobre a utilização dos jogos como ferramenta auxiliar no tratamento do câncer.

Os jogos de tabuleiro, especificamente, apresentam-se como uma possibilidade acessível a diferentes populações e integrada a diferentes culturas (LOPES, 2013LOPES, Diogo Gilberto. Jogos de tabuleiro: estudos dos sistemas visuais. 2013. 583 f. Dissertação (Mestrado em Design de Comunicação) - Escola Superior de Artes e Design, Matosinhos, Portugal, 2013.). Pode-se questionar, portanto, se estes podem ser apropriados e utilizados como alternativa lúdica para amenizar os efeitos colaterais do tratamento quimioterápico, bem como oferecer um maior conforto para os pacientes nesse processo. Parte-se do pressuposto de que os jogos de tabuleiro podem se tornar mecanismos auxiliares no processo de enfrentamento da doença. Assim, o objetivo deste estudo foi investigar as repercussões do uso dos jogos de tabuleiro como ação terapêutica no tratamento quimioterápico de adultos do CEPON de Florianópolis/SC, a partir do olhar das pessoas envolvidas nesse contexto.

2 MÉTODOS

O estudo caracteriza-se como uma pesquisa de campo, descritiva e exploratória, com abordagem qualitativa dos dados, uma vez que foram considerados os significados das ações, sentimentos, emoções e das relações humanas. Portanto, preocupou-se com a realidade em um nível que não pode ser quantificado (GIL, 2008GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.; MINAYO, 2013MINAYO, Maria Cecilia de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.). Este delineamento se justifica pela intencionalidade da pesquisa, que investigou aspectos e percepções subjetivas de questões relacionadas à saúde.

Para tanto, os procedimentos de coleta de dados, instrumentos da pesquisa e os processos de análise foram selecionados a fim de garantir a confiança dos dados coletados. Esse cuidadoso processo de delineamento metodológico, com respaldo na literatura, é o que, de acordo com Polit e Beck (2014)POLIT, Denise F; BECK, Cheryl Tatano. Essentials of nursing research: Appraising evidence for nursing practice. 8. ed. Philadelphia: Wolters Kluwer/Lippincott, Williams & Wilkins, 2014, garante a qualidade de um estudo. Assim, a coleta dos dados consistiu em um primeiro momento de observações sistemáticas (dez visitas ao longo de um mês), realizadas com auxílio de uma matriz de observação, a fim de compreender a dinâmica do local e melhor delinear a proposta a ser empregada a seguir.

No segundo momento da pesquisa ocorreram observações participantes, paralelamente às intervenções com os jogos de tabuleiro, as quais foram registradas em um diário de campo com o propósito de verificar e obter a descrição precisa das situações/fenômenos que respondem aos objetivos do estudo (GIL, 2010GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.). Ressalta-se que as observações compõem uma parte fundamental do trabalho de campo em pesquisas qualitativas (GIL, 2008GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.; MINAYO, 2009MINAYO, Maria Cecilia de Souza. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: MINAYO, Maria Cecilia de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira; GOMES, Romeu (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 61-77.).

Participaram do referido estudo 31 pacientes adultos (17 mulheres e 14 homens, com idades entre 25 e 60 anos), os quais realizavam tratamento quimioterápico na Central de Quimioterapia (CQ), do CEPON de Florianópolis. Destaca-se que o referido local é uma instituição pública gerida por uma instituição privada sem fins lucrativos: a Fundação de Apoio ao HEMOSC/CEPON (FAHECE). O CEPON tem como objetivo prestar assistência integral, humanizada e de qualidade ao paciente com câncer, no âmbito do SUS, em Santa Catarina, e foi escolhido como campo de pesquisa pois este é um centro de referência para o tratamento quimioterápico no estado em que se desenvolveu o estudo. Para tanto, os participantes atenderam aos seguintes critérios de inclusão: realizar quimioterapia por, no mínimo, duas horas; ter idade entre 18 e 60 anos; e participar de, no mínimo, uma intervenção com jogos de tabuleiro. Participaram, também, 14 profissionais (13 mulheres e um homem, com idades entre 26 e 53 anos) que trabalhavam no setor e cumpriram com o seguinte critério de inclusão: ter estado presente na CQ durante, no mínimo, uma intervenção com jogos com os pacientes.

Foram realizadas 24 intervenções, as quais proporcionaram ao paciente o contato com jogos de tabuleiro, enquanto estes realizavam a sessão de quimioterapia na CQ. O recrutamento dos pacientes foi feito individualmente por meio da abordagem de duas pesquisadoras, as quais foram responsáveis pela coleta de todos os dados desta pesquisa. As intervenções com os jogos duravam uma hora (aplicados pelas próprias pesquisadoras) e aconteciam durante a primeira hora do tratamento.

Diante disso, as pesquisadoras estiveram presentes no CQ duas vezes por semana, quarta-feira no período da tarde e sexta-feira no período da manhã, durante três meses, de outubro a dezembro de 2017. Portanto, o estudo teve, ao todo, quatro meses de duração, se considerarmos o período de observação e as intervenções. Ressalta-se, ainda, que os dias e horários das intervenções deram-se em função da dinâmica do setor, nos dias em que os pacientes com maior tempo de quimioterapia se faziam presentes. Ademais, os entrevistados tiveram a opção de recusar a participação no estudo.

Os jogos de tabuleiro utilizados foram selecionados intencionalmente por facilidade de acesso das pesquisadoras a eles. Para possibilitar a prática interessada ao longo de uma hora, foram escolhidos jogos de diferentes categorias, a saber: lógica matemática, alinhamento, captura, território. Nomeadamente, os jogos utilizados foram: Oda, Reversi, Kojo, Abalone e Xo dou Qi. As pesquisadoras jogaram com um paciente por vez e incluíam seus acompanhantes, caso necessário. Além de jogos, desafios individuais eram disponíveis a outros pacientes, inclusive aqueles que não cumpriam com os critérios da pesquisa, para que estes não se sentissem excluídos ou fossem invisibilizados durante o momento sensível pelo qual passavam. Os desafios individuais utilizados foram: Esconde formas, Tchuka, Desenlace, Haste, Caixote, 4 T’s, Torre de Hanoi e T Chinês.

Além disso, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os pacientes da CQ (após a intervenção proposta), bem como com os profissionais (após o período de intervenção com os pacientes, de forma a dar a eles tempo para a reflexão sobre o que foi proposto). Esse formato de entrevista, que possibilita ao entrevistado liberdade para discorrer sobre o assunto em questão, configura-se como um privilegiado instrumento para investigações sociais (MINAYO, 2009MINAYO, Maria Cecilia de Souza. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: MINAYO, Maria Cecilia de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira; GOMES, Romeu (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 61-77.). Destaca-se que os participantes puderam recusar-se a responder qualquer pergunta com a qual não se sentissem confortáveis.

Foram utilizados dois roteiros de entrevistas semiestruturadas, compostos pelos dados de identificação e perguntas direcionadas especificamente aos pacientes e profissionais. As 16 perguntas relacionadas aos pacientes apresentaram as seguintes dimensões: atividades promovidas; forma de tratamento dos responsáveis; significados atribuídos aos jogos de tabuleiro; satisfação pessoal; resultados, sugestões e críticas. Aos profissionais, as 11 perguntas dedicaram-se às dimensões: relação do acompanhante com o paciente; significados atribuídos aos jogos de tabuleiro; satisfação pessoal; resultados, sugestões e críticas. As entrevistas, realizadas pelas mesmas pesquisadoras que propuseram as intervenções com os jogos, tiveram duração média de uma hora e foram feitas individualmente com cada paciente ou profissional, concomitantemente às intervenções, iniciadas em outubro de 2017 e finalizadas em dezembro do mesmo ano.

Cabe ressaltar que este estudo faz parte de uma pesquisa de dissertação de mestrado intitulada: “Lúdico e saúde: uma investigação sobre jogos de tabuleiro com pacientes adultos do centro de pesquisas oncológicas de Florianópolis (SC)”, aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade do Estado de Santa Catarina, e pelo CEPON, sob processos de números: 2.009.716 e 2.060.594. Além disso, todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), bem como, foi respeitado e atendido o proposto pela Declaração de Helsinque. A pesquisa, portanto, cumpriu todos os procedimentos e requisitos éticos e legais de pesquisas com seres humanos. Desta forma, os nomes dos participantes foram substituídos por nomes fictícios para preservar a identidade deles; e, serão referenciados neste trabalho por meio da abreviatura de suas condições: pacientes (Pac.) ou profissionais (Prof.); seguidos da idade.

Após a coleta dos dados, as entrevistas (registradas em áudio) foram transcritas integralmente e somadas aos dados das observações. Em seguida, a totalidade dos dados foi organizada com o auxílio do software Nvivo 10, para posterior análise. Os dados obtidos a partir dos pacientes, dos profissionais e das observações da pesquisadora principal puderam ser triangulados e confrontados com a literatura, o que contribui para a confiabilidade do estudo (POLIT; BECK, 2014). A análise dos dados foi realizada por três pesquisadoras, por meio da técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin (2009)BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2009..

As unidades de registro encontradas a partir da análise dos dados foram: diminuição da percepção de dor, perda da noção de tempo, alegria, bem-estar, comunicação, relação com a doença, relação com os outros, aplicabilidade dos jogos como ação terapêutica, desejo de continuidade das intervenções. Unidades estas que deram origem a três categorias de análise, as quais serão apresentadas detalhadamente nos resultados e discussões. São elas: reverberações dos jogos de tabuleiro no tratamento quimioterápico, mudanças nas relações interpessoais e intervenção lúdica no espaço da Central de Quimioterapia.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Uma das questões levantadas pelo estudo foi a da necessidade da presença de um profissional para oportunizar distintas vivências aos pacientes e familiares durante as longas sessões de quimioterapia, que possa se ater às demandas não medicamentosas e auxiliar em um repensar sobre o tratamento. A inserção de atividades lúdicas manifestou-se como uma possibilidade, por meio dos jogos de tabuleiro, para que essas pessoas tivessem acesso a uma alternativa de descontração, quiçá, de prazer, durante as suas sessões de quimioterapia.

Nesse sentido, puderam ser identificados resultados positivos a partir do contato dos pacientes e profissionais com as intervenções com os jogos de tabuleiro, os quais serão apresentados nas categorias de análise a seguir.

3.1 REVERBERAÇÕES DOS JOGOS DE TABULEIRO NO TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO

O procedimento das sessões de quimioterapia pode ser considerado moroso e doloroso devido às aplicações medicamentosas. Além disso, tal procedimento pode apresentar efeitos colaterais metabólicos (ganho ou perda de peso) e gastrointestinais (diarreia, vômito, anorexia e náusea) (COSTA; CHAVES, 2012COSTA, Aline Isabella Saraiva; CHAVES, Marcelo Donizetti. Dor em pacientes oncológicos sob tratamento quimioterápico. Revista Dor, v. 13, n. 1, p. 45-49, 2012.). Ao considerar estes efeitos, pode-se identificar reverberações positivas quanto à utilização dos jogos de tabuleiro nos sinais e nos sintomas imediatos da quimioterapia, apresentados pelos pacientes. As alterações nos sintomas foram percebidas durante as observações e, também, foram relatadas nas entrevistas, em depoimentos como os da paciente Joana: “[...] me tirou daquele sofrimento que eu sentia. Hoje eu nem senti aquela angústia que dava nas pernas, dava uma coisa mesmo, de querer sair correndo sempre. Hoje eu não senti, e já está quase acabando”, (Joana, Pac., 45). A mesma questão é levantada pela paciente Rita: “Semana passada eu fiquei muito angustiada, passei bem mal. Hoje eu nem vi o tempo passar. Olha, já está acabando (o medicamento) e eu nem senti nada”, (Rita, Pac., 56). Outra fala ilustrativa desses efeitos no tratamento é a da paciente Sirlei:

[...] às vezes esquecemos um pouco da dor, porque tem a medicação que causa um (desconforto) eu nem senti, nem sei se o Manitol entrou. Manitol causa uma ardência no braço, então é bom, estamos nos distraindo aqui, passando o tempo rapidinho. (Sirlei, Pac., 49).

Nesse mesmo sentido, Raquel e Vanessa relatam: “A tremedeira das mãos e o nervosismo passa” (Raquel, Pac., 59); “Achei mais interessante ter uma atividade, porque assim até esqueço que está doendo” (Vanessa, Pac., 54). Pode-se interpretar que estas modificações na forma de os pacientes sentirem o tratamento se dá em virtude da imersão que os jogos proporcionam, remete-se ao envolvimento total na atividade, presente no conceito de ludicidade, o qual se imbrica com as características do flow. Essa imersão é interpretada pelos pacientes como distração; e caracteriza-se por retirar o sujeito de sua realidade e transferi-lo, momentaneamente, para outra, a do jogo (NAKAMURA; CSIKSZENTMIHALYI, 2014NAKAMURA, Jeanne; CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. The concept of flow. In: CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly (org.). Flow and the foundations of positive psychology. Netherlands: Springer Netherlands, 2014. p. 239-263.).

A relação entre ludicidade e imersão/flow resulta em um denominador comum, que se refere à sensação relativa de aceleração do tempo, fator citado constantemente pelos pacientes, que se dá em virtude da focalização dos sentidos para a mesma ação, promovida por meio da completa entrega ao momento (HUIZINGA, 2008HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.; NAKAMURA; CSIKSZENTMIHALYI, 2014NAKAMURA, Jeanne; CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. The concept of flow. In: CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly (org.). Flow and the foundations of positive psychology. Netherlands: Springer Netherlands, 2014. p. 239-263.). É nesse movimento de imersão, proporcionado pela manifestação lúdica, que o indivíduo se disponibiliza a vivenciar novas experiências (CARVALHO et al., 2020CARVALHO, Talita Grazielle Pires et al. O brincar durante o período de hospitalização para tratamento de câncer pediátrico. Licere, v. 23, n. 4, p. 299-319, 2020.). Assim, ao se desconectar do estigma da doença, suas capacidades individuais voltam a ser possíveis, pois aumenta-se a crença e a confiança em si mesmos, fatores indispensáveis para o enfrentamento da doença.

Portanto, pode-se identificar que o envolvimento na atividade lúdica, durante as sessões de quimioterapia, fez com que os sinais e os sintomas imediatos, como dores, angústias, desconfortos e sofrimentos, fossem minimizados e substituídos por sentimentos de alegria, diversão e descontração, pilares estruturantes da ludicidade. Tais pilares manifestaram-se, também, em outros estudos (MANFROI et al., 2018MANFROI, Miraíra Noal et al. Singing group: the playful present in health promotion. In: BENIWAL, Anju; JAIN, Rashmi; SPRACKLEN, Karl (org.). Global leisure and the struggle for a better world. Cham: Palgrave Macmillan, 2018. p. 49-74.; WERLE et al., 2018WERLE, Verônica et al. Possibilidades lúdicas e humanizadas no contexto de atuação da Educação Física no Sistema Único de Saúde (SUS). Journal of Physical Education, v. 29, n. 1, p. e2976, 2018.; BATAGLION; MARINHO, 2016BATAGLION, Giandra Anceski; MARINHO, Alcyane. Familiares de crianças com deficiência: percepções sobre atividades lúdicas na reabilitação. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 10, p. 3101-3110, 2016.; LIMA; SANTOS, 2015LIMA, Kálya Yasmine Nunes; SANTOS, Viviane Euzébia. O lúdico como estratégia no cuidado à criança com câncer. Revista Gaúcha Enfermagem, v. 36, n. 20, p. 76-8, 2015.; MARQUES et al., 2016MARQUES, Elisandra et al. Lúdico no cuidado à criança e ao adolescente com câncer: perspectivas da equipe de enfermagem. Escola Anna Nery, v. 20, n. 3, p. e20160073, 2016.; MOTTA; ENUMO, 2010MOTTA, Alessandra Brunoro; ENUMO, Sônia Regina Fiorim. Intervenção psicológica lúdica para o enfrentamento da hospitalização em crianças com câncer. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 26, n. 3, p. 445-454, 2010.; CARVALHO et al., 2018CARVALHO, Talita Grazielle Pires et al. O olhar do paciente sobre o câncer infantojuvenil e sua percepção acerca de seus sentimentos e emoções diante do viodeogame ativo. Movimento, v. 24, n. 2, p. 413-426, 2018.), os quais investigaram reverberações do lúdico por meio de jogos e brincadeiras de uma forma geral, bem como com exergames e atividades musicais, em diferentes contextos de saúde.

Em concordância com os achados desses outros autores, a utilização dos jogos de tabuleiro no CEPON de Florianópolis pôde proporcionar aos pacientes um tratamento mais sensível e humanizado, requerido em um momento delicado e de fragilidade como o que é vivenciado pelos pacientes em tratamento do câncer. Além disso, outras expressões se deram de forma não verbal e foram observadas ao longo das intervenções, como a mudança de postura entre a primeira e a segunda sessões em contato com os jogos, bem como a alteração nas relações interpessoais, as quais serão relatadas mais detalhadamente na próxima categoria.

3.2 MUDANÇAS NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS

Ao longo das observações sistemáticas foi possível compreender a forma como os pacientes se relacionam. Os momentos de interação eram, em sua maioria, principiados por questões referentes à doença, que era o cerne da conversa, e, a partir disso, os assuntos desenvolviam-se para demais temas de interesse mútuo, como política, religião, hobbies, família, entre outros. Neste sentido, o discurso de Joana (Pac., 45) é ilustrativo e aponta como barreira a interação entre os pacientes:

Eu fico mais quieta. Não gosto de conversar muito, não. Difícil assim, porque geralmente ficamos falando sobre a patologia, sobre o que está acontecendo. Eu acho que eu estou legal, não vou ficar reclamando. Então, eu converso pouco. Fico mais quieta. (Joana, Pac., 45).

Nessa perspectiva, os jogos, inseridos no contexto da CQ, tornaram-se o principal catalisador para o diálogo e ressignificaram as relações nesse espaço e, igualmente passível de observação, no discurso da enfermeira Kelly (Prof. Enf., 38): “Eles perguntam quando vocês estarão aqui, se conversam sobre os jogos que resolveram. Notei que eles gostaram bastante”. A manifestação lúdica, por meio da utilização dos jogos, proporcionou ao contexto investigado a alternativa de diversificar o assunto inicial da conversa entre os atores sociais ali presentes, sem negligenciar a necessidade de expressão sobre questões relacionadas à doença. Assim, ao possibilitar demais formas de interação, acolhe aqueles que, igualmente, anseiam por esta, sem direcionar a atenção à enfermidade.

Para Meirelles, Eckschimidt e Saura (2016)MEIRELLES, Renata; ECKSCHMIDT, Sandra; SAURA, Soraia Chung. Olhares por dentro do brincar e jogar, atualizados no corpo em movimento. In: MARIN, Elizara Carolina; GOMES-DA-SILVA, Pierre Normando (org.). Jogos tradicionais e Educação Física escolar. Curitiba: Editora CRV, 2016. p. 63-78., o estado de brincadeira proporcionado pela manifestação lúdica é capaz de se relacionar em profundidade com os sentidos e significados que atribuímos às coisas. Portanto, a manifestação lúdica é compreendida como elemento estruturante do próprio ser humano, capaz de ganhar diferentes contornos nos diversos contextos em que se manifesta (MARTINS et al., 2020MARTINS, Samara Escobar et al. Jogos, brinquedos e lúdico: um olhar sobre o brincar de crianças e adolescentes. In: Encontro Internacional Científico OTIUM/ Congresso Ibero-americano de Estudos do Lazer, Ócio e Recreação (CIELOR), 2020, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte, 2005. p. 957-966.).

Essa mudança comportamental foi igualmente percebida na relação paciente-profissional, uma vez que os profissionais se aproximavam daqueles com os jogos e os desafios. Eles buscaram interagir, conhecer o jogo ou auxiliar na sua resolução para iniciar a conversa, em seguida, manifestavam interesse em questionar ou verificar as questões técnicas relacionadas à sessão de quimioterapia. Além disso, como identificado pela profissional Anastácia, o comportamento de alguns pacientes perante os enfermeiros e os técnicos da CQ mudou a partir das intervenções com jogos:

Quando a Vanessa chegou aqui, ninguém queria puncioná-la, porque ela tinha muita cara de emburrada, não era nada acessível e, a partir do momento que vocês começaram, tanto vocês, como nós, fomos tentando moldá-la e hoje quando ela vai embora, beija cada uma de nós. Hoje quando vocês chegaram, ela foi abraçar, beijar, falando coisas boas para o filho, e quando ela chegou, ninguém queria puncioná-la, pois pensávamos que ela brigaria conosco. Ela ficava com uma cara (amarrada), deitava e cobria o rosto todo, não conversava, não interagia. Ela é uma pessoa que dá para ver claramente a mudança. (Anastácia, Prof. Tec. Enf., 29).

A partir das observações realizadas na CQ e os relatos dos participantes da pesquisa, pode-se perceber que os jogos oportunizam um novo repensar sobre as formas de relacionamento entre os atores envolvidos no processo de tratamento. Fato este que se assemelha às contribuições de outros estudos (GIULIANO; SILVA; OROZIMBO, 2009GIULIANO, Renata Carolina; SILVA, Luciana Marcia dos Santos; OROZIMBO, Nataly Manhães. Reflexões sobre o brincar no trabalho terapêutico com pacientes oncológicos adultos. Psicologia: ciência e profissão, v. 29, n. 4, p. 868-879, 2009.; AZEVÊDO, 2011AZEVÊDO, Adriano Valério dos Santos. O brincar da criança com câncer no hospital: análise da produção científica. Estudos de Psicologia, v. 28, n. 4, p. 565-572, 2011.; LIMA; SANTOS, 2015LIMA, Kálya Yasmine Nunes; SANTOS, Viviane Euzébia. O lúdico como estratégia no cuidado à criança com câncer. Revista Gaúcha Enfermagem, v. 36, n. 20, p. 76-8, 2015.; MARQUES et al., 2016MARQUES, Elisandra et al. Lúdico no cuidado à criança e ao adolescente com câncer: perspectivas da equipe de enfermagem. Escola Anna Nery, v. 20, n. 3, p. e20160073, 2016.), os quais oportunizaram atividades lúdicas em cenários hospitalares por meio de brincadeiras e buscaram investigar a influência do lúdico para o processo do cuidar, na percepção de crianças, adolescentes e adultos. Estes verificaram que as atividades lúdicas contribuíram diretamente no modo de interação entre paciente-paciente e paciente-profissional, o que facilitou a vivência do período de tratamento e reforçou os resultados obtidos, também, por esta investigação - porém, no contexto oncológico.

O jogo, ferramenta lúdica utilizada no contexto desta pesquisa, aproxima-se às brincadeiras no que compete a suas reverberações. Como defende Huizinga (2008)HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008., o jogo possibilita a formação de grupos e, por meio do sentimento de tensão e alegria, oferece aos seus integrantes a possibilidade de compartilharem segredos e disfarces, com a consciência de ser uma atividade distinta da vida cotidiana. Nesse mesmo sentido, o jogo oportuniza àqueles que se disponibilizam a sua prática um clima de descontração, diversão e alegria, questões que naturalmente facilitam os processos de interação e criação de vínculos (KISHIMOTO, 2014KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogos, brinquedos e brincadeiras do Brasil. Espacios en Blanco: Revista de Educación, v. 24, n. 1, p. 81-106, 2014.). Em sintonia com estas ideias, a enfermeira Flávia apresenta em seu relato as modificações visualizadas nos pacientes após o período com jogos:

Vi paciente que eu acreditava que não iria interagir, interagindo. Vi paciente sorrindo que eu nunca havia visto sorrir. Paciente feliz da vida. Vi outros pacientes que saíram com dor de cabeça de tanto pensar nos jogos. Enfim, eu consegui ver mais empolgação e eles falavam que deveriam ter mais vezes. Tiveram pacientes que voltaram outros dias e perguntaram se vocês não retornariam. (Flávia, Prof. Enf., 36).

Este relato corrobora os achados de Wiener et al. (2011)WIENER, Lori et al. ShopTalk: a pilot study of the feasibility and utility of a therapeutic board game for youth living with cancer. Supportive Care Cancer, v. 19, n. 7, p. 1049-1054, 2011. ao proporem um jogo terapêutico a crianças e adolescentes com câncer e verificarem sua influência na formação de relações entre os pacientes, familiares e profissionais. Nessa mesma direção, a enfermeira Elisa ressalta o posicionamento de uma paciente da CQ quanto ao discurso sobre as intervenções com jogos, o qual reforçou os resultados obtidos pela investigação no contexto do tratamento oncológico de adultos:

A Tatiana quer vir apenas nos dias que vocês estiverem aqui, porque entretém os pacientes. Ela dizia: ‘é a primeira vez que nós queremos vir fazer quimioterapia, porque não ficamos parados sem fazer nada, ficamos fazendo alguma coisa.’ (Elisa, Prof. Enf., 39).

Manifestações estas que enfatizam a necessidade de os pacientes terem intervenções durante o período das sessões de quimioterapia.

3.3 INTERVENÇÃO LÚDICA NO ESPAÇO DA CENTRAL DE QUIMIOTERAPIA

Além dos resultados identificados por meio dos jogos de tabuleiro no contexto da CQ, foi indagado, tanto aos profissionais quanto aos pacientes do setor, sobre o desejo de se ter um local adequado que possibilitasse a interação por meio de ferramentas lúdicas. O posicionamento dos pacientes quanto a isso foi unanimemente favorável e justificado por proporcionar, aos presentes, sentimentos diretamente relacionados àqueles provocados pelo jogo, de acordo com o pensamento de Huizinga (2008)HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. e Kishimoto (2014)KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogos, brinquedos e brincadeiras do Brasil. Espacios en Blanco: Revista de Educación, v. 24, n. 1, p. 81-106, 2014., como: de alegria, distração e diversão. O que também pode ser identificado na fala do paciente Gugu: “O câncer é uma doença que as pessoas ficam chocadas com o tratamento e realizar a atividade (jogos) realmente deixa a pessoa alegre, sem ficar pensando na situação em que se encontra” (Gugu, Pac., 34). Bem como na fala da paciente Istela e do paciente Toni:

A quimioterapia é fogo. Você sai com depressão, porque sabe que vai chegar em casa e sentir um monte de coisas ruins. Então, uma coisa assim como o jogo para distrair a mente permite que a pessoa pense em outra coisa, se divirta, não vendo o tempo passar, nem sentindo tudo aquilo que ela sentiria se apenas estivesse sentada aqui pensando no remédio que ela está tomando e depois sairia toda ruim. (Istela, Pac., 57).

Que isso motivasse mais gente, que pudesse ter um espaço para nós termos essa oportunidade, porque isso nos deixa melhor, nos deixa distraídos e nos ajuda muito, disso eu não tenho dúvida. Porque quando nós estamos em uma ala fazendo tratamento isso é muito triste, você não vê ninguém sorrindo, está todo mundo abatido e o que vocês trazem é um pouco de alegria que nos ajuda muito. (Toni, Pac., 39).

Percebe-se, portanto, que os pacientes anseiam por um atendimento integral, para além do tratamento tradicional propriamente dito, com vistas a suprir questões que podem ser emocionais, psicológicas, entre outras. Para Carvalho et al. (2020)CARVALHO, Talita Grazielle Pires et al. O brincar durante o período de hospitalização para tratamento de câncer pediátrico. Licere, v. 23, n. 4, p. 299-319, 2020., a associação de diferentes estratégias terapêuticas no enfrentamento do câncer é uma demanda necessária, pois o tratamento tradicional, tal qual a própria doença, pode ser agressivo e gerar outras necessidades. Diante disso, os discursos dos profissionais da CQ vão ao encontro das falas dos pacientes no que compete às necessidades não medicamentosas destes, e demonstram o potencial da ferramenta lúdica no contexto investigado, como expressam os profissionais Aline, Fabíola e João:

Nos dias das intervenções, quando vocês iam embora, parecia que eles estavam muito mais animados. Acredito que, com certeza, isso ajuda na questão mental deles. Virem aqui pensando ‘vou para a quimioterapia, mas vou poder me distrair.’ (Aline, Prof. Enf., 33).

Vejo bastante resultados nos pacientes, eles saem daqui mais leves. Vejo na pessoa em si, ela sai melhor daqui. Ajuda bastante. Além de amenizar essa questão da dor do paciente. Ajuda muito não apenas os pacientes, mas, também, nós, profissionais, porque estamos ali cuidando do profissional, da medicação, prestando atenção neles, mas isso também nos traz um bem-estar muito grande. Ver vocês trabalhando com eles, para nós é muito bom. Trabalha muito nosso emocional também. [...] isso deveria ter sido feito há muito tempo, essa questão dos jogos, essa parte elaborada, deveria fazer parte do tratamento há muito tempo. Ouço pacientes falarem isso desde o começo. (Fabíola, Prof. Tec. Enf., 49).

Acredito que deveria ser trabalhado sim, porque percebemos que há uma melhora, uma leveza maior nesse paciente. Este paciente consegue se divertir e interagir ainda mais com o outro, do que quando não tem (jogos). Alguns pacientes são mais introspectivos, mais difíceis de nos aproximarmos. Acredito que esse tipo de brincadeira, de atividades, facilita também a aproximação e a questão da humanização que se preconiza tanto no Sistema Único de Saúde. (João, Prof. Enf., 37).

Contudo, outros profissionais do setor apresentaram preocupações referentes à adequação da estrutura física do local, e salientaram que, para possibilitar o contato constante dos pacientes com jogos ou demais atividades lúdicas, seria imprescindível a reorganização estrutural do local. Além da necessidade de um profissional direcionado a essa proposta de ação, uma vez que suas demandas são extensas e o grau de responsabilidade técnica é alto.

Questão igualmente identificada no estudo de Marques et al. (2016)MARQUES, Elisandra et al. Lúdico no cuidado à criança e ao adolescente com câncer: perspectivas da equipe de enfermagem. Escola Anna Nery, v. 20, n. 3, p. e20160073, 2016., autores que, ao buscarem descrever a perspectiva da equipe de enfermagem sobre a utilização do lúdico no cuidado à criança e ao adolescente hospitalizados com câncer, verificaram que os profissionais envolvidos em tal processo necessitam de maior preparação teórica e prática para a efetiva apropriação do lúdico como uma estratégia de cuidado. Os autores salientaram, portanto, a importância de um profissional capacitado ao trabalho lúdico com os envolvidos no tratamento.

A ludicidade poderá ser explorada em sua totalidade e oportunizará todos os benefícios de sua potencialidade, por intermédio de um profissional qualificado e apto a ingressar na equipe multidisciplinar responsável pelo tratamento oncológico. Salienta-se, assim, a importância do trabalho interprofissional e multidisciplinar em locais de saúde, onde haja a contribuição das áreas envolvidas no tratamento do paciente, de forma a potencializar o diálogo e as interações entre as profissões.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao considerar a complexidade dos indivíduos, principalmente os que se encontram em um período de vulnerabilidade, faz-se necessário, no que compete aos princípios da humanização em saúde, abarcar integralmente as demandas que estes apresentam, a fim de proporcionar uma melhor situação de vida. O contexto oncológico não se distancia de tal realidade, uma vez que o câncer é uma doença responsável por suscitar necessidades não unicamente medicamentosas, mas emocionais, sociais e financeiras. Buscou-se acolher uma destas demandas, e possibilitar aos atores sociais do cenário da quimioterapia o contato com uma ferramenta lúdica capaz de ressignificar o ambiente do tratamento.

Ao longo das intervenções, o envolvimento na atividade lúdica fez com que os sinais e os sintomas imediatos fossem minimizados e substituídos por sentimentos de alegria, diversão e descontração, pilares estruturantes da ludicidade. Além disso, os jogos, no contexto estudado, contribuíram de forma a facilitar a interação social e, consequentemente, a relação entre paciente/paciente e paciente/profissional.

Os investigados, tanto pacientes quanto profissionais, acreditam ser importante um local que possibilite o contato recorrente com as alternativas lúdicas. Contudo, igualmente, identificam que, para isso ocorrer, a estrutura, tanto física quanto do quadro de funcionários, deve ser revista. Dentre os discursos dos profissionais, destaca-se a necessidade de um profissional responsável por oportunizar essas vivências aos pacientes e acompanhantes, pois os enfermeiros e técnicos do setor têm obrigações referentes às demandas técnicas do tratamento que os impediria, tais como: o puncionamento do paciente; o acompanhamento da medicação prévia, durante e posteriormente à punção; o direcionamento de alguns pacientes ao banheiro; a limpeza de cateteres; entre outras funções.

Com isso, acredita-se que os jogos de tabuleiro se caracterizam como ferramentas terapêuticas auxiliares ao tratamento quimioterápico de adultos do CEPON de Florianópolis, uma vez que suas contribuições foram notáveis e igualmente apresentadas por meio do posicionamento de pacientes e profissionais, os quais tiveram contato com os jogos durante as intervenções. Sugere-se que os jogos de tabuleiro possam ser explorados como possibilidades promissoras no processo de quimioterapia de adultos, também, em outros contextos.

  • FINANCIAMENTO
    A presente pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por meio de uma bolsa concedida ao projeto de mestrado da autora principal deste artigo.

ÉTICA DE PESQUISA

A pesquisa foi apreciada e aprovada pelos seguintes Comitês de Ética de Pesquisa (CEP) e foram registrados com os seguintes protocolos na Plataforma Brasil: Comitê de Ética da Universidade do Estado de Santa Catarina - 2.009.716 Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Pesquisas Oncológicas - 2.060.594

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga *, Elisandro Schultz Wittizorecki *, Mauro Myskiw *, Raquel da Silveira *

* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Aceito
    29 Abr 2022
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