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O "PASSO ATRÁS" DE SIMONE BILES: SAÚDE MENTAL E RENDIMENTO NO PROCESSO CIVILIZADOR

SIMONE BILES’ “STEP BACK”: MENTAL HEALTH AND PERFORMANCE IN THE CIVILIZING PROCESS

EL “PASO ATRÁS” DE SIMONE BILES: SALUD MENTAL Y RENDIMIENTO EN EL PROCESO CIVILIZADOR

Resumo

A desistência de Simone Biles em participar das finais da prova de ginástica dos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, é o objeto de estudo do presente artigo. A relação entre saúde mental e rendimento é analisada com base na teoria de Norbert Elias. O objetivo foi analisar a constituição da personagem Simone Biles e a configuração social que lhe possibilitou desistir de competir por questões de saúde mental. Trata-se de um estudo de caso da personagem empírica constituído a partir de uma pesquisa documental em reportagens de jornal, entrevistas e um documentário. A partir disso, foram criadas três categorias empírico-analíticas: “A constituição da psique da atleta”; “A ginástica como habitus nacional”; e “As ações da celebridade esportiva”. Concluímos, então, que Simone Biles teve apoio em sua desistência em razão de uma mudança na configuração contemporânea que modifica elementos balizadores do esporte.

Palavras-chave:
Esportes; Ginástica; Saúde Mental; Sociologia.

Abstract

Simone Biles' withdrawal from participating in the finals of the gymnastics competition of the Tokyo Olympic Games is the object of study. The relationship between mental health and performance is analyzed based on Norbert Elias’ theory. The objective was to analyze the constitution of the character and the social configuration that made it possible for her to give up competing for mental health reasons. A case study of the empirical character was constituted from an analysis of newspaper reports, interviews and a documentary film. Three empirical-analytical categories were created: ‘The constitution of the athlete's psyche’; ‘Gymnastics as a national habitus’; and ‘The sports celebrity's actions’. We conclude that Simone Biles had support in her withdrawal due to a change in the contemporary configuration that modifies sport's guiding elements.

Keywords:
Sports; Gymnastics; Mental Health; Sociology.

Resumen

El abandono de Simone Biles en la final de la competición de gimnasia de los Juegos Olímpicos de Tokio es el objeto de estudio. Se analiza la relación entre salud mental y rendimiento a partir de la teoría de Norbert Elias. El objetivo fue analizar la constitución del personaje y la configuración social que le permitió dejar de competir por motivos de salud mental. Un estudio de caso del personaje empírico fue constituido a partir de una investigación en reportajes, entrevistas y un film documental. A partir de ello, se crearon tres categorías empírico-analíticas: ‘La constitución del psiquismo del atleta’; ‘La gimnasia como habitus nacional’; y ‘Las acciones de la celebridad deportiva’. Concluimos que Biles tuvo apoyo en su abandono debido a un cambio en la configuración contemporánea que modifica los elementos del deporte.

Palabras clave:
Deportes; Gimnasia; Salud Mental; Sociología.

1 INTRODUÇÃO

"Eu tenho que fazer o que é certo para mim e focar na minha saúde mental e não colocar em risco minha saúde e bem-estar. Por isso resolvi dar um passo atrás. [...] Há mais na vida do que apenas ginástica" (MIRANDA, 2021MIRANDA, Gabriela. Here’s what Simone Biles told reporters after withdrawing from Tokyo Olympics team final. USA Today, 27/07/2021. Disponível em: https://www.usatoday.com/story/sports/olympics/2021/07/27/simone-biles-quotes-mental-health-after-2021-tokyo-olympics-final/5385472001/. Acesso em: 26 ago. 2022.
https://www.usatoday.com/story/sports/ol...
, tradução nossa). Essas palavras foram manifestadas por Simone Biles, ginasta de 24 anos, ao se recusar a participar da final por equipes nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021. A atleta já participara de diversas competições, inclusive ganhara quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016. Em campeonatos mundiais tinha 25 medalhas, sendo 19 de ouro. Simone Biles é, portanto, um ícone contemporâneo da ginástica.

Mas por que as afirmativas da competidora são tão impactantes? Por que a desistência de uma atleta orienta um olhar acadêmico e a realização de uma pesquisa? O que seria diferente no “caso Simone Biles”? As respostas para essas questões não são óbvias, mas passam, principalmente, pelo apoio que a atleta teve ao desistir. Deve-se concentrar no bem-estar em detrimento da competição, dizem os fãs do esporte. Mais do que isso, a sua posição relativiza um conceito muito enraizado no esporte: da vitória acima de qualquer coisa; ao mesmo tempo, é ratificada pelo público que aceita a justificativa e a classifica como justa e honrosa. Desistir é digno.

Nosso intuito é compreender a configuração social e a construção psíquica envolvidas na dinâmica contemporânea que orienta novos sentidos para o esporte. Para tanto, apoiamo-nos nos textos de Norbert Elias, sociólogo que discutiu os processos relacionais e indissolúveis entre sociedade e psique, especificamente entre sociogênese e psicogênese. Elias (2011)ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume 1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. nos indica que "a psicogênese do que constitui o adulto na sociedade civilizada não pode ser compreendida se estudada independentemente da sociogênese da nossa civilização" (p. 15). Portanto, o “caso Biles” deve ser analisado como um processo de construção social e psicológica que orienta as dinâmicas esportivas.

Apesar de a relação entre saúde mental e esporte ser muitas vezes relacionada a possíveis benefícios da prática corporal e repercussões de um dualismo corpo-mente, é possível observar que muitos atletas têm lidado com problemas de saúde mental. Ronda Rousey, Adriano, Michael Phelps, Naomi Osaka e Serena Williams são exemplos de atletas que falaram publicamente nos últimos anos sobre as suas dificuldades em manter a saúde mental. Para Tardelli et al. (2021)TARDELLI, Vitor S. et al. Pressure is not a privilege: what we can learn from Simone Biles. Brazilian Journal of Psychiatry, v. 43, n. 5, 2021. DOI: https://doi.org/10.1590/1516-4446-2021-0036 Acesso em: 28 mar. 2022
https://doi.org/10.1590/1516-4446-2021-0...
, os sacrifícios exigidos dos atletas são por vezes abusivos, ao ter que lidar com cargas excessivas de treinamento, exposição na mídia, assédio, medo de falhar e uma necessidade de performances consistentemente excelentes. Nesse sentido, dados mostram que a prevalência de transtornos mentais são maiores nos atletas de elite do que na população em geral (COLAGRAI et al., 2022COLAGRAI, Alexandre Conttato et al. Saúde e transtorno mental no atleta de alto rendimento: mapeamento dos artigos científicos internacionais. Movimento, v. 28, e28008, jan./dez. 2022. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.118845
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), e que isso é agravado pelo estigma que os impede de procurar tratamento (CASTALDELLI-MAIA et al., 2019CASTALDELLI-MAIA, João Maurício et al. Mental health symptoms and disorders in elite athletes: a systematic review on cultural influencers and barriers to athletes seeking treatment. British Journal Sports Medicine, v. 53, n. 11, p. 707-721, 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1136/bjsports-2019-100710. Acesso em: 28 mar. 2022.
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).

Apesar disso, transformações sociais permitiram, em alguma medida, que atletas fossem menos acusados e se sentissem menos culpados por terem problemas de saúde mental e, assim, não estarem aptos a competir. O Comitê Olímpico Internacional divulgou em 2019 (REARDON et al., 2019REARDON, Claudia et al. Mental health in elite athletes: International Olympic Committee consensus statement. British Journal of Sports Medicine, v. 53, p. 667-699, 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1136/bjsports-2019-100715. Acesso em: 28 mar. 2022.
http://dx.doi.org/10.1136/bjsports-2019-...
) um documento que ressalta a importância da saúde mental e sugere o tratamento; a literatura em língua inglesa sobre o tema tem crescido imensamente (COLAGRAI et al., 2022COLAGRAI, Alexandre Conttato et al. Saúde e transtorno mental no atleta de alto rendimento: mapeamento dos artigos científicos internacionais. Movimento, v. 28, e28008, jan./dez. 2022. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.118845
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); e os meios de comunicação têm destinado bastante espaço para esses relatos.

Simone Biles ocupa, nesse sentido, um lugar privilegiado. Primeiro, porque suas ações são capazes de contribuir em uma possível diminuição do estigma às questões de saúde mental no esporte de elite. Ao mesmo tempo, observar a sua atuação enquanto personagem empírica eliasiana abre a possibilidade de compreender o esporte contemporâneo, as suas idiossincrasias e as tensões que o sustentam. Uma dessas certamente se dá no binômio rendimento-saúde mental. Não queremos dizer com isso que tais polos são opostos, mas afirmar que no caso analisado eles estiveram em permanente tensão e direcionaram as ações e discussões. Afinal, é com base no argumento de cuidar da saúde mental que ela desiste de competir.

A partir desses elementos, pergunta-se: por que uma atleta favorita desiste e isso parece ter repercussão social positiva? É possível imaginar que se Nadia Comaneci desistisse de participar dos Jogos de Moscou em 1980, ela seria duramente pressionada pelo Estado romeno repressor - à época, parte do bloco comunista - e, de modo geral, por aquela sociedade para não o fazer. Mais que isso, ela possivelmente não abandonaria a competição por saber que a sua configuração não permitia tal manobra; ou, ainda, caso o fizesse, estaria sujeita a punições. Em resumo, a configuração social na qual Biles está inserida deu a ela liberdade para agir dessa forma e, aparentemente, não condenou tal atitude. Ao contrário, ela possivelmente tenha tido mesmo alguns ganhos ao desistir e, com isso, ajudar a pôr a saúde mental no centro da discussão esportiva.

Depois dela, outros atletas, como Rafael Medina, já desistiram de competir alegando razões parecidas e não alcançaram a mesma repercussão. A configuração já havia mudado e a saúde mental ocupa outro lugar; em um processo não linear carregado de tensões que desestruturaram a configuração. Com base nisso, questionou-se: como a personagem Simone Biles ajuda a refletir sobre o esporte contemporâneo? O objetivo deste estudo foi analisar a constituição da personagem Simone Biles e a configuração social que lhe possibilitou desistir de competir nos Jogos Olímpicos por questões de saúde mental.

2 DECISÕES METODOLÓGICAS

Esta pesquisa se caracteriza como um estudo sociológico realizado com base no processo civilizador (ELIAS, 2011ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume 1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.) e elaborado na análise de uma personagem empírica, na perspectiva que Elias (1995ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995., 2001ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.) desenvolveu ao analisar, entre outros, Mozart e o rei Luís XIV. Em relação ao tipo, aproxima-se de um estudo de caso, ao olhar para uma situação em particular, enquanto que em relação às fontes, é uma pesquisa documental, ao se propor a selecionar, sistematizar e analisar documentos.

A produção de dados foi realizada a partir de três diferentes fontes de documentos públicos: entrevistas, notícias de jornais e uma série documental. Foram selecionadas três entrevistas que a atleta concedeu a partir da abdicação dos Jogos Olímpicos: uma na qual explica a desistência de competir naquele evento (ESPN, 2021ESPN. Simone Biles explains why she left the Olympic team finals. SportsCenter. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FD_ZrFeBzzU. Acesso em: 20 mar. 2022.
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); outra sobre a valorização do bem-estar (TODAY, 2021TODAY. Simone Biles: ‘I’m trying to navigate my own unique mental health journey’. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qxV5Nfnwz2g. Acesso em: 20 mar. 2022.
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); e ainda o testemunho dela junto ao julgamento de denúncia de abuso sexual (CNN, 2021CNN. Simone Biles’ emotional testimony about Nassar abuse. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3nhXchOtMLg. Acesso em: 20 mar. 2022.
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). Essas entrevistas foram transcritas e seu conteúdo foi posteriormente codificado e analisado.

Uma segunda fonte de dados foram reportagens extraídas do jornal The New York Times, diário de maior repercussão no país de origem da atleta. Foram selecionadas todas as 19 matérias publicadas nos três meses após a desistência da atleta, de julho a outubro de 2021. O conteúdo foi analisado a partir da composição de um quadro analítico e da codificação e categorização do material tendo em vista o objetivo da pesquisa.

A terceira fonte de dados foi uma série documental produzida pelo Facebook denominada Simone vs. Herself (2021), composta por sete episódios que totalizam 135 minutos. O conteúdo foi analisado a partir de um processo de anotações, codificações e sistematizações conduzido em vista de responder à problematização proposta. Tendo em vista a garantia dos padrões éticos na pesquisa científica, a presente investigação não necessitou de avaliação pelo Comitê de Ética, uma vez que tratou de analisar documentos encontrados em sites de acesso e domínio público (BRASIL, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 510, de 07 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2016/res0510_07_04_2016.html. Acesso em: 25 mar. 2022.
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).

A análise dos dados foi efetivada a partir da noção eliasiana de configuração, uma formação social com dimensões variáveis na qual "os indivíduos estão ligados uns aos outros por um modo específico de dependências recíprocas e cuja reprodução supõe um equilíbrio móvel de tensões" (CHARTIER, 2001CHARTIER, Roger. Prefácio. In: ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 7-25., p. 13). De acordo com Elias (2001)ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., a sociedade não existe fora dos indivíduos que a constituem, assim como estes não existem fora da sociedade que formam. Ao negar uma liberdade e um determinismo plenos, Elias assume que é função do pesquisador enxergar "as relações entre a posição, prescrita pela respectiva figuração, e a pessoa [...] que se desenvolve nessa posição" (p. 47-48).

Nessa perspectiva, o estudo de um caso em particular, ou seja, de um personagem empírico, deve ser composto na interação entre "a abordagem sociogenética, que visa situar os mecanismos de formação e [...] estruturação de uma configuração [...], e a abordagem psicogenética, que tenta circunscrever a modelagem e a economia do habitus psíquico engendrado por essa configuração" (CHARTIER, 2001CHARTIER, Roger. Prefácio. In: ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 7-25., p. 25). Esta pesquisa lidou, assim, com a construção de um modelo sociológico de conexões entre os indivíduos.

Com base nesses elementos, o estudo foi organizado de modo a analisar a configuração, as tensões e a constituição sócio e psicogenética da personagem em função dos seus deslocamentos configuracionais. A partir da análise de conteúdo (BARDIN, 2016BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.) empregada junto aos dados e da reflexão junto à teoria eliasiana, foram construídas três categorias empírico-analíticas que, na sua organização, auxiliam a responder ao problema de pesquisa. São elas: 1) A constituição da psique da atleta; 2) A ginástica como habitus nacional; e 3) As ações da celebridade esportiva.

O texto a seguir, apresentado nessa estrutura, se propõe a elaborar, com base em Elias (2001)ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., um modelo de interdependências, mostrando a partir desse caso específico como uma atleta "aproveita, na estratégia de sua conduta pessoal, o espaço decisório que lhe confere sua posição no seio de uma figuração específica"" (p. 57). Especificamente, o texto examina a decisão pessoal de Biles de desistir já que, na sua posição social de atleta inserida em uma configuração específica, tinha essa margem de manobra permitida.

3 ANÁLISE E DISCUSSÃO

3.1 A CONSTITUIÇÃO DA PSIQUE DA ATLETA

Os marcadores sociais de raça e gênero, imperantes na construção de hierarquias nas sociedades ocidentais, atravessaram a trajetória pessoal e esportiva de Simone Biles. A atleta se reúne a outras companheiras de equipe que denunciaram o ex-médico da seleção principal dos Estados Unidos, Lary Nassar, por crimes de violência sexual. Em 31 de agosto de 2021, o periódico The New York Times noticiou o andamento da negociação de indenização que Nassar deveria pagar às vítimas de abuso, incluindo Simone Biles.

A oferta de US$425 milhões no plano atual é quase o dobro da quantia que a U.S.A. Gymnastics ofereceu como acordo no início de 2020, quando sugeriu dar US$215 milhões às vítimas de Nassar. Esse plano foi imediatamente rejeitado por muitos sobreviventes de Nassar como muito baixo, e também foi rejeitado pelo tribunal. (MACUR, 2021aMACUR, Juliet. U.S.A. Gymnastics and abuse survivors propose a $425 million payout. The New York Times, 31/08/2021a. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/09/01/sports/olympics/usa-gymnastics-payout-sexual-abuse.html?searchResultPosition=5. Acesso em: 22 mar. 2022.
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, tradução nossa)

Em outra reportagem a atleta expõe e critica a banalização do sistema diante das denúncias e a cumplicidade entre o FBI e Nassar. O periódico evidencia o testemunho de Biles ao Senado norte-americano.

‘Nassar foi capaz de abusar de mais de 70 meninas e mulheres sob o pretexto de tratamento médico, enquanto o FBI não agiu’’, disse o relatório do inspetor-geral. Centenas de meninas e mulheres que foram abusadas por Nassar estão esperando há anos por notícias do FBI sobre os erros do caso. Biles tem falado abertamente sobre querer saber ‘quem sabe o quê e quando’ sobre Nassar. Ela disse que os efeitos de seu abuso permanecem. (MACUR, 2021bMACUR, Juliet. Biles and her teammates rip the F.B.I. for botching Nassar abuse case. The New York Times, 15/09/2021b. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/09/15/sports/olympics/fbi-hearing-larry-nassar-biles-maroney.html?searchResultPosition=4. Acesso em: 22 mar. 2022.
https://www.nytimes.com/2021/09/15/sport...
, tradução nossa)

Biles ganhou uma medalha de prata e uma de bronze nas Olimpíadas de Tóquio depois de abandonar a competição por equipes. Um artigo de opinião repercute a desistência de Simone Biles como um ato de resistência individual diante do fardo emocional que a atleta carregava relativo ao histórico de abuso sexual e racismo que sofreu.

Era uma atleta que se destacava aos 24 anos. Uma atleta disposta a falar sobre o abuso sexual que ela e tantos outros enfrentaram nas mãos do ex-médico da ginástica dos EUA Lawrence G. Nassar e o treinamento punitivo verbal e emocionalmente abusivo que ela e tantos outros sofreram sob a tutela de Bela e Martha Karolyi. Uma atleta que pressionou em direção a Tóquio em vez de se aposentar, em parte porque isso forçaria as autoridades da ginástica a continuar contando como ela e tantas outras ginastas americanas sobreviveram. Uma atleta disposta a falar com força sobre o racismo, tema que conhece bem como mulher negra dominando um esporte predominantemente branco. Então, sim, ela carrega um fardo pesado, que recai sobre ela e sobre outras atletas negras. (STREETER, 2021STREETER, Kurt. Simone Biles and the power of ‘no’. The New York Times, 28/07/2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/07/28/sports/simone-biles-self-care.html?searchResultPosition=17. Acesso em: 23 mar. 2022.
https://www.nytimes.com/2021/07/28/sport...
, tradução nossa)

Os episódios do documentário Simone vs. Herself (2021SIMONE VS. HERSELF. Facebook. 2021. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/2074347926132282/517934389392544/. Acesso em: 28 mar. 2022.
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) exploram como Biles teve sua rotina de treinos e preparação para as Olimpíadas de Tóquio alterada de forma significativa em função da pandemia de covid-19. A partir dos primeiros casos de transmissão do vírus nos Estados Unidos, apenas as ginastas de “elite” continuaram os treinos. Simone Biles se mostrou apreensiva com o aumento dos casos e as precauções em relação à saúde.

Ela demonstrou estar muito cansada física e psicologicamente, alegando que não tinha mais o mesmo ânimo de levantar todo dia e ir para a sua preparação com os técnicos: "Eu tenho andado tanto e não tive um dia de folga, então isso provavelmente está me alcançando" (SIMONE VS. HERSELF, 2021SIMONE VS. HERSELF. Facebook. 2021. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/2074347926132282/517934389392544/. Acesso em: 28 mar. 2022.
https://www.facebook.com/watch/207434792...
, tradução do autor). Quando o Comitê Olímpico Internacional noticiou o adiamento dos Jogos, a atleta começou a pensar que essa pausa afetaria negativamente o seu rendimento e a sua carreira esportiva.

Segundo o documentário, a relação com a família é de extrema importância para a carreira da atleta. Simone e sua irmã, Adria, foram adotadas pelo avô materno, Ron, e sua esposa, Nellie. Sua mãe biológica tinha problemas com álcool e perdeu a guarda de seus filhos. A relação construída com seus pais adotivos trouxe uma rede de apoio de grande relevância dentro dos treinos e competições da ginasta: "Me sinto muito ansiosa e quando eu os vejo, sinto que me acalma saber que eles estão na arena" (SIMONE VS. HERSELF, 2021SIMONE VS. HERSELF. Facebook. 2021. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/2074347926132282/517934389392544/. Acesso em: 28 mar. 2022.
https://www.facebook.com/watch/207434792...
, tradução do autor).

Simone Biles almejava uma carreira bem-sucedida e um futuro de grandes conquistas quando vieram à tona notícias do caso de abuso sexual. À proporção que surgiam mais atletas denunciando os abusos, Biles entendeu o que de fato acontecera com ela. Conforme sua mãe, Simone "estava histérica, ela não disse nada, só chorou e eu chorei junto porque sabia o que era" (SIMONE VS. HERSELF, 2021SIMONE VS. HERSELF. Facebook. 2021. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/2074347926132282/517934389392544/. Acesso em: 28 mar. 2022.
https://www.facebook.com/watch/207434792...
, tradução do autor). Enquanto o mundo acompanhava a repercussão das denúncias, a saúde mental de Biles entrou em colapso e, uma vez que ela não estava mais em negação, o mecanismo que utilizou para escapar da realidade era dormir: "Eu dormi o tempo todo porque dormir era melhor do que me matar" (tradução do autor).

Nesse processo, permanecer em casa durante a pandemia foi importante porque, em suas palavras, pôde sentir suas emoções "pela primeira vez na vida” (SIMONE VS. HERSELF, 2021SIMONE VS. HERSELF. Facebook. 2021. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/2074347926132282/517934389392544/. Acesso em: 28 mar. 2022.
https://www.facebook.com/watch/207434792...
, tradução do autor), ao estar longe dos holofotes da mídia e do público. Contudo, quando os treinos retornaram Simone relatou lembrar constantemente dos abusos sofridos, tendo que trabalhar sua mentalidade para entender que a culpa não era sua. Para tal, a prática do esporte e a presença da sua família foram cruciais para ela continuar e, mesmo sendo “assustador” (tradução do autor), ela entendeu que se tornou uma voz e que serviu de exemplo para que outras pessoas tivessem coragem de denunciar novos casos.

O aumento dos casos de doenças mentais na pandemia é consequência de um processo de longa duração de controle das emoções que foi intensificado neste período. Queremos dizer que o aumento dos casos de depressão e ansiedade durante o isolamento social não pode ser analisado como um fato isolado, pois ele é resultante de uma dinâmica social de longo prazo que é parte do processo civilizador (ELIAS, 2011ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume 1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.) e que foi catalisado pelo contexto pandêmico.

A psique de Simone Biles foi constituída a partir de elementos psicogenéticos e sociogenéticos imbricados nas suas relações de interdependência (ELIAS, 2011ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume 1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.). A inserção, formação e atuação na ginástica esportiva de alto rendimento lhe exigiu dedicação a rotinas de treinos altamente exigentes ao seu corpo e à sua estrutura emocional. A ginástica é uma das modalidades esportivas que mais exige do corpo biológico, assim como demanda uma perfeição de execução que só é possível com altíssimas doses de repetições nos treinamentos. Além disso, é comum que crianças sejam recrutadas desde muito pequenas para iniciarem os treinamentos, pois a carreira demanda muitos anos de dedicação antes de se atingir o ápice (FREITAS, 2019FREITAS, Maitê Venuto de. A saída de jovens atletas do esporte de alto rendimento: sobre percursos e processos. 258 f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) - Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.). Simone iniciou aos seis anos de idade.

Ademais, ela é uma mulher negra adotada que viveu em lugares majoritariamente brancos, tanto no que se refere ao sul conservador dos Estados Unidos, onde passou grande parte da sua infância e adolescência, quanto ao mundo da ginástica esportiva, representada historicamente sobretudo por mulheres e homens brancos. A sua localização como outsider (ELIAS; SCOTSON, 2000ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.) desloca-a à margem da configuração, na qual ela só se manteve devido aos resultados esportivos absurdamente grandiosos atingidos.

É também constitutiva da psique a relação abusiva que vivenciou em interdependência, durante anos, nesse universo com homens dos quais acabava não conseguindo se afastar, tanto no que se refere ao caso de abuso sexual quanto ao "treinamento punitivo verbal e emocionalmente abusivo"que ela e suas colegas sofriam. Nesse caso, o autocontrole psíquico é também mobilizado pela coerção e autocoerção para não revelar esses casos, já que denunciar seria agir em desacordo com a etiqueta esportiva, tradicionalmente afeita à manutenção das hierarquias entre atletas e equipe técnica.

Segundo Elias (1995ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995., p. 59), "é muito difícil conhecer as razões pelas quais no desenvolvimento de uma dada personalidade mecanismos particulares como projeção, repressão, identificação ou sublimação são preferidos". Ainda assim, não é estranho o aparecimento de abalos na saúde mental a partir do abuso e do autocontrole para não agir. Na negação do assédio ela era impecável esportivamente, mas não era capaz de organizar as emoções para estabelecer limites de participação esportiva e ver que tal elemento poderia ser incluído na configuração do esporte que ela praticava. Na lucidez ela afirmou que queria “dormir para não se matar”. Nesse estágio, foi capaz de agir para denunciar o abuso e para parar de competir.

Em termos eliasianos, é possível interpretar que o controle extremo das emoções exercido por Biles em forma de repressão transformou-se em mecanismos de defesa, como o desencadeamento em questões de saúde mental. O abandono da competição foi uma saída socialmente aceitável encontrada por ela para, ao menos em parte, liberar essas pulsões reprimidas.

3.2 A GINÁSTICA COMO HABITUS NACIONAL

A dimensão de Simone Biles como representante dos Estados Unidos em Tóquio pode ser observada na repercussão da desistência dela, em dados que evidenciam como seu desempenho prejudicou a equipe americana e abriu vantagem às russas. Conforme o The New York Times,

Biles [...] disse [...] que sentiu o ‘peso do mundo em seus ombros’. Ela deixou a pista de competição na terça-feira depois de se apresentar no primeiro aparelho da noite [...]. Sem a pontuação habitual de Biles no salto, os Estados Unidos terminaram o primeiro de quatro eventos mais de um ponto atrás da Rússia. A equipe continuou a competição sem ela, ainda na esperança de conquistar a medalha de ouro pela terceira Olimpíada consecutiva. Mas ainda que cada uma das três competidoras americanas tenha feito sólidas e, em um caso, espetaculares apresentações de barras assimétricas, no meio do evento a equipe dos EUA estava 2,5 pontos atrás da Rússia. (LONGMAN, 2021LONGMAN, Jeré. Simone Biles rejects a long tradition of stoicism in sports. The New York Times, 28/07/2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/07/28/sports/olympics/simone-biles-mental-health.html?searchResultPosition=10. Acesso em: 22 mar. 2022.
https://www.nytimes.com/2021/07/28/sport...
, tradução nossa)

Outra reportagem indica, logo após a desistência de Biles, os recordes que a atleta poderia alcançar se não tivesse se retirado.

Em Tóquio, Biles [...] deveria defender seu título geral das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro para se tornar a primeira mulher a ganhar títulos consecutivos no geral em 53 anos. Ela também se classificou para todas as quatro finais em cada evento individual nesses Jogos [...] e era amplamente esperado que ganhasse pelo menos três ouros. (MACUR, 2021cMACUR, Juliet. Simone Biles’s future at the Olympics left unclear. The New York Times, 28/07/2021c. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/07/28/sports/olympics/simone-biles-gymnastics-olympics.html?searchResultPosition=12. Acesso em: 25 mar. 2022.
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No documentário Biles comenta a sua decepção com a repercussão de ela ter ganho a medalha de bronze na trave nos Jogos de 2016, pois as pessoas esperavam mais uma medalha de ouro. Nesse sentido, a atleta afirma que "sempre haverá haters, especialmente se você for uma mulher negra fazendo história".

A competição de ginástica artística nos Jogos Olímpicos está incorporada no habitus estadunidense. Para Elias, habitus é uma "segunda natureza ou saber social incorporado" (DUNNING; MENNELL, 1997DUNNING, Eric; MENNELL, Stephen. Prefácio à edição inglesa. In: ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. p. 7-14., p. 9). Em oposição à noção de caráter nacional, algo fixo e estático, "o habitus muda com o tempo precisamente porque as fortunas e experiências de uma nação [...] continuam mudando e acumulando-se" (p. 9).

Apesar de as tensões entre Estados Unidos e Rússia, historicamente manifestadas também nas competições esportivas, terem constituído parte de um habitus estadunidense, tais estruturas de personalidade podem se adaptar a um novo código de comportamento três, quatro ou cinco gerações depois (ELIAS, 1997ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.). O esporte ocupou esse lugar de violência e poder simbólico na relação entre os dois países e é possível observar que tensões permanecem na geopolítica mundial e no habitus esportivo. A repetida menção às ginastas russas pelo periódico revela resquícios dessa face do habitus.

Ao contrário da hipótese postulada, a repercussão da desistência de Simone Biles não foi tão positiva, ou, ao menos, não foi unânime, já que algumas reportagens insistiram, após a saída da atleta, em calcular as possibilidades de medalhas, recordes e marcos históricos caso ela tivesse competido. A força do habitus ginástico e a subsistência de tensões geracionais podem explicar parte dessa reação. A sua decisão de desistir foi dificultada por esses elementos, que lhe proporcionavam menos liberdade de ação.

Elias (2011)ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume 1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. critica a oposição entre liberdade e coerção. Para ele não há "uma suposta liberdade 'absoluta' [...]. O que há é libertação, de uma forma de restrição opressiva ou intolerável para outra, menos pesada. [...] O processo civilizador é acompanhado permanentemente por tipos de libertação" (p. 177). Desse modo pode-se entender que a sua atitude representou uma libertação, ou seja, um aumento dos graus de liberdade da configuração que, a partir de então, incluiu a desistência na competição e os cuidados com a saúde mental na lista de comportamentos aceitáveis.

3.3 AS AÇÕES DA CELEBRIDADE ESPORTIVA

Logo após a fase classificatória para a final da competição por equipes, Simone concedeu uma entrevista coletiva, na qual confirmou sua não participação na final a fim de não prejudicar o rendimento da equipe.

Eu apenas senti que seria um pouco melhor ficar no banco de trás [...] e eu sabia que as meninas fariam um ótimo trabalho e não queria arriscar uma medalha para o time por causa das minhas questões, porque elas trabalharam muito duro para isso, então eu estava tentando dois [saltos] e meio e acabei fazendo um e meio, fiquei um pouco perdida no ar, o que é realmente lamentável, eu sinto que [...] poderíamos ter ficado um pouco melhor no ranking. [...] Eu acho que as garotas precisam fazer o resto da competição sem mim e elas ficaram tipo ‘eu juro que você está bem, nós assistimos você se aquecer’ e eu disse não, eu sei que vou ficar bem, mas não posso arriscar uma medalha para o time. [...] Eu normalmente continuo nas coisas, mas não para custar uma medalha ao time, então elas estavam ‘bem, se a Simone disse então precisamos levar isso a sério’, então eu tinha as pessoas certas ao meu redor para fazer isso. É muito difícil perder um companheiro de equipe, especialmente nos Jogos Olímpicos, então eu estava muito orgulhosa de todas nós, porque estávamos passando por tantas coisas que nos deixaram muito estressadas, colocando muita pressão sobre nós mesmas, mas acabamos voltando, somos lutadoras, lutamos durante toda essa competição como um time e não como indivíduos e isso é o que precisávamos [...]. Coloque a saúde mental em primeiro lugar porque se você não fizer isso, você não vai gostar do seu esporte e você não vai ter sucesso tanto quanto você quer, então está tudo bem às vezes até mesmo desistir das grandes competições para se concentrar em você mesmo porque mostra o quão forte você é, o competidor e a pessoa que você realmente é. (ESPN, 2021ESPN. Simone Biles explains why she left the Olympic team finals. SportsCenter. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FD_ZrFeBzzU. Acesso em: 20 mar. 2022.
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O discurso da atleta nas redes sociais atrelou a sua retirada a uma espécie de bloqueio mental. Segundo o The New York Times,

faltando apenas dois dias para o início das finais de aparelhos de ginástica nos Jogos de Tóquio, Simone Biles ainda não anunciou se vai competir nelas. Mas ela disse no Instagram na sexta-feira que ainda estava lutando contra um bloqueio mental que os ginastas chamam de twisties, e que em parte a levou a se retirar da final por equipes e das demais. ‘Literalmente, não dá para distinguir em cima e embaixo’, escreveu ela em stories no Instagram. ‘É a sensação mais louca de todas. Não ter um centímetro de controle sobre seu corpo.’ No Instagram, ela disse que não havia como dizer em quanto tempo ela poderia superar o bloqueio mental para que pudesse recuperar sua capacidade de sentir a posição do corpo no ar em relação ao solo. Ela disse que se avaliaria ‘dia a dia, turno a turno’, mas que no passado levou duas ou mais semanas para se recuperar. [...] Seu bloqueio mental começou, disse Biles, na manhã seguinte à qualificação - segunda-feira em Tóquio, um dia antes da final da equipe. O problema ficou claro durante as finais por equipes, quando a equipe americana estava no salto, seu primeiro aparelho da noite, e Biles se perdeu no ar, bem acima do piso da competição. [...] Depois, ela consultou seu treinador e médico da equipe antes de se retirar das finais, deixando seus companheiros de equipe competirem por conta própria. [...] Abordando por que esse fenômeno acontece com ginastas, Biles escreveu no Instagram que ‘pode ser desencadeado pelo estresse, mas também não tenho certeza de quão verdadeiro isso é’. (MACUR, 2021dMACUR, Juliet. Simone Biles, struggling with ‘the twisties,’ says she can’t ‘tell up from down.’ The New York Times, 30/07/2021d. Disponível em: https://www.nytimes.com/article/twisties-gymnastics.html?searchResultPosition=14. Acesso em: 26 mar. 2022.
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É possível observar também manifestações de apoio à atleta. Um editorial jornalístico repercute a atitude dela um dia após Biles anunciar sua desistência.

Que tipo de campeão se retira nas Olimpíadas? Alguém que pode reconhecer seus limites e parar antes que colida com eles. E assim, ao desistir da competição de ginástica por equipes nas Olimpíadas de Tóquio, Simone Biles, a melhor ginasta que a América já produziu, emitiu uma declaração tão poderosa quanto qualquer coisa que ela fez na competição: ela disse ‘basta’. ‘No final do dia, também somos humanos, então temos que proteger nossa mente e nosso corpo, em vez de apenas sair e fazer o que o mundo quer que façamos’, disse ela [...]. Biles se junta a um número crescente de atletas mais jovens, incluindo sua colega olímpica, a estrela do tênis Naomi Osaka, que está lutando contra a narrativa americana tradicional do ouro a qualquer custo, incluindo às custas de sua própria saúde mental ou física. (MATHER, 2021MATHER, Victor. Men’s golf tees off, and the women’s all-around gymnastics competition starts without Simone Biles. The New York Times, 28/07/2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/07/28/sports/olympics/when-is-gymnastics-and-swimming-olympics.html?searchResultPosition=20. Acesso em: 24 mar. 2022.
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No mesmo tom, outra reportagem evidencia que

Simone Biles se afastou da competição mesmo tendo perdido medalhas e dinheiro no curto prazo. Depois que ela se retirou, ela disse que deveria ter desistido da ginástica antes de Tóquio. Ela estava cuidando de si mesma e jogando o ‘jogo longo’. Ao fazer isso, ela só aumentou seu poder em seu esporte e em nossa cultura. Simone Biles está lançando a conversa que especialistas em saúde mental dizem ser necessária porque mais pessoas do que sabemos estão sofrendo. Para uma das atletas mais condecoradas da história olímpica, ir embora acabou aumentando seu poder porque ela investiu em si mesma. (CROUSE; FERGUSON, 2021CROUSE, Lidsay; FERGUSON, Kirby. It’s quitting season. The New York Times, 20/10/2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/video/opinion/100000008027932/quitting-jobs-resignation-employment.html?searchResultPosition=2. Acesso em: 25 mar. 2022.
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A partir da repercussão positiva, Biles passou a conceder entrevistas a fim de aumentar a conscientização sobre saúde mental. A atleta tornou-se embaixadora da empresa Kyle Cerebral, responsável pela venda de um aplicativo para cuidados de saúde mental, que oferece terapia e gerenciamento de medicamentos para ansiedade, depressão e insônia. Segundo o fundador da empresa, Simone Biles "mudou a conversa” pois “se a maior ginasta de todos os tempos pode ter os cuidados que ela merece e precisa, então eu também posso, independentemente da raça, status socioeconômico e gênero". Quando questionada, Biles afirmou que não mudaria os acontecimentos: "Eu acho que tudo acontece por uma razão e eu estou muito feliz por ter uma parceria com a Cerebral não só para me ajudar, mas para ajudar outras pessoas.”

O processo civilizador requer "de seus membros adultos uma diferenciação muito ampla das funções do id, ego e superego” (ELIAS, 1995ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995., p. 63). A atuação de uma celebridade esportiva, como Simone Biles, demanda a compreensão racional das suas possibilidades e limitações impostas pela configuração. Enxergar as relações entre a posição de atleta-celebridade, prescrita pela configuração, e a pessoa que se desenvolve nessa posição possibilita perceber as estratégias e as "fronteiras da elasticidade e da margem de manobra" (ELIAS, 2001ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 48) que a posição oferece.

No momento de anunciar publicamente a desistência, Biles utilizou um argumento “de rendimento esportivo” para cuidar da saúde mental. Ela afirmou não querer prejudicar a equipe, pois imaginava que sua performance seria baixa. Nesse momento, ela jogou estrategicamente o “jogo esportivo”, com seus valores e etiqueta; e mencionar somente a saúde mental talvez fosse insuficiente para condicionar o movimento configuracional que estava por vir. Era necessário empregar argumentos a serem reconhecidos e validados por aquelas pessoas. Porém, ela só pôde fazer isso porque estava em interdependência com outras atletas e treinadores da equipe, que a apoiaram e substituíram. Provavelmente, em outros esportes individuais nos quais não há atletas substitutos essa troca não seria possível e as coerções para não desistir seriam maiores.

O bloqueio para desempenhar atua como um gatilho que, ao mesmo tempo que revela relações psico e sociogenéticas, tensiona a constituição da atleta ginasta e as pressões impostas a ela (rendimento, habitus nacional, celebridade, abuso sexual, racismo, misoginia). Biles atuava para manter sua posição dentro do esporte ao agir e falar conforme a etiqueta exigida naquele espaço, e para aprofundar os processos de saúde mental que vivenciava.

Ao fim, a posição de celebridade possibilitou usar esse período para ter renda e visibilidade. A legitimidade social da sua desistência permitiu a sua atuação na publicidade em saúde, um deslocamento para outra rede de interdependências e fonte de recursos. Nesse momento, o equilíbrio tenso entre rendimento e saúde mental balançou em favor do segundo. É na posição de celebridade que ela atuou para reequilibrar a oscilação de tensões instaurada pela sua desistência.

Para Elias (1994ELIAS, Norbert. Teoria simbólica. Oeiras: Celta Editora, 1994., p. 5) "aquilo que não possui representação simbólica na língua de uma sociedade não é conhecido pelos seus membros". As ações de Biles tornaram-na conhecida no mundo esportivo de alto rendimento também como a atleta que mostrou que é possível abandonar uma competição de Jogos Olímpicos para cuidar da sua saúde mental. Enfim, um exemplo para outros atletas que podem estar sofrendo com questões parecidas. A mudança no equilíbrio de tensões na configuração ressaltou, para além da personagem empírica como objeto de pesquisa, a celebridade como representação simbólica da possibilidade de desistir de uma competição para cuidar da saúde mental.

4 CONCLUSÃO

Este estudo analisou a constituição da personagem Simone Biles e a configuração que a permitiu desistir de competir nos Jogos Olímpicos por questões de saúde mental. O balanço de tensão entre rendimento e saúde mental se movimentou e permeou a constituição da sua psique, a consolidação da ginástica como habitus nacional e a sua atuação como atleta-celebridade.

O caso de assédio sexual que ela, como uma mulher negra, sofreu modificou estruturas emocionais que se transformaram em mecanismos de defesa que acabaram por mudar a configuração. Apesar da constituição da ginástica como habitus nacional estadunidense e de autocoerções para não agir, ela foi capaz de vislumbrar, no papel de atleta-celebridade, uma oportunidade para naquele momento conciliar os seus cuidados pessoais com mudanças no esporte.

Ela atuou de forma racional e estratégica, sabendo das possibilidades e limitações, para conseguir o que queria; assim o fez, por exemplo, quando manteve um discurso de manutenção do rendimento no anúncio da sua desistência. Ela manejou, assim, a partir da sua conduta pessoal o papel de atleta-celebridade. Ícones da ginástica vieram e virão depois dela, porém somente ela foi capaz de incluir a desistência de competir e os cuidados de saúde mental como manobras de ação possíveis para os atletas dentro da configuração.

A partir da sua constituição psíquica de rendimento esportivo, obteve um deslocamento raro que modificou a configuração, em relações entre o “eu” e o “supereu”, a psique e a celebridade. De fato, ela só conseguiu atingir tal desenvoltura porque ocupava o papel de celebridade. Ela provavelmente não teria tido êxito caso fosse uma atleta pouco conhecida ou, ainda, seria menos provável que a configuração se modificasse para comportar tais elementos.

Em consequência de tal atitude e em acordo com a reportagem, o fato de ela ter ido embora acabou "aumentando o seu poder". Em resumo, o "passo atrás" de Biles não era exatamente para trás, nem para frente, mas era um deslocamento com força em direção à margem da configuração que acabou por alargá-la. Modificou a ponto de relativizar o conceito de esporte que coloca a vitória acima de qualquer coisa ou a qualquer custo, inclusive a própria saúde mental.

A saúde mental ocupa atualmente um lugar de reconhecida importância na percepção sobre as rotinas dos atletas, ao menos daqueles que se situam no alto rendimento. Simone Biles é, em alguma medida, responsável por isso. Depois do “caso Biles”, outros atletas abandonaram competições e/ou se afastaram do esporte para tratar problemas de saúde mental, porém esses casos não têm causado tanta repercussão. A configuração mudou e esse tema foi, em alguma medida, tirado de trás da cortina social e da consciência.

Cabe destacar que a pandemia de covid-19 colocou as questões de saúde mental em evidência. Dezesseis meses depois do início da pandemia, nos Jogos de Tóquio, essas discussões estavam fortemente presentes nos meios de comunicação e nas relações sociais. O entendimento de Biles de que essa ação no esporte era possível se dá precisamente quando esse tema reverbera na sociedade impulsionado pela pandemia. Em termos mais gerais, pode-se dizer que a saúde mental ocupa um lugar bastante privilegiado na escala de valores da sociedade ocidental contemporânea, e o “caso Biles” é agente e exemplo disso.

  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.

ÉTICA DE PESQUISA

A pesquisa seguiu os protocolos vigentes nas Resoluções 466/12 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil e o Guia de Integridade em Pesquisa Científica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*

*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasi

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2022
  • Aceito
    28 Out 2022
  • Publicado
    27 Dez 2022
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
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