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CONHECIMENTOS, AFETOS E JUSTIÇA COGNITIVA NO CURRÍCULO CULTURAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA

KNOWLEDGE, AFFECTIONS AND COGNITIVE JUSTICE IN THE CULTURAL CURRICULUM OF PHYSICAL EDUCATION

CONOCIMIENTO, AFECTOS Y JUSTICIA COGNITIVA EN EL CURRÍCULO CULTURAL DE EDUCACIÓN FÍSICA

Resumo

O presente artigo assume o desafio de confrontar as concepções de conhecimento de Michel Foucault, Boaventura de Sousa Santos, Walter Mignolo e Patricio Guerrero Arias com as experiências pedagógicas relatadas por docentes que afirmam colocar em ação o currículo cultural da Educação Física. Para tanto, foram analisados relatos de experiência publicados, em 2020, na coletânea Escrevivências da Educação Física cultural. Diante da impossibilidade de pré-determinar o conteúdo nessa proposta, conclui-se que professores e educandos produzem coletivamente, a cada encontro, conhecimentos marcados por afetos, sentimentos e emoções num processo criativo, pautado no corazonar e atravessado pela justiça cognitiva e afirmação das diferenças e da multiplicidade da vida.

Palavras-chave:
Conhecimento; Educação Física; Currículo; Cultura.

Abstract

This article takes on the challenge of confronting the knowledge concepts of Michel Foucault, Boaventura de Sousa Santos, Walter Mignolo and Patricio Guerrero Arias with the pedagogical experiences reported by teachers who claim to apply the cultural curriculum of Physical Education. To this end, the experience reports published in 2020 in the collection Escrevivências da Educação Física cultural were analyzed. Given the impossibility of pre-determining the content in this proposal, it is concluded that teachers and students collectively produce, at each meeting, knowledge marked by affections, feelings, emotions, in a creative process, based on the core and crossed by cognitive justice, affirmation of differences and the multiplicity of life.

Keywords:
Knowledge; Physical Education; Curriculum; Culture.

Resumen

Este artículo asume el desafío de confrontar los conceptos de conocimiento de Michel Foucault, Boaventura de Sousa Santos, Walter Mignolo y Patricio Guerrero Arias con las experiencias pedagógicas relatadas por docentes que pretenden poner en acción el currículo cultural de la Educación Física. Para ello, se analizaron relatos de experiencia publicados en 2020 en la colección Escrevivências da Educação Física cultural. Ante la imposibilidad de predeterminar el contenido de esta propuesta, se concluye que docentes y alumnos producen colectivamente, en cada encuentro, conocimientos marcados por afectos, sentimientos, emociones, en un proceso creativo, basado en el corazonar y atravesado por la justicia cognitiva, afirmación de las diferencias y la multiplicidad de la vida.

Palabras clave:
Conocimiento; Educación Física; Currículum; Cultura.

1 INTRODUÇÃO

Os debates promovidos por Lopes e Macedo (2011)LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011. e Silva (2015)SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias de currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. levam a pensar que o currículo escolar não só opera a transferência do conhecimento, mas também a sua constituição, na qual se destaca a relação intrínseca entre conhecimento e poder. O conhecimento não é algo exterior ao poder, não se opõe a ele ou o coloca em xeque, mas é parte inerente dele. Conhecimento e poder são lados da mesma moeda, caminham juntos.

Considerando que o conhecimento de que trata o chamado currículo cultural da Educação Física se relaciona às práticas corporais e às pessoas que delas participam (NEIRA, 2019NEIRA, Marcos Garcia. Educação Física cultural: inspiração e prática pedagógica. Jundiaí, SP: Paco, 2019.), vale perguntar: quem o produz? Que conhecimento vem sendo priorizado? Qual tem sido descartado ou negligenciado? A quem interessa os conhecimentos legitimados? Quem se prejudica com a negação dos seus conhecimentos? Sem pretender apresentar as respostas definitivas a essas indagações, o artigo fomenta um diálogo possível acerca do conhecimento nas aulas de Educação Física culturalmente orientadas.

Os trabalhos de Michel Foucault, Boaventura de Sousa Santos, Walter Mignolo e Patricio Guerrero Arias inspiraram a tessitura dos argumentos. Melhor dizendo, o pensamento disseminado por esses intelectuais permitiu atentar aos conhecimentos postos em circulação pelo currículo cultural de Educação Física.

Foucault (2002)FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. olha com desconfiança para a maneira como o conhecimento é apresentado pelo modus operandi ocidental. Apanhado pela ideia nietzschiana, endossando ainda mais suas oposições à filosofia tradicional, deixa entender que o conhecimento não pode ser tratado dentro das circunstâncias universais difundidas na modernidade, pois reside na ordem do resultado, do acontecimento, do efeito.

Por sua vez, Santos (2010aSANTOS, Boaventura Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010a.; 2019SANTOS, Boaventura Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.), mediante o debate promovido pelas epistemologias do Sul, compreende que os conhecimentos constituem os sujeitos envolvidos nas práticas sociais, no interior de uma história extremamente particularizada. As verdades ditas sobre as coisas e a relação estabelecida com os objetos e entre sujeitos têm uma notória característica contextual, provisória, marcada por lutas.

Mignolo (2018)MIGNOLO, Walter. The conceptual triad modernity/coloniality/decoloniality. In: MIGNOLO, Walter; WALSH, Catherine. On decoloniality: concepts, analytics, práxis. Durham: Duke University Press, 2018., a seu tempo, acena que a luta pela descolonização passa necessariamente por uma transformação do pensamento e uma revolução na maneira de conceber o conhecimento. Sai em defesa da decolonialidade, um movimento que se concretiza a partir da introdução, nos processos produtivos, de saberes historicamente excluídos. Ao introjetá-los, choques e encontros acontecem e um vir a ser ganha corpo, notoriedade, pois permite tornar-se aquilo que foi abatido, obscurecido pela colonialidade.

Finalmente, Guerrero Arias (2010)GUERRERO ARIAS, Patrício. Corazonar el sentido de las epistemologias dominantes desde las sabidurias insurgentes para construir otros de la existência. Calle 14: Revista de investigacion em el campo del arte, v. 4, n. 5, jul./dec., 2010, p. 80-94. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=279021514007. Acesso em: 2 mar. 2023.
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cria o conceito corazonar como suspeita da estrutura social atual. Baseado nos ensinamentos do povo Kitu Kara, denuncia um suposto esquecimento, pelo debate acadêmico, da colonialidade da afetividade. Falar dessa dimensão é recordar o sequestro do coração e dos afetos para tornar mais fácil a dominação das subjetividades, do imaginário, do desejo, do corpo, territórios onde se constrói a poética da liberdade e da existência. Sensibilidade e afetividade também foram colonizadas. Para o autor, se o conhecimento nasce da luta contra as colonialidades, é de suma importância considerar as emoções, os sentimentos.

Essas colocações fazem desconfiar daquilo que se convencionou chamar de conteúdo curricular. Na visão de Gimeno Sacristán (1998)SACRISTÁN, José Gimeno. O que são os conteúdos do ensino? In: SACRISTAN, J. Gimeno; GÓMEZ, A. I. Pérez. Compreender e transformar o ensino. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 149-196., conteúdo engloba as diversas experiências, aprendizagens e situações que preenchem o tempo escolar. Em se tratando do currículo cultural da Educação Física, é pertinente atentar para o que pode ser conteúdo nessa vertente de ensino, uma vez que busca afastar-se do projeto moderno pautado na regulação/emancipação para assumir o compromisso educacional de formar um sujeito solidário, sensível às diferenças, alguém que compreenda que toda e qualquer pessoa tem o direito à vida e que todas as práticas corporais, enquanto artefatos culturais que representam os diversos grupos que coabitam a sociedade, desfrutam do mesmo direito de constituir a experiência curricular.

O trabalho de Santos (2016)SANTOS, Ivan Luis. A tematização e a problematização no currículo cultural de Educação Física. 2016. 246 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. estreitou a relação do currículo cultural com a concepção de tema cultural adotada por Corazza (1997)CORAZZA, Sandra Mara. Planejamento de ensino como estratégia de política cultural, In: MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa. Currículo: questões atuais. Campinas: Papirus, 1997. p. 103-143.. A autora reterritorializa a noção freiriana de tema gerador a partir da argumentação pós-estruturalista. Assim, a ocorrência social de qualquer brincadeira, dança, luta, ginástica ou esporte passa a ser vista como tema cultural. O efeito prático desse movimento para Neira (2011)NEIRA, Marcos Garcia. O currículo cultural da Educação Física em ação: a perspectiva dos seus autores. 2011. 323 f. Tese (Livre-Docência em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. e Santos (2016)SANTOS, Ivan Luis. A tematização e a problematização no currículo cultural de Educação Física. 2016. 246 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. é a criação de condições para colocar os conhecimentos acessados pelos estudantes no cenário educacional, transformando-os em conteúdos curriculares. Os autores partem do pressuposto que os conhecimentos circulam por meio das práticas culturais. Logo, o conteúdo não se estabelece previamente, pois emerge durante a tematização1 1 De acordo com Santos (2016), a tematização implica um conjunto de ações pedagógicas que partem da ocorrência social das práticas corporais escolhidas como objeto de estudo. De maneira geral, diz respeito ao trabalho pedagógico sobre determinada manifestação corporal, do primeiro dia ao último. Sendo assim, conforme Neira (2016), consiste em propiciar aos estudantes uma compreensão mais elaborada dos inúmeros aspectos pertencentes às práticas corporais. . O conteúdo surge à medida que docente e estudantes se dedicam a compreender como a prática corporal elencada como tema de estudo e as pessoas que dela participam tornaram-se aquilo que fazem e dizem sobre elas, ao identificar e problematizar as diferentes formas de ocorrência social e as representações colocadas em circulação.

No decorrer do trabalho pedagógico, entendido por tematização, o conhecimento ganha uma forma fascicular, não há ramificações, o que existe são pontos que se originam de qualquer parte e se deslocam para quaisquer outros pontos. Tomado pelas contribuições teóricas de Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v. 1., Santos (2016SANTOS, Ivan Luis. A tematização e a problematização no currículo cultural de Educação Física. 2016. 246 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016., p. 66) enfatiza:

É possível afirmar que na proposta do currículo cultural da Educação Física o conhecimento é tecido rizomaticamente, em oposição à maneira segmentada de se conceber a realidade, bem como o modo positivista de se construir conceitos. Dito de outra forma, a verticalidade das árvores nas quais erigiram os conhecimentos “verdadeiros” dos currículos totalizantes da Educação Física, na perspectiva cultural, dá lugar à horizontalidade dos rizomas, na qual a produção do conhecimento é sempre provisória, múltipla, em devir e baseada na diferença.

Em termos práticos, diante de um fato, o sujeito mobiliza variados conhecimentos e tenta estabelecer interlocuções. A visão rizomática do conhecimento não estabelece início, muito menos um fim, para o processo de conhecer. Logo, toda a dinâmica de linearidade e compartimentação produzida pela modernidade perde sentido, inexiste ordem ou lógica para apropriar-se dos conhecimentos.

Partindo das noções de conhecimento e tematização acima explicitadas, o presente artigo analisa as experiências pedagógicas publicadas na coletânea Escrevivências da Educação Física cultural com o objetivo de identificar a especificidade dos conhecimentos acessados pelos estudantes nessa perspectiva de ensino. Compuseram o corpus empírico deste estudo sete relatos de experiência escolhidos aleatoriamente dentre os dezesseis que compõem a obra.

Conforme explicitado na apresentação, o volume “traz a público relatos de experiências de professoras e professores que afirmam colocar em ação a perspectiva cultural da Educação Física, também chamada currículo cultural” (p. 7). Macedo (2018)MACEDO, Elizabeth. “A base é a base”. E o currículo o que é? In: AGUIAR, Márcia Angela; DOURADO, Luiz Fernandes (org.) A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. Recife: ANPAE, 2018. p. 28-33. Disponível em: https://www.anpae.org.br/BibliotecaVirtual/4-Publicacoes/BNCC-VERSAO-FINAL.pdf. Acesso em: 2 mar. 2023.
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concebe o “currículo em ação” como experiência imprevisível ao englobar mais do que conhecimentos a serem transmitidos, abrindo-se a situações que permitam aos estudantes compreender o mundo em que vivem. Trata-se de uma abertura ao que não é nem deve ser planejado, adotando o sentido de educação como subjetivação.

2 CONHECIMENTO ENQUANTO INVENÇÃO COLETIVA

Para Foucault (2002)FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002., o conhecimento pode ser compreendido como um texto, uma produção discursiva, um efeito, um produto de lutas. O ato de conhecer não é simplesmente apreender o mundo na consciência, mas sim uma possibilidade de encontros de narrativas marcadas por intensos fluxos de saber e poder. O conhecimento, aqui, não é visto numa relação direta entre sujeito e objeto, dentro de uma dupla relação de apreensão, na qual o sujeito apreende o objeto e esse apreende o sujeito. Muito pelo contrário, é visto como fruto de embates entre diferentes modos de olhar as práticas sociais e seus sujeitos, logo, é uma invenção. Nos dizeres de Neira (2019)NEIRA, Marcos Garcia. Educação Física cultural: inspiração e prática pedagógica. Jundiaí, SP: Paco, 2019., a perspectiva cultural da Educação Física toma o conhecimento como intervenção, acontecimento e não como representação. Algo radicalmente distinto daquilo que aventam as demais propostas para o ensino do componente (GRAMORELLI; NEIRA, 2009GRAMORELLI, Lilian Cristina; NEIRA, Marcos Garcia. Dez anos de Parâmetros Curriculares Nacionais: a prática da Educação Física na visão de seus atores. Movimento, v. 15, n.4, p.107-126, out./dez., 2009. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.6863
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).

Santos (2019)SANTOS, Boaventura Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. entende o conhecimento e o saber como sinônimos, embora sejam perceptíveis algumas diferenças no uso dos termos. Lembra que a palavra conhecer vem do latim cognosco, “obter conhecimento de”, ou seja, um trabalho estritamente intelectual, “passar a ter conhecimento através do exercício das faculdades cognitivas”. O significante saber também tem origem latina, sapio, quer dizer, “ter conhecimento”, mas também “ter gosto”, “ter cheiro”, “ter bom paladar” ou “ter discernimento”.

Derrubadas as fronteiras entre conhecimento e saber, fica a marca do perspectivismo que atravessa o próprio conhecimento. Foucault (2002)FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. explica que o conhecimento tem um caráter perspectivo, em estreita relação com o local de produção em que os sujeitos se encontram.

Veja-se uma cena narrada num dos relatos:

Percebi que o deslocamento dos estudantes do 6º ano entre a sala de aula e os espaços onde realizavam as atividades de Educação Física incomodava os profissionais da escola por conta do barulho. Toda vez que se dirigiam à quadra para as vivências corporais do projeto de queimada, faziam-no correndo, gritando, e dava para perceber o transtorno causado. Quando terminamos a tematização da queimada, perguntei à turma “a gente corre pra quê?” Os estudantes responderam: para se divertir, para competir, para ficar magro, para fugir da polícia. Dei prosseguimento à problematização: quando a gente corre para se divertir, para competir, para ficar magro? Isso acontece nos mesmos locais? As mesmas pessoas? Quais são os tipos de corrida que se aproximam do que vocês disseram? (NEVES, 2020NEVES, Marcos Ribeiro. A gente corre pra quê? In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 161-173., p. 163).

Toscano e Silva (2015)TOSCANO, Stefano Gonçalves Regis; SILVA, Danilo José Viana. A questão do conhecimento e da verdade em Michel Foucault: uma leitura a partir do perspectivismo. Ágora Filosófica, v. 15, n. 1, p. 195-213, jan./jun., 2015. apoiam-se em Foucault para sublinhar que o olhar em perspectiva não é ingênuo, muito menos uma espécie de vale tudo. O conhecimento resulta da disputa de perspectivas em torno de seres, coisas, fatos, fenômenos. A produção do conhecimento pode estar amplamente alinhada ao contexto, posicionando-se de forma condicionada, mas também pode subvertê-lo. A tentativa do professor em buscar identificar as razões que motivam os estudantes a correrem e o modo como compreendem a corrida deixa pistas de como o conhecimento é afirmado no currículo cultural da Educação Física. A convocação das crianças para exposição de seus conhecimentos demonstra apreço pela multiplicidade, bem como sensibilidade para as disputas existentes em torno dos significados da corrida.

O caráter contextual do conhecimento também é enfatizado por Mignolo (2007)MIGNOLO, Walter. El pensamento decolonial: desprendimiento y apertura. In: CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, Bogotá, 2007. p. 25-46., para quem o pensamento é localizado, porém esforços não faltam para deslocalizá-lo. Não existe neutralidade na produção e disseminação do conhecimento, dada a vinculação entre o sujeito enunciador e seu lugar epistêmico étnico-racial, sexual, de gênero.

Tome-se para análise um fragmento de outro relato:

Analisando o que as crianças tinham dito sobre o dançar, o local de origem de suas famílias, as práticas de dança que conheciam e as localidades onde se performavam, elegemos a ciranda como nosso tema de estudo. Isso se deu, sobretudo, por não ter surgido na fala das crianças, além de ser uma manifestação criada por mulheres do território de origem da comunidade onde a escola está inserida. Importante lembrar que até aquele momento as aulas haviam sido palco de manifestações inventadas apenas por homens (TORRES; QUARESMA; SANTOS JUNIOR, 2020SANTOS JUNIOR, Flávio Nunes. Subvertendo as colonialidades: o currículo cultural de Educação Física e a enunciação dos saberes discentes. 2020. 184f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020., p. 44).

Uma dança criada e recriada por mulheres nordestinas tem potencial para gerar efeitos singulares na constituição das subjetividades estudantis. Algo radicalmente distinto aconteceria se fossem abordadas práticas corporais hegemônicas. Nesses casos, pairaria uma certa isenção sobre as manifestações abordadas na Educação Física, pois, nos dizeres de Mignolo (2007)MIGNOLO, Walter. El pensamento decolonial: desprendimiento y apertura. In: CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, Bogotá, 2007. p. 25-46., seriam des-localizadas. Todavia, enquanto artefatos da cultura, esportes, ginásticas, brincadeiras, lutas e danças carregam consigo valores e conhecimentos exaltados por quem os produzem e reproduzem. Portanto, permitir que as aulas sejam palco para invenção coletiva da ciranda, sem dúvida, favorece o contato com saberes inacessíveis naqueles currículos restritos à cultura euro-estadunidense.

As razões apresentadas pelos professores para afirmar a escolha dialogam com o alerta feito por Mignolo (2018)MIGNOLO, Walter. The conceptual triad modernity/coloniality/decoloniality. In: MIGNOLO, Walter; WALSH, Catherine. On decoloniality: concepts, analytics, práxis. Durham: Duke University Press, 2018. acerca do lugar epistêmico do enunciador. Eles se deixaram agenciar por um gesto político que favoreceu a conexão entre o conhecimento produzido no encontro das aulas e o que está estritamente associado à história de vida das crianças. Questões de gênero, de classe ou étnico-raciais são apenas alguns dos aspectos presentes na cena.

Foucault (2002)FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. é incisivo ao declarar o conhecimento como fator distante da natureza humana. Não há um germe do conhecimento no comportamento humano ou instinto humano: o que existe é uma relação. O conhecimento se coloca como resultado do jogo, do afrontamento pautado entre os instintos. É no encontrar, no chocar, no bater dos instintos que o conhecimento é produzido. Tal processo é facilmente identificado na passagem abaixo:

Vivenciamos dez brincadeiras diferentes, uma ou duas a cada semana. As vivências ocorreram conforme a compreensão que tivemos das regras lidas no livro. Ao longo das atividades e a partir de diferentes problematizações, as práticas foram ressignificadas segundo as necessidades, interesses, sugestões e desejos das crianças. Houve modificações de regras, formas de jogar e também nas significações anunciadas pelas crianças sobre a África, os africanos e as brincadeiras africanas e brasileiras. (GONÇALVES; DUARTE, 2020GONÇALVES, Tathiana; DUARTE, Leonardo de Carvalho. Tematizando as brincadeiras africanas na EMEI Nelson Mandela. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 207-219., p. 214).

Observa-se o que diz Foucault (2002)FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. acerca da invenção do conhecimento. Não há nada de instintivo, muito menos natural, pelo contrário, o conhecimento é contra-instintivo e contranatural. A forma como o trabalho se constitui em consonância aos fluxos no momento da realização das brincadeiras potencializa uma circunstância de total imprevisibilidade na tematização. Faz emergir conhecimentos múltiplos, conectados com as experiências dos envolvidos. Definir o “jeito certo” de realizar as brincadeiras africanas está fora de questão. O que se vê é a invenção que atravessa o imaginário dos participantes.

Um dos estudantes que gosta de futebol, ao notar que um dos meninos havia erguido o braço para indicar que não gostava, começou a chamar a atenção dele, dizendo: “abaixa a mão! Abaixa a mão! Você é homem! Tem que gostar, tem que gostar! Tem que ser homem!”. Enquanto isso, outros comentaram: “professor, as meninas não contam” (SOUZA, 2020SOUZA, Leandro Rodrigo Santos. Futebol além das bananas. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 115-146., p. 116).

O menino assumir perante o grupo que não gosta de futebol é motivo de estranhamento, de chacota, merece repreensão pois, na sociedade atual, ainda é latente o ultrajoso discurso de que meninos precisam se envolver no futebol, deixando as práticas menos vigorosas para as meninas. Isso demarca a relação opressora envolvida na produção do conhecimento. Para Foucault (2002)FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002., a natureza a ser conhecida não é natural, não há uma afinidade pré-estabelecida entre aquilo que se pretende conhecer e o conhecimento, o que existe é uma relação de luta, dominação, subserviência, poder e força, violação e violência. Por esquematizar e ignorar as diferenças, o conhecimento também pode ser um desconhecimento, é sempre um elemento que vislumbra maldosa e agressivamente sujeitos, coisas, situações.

Nessa conjuntura, a relação entre conhecimento e objeto, por conter os impulsos de rir, deplorar e odiar, não tem nada de assimilação e adaptação, mas sim de distância e dominação - “Abaixa a mão! Abaixa a mão! Você é homem”. Foucault (2002)FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. assinala que quando se trata de conhecimento não se pode afirmar felicidade, muito menos amor, o que há na verdade é ódio, hostilidade, sistema precário de poder. Toscano e Silva (2015)TOSCANO, Stefano Gonçalves Regis; SILVA, Danilo José Viana. A questão do conhecimento e da verdade em Michel Foucault: uma leitura a partir do perspectivismo. Ágora Filosófica, v. 15, n. 1, p. 195-213, jan./jun., 2015. destacam que tal situação viabiliza um saber heterogêneo, sobretudo porque envolve conflito e relações de luta entre os sujeitos. Caso se deseje realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, deve-se compreender as relações de poder e as lutas que o circundam.

Em seu enfrentamento à concepção de ciência como única forma de saber válida a todos os grupos sociais, Santos (2010b)SANTOS, Boaventura Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula. (org). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010b. p. 31-83. questiona os conhecimentos puros, completos. Na prática, o que se observa é uma constelação de conhecimentos. A ciência moderna, como todo tipo de conhecimento, é apenas uma forma de particularismo, mas tem como pretexto constituir poder na tentativa de definir e dizer o que as coisas são. Desafiando essa dinâmica produtora do fascismo epistemológico, o autor defende uma ecologia de saberes ou uma ecologia de prática de saberes.

A ecologia de saberes procura dar consistência epistemológica ao saber propositivo. Trata-se de uma ecologia porque assenta no reconhecimento da pluralidade de saberes, da autonomia de cada um deles e da articulação sistêmica, dinâmica e horizontal entre eles. Assenta na independência complexa entre os diferentes saberes que constituem o sistema aberto do conhecimento em processo constante de criação e renovação. O conhecimento é interconhecimento, é reconhecimento, é autoconhecimento (SANTOS, 2010aSANTOS, Boaventura Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010a., p. 157).

Por se tratar de uma epistemologia da luta, na ecologia de saberes cruzam-se conhecimentos. Na tematização das brincadeiras relatada por Gonçalves e Duarte (2020)GONÇALVES, Tathiana; DUARTE, Leonardo de Carvalho. Tematizando as brincadeiras africanas na EMEI Nelson Mandela. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 207-219., as práticas foram ressignificadas segundo as necessidades, interesses e desejos das crianças, reafirmando o quanto o encontro entre diferentes corpos tem potencial para estabelecer múltiplas conexões, permitindo vislumbrar inúmeras possibilidades de se constituir uma dada prática corporal.

Santos (2010a)SANTOS, Boaventura Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010a. declara que a relação tanto de sujeitos entre si quanto de sujeitos com a natureza envolve uma série de saberes. Infelizmente, o conhecimento científico foi posto como a única possibilidade de intervir no real. Como as intervenções competem a quem domina o conhecimento científico, pode-se assegurar que a injustiça cognitiva forneceu as bases para a injustiça social. Portanto, o enfrentamento de ambas suplica uma ecologia de saberes.

A variedade das temáticas abordadas e a qualidade das narrativas que recebemos evidencia os efeitos positivos do percurso formativo que buscou entretecer os conhecimentos produzidos pelos professores e professoras em atuação com os saberes científicos, sem desconsiderar o repertório dos próprios estudantes (NEIRA, 2020NEIRA, Marcos Garcia. (org.) Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. Disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/491. Acesso em: 09 jan. 2023
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, p. 30).

O fragmento acima foi extraído do relato de uma experiência no curso de licenciatura, em que o docente conectou os conhecimentos científicos necessários para a compreensão do currículo cultural às narrativas que professores e professoras produzem sobre aquilo que vivem na escola junto aos estudantes. As intersecções criadas entre diferentes conhecimentos revelam-se por meio de uma prática política e pedagógica extremamente necessária, capaz de enriquecer a formação docente.

À pergunta “se o conhecimento científico fosse distribuído a todos os sujeitos as desigualdades seriam erradicadas?” Santos (2010a)SANTOS, Boaventura Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010a. responde que não basta partilhar o conhecimento valorizado e produzido pela ciência para fomentar uma justiça cognitiva, pois esse conhecimento tem suas limitações intrínsecas quanto à capacidade de intervir no real.

Intercambiar, num curso de licenciatura, os saberes produzidos coletivamente no chão da escola, os enunciados dos estudantes e aqueles herdeiros da tradição acadêmica consiste num claro apelo à ecologia de saberes, pois demarca a coexistência entre o que a ciência produz e os saberes ditos não-científicos, sobreviventes do epistemicídio, que emergem das lutas contra a desigualdade e discriminação.

Nos caminhos pedagógicos, surgiu a possibilidade de rasgar as ruas da comunidade para vivê-la de uma outra forma, circular pelas vias, becos e vielas para perceber espaços onde se faz possível a prática da dança. Quando se aproximava o momento de sair, o corpo transbordava ansiedade, era um instante de grande espera, sair da escola e vivenciar a quebrada. Aparentemente um gesto tão simples, mas carregado de sensações e expectativas. Andar e dançar com as/os colegas e docentes era um fato a ser comemorado, percebíamos a vontade de mostrar onde viviam, caminhavam, habitavam (TORRES, QUARESMA E SANTOS JUNIOR, 2020SANTOS JUNIOR, Flávio Nunes. Subvertendo as colonialidades: o currículo cultural de Educação Física e a enunciação dos saberes discentes. 2020. 184f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020., p. 47).

A ecologia de saberes horizontaliza as relações, quebra a verticalidade, a hierarquização fomentada pela racionalidade moderna e sua lógica universal, tida como natural. Sair da escola para “circular pelas vias, becos e vielas para perceber espaços onde se faz possível a prática da dança é um esforço mais que suficiente para borrar o domínio do conhecimento científico no currículo. É um gesto sensível à escuta, ao cheiro, ao calor das práticas marginalizadas. Estando a favor de uma justiça cognitiva, “vivenciar a quebrada” abala os discursos que produzem o lugar como território em que imperam violência, miséria e pobreza. Posiciona as pessoas como autoras de conhecimentos que merecem tanto destaque quanto aqueles fabricados pela ciência. Com isso, abre-se o chamado para uma epistemologia polifônica e prismática:

Polifônica, porque os diferentes saberes são simultaneamente partes e totalidades, e tal como numa peça musical, têm desenvolvimentos autônomos, ainda que convergentes. Prismática, porque se cruzam nela múltiplas epistemologias cuja configuração muda consoante à ‘disposição’ dos diferentes saberes numa dada prática de saberes (SANTOS, 2010aSANTOS, Boaventura Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010a., p. 161).

Uma justiça cognitiva fomentada pela ecologia de saberes também pode ser observada quando o currículo constituído coletivamente se permite debater e através do qual se pode vivenciar, por exemplo, brincadeiras africanas (GONÇALVES; DUARTE, 2020GONÇALVES, Tathiana; DUARTE, Leonardo de Carvalho. Tematizando as brincadeiras africanas na EMEI Nelson Mandela. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 207-219.) ou uma dança inventada e desenvolvida por mulheres (TORRES; QUARESMA; SANTOS JUNIOR, 2020SANTOS JUNIOR, Flávio Nunes. Subvertendo as colonialidades: o currículo cultural de Educação Física e a enunciação dos saberes discentes. 2020. 184f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.) - dado que são condutas democráticas, pois introduzem na instituição escolar práticas corporais que contrastam com a já consolidada dinâmica autoritária da branquitude, machista, colonial, heteronormativa, cristã.

Mignolo (2018)MIGNOLO, Walter. The conceptual triad modernity/coloniality/decoloniality. In: MIGNOLO, Walter; WALSH, Catherine. On decoloniality: concepts, analytics, práxis. Durham: Duke University Press, 2018. considera o conhecimento elemento central para perceber, sentir, descrever as relações. Situa o conhecimento como constituidor da política, economia e história. O autor, ao atacar as estruturas que organizam a colonialidade do conhecimento, sai em defesa da decolonialidade, movimento que escancara o que está escondido nos domínios da modernidade/colonialidade2 2 Quijano (2005) alerta que um padrão de poder colonial, capitalista e eurocêntrico compôs a modernidade. A produção intelectual da época ocorreu dentro de uma perspectiva de conhecimento empenhada em constituir um único modo de ser, de existir. Neste caso, não há modernidade sem colonialidade. De acordo com Maldonado-Torres (2007), a colonialidade se refere ao padrão de poder que emergiu do resultado do colonialismo moderno. Em vez de restringir-se a uma relação formal de poder entre povos e nações, diz respeito ao modo como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do capitalismo mundial e da ideia de raça. . Faz uma aposta para libertar o conhecimento, desvinculá-lo das narrativas da modernidade, dos fluxos de energia que o mantém ligado à matriz colonial. Esse é o caso da tematização da brincadeira de taco que Irias (2020IRIAS, Everton Arruda. Jogo de taco e o lazer na quebrada. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 65-70., p. 68) relatou:

Conforme o trabalho avançava, alguns alunos começaram a trazer outros tacos de madeira para a escola, alegando que os bastões de cabo de vassoura não eram bons o suficiente para rebater a bolinha. Conversamos sobre as características e eficiência dos tacos, e também sobre a melhor maneira de lançar a bolinha para cada tipo de taco. Fizemos a leitura de um texto abordando as possíveis origens do jogo. Em outro texto, conhecemos as frases pronunciadas pelo país afora, assim como outras interpretações para aquelas pronunciadas pelos(as) alunos(as) de cada turma. O mesmo aconteceu com os nomes que a brincadeira recebe em outras regiões (bets, bets altas, tacobol, bets ombro etc.). Também assistimos vídeos que mostram diversos espaços e formas de jogar, entre eles, uma competição na Zona Norte de São Paulo e um jogo numa aldeia indígena.

Possibilitar que os significados acerca das práticas corporais se encontrem já é o bastante para tolher um sistema voltado ao domínio, à colonialidade do saber. A postura de ouvinte do professor, agenciada pelo princípio ético-político de favorecer a enunciação dos saberes discentes (SANTOS JÚNIOR, 2020), acolhe os estudantes no desejo de expor suas experiências. Esse processo descaracteriza a centralidade do docente como detentor de conhecimentos científicos a serem transferidos. Na verdade, permite assegurar um aprender com. Professor e estudantes, ao produzirem encontros, conectam-se e inventam juntos os conhecimentos da brincadeira (IRIAS, 2020IRIAS, Everton Arruda. Jogo de taco e o lazer na quebrada. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 65-70.; GONÇALVES; DUARTE, 2020GONÇALVES, Tathiana; DUARTE, Leonardo de Carvalho. Tematizando as brincadeiras africanas na EMEI Nelson Mandela. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 207-219.), da dança (TORRES; QUARESMA; SANTOS JUNIOR, 2020SANTOS JUNIOR, Flávio Nunes. Subvertendo as colonialidades: o currículo cultural de Educação Física e a enunciação dos saberes discentes. 2020. 184f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.) e da corrida (NEVES, 2020NEVES, Marcos Ribeiro. A gente corre pra quê? In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 161-173.).

Quando recorre à historiografia da prática corporal, propondo a leitura de um texto que aborda as origens do taco e, na sequência viabiliza o acesso a diferentes formas de compreender a brincadeira, Irias (2020)IRIAS, Everton Arruda. Jogo de taco e o lazer na quebrada. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 65-70. desloca a ideia do conhecimento como algo natural, propiciando que a turma o compreenda como invenção, constituição das relações, das subjetividades. Segundo Mignolo (2018)MIGNOLO, Walter. The conceptual triad modernity/coloniality/decoloniality. In: MIGNOLO, Walter; WALSH, Catherine. On decoloniality: concepts, analytics, práxis. Durham: Duke University Press, 2018., esse movimento fissura a colonialidade e altera seus fluxos, pois evidenciam-se as muitas histórias da mesma manifestação, suas várias interpretações.

Isso posto, é pertinente agregar ao debate sobre o conhecimento um aspecto desprezado pela racionalidade moderna e que, curiosamente, passou despercebido pela teoria curricular cultural da Educação Física (NEIRA, 2008NEIRA, Marcos Garcia. A Educação Física em contextos multiculturais: concepções docentes acerca da própria prática pedagógica. Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 2, p.39-54, jul./dez., 2008., 2010NEIRA, Marcos Garcia. Análises das representações dos professores sobre o currículo cultural da Educação Física. Interface, v. 14, n. 35, p. 783-795. dez. 2010. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832010005000026
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, 2015NEIRA, Marcos Garcia. O currículo cultural da Educação Física: uma resposta aos dilemas da contemporaneidade. Revista Linhas, v. 06, n. 31, p. 276-304, mai/ago, 2015. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1984723816312015276. Acesso em: 2 mar. 2023.
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, 2019; NEIRA; NUNES, 2008NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Pedagogia da cultura corporal: crítica e alternativas. 2. ed. São Paulo: Phorte, 2008., 2009NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Educação Física, currículo e cultura. São Paulo: Phorte, 2009., 2020NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. As dimensões política, epistemológica e pedagógica do currículo cultural da Educação Física. In: BOSSLE, Fabiano; ATHAYDE, Pedro; LARA, Larissa. Educação Física escolar. Natal: EDUFRN, 2020. p. 25-43., 2022NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari (org.). Epistemologia e didática do currículo cultural da Educação Física. São Paulo: FEUSP, 2022.; SANTOS, 2016SANTOS, Ivan Luis. A tematização e a problematização no currículo cultural de Educação Física. 2016. 246 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.). Trata-se da afetividade, da emoção.

Guerrero Arias (2010)GUERRERO ARIAS, Patrício. Corazonar el sentido de las epistemologias dominantes desde las sabidurias insurgentes para construir otros de la existência. Calle 14: Revista de investigacion em el campo del arte, v. 4, n. 5, jul./dec., 2010, p. 80-94. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=279021514007. Acesso em: 2 mar. 2023.
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ensina que a sensibilidade caminha lado a lado com a razão, porém as estruturas da modernidade/colonialidade as separaram. Por isso, recorre ao termo corazonar como resposta insurgente às dicotomias excludentes e dominadoras do Ocidente, que tentam separar o sentir do pensar, o coração da razão. Corazonar é a reintegração, é recolocar a dimensão afetiva numa condição de igualdade em relação à razão. Não existe centro, muito pelo contrário, busca-se descentrar, fraturar a hegemonia da razão. O que se pretende é dar afetividade à razão. Isso é uma questão de vida.

Santos (2019)SANTOS, Boaventura Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. segue o mesmo raciocínio com as epistemologias do Sul, propondo que o conhecimento seja aquecido pelas emoções, um conhecimento corporizado. Quando se observam as lutas sociais, nota-se a interlocução intensa entre argumentos, racionalidades, desgostos, alegrias, amores, ódios, festas e luto.

Razões, conceitos, pensamentos, análises ou argumentos são insuficientes para alimentar ou mobilizar o conhecimento, embora não se desmereça a importância que eles têm na luta. Por mais necessários e relevantes que sejam, estão intensamente marcados por emoções, afetos e sentimentos. A mobilização e atuação dos conhecimentos são aquecidas pelas emoções, um aquecimento que proporciona criatividade e disposição para correr riscos (SANTOS, 2019SANTOS, Boaventura Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.). Do ponto de vista das epistemologias do Sul, a distinção entre racionalidade e irracionalidade é insustentável. Aquecer os conceitos significa transformar a latência em potência, a ausência em emergência. Santos (2019SANTOS, Boaventura Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 154) também se guia pelo corazonar:

Corazonar significa experienciar o infortúnio ou o sofrimento injusto dos outros como se fossem próprios e estar disponível para se aliar à luta contra essa injustiça, ao ponto mesmo de correr riscos. Significa acabar com a passividade e fortalecer o inconformismo perante a injustiça. Corazonar nunca significa que as emoções deem origem a uma falta de controle. Pelo contrário, as emoções são a energia vital que impele as boas-razões-para-agir a passarem à ação ponderada. Corazonar produz um efeito de aumento por meio do qual um mundo remoto e desconhecido se torna próximo e reconhecível. Corazonar é uma forma amplificada de ser-com, pois faz crescer a reciprocidade e a comunhão. É o processo revitalizador de uma subjetividade que se envolve com as outras, destacando seletivamente aquilo que ajuda a fortalecer e a ser corresponsável. Corazonar não se enquadra nas dicotomias convencionais, sejam elas mente/corpo, interno/externo, privado/público, individual/coletivo ou memória/expectativa. Corazonar é um sentir-pensar que junta tudo aquilo que as dicotomias separam. Visa ser instrumentalmente útil sem deixar de ser expressivo e performativo (SANTOS, 2019SANTOS, Boaventura Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019., p. 154).

Razões e argumentos, se distantes do calor das emoções e dos afetos, tendem a minguar. Todavia, não se pode esboçar um planejamento do corazonar, sobretudo porque acontece de modo insondável, em meio à luta, nas relações sociais, em interações marcadas por injustiças. É um agir criativo com vistas a enfrentar e solucionar problemas (SANTOS, 2019SANTOS, Boaventura Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.). Assumir que até aquele momento as aulas haviam sido palco de manifestações inventadas apenas por homens com intuito de propor uma reparação, como fizeram Torres, Quaresma e Santos Júnior (2020)TORRES, Ana Carolina; QUARESMA, Felipe Nunes; SANTOS JÚNIOR, Flávio Nunes. Corpos In-transe: a ciranda e o funk no jogo por conhecimentos e afetos outros In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 42-64. é um traço inexorável de afetação pelo corazonar.

Certo dia, enquanto caminhávamos da aula para a quadra, um automóvel passava na rua em frente à escola, divulgando as atrações do circo instalado nas proximidades. Quando o alto-falante tocou Movimento da Sanfoninha da cantora Anita, vários estudantes repetiram apenas a gestualidade que fizeram durante as vivências da zumba. Isso me fez pensar que no segundo semestre poderíamos abordar a dança (...) propus a realização de uma entrevista com pessoas diferentes sobre o tema do semestre (...) em relação ao funk não faltaram manifestações de reprovação: “essa música é de gente indecente”; “só fala palavrão”; “tem apelo sexual”; “incentiva o consumo de drogas”, “expõe a mulher como objeto sexual” (...) perante os relatos das entrevistas e falas dos alunos, realizei novas pesquisas sobre o passinho dos maloka e o funk, e organizei uma apresentação em power point com os assuntos que emergiram. Abordei a história do funk, desde o movimento iniciado por James Brown, nos Estados Unidos, que também sofreu perseguições e proibições em algumas cidades, assim como aconteceu com o rap, samba e capoeira, produtos das culturas periféricas. Ressaltei que o termo “maloca” é associado a um contexto negativo, funcionando como marcador de identidade de um grupo ou pessoa, basicamente, morador da periferia. (...) A presença dos dançarinos foi muito significativa para nosso trabalho. Pudemos conhecer um pouco mais sobre a prática corporal e sobre um grupo que tanto influencia os jovens da periferia, desde sua forma de vestir, o modo de falar, passando pelo corte de cabelo (CARVALHO, 2020CARVALHO, Vinicius Paixão. Passinho dos maloka nas aulas de Educação Física. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 220-228., p. 223-225).

A sensibilidade docente para aquilo que ocorre na comunidade, como mostram Carvalho (2020)CARVALHO, Vinicius Paixão. Passinho dos maloka nas aulas de Educação Física. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 220-228. e Torres, Quaresma e Santos Júnior (2020)TORRES, Ana Carolina; QUARESMA, Felipe Nunes; SANTOS JÚNIOR, Flávio Nunes. Corpos In-transe: a ciranda e o funk no jogo por conhecimentos e afetos outros In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 42-64., transparece o quanto a prática pedagógica é perpassada pelo calor dos afetos conectados aos conhecimentos, o que viabiliza a tematização. Os corpos dançantes e vibrantes tocados pela sonoridade despertam a imaginação do educador. Levam-no a vislumbrar caminhos, certamente contrários àqueles preconizados pela estrutura neoliberal, colonialista e patriarcal, que insiste em afirmar o que e quando se deve ensinar.

Conceber espaço para participação dos representantes da prática corporal é se colocar à disposição para correr novos riscos. “A presença dos dançarinos foi muito significativa” provoca o abandono da identidade professoral alicerçada no papel de transmissor de um saber previamente selecionado. Criam-se brechas, aberturas para a criatividade. A turma ouve, sente, olha, contempla os corpos que carregam conhecimentos e significados de uma dança periférica, e coletivamente produz, de modo singular, um conjunto de saberes marcados por afetos e sentimentos. Guerrero Arias (2010)GUERRERO ARIAS, Patrício. Corazonar el sentido de las epistemologias dominantes desde las sabidurias insurgentes para construir otros de la existência. Calle 14: Revista de investigacion em el campo del arte, v. 4, n. 5, jul./dec., 2010, p. 80-94. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=279021514007. Acesso em: 2 mar. 2023.
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anuncia que a emoção não tem um sentido universal, precisa ser compreendida no interior da pluriversalidade3 3 Pluriversalismo é uma oposição radical à concepção moderna de universalismo. A partir do lema zapatista “um mundo onde caibam vários mundos”, valoriza-se a coexistência das diferentes formas de conhecer, ser, memórias, economias, subjetividades, na tentativa de rechaçar o extermínio e a violência decorrentes da imposição do Ocidente como única forma de pensar e existir (MIGNOLO, 2007). das culturas, pois está presente em sujeitos socialmente construídos, que encontram nela mesma a possibilidade para a produção de discursos e práticas, permitindo-lhes sentir, pensar, falar, constituir encontros na e com a vida.

O gesto de desconstruir4 4 Desconstruir não tem a ver com destruir, é um movimento que necessita de procedimentos de análise de narrativas, de discursos, interessados em expor forças, operações ou processos que alimentam e estruturam conhecimentos ditos como verdadeiros, universais e livres de quaisquer questionamentos (COSTA, 2010). narrativas depreciativas, estereotipadas, é inerente à vontade de combater a produção da desigualdade e da violência que marcam determinados corpos e suas produções culturais. Recorrer a encaminhamentos didáticos com vistas a favorecer a compreensão da ocorrência social da prática corporal e suas formas é uma postura que enfraquece os dispositivos que promovem a marginalização.

Quando a prática pedagógica se permite ouvir, apreciar, contemplar aquilo que pulsa nos corpos discentes, especialmente os periféricos, abre brechas para a voz dos representantes da manifestação adentrarem à escola e favorece a oportunidade de compreender a segregação, exclusão e violência contra determinados grupos sociais. É o que se pode concluir pela presença do corazonar no currículo cultural. Uma ação didática que fortalece o inconformismo perante a injustiça; que traz a possibilidade de vislumbrar um mundo desconhecido; que faz ampliar a reciprocidade e a comunhão; que revitaliza subjetividades solidárias às diferenças. Portanto, ao se alinhar às lutas sociais, gerando intensa interlocução entre significados, discursos, emoções, sentimentos - conhecimentos aquecidos por afetos -, o coletivo é tomado pela criatividade, se dispõe a correr riscos, gerando encontros na e com a vida.

3 CONSIDERAÇÕES MOMENTÂNEAS

A mobilização dos argumentos de Foucault, Santos, Mignolo e Guerrero Arias na análise das experiências relatadas por Carvalho (2020)CARVALHO, Vinicius Paixão. Passinho dos maloka nas aulas de Educação Física. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 220-228., Gonçalves e Duarte (2020)GONÇALVES, Tathiana; DUARTE, Leonardo de Carvalho. Tematizando as brincadeiras africanas na EMEI Nelson Mandela. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 207-219., Irias (2020)IRIAS, Everton Arruda. Jogo de taco e o lazer na quebrada. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 65-70., Neira (2020)NEIRA, Marcos Garcia. (org.) Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. Disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/491. Acesso em: 09 jan. 2023
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, Neves (2020)NEVES, Marcos Ribeiro. A gente corre pra quê? In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 161-173., Souza (2020)SOUZA, Leandro Rodrigo Santos. Futebol além das bananas. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 115-146. e Torres, Quaresma e Santos Júnior (2020)TORRES, Ana Carolina; QUARESMA, Felipe Nunes; SANTOS JÚNIOR, Flávio Nunes. Corpos In-transe: a ciranda e o funk no jogo por conhecimentos e afetos outros In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 42-64. evidencia que o currículo cultural da Educação Física concebe o conhecimento como fruto dos encontros, produto de choques, embates, negociações. Escapando da tradição do componente, é heterogêneo, interconhecimento, reconhecimento, logo, não cabe estabelecer antecipadamente quais conteúdos circularão durante a tematização das práticas corporais.

Os conteúdos acessados pelos estudantes resultam da sensibilização com o que ocorre no território onde a unidade educacional está inserida (CARVALHO, 2020CARVALHO, Vinicius Paixão. Passinho dos maloka nas aulas de Educação Física. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 220-228.), dependem da origem da manifestação no momento de escolha do tema (TORRES; QUARESMA; SANTOS JÚNIOR, 2020TORRES, Ana Carolina; QUARESMA, Felipe Nunes; SANTOS JÚNIOR, Flávio Nunes. Corpos In-transe: a ciranda e o funk no jogo por conhecimentos e afetos outros In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 42-64.), não corroboram um “jeito certo” de performar a gestualidade (GONÇALVES; DUARTE, 2020GONÇALVES, Tathiana; DUARTE, Leonardo de Carvalho. Tematizando as brincadeiras africanas na EMEI Nelson Mandela. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 207-219.), emergem da interlocução entre os conhecimentos acadêmicos e aqueles elaborados no chão da escola (NEIRA, 2020NEIRA, Marcos Garcia. Relatos de experiência com a Educação Física cultural: “muito importante ouvir educadores da rede pública”. In: Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 9-31.), brotam de encontros de diferentes significados relacionados à prática corporal em tela (IRIAS, 2020IRIAS, Everton Arruda. Jogo de taco e o lazer na quebrada. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 65-70.; NEVES, 2020NEVES, Marcos Ribeiro. A gente corre pra quê? In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 161-173.), desnaturalizam narrativas que carregam um tom opressor e escutam atentamente àquilo que estudantes dizem a respeito do objeto de estudo (CARVALHO, 2020CARVALHO, Vinicius Paixão. Passinho dos maloka nas aulas de Educação Física. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 220-228.; SOUZA, 2020SOUZA, Leandro Rodrigo Santos. Futebol além das bananas. In: NEIRA, Marcos Garcia (org.). Escrevivências da Educação Física cultural. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 115-146.) por meio de condutas que agenciam as aulas culturalmente orientadas num processo criativo atravessado pela justiça cognitiva.

Em suma, o currículo cultural da Educação Física posiciona docentes e educandos como inventores de conhecimentos no mesmo instante em que se encontram para vivenciar e dialogar com e sobre a prática corporal. Postura que contribui para o enfrentamento das colonialidades e do fascismo epistemológico que alimenta o epistemicídio.

Na dinâmica marcada pela afirmação das diferenças e multiplicidade com vistas a combater as injustiças cognitivas, bem como as desigualdades sociais históricas, docente e estudantes produzem conhecimentos aquecidos por sentimentos, afetos, emoções. Obviamente, não se trata de tarefa simples, demanda ousadia, coragem, resistência frente às estruturas do fascismo epistemológico que mantêm determinados sujeitos e conhecimentos em situação encarcerada, moldurada, desfavorável. Para tanto, faz-se necessário um permitir-se, deixar-se afetar pela ecologia de saberes e pelos diferentes sujeitos, reconhecer, também, os diferentes sentimentos que aquecem o pensamento, a luta, o conhecimento. Assim, a Educação (Física) de crianças, jovens, adultos e idosos se enriquece e ganha um tom democrático, potencializando a existência, a vida.

  • 1
    De acordo com Santos (2016)SANTOS, Ivan Luis. A tematização e a problematização no currículo cultural de Educação Física. 2016. 246 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016., a tematização implica um conjunto de ações pedagógicas que partem da ocorrência social das práticas corporais escolhidas como objeto de estudo. De maneira geral, diz respeito ao trabalho pedagógico sobre determinada manifestação corporal, do primeiro dia ao último. Sendo assim, conforme Neira (2016)NEIRA, Marcos Garcia. Educação Física cultural: carta de navegação. Arquivos em Movimento, v. 12, n. 02, p. 82-103, jul./dez., 2016. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/am/article/view/11149. Acesso em: 2 mar. 2023.
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    , consiste em propiciar aos estudantes uma compreensão mais elaborada dos inúmeros aspectos pertencentes às práticas corporais.
  • 2
    Quijano (2005)QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 107-130. alerta que um padrão de poder colonial, capitalista e eurocêntrico compôs a modernidade. A produção intelectual da época ocorreu dentro de uma perspectiva de conhecimento empenhada em constituir um único modo de ser, de existir. Neste caso, não há modernidade sem colonialidade. De acordo com Maldonado-Torres (2007)MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidade del ser: contribuciones al desarrollo de um concepto. In: CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, Bogotá, 2007. p. 127-168., a colonialidade se refere ao padrão de poder que emergiu do resultado do colonialismo moderno. Em vez de restringir-se a uma relação formal de poder entre povos e nações, diz respeito ao modo como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do capitalismo mundial e da ideia de raça.
  • 3
    Pluriversalismo é uma oposição radical à concepção moderna de universalismo. A partir do lema zapatista “um mundo onde caibam vários mundos”, valoriza-se a coexistência das diferentes formas de conhecer, ser, memórias, economias, subjetividades, na tentativa de rechaçar o extermínio e a violência decorrentes da imposição do Ocidente como única forma de pensar e existir (MIGNOLO, 2007MIGNOLO, Walter. El pensamento decolonial: desprendimiento y apertura. In: CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, Bogotá, 2007. p. 25-46.).
  • 4
    Desconstruir não tem a ver com destruir, é um movimento que necessita de procedimentos de análise de narrativas, de discursos, interessados em expor forças, operações ou processos que alimentam e estruturam conhecimentos ditos como verdadeiros, universais e livres de quaisquer questionamentos (COSTA, 2010COSTA, Maria Vorraber. Poder, discurso e política cultural: contribuições dos estudos culturais ao campo do currículo. In: LOPES, Alice Casemiro; MACEDO; Elizabeth (org.). Currículo: debates contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2010. p. 133-149.).
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, processo n. 310410/2019-3.
  • COMO REFERENCIAR

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REFERÊNCIAS

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Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Lisandra Oliveira Silva*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira* , Roseli Belmonte Machado*
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2021
  • Aceito
    19 Jan 2023
  • Publicado
    26 Abr 2023
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
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