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EDUCAÇÃO FÍSICA CULTURAL: O CURRÍCULO EM AÇÃO PELA ÓTICA DOCENTE

CULTURAL PHYSICAL EDUCATION: THE CURRICULUM IN ACTION FROM A DOCENT PERSPECTIVE

EDUCACIÓN FÍSICA CULTURAL: EL CURRICULUM EN ACCIÓN A TRAVÉS DE LA MIRADA DEL DOCENTE

Resumo

O currículo cultural se apresenta enquanto proposta que busca superar as práticas hegemônicas e eurocêntricas, reconhecer e valorizar as diferenças e problematizar as desigualdades e injustiças com vistas a contribuir com a formação de sujeitos solidários. Para tanto, os professores que afirmam colocá-lo em ação são agenciados por determinados princípios ético-políticos, o que os leva a tematizar determinadas práticas corporais mediante encaminhamentos pedagógicos singulares. A fim de identificar as percepções acerca dessa proposta, o presente artigo submete ao confronto com a teoria curricular cultural, os dados gerados a partir de entrevistas narrativas feitas com professores que atuam numa instituição pública cujo projeto político pedagógico se alinha a essa vertente de ensino. A investigação reconhece que, de acordo com as falas docentes, houve mudança da percepção estudantil sobre as práticas corporais. Os estudantes puderam encontrar nesse espaço educacional o reconhecimento de suas identidades, tendo maior possibilidade de vivenciar experiências inéditas e diversificadas que promoveram maior representatividade, o que gerou provável identificação com as práticas corporais tematizadas.

Palavras-chave:
Currículo cultural; Educação Física; Relato de experiência.

Abstract

The cultural curriculum is a proposal that seeks to overcome hegemonic and Eurocentric practices, recognize and value differences, and problematize inequalities and injustice with the goal of contributing to the education of caring individuals. To this end, teachers who state that they put it into action are guided by certain political-ethical principles, which leads them to focus on certain body practices through singular pedagogical pathways. In order to identify the perceptions that exist regarding this proposal, the present article compares cultural curricular theory with the data obtained through narrative interviews conducted with teachers who work at a public institution that has a political pedagogical project aligned with this dimension of teaching. The investigation recognizes that, according to the teachers’ responses, student perception of body practices was changed. The students were able to recognize their identities in this educational space and had a better chance of undergoing novel and diversified experiences that promoted increased representativity, which probably caused them to identify with the body practices in question.

Keywords:
Cultural curriculum; Physical Education; Experience report.

Resumen

El currículo cultural presenta una propuesta que busca superar las prácticas hegemónicas y eurocéntricas, reconocer y valorar las diferencias, problematizar las desigualdades e injusticias y contribuir a la formación de un sujeto solidario. Para esto, los profesores que la implementan se comprometen con determinados principios éticos-políticos, lo que los lleva a abordar algunas prácticas corporales a través de enfoques pedagógicos singulares. Con el fin de identificar las percepciones sobre esta propuesta, este artículo confronta los datos generados a partir de entrevistas narrativas realizadas con los profesores que trabajan en una institución pública cuyo proyecto pedagógico se alinea con esta corriente educativa con la teoría curricular cultural. La investigación reconoce que, según las conversaciones con los docentes, ha habido un cambio en la percepción de los estudiantes sobre las prácticas corporales. Los estudiantes pudieron encontrar en este entorno educativo el reconocimiento de sus identidades, lo que les brindó una mayor posibilidad de vivir experiencias inéditas y diversas que promovieron una mayor representatividad. Esto generó una posible identificación con las prácticas corporales abordadas.

Palabras clave:
Curriculum cultural; Educación Física; Relato de experiencia.

1 INTRODUÇÃO1 1 O presente artigo é um desdobramento da pesquisa de mestrado desenvolvida por Souza (2021).

Ao validar os saberes discentes, as diferenças, a própria cultura, as culturas silenciadas, ao reconhecer a importância de problematizar as relações de poder, valorizar a diversidade, engajar-se na luta pela transformação social, estudar as culturas periféricas e se posicionar a favor dos mais fracos, dentre outras situações, os professores deixam-se influenciar pelo arcabouço conceitual que dá sustentação ao currículo cultural2 2 Trata-se de uma proposta em constante metamorfose, que dispensa qualquer tentativa de circunscrever ou enquadrá-la em uma definição ortodoxa para tentar defini-la (BONETTO; VIEIRA, 2021). Essa forma de configuração curricular que se convencionou denominar Educação Física cultural, currículo cultural, culturalmente orientado ou currículo pós-crítico vem se difundindo na Educação Básica. Em síntese, o currículo cultural visa problematizar as relações de poder tencionando as situações opressoras através de uma leitura de um currículo pós-crítico. Além disso, se apresenta como uma proposta curricular que suscita a valorização e reconhecimento da cultura corporal da comunidade, a justiça curricular e a docência dialógica. A produção científica acerca dessa perspectiva curricular pode também ser acessada no site do Grupo de Pesquisas em Educação Física escolar da FEUSP, cujo endereço é http://www.gpef.fe.usp.br/. e, sobretudo, pelos seus princípios ético-políticos (NEIRA, 2018aNEIRA, Marcos Garcia. Educação física cultural: inspiração e prática pedagógica. Jundiaí: Paco, 2018a. v. 1. 166p.).

No início do século XXI, os primeiros experimentos com a proposta receberam contribuições do multiculturalismo crítico e dos estudos culturais. Atualmente, outras formas de análise do social consubstanciadas nas chamadas teorias pós-críticas do currículo, como o pós-estruturalismo, o pós-colonialismo, os estudos de gênero e a teoria queer, têm influenciado os encaminhamentos pedagógicos docentes (NEIRA; NUNES, 2021NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Currículo cultural, linguagem, códigos e representação: uma proposta para outras formas de fazer, ver e dizer a respeito de si, das práticas corporais e seus praticantes. In: MALDONADO, Daniel Teixeira; FARIAS, Uirá de Siqueira; NOGUEIRA, Valdilene Aline (org.). Linguagens na educação física escolar: diferentes formas de ler o mundo. Curitiba: CRV, 2021. p. 21-40.).

Gonçalves e Silva (2023)GONÇALVES, Carlos Henrique Rego; SILVA, Carlos Alberto Figueiredo da. Educação Física que não escolhe, acolhe. Movimento, v. 29, p. e29003, 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.124789
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analisando entrevistas com docentes, que atuam inspirados pelo currículo cultural, ao investigarem como abordam as diferenças em suas práticas pedagógicas, concluíram que o currículo cultural pode ser notado como prática acolhedora, que não pretende somente substituir o arquétipo de sujeito homem-branco-masculino-hétero-cristão por outras marcadores sociais minoritários, já que identidades sub-marginalizadas formadas e excluídas dentro desses marcadores identitários minoritários também precisam ser visibilizadas, acolhidas e problematizadas. Ou seja, sem negar qualquer identidade, mas assumindo milhares. Nesse estudo, um dos docentes entrevistados questiona porque apenas determinadas práticas corporais hegemônicas estão representadas nos espaços da Educação Física.

Propor que todos vivenciem repetidas vezes as mesmas práticas corporais em aula, aspecto característico dos currículos tradicionais, pode propiciar a exclusão daqueles que não se identificam com as propostas. Em contrapartida, as possibilidades de vivência, ao preconizar práticas culturalmente orientadas, podem proporcionar maior chance de identificação, visto que as experiências são amplas, como, por exemplo, realizar experimentação de jogo de futebol em videogames, tocar instrumentos musicais enquanto se tematiza o reggae, samba e outras práticas corporais mundo afora, que vão desde o tinku boliviano ao muay-thai da Tailândia. Nesse sentido, a proposta é transformar o espaço de aula em um local que não gere constrangimento, possibilitando e valorizando diversas formas de participação, permitindo experiências inéditas e diversificadas (NEVES; NEIRA, 2019NEVES, Marcos Ribeiro das; NEIRA, Marcos Garcia. O currículo cultural da educação física: princípios, procedimentos didáticos e diferenciações. Revista Internacional de Formação de Professores, v. 4, p. 108-124, 2019.; BONETTO; VIEIRA, 2021BONETTO, Pedro Xavier Russo; VIEIRA, Rubens Antonio Gurgel. Aleturgia do currículo cultural na educação física. Conexões, v. 19, p. e021032-20, 2021. DOI: https://doi.org/10.20396/conex.v19i1.8660658
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).

A probabilidade de identificação com uma determinada brincadeira, dança, luta, ginástica ou esporte é maior quando são “tematizados” os elementos pertencentes a distintos grupos sociais. Afinal, para uma criança que explora e vivencia nas aulas apenas o futebol e o basquete, por exemplo, será menos provável que se identifique com a capoeira. Em busca de um equilíbrio, Neira (2018a)NEIRA, Marcos Garcia. Educação física cultural: inspiração e prática pedagógica. Jundiaí: Paco, 2018a. v. 1. 166p. reforça que as práticas consideradas hegemônicas devem receber atenção equiparada a tantas outras, como o funk, o skate, a capoeira, o carrinho de rolimã, o hip hop, o parkour e o baralho, por exemplo.

Para além de diversificar os temas abordados, um docente comprometido com a valorização das diferenças, ao tematizar as práticas corporais questiona os marcadores sociais que as atravessam: de gênero, etnia, classe, religião, orientação sexual, entre outros (NEIRA, 2013NEIRA, Marcos Garcia. A seleção dos temas de ensino do currículo cultural da Educação Física. Revista Educación Física y Deporte, v. 32, p. 1421-1430, 2013.). É nesse sentido que Santos Júnior e Neira (2019)SANTOS JÚNIOR, Flávio Nunes dos; NEIRA, Marcos Garcia. Contribuições do póscolonialismo para o currículo cultural da Educação Física. Revista Educação (UFSM) ano 44, e85, p. 1-24, 2019. DOI: https://doi.org/10.5902/1984644437352
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afirmam que a sensibilidade do docente na ação educativa é fundamental para permitir a existência de diálogos outros, na tentativa de ir além do que se apresenta de modo engessado na sociedade.

Sendo assim, considerando a importância de compartilhar experiências de práticas pedagógicas culturalmente orientadas - pois é a partir das investigações do cotidiano escolar que poderemos teorizar a seu respeito (NEIRA, 2018bNEIRA, Marcos Garcia. Currículo cultural da educação física: pressupostos, princípios e orientações didáticas. Revista e-Curriculum, v.16, n. 1, p. 4-28 jan./mar. 2018b.), o presente estudo analisa as percepções docentes acerca da experiência de colocar em ação o currículo cultural. Importante ressaltar que não se pretendeu rotular, roteirizar e criar manuais de aulas replicáveis; na verdade, essa tentativa iria contrapor os princípios das teorias pós-críticas do currículo e as ideias do currículo cultural, que negam qualquer incentivo a homogeneização, padronização ou sistematização do conhecimento. Além disso, “nessa perspectiva curricular não se deseja validar determinados significados em detrimento de outros, pois todos são passíveis de questionamentos e reelaborações” (NEVES; NEIRA, 2019NEVES, Marcos Ribeiro das; NEIRA, Marcos Garcia. O currículo cultural da educação física: princípios, procedimentos didáticos e diferenciações. Revista Internacional de Formação de Professores, v. 4, p. 108-124, 2019., p. 110).

De acordo com Neira (2017)NEIRA, Marcos Garcia. Análise e produção de relatos de experiência da Educação Física cultural: uma alternativa para a formação de professores. Coleção textos fcc, v. 53, p. 53-102, 2017., os relatos de experiência expressam uma parcela significativa do saber pedagógico criado e recriado ao longo da vida profissional em meio à multiplicidade de situações e reflexões. A escuta de narrativas docentes e a análise desses materiais mediante o confronto com a teoria curricular cultural da Educação Física permitem conhecer uma visão da educação escolar bastante distinta daquela comumente veiculada nos meios de comunicação ou oficializada através dos informes das avaliações padronizadas.

2 DECISÕES METODOLÓGICAS

O estudo se caracteriza como qualitativo por visar proporcionar uma visão geral de um determinado fato, do tipo investigativo e aproximativo, trabalhando com o universo das crenças, atitudes, valores e significados (DESLANDES, 2012DESLANDES, Suely Ferreira. O projeto de pesquisa como exercício científico e artesanato intelectual. In: MINAYO, Maria Cecília de S. (org.); DESLANDES, Suely F.; CRUZ NETO, Otávio; GOMES, Romeu. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 31. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 31-60.; GIL, 2008GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.). As pesquisas qualitativas não possuem caráter especulativo; podem ser usadas, por exemplo, para investigar o processo pedagógico (TRIVIÑOS, 1987TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.). No total foram realizadas duas etapas de produção de dados, posteriormente analisados: aplicação de questionário e realização de entrevistas narrativas.

Os sujeitos da pesquisa são 5 professores de Educação Física de uma escola pública mantida pelo governo federal, situada na cidade do Rio de Janeiro. A seleção foi intencional, pois o currículo, desenvolvido pelos professores, segundo o Projeto Político Pedagógico Institucional (PPPI), está lastreado na teoria curricular cultural do componente.

Isso se evidencia pelo PPPI apresentar inúmeras preocupações, orientações e informações que confluem com os princípios ético-políticos da proposta, tais como: a necessidade de se pensar em uma perspectiva curricular que evite o daltonismo cultural, reconheça as identidades culturais, promova a ancoragem social dos conteúdos, ressalte a importância do processo de descolonização e da justiça curricular (COLÉGIO PEDRO II, 2018COLÉGIO PEDRO II. Departamento de Educação Física. In: COLÉGIO PEDRO II. Projeto Político Pedagógico Institucional Colégio Pedro II. p. 234-260. 2018. Disponível em: http://www.cp2.g12.br/images/comunicacao/2018/JUL/PPPI%20NOVO.pdf. Acesso em: 29 jun. 2020.
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). Essa aproximação entre o constructo teórico orientador do trabalho pedagógico na instituição e o currículo cultural faz desse campo de estudos um espaço interessante para análise de práticas culturalmente orientadas.

Uma etapa precedeu a escolha dos 5 docentes que participaram da entrevista. Inicialmente solicitamos as respostas a um questionário em formulário Google aos docentes de Educação Física. O questionário foi elaborado com intuito de ser respondido pelo maior número de docentes - que no período era composto por 53 profissionais, dentre os quais 33 atenderam ao convite que lhes foi encaminhado através do e-mail.

As perguntas visavam analisar a percepção docente diante das orientações pedagógicas vigentes para a disciplina Educação Física contidas no PPPI e sobre o currículo cultural. Posteriormente, foi realizada a interpretação das respostas e os dados submetidos à análise cultural. Os dados dessa primeira investigação podem ser acessados através do estudo desenvolvido por Souza e Telles (2021)SOUZA, Anna Carolina Carvalho; TELLES, Silvio de Cassio Costa. A percepção de professores de Educação Física sobre uma escrita curricular culturalmente orientada. Research, Society and Development, v. 10, p. 1, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.18288
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que versa sobre a percepção docente diante da escrita currículo pautada na Educação Física cultural.

Assim, foi possível acessar um olhar ampliado sobre o processo de implementação curricular, bem como uma visão geral do conhecimento dos docentes sobre o currículo cultural e seus preceitos básicos. Além disso, a análise das respostas ao questionário auxiliou na escolha dos 5 docentes entrevistados, com base nos seguintes critérios: preferencialmente aqueles que afirmaram pautar suas ações pedagógicas nos princípios ético-políticos, ainda que momentâneos, do currículo cultural, expressos no documento institucional e a aceitação em participar da pesquisa.

Como critério de exclusão, foram considerados aqueles que negaram realizar práticas pedagógicas culturalmente orientadas, ou ao afirmar, se contradisseram revelando um discurso que os distanciaram dos referidos princípios.

Objetivando preservar a identidade dos sujeitos que aceitaram contribuir com a pesquisa, foram escolhidos nomes fictícios: Carolina, Moacir, Vicente, Machado e Silvio3 3 Os nomes foram propositalmente escolhidos com intuito de homenagear indivíduos negros e/ou pretos com reconhecida influência e contribuição na cultura brasileira, fazendo menção então a Carolina Maria de Jesus, Silvio de Almeida, Moacir Barbosa, Machado de Assis e Vicente Ferreira Pastinha. . As entrevistas4 4 Cabe destacar que os aspectos éticos foram considerados na medida em que a presente pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Colégio Pedro II, número na Plataforma Brasil CAAE 29847820.3.3001.9047, e pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho/HUCFF/UFRJ, CAAE 29847820.3.0000.5257. foram realizadas durante o período de isolamento social por meio da plataforma virtual Zoom, o que facilitou a gravação. Os docentes foram convidados a narrar situações vivenciadas que julgassem ser potenciais ações culturalmente orientadas. Félix (2014)FÉLIX, Jeane. Entrevistas on-line ou algumas pistas de como utilizar bate-papos virtuais em pesquisas na educação e na saúde. In: MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (org.). Metodologias de pesquisa pós-crítica em Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014. explica que entrevistas online5 5 Que podem se organizar de forma síncrona, na qual pesquisador e entrevistados e ou/ participantes da pesquisa estão online simultaneamente, ao vivo e em tempo real; ou podem, também, se dar de forma assíncrona, quando não necessariamente ambos estão online simultaneamente, podendo o respondente enviar mensagem quando lhe convier (FÉLIX, 2014). nada mais são do que adaptações de entrevistas presenciais.

Cientes de que tudo o que está na cultura é passível de análise, optamos por interpretar os materiais produzidos a partir do acúmulo de conhecimentos sobre a proposta. Oliveira Junior (2017)OLIVEIRA JUNIOR, Jorge Luiz. Significações sobre o currículo cultural da educação física: cenas de uma escola municipal paulistana. 2017. 156 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., Nunes (2018)NUNES, Hugo César Bueno. O jogo da identidade e diferença no currículo cultural da Educação Física. 2018. 157. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo, 2018., Martins (2019)MARTINS, Jacqueline Cristina Jesus. Educação física, currículo cultural e a educação de jovens e adultos: novas possibilidades. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. e Santos Júnior (2020)SANTOS JÚNIOR, Flávio Nunes dos; NEIRA, Marcos Garcia. Olhares sobre a proposta de reorganização do currículo do ensino médio na rede estadual paulista. Revista Internacional de Formação de Professores, v. 5, p. 1-19, jun. 2020. traçaram percursos assemelhados para analisar registros de práticas construídas por docentes culturalmente orientados.

Esse procedimento leva em consideração as mais diversas nuances que envolvem o ser humano, e não somente suas ações desassociadas de sua história de vida. Em se tratando de docentes, suas escolhas, opções pedagógicas, propostas de temas balizadas por uma teoria, acabam por desenvolver uma mescla entre o que se aprende, o que se estuda e o que se acredita. Sendo assim, coadunamos com Martins (2019)MARTINS, Jacqueline Cristina Jesus. Educação física, currículo cultural e a educação de jovens e adultos: novas possibilidades. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. quando afirma que tudo que está na cultura está sujeito à análise.

3 ANÁLISE DAS NARRATIVAS DOCENTES

Neira (2020)NEIRA, Marcos Garcia. A abordagem das diferenças no currículo cultural da Educação Física. Humanidades & Inovação, v. 7, p. 39-56, 2020. reconhece o rico material produzido ao analisar o currículo em ação quando narrado pelos que planejam, desenvolvem e avaliam o processo. No caso em tela, a dinâmica da narrativa se fez permitindo aos sujeitos a possibilidade de decidir se abordariam uma situação didática presencial, remota ou ambas. A professora Carolina narrou situações didáticas em contexto de aulas remotas ao tematizar as brincadeiras, problematizando questões sobre o local de moradia. O professor Silvio relatou a tematização da altinha em aulas presenciais e encaminhamentos pedagógicos ao debater o conceito ampliado de saúde em aulas síncronas. O tratamento do mesmo tema foi narrado pelo professor Vicente, enquanto o professor Moacir descreveu situações didáticas ao tematizar jogos e brincadeiras de matrizes étnicas e, por fim, o professor Machado explanou sobre o trabalho pedagógico realizado com Ensino Médio ao abordar danças regionais com ênfase no forró e na cultura nordestina.

Iniciemos pela narrativa da professora Carolina, que em sua fala, nos convida a refletir sobre as brincadeiras realizadas pelos estudantes do quinto ano do Ensino Fundamental durante o período de isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19. A docente problematizou o espaço doméstico e a relação ressignificada, modificada pelo contexto pandêmico, que afetou os modos de brincar, devido à privação de convívio entre brincantes e do acesso aos espaços públicos. No mapeamento, identificou as brincadeiras dos estudantes, onde e com quem brincavam.

Depois desse primeiro movimento, explicou que fizeram a construção de brinquedos com uso de materiais reciclados. Contou que incentivou a reflexão sobre como o brincar se modifica a depender do contexto e tempo histórico. Além disso, a partir da exposição de um vídeo disponível no portal “Território do Brincar” em que uma criança brincava de “amarelinha dos dias da semana”, solicitou que recriassem as formas de brincar nos ambientes disponíveis.

A professora mostrou formas de brincar com pedrinhas e bolinhas em diferentes regiões do Brasil, além da confecção de bolinhas de gude com papel higiênico. Contou também que recebeu diversos relatos de brincadeiras que as crianças praticavam, como futebol com rolo de papel higiênico, criação de gaivota, carrinho de garrafa pet, amarelinha das cores etc. Em seguida, propôs aos estudantes que pesquisassem junto aos familiares as brincadeiras de suas infâncias. Incentivou uma reflexão sobre o que significa ser “mais velho”, motivando a elaboração de perguntas:

É... Onde eles passaram parte da infância, do que eles brincavam, que sentimentos e emoções as lembranças da infância traziam à tona? [...] Então, a gente trouxe para eles algumas brincadeiras que foram citadas entre as respostas dos responsáveis e a gente discutiu como algumas brincadeiras são transmitidas de geração em geração (Professora Carolina).

A professora percebeu que desconheciam algumas brincadeiras citadas pelos familiares, ou as conheciam de formas diferentes; dentre as conhecidas, citaram a bolinha de gude, que passou a ser tematizada durante as aulas remotas. A professora problematizou o brincar na rua nos tempos atuais, a rua enquanto lugar de encontro e lugar de passagem, por ter sido resposta frequente nos relatos dos responsáveis.

Por que que o brincar na rua está mais difícil hoje? Ah! Porque as cidades estão mais violentas, porque tem mais carro. Ah! Porque o solo hoje custa, né? Vale dinheiro, então, os espaços livres para brincar também estão menos presentes. Será que eles estão menos presentes de forma igual em toda cidade? Será que a gente tem os mesmos espaços de lazer num determinado local e no outro. Ah! Eu moro num sei onde, aqui onde eu moro tem uma quadra. [...] Aqui onde eu moro não tem... Ah! Tia, onde eu moro não pode brincar porque tem violência, tem tiro (Professora Carolina, 2021)

Carolina fez um apontamento sobre a importância da discussão estar relacionada com o momento histórico vivido pelos estudantes, ao dizer: [...] Então, a gente procurou o tempo todo estar fazendo a ligação entre os diferentes materiais e o contexto que eles estavam vivendo (Professora Carolina). Considerando as respostas obtidas, a docente observou a frequente aparição dos jogos de tabuleiro, o que abriu uma possibilidade de tematização.

Aí a gente trouxe para eles o jogo da onça, que é um jogo de origem indígena, a gente trouxe para eles o shisima, que é um jogo queniano, né? De origem africana. A gente perguntou para eles: por que que vocês acham que esses jogos não são tão conhecidos? Por que a gente quando falou dos jogos de tabuleiro vocês não citaram nenhum deles? Ah! Porque eles são de outros países... Ué, mas vocês falaram do xadrez, e o xadrez também não é um jogo brasileiro. Ah! [...] O jogo da onça é um jogo indígena [...]. Ele é brasileiro. Aí a gente fez uma discussão sobre a hierarquização dos saberes na sociedade, sobre o quanto que a gente conhece mais alguma coisa e não conhece tanto outras (Professora Carolina).

Observamos que, em vez de camuflar os conflitos identitários para que não sejam vistos, o currículo cultural promove o confronto, abre espaços para que estudantes exponham e reflitam sobre os sentimentos e impressões pessoais que emergem nos momentos de discordância (NEIRA; NUNES, 2021NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Currículo cultural, linguagem, códigos e representação: uma proposta para outras formas de fazer, ver e dizer a respeito de si, das práticas corporais e seus praticantes. In: MALDONADO, Daniel Teixeira; FARIAS, Uirá de Siqueira; NOGUEIRA, Valdilene Aline (org.). Linguagens na educação física escolar: diferentes formas de ler o mundo. Curitiba: CRV, 2021. p. 21-40.). Assim fez a professora Carolina ao problematizar a notoriedade dada ao xadrez em detrimento do jogo de tabuleiro indígena.

Aí, depois disso, também a gente não queria dizer para eles que esses outros conhecimentos que eles têm não servem, então a gente explorou o xadrez que também foi um jogo que apareceu bastante [...]. A gente tentou discutir sobre o valor de cada peça, por que o peão vale menos? Quem é o peão? Qual o papel do peão na nossa sociedade? Ah, o rei e a rainha, o rei é a peça que tem mais valor, mas a rainha é a que mais trabalha, que mais se movimenta, é a peça que mais tem articulação dentro do jogo, aí eles fizeram essa discussão (Professora Carolina).

Observa-se que ao tematizar um jogo da cultura considerada hegemônica, reconhecendo a importância deste também, Carolina incentivou reflexões que permeiam a sociedade. Ela revelou o interesse em tematizar futuramente os jogos eletrônicos, por considerar um tema muito presente no cotidiano dos estudantes. Explicou que, para tal, faria questionamentos sobre quem joga, com quem joga, que tipos de jogos apreciam... Também explicou que, na ocasião, tinha planos de convidar ex-alunos que construíram o complexo do Colégio Pedro II na plataforma do jogo eletrônico Minecraft.

A docente concluiu dizendo que busca caminhar de acordo com as respostas dos estudantes às problematizações das ocorrências das práticas corporais. Desse modo, coaduna com as ideias de Neira e Nunes (2021)NEIRA, Marcos Garcia; NUNES, Mário Luiz Ferrari. Currículo cultural, linguagem, códigos e representação: uma proposta para outras formas de fazer, ver e dizer a respeito de si, das práticas corporais e seus praticantes. In: MALDONADO, Daniel Teixeira; FARIAS, Uirá de Siqueira; NOGUEIRA, Valdilene Aline (org.). Linguagens na educação física escolar: diferentes formas de ler o mundo. Curitiba: CRV, 2021. p. 21-40. quando consideram que a tematização é costurada pela problematização, o que faz emergir conteúdos, evidenciando a potencialidade do currículo cultural na produção de outras maneiras de fazer, ver e dizer a respeito de si, das práticas corporais e dos seus praticantes.

O professor Silvio, por sua vez, narrou situações didáticas ao tematizar a altinha junto às turmas do terceiro ano do Ensino Médio durante as aulas presenciais antes da pandemia:

Nós iniciamos o mapeamento, na verdade foi um “click” na nossa cabeça! Caramba, está todo mundo jogando altinha, pera aí gente! Putz, a altinha está aqui pujante, aqui na nossa escola (Professor Silvio).

O mapeamento fica evidente na fala do professor Silvio, pois esse procedimento didático é inicial e busca práticas que fazem parte do patrimônio cultural dos estudantes, inclusive suas vivências, e é também momento de acesso às práticas corporais de dentro e de fora da escola (GONÇALVES; SILVA, 2023GONÇALVES, Carlos Henrique Rego; SILVA, Carlos Alberto Figueiredo da. Educação Física que não escolhe, acolhe. Movimento, v. 29, p. e29003, 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.124789
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). O professor ainda contou que iniciou questionando o que os estudantes sabiam sobre o assunto, buscando conhecer a experiência pessoal dos estudantes acerca da prática corporal e narrou algumas falas em diálogo com os estudantes:

Aí tinha de tudo - Aí professor não sei jogar, é muito difícil! Porque em tese é um gesto muito complexo, não é simples jogar altinha. E aí você já tinha uma certa rejeição inicial do não sei jogar, eu não sei como fazer isso (Professor Silvio).

Essa rejeição que o docente relata ter observado no início foi se diluindo ao longo do processo pedagógico. Fica evidente que, durante as suas trajetórias de vida, os estudantes acessaram uma “única” maneira de ver, o que pode explicar o olhar preconceituoso que lançaram sobre a altinha e as significações colocadas em circulação.

Na expectativa de aprofundar o conhecimento acessado pelos estudantes, situação didática em que o docente pode acessar outras fontes de informação em revistas, documentários, artigos, vídeos; propor visitas a museus, organizar palestras com algum representante de determinada prática corporal, etc (NEVES; NEIRA, 2019NEVES, Marcos Ribeiro das; NEIRA, Marcos Garcia. O currículo cultural da educação física: princípios, procedimentos didáticos e diferenciações. Revista Internacional de Formação de Professores, v. 4, p. 108-124, 2019.), Silvio buscou vídeos que tratassem da altinha, citando especificamente um documentário estrangeiro que gerou algum estranhamento: “Caramba! A altinha é tão nossa! Como é que um estrangeiro vem aqui faz um documentário sobre isso e a gente não faz nada”.

Diante dessa observação, uma estudante pontuou que a sociedade é machista e que, praticando altinha e visitando as rodas de altinha, tinha encontrado um tipo de macho diferente. Outras admitiram não se sentirem bem aceitas nesse local e não acharem os homens “tão legais”.

O docente aproveitou para propor uma reflexão sobre a mulher na altinha. Pesquisou sobre o assunto e usou uma entrevista gravada, em que meninas relatavam a rejeição sofrida nas rodas e que havia um professor de Educação Física ensinando sujeitos potencialmente excluídos nas rodas de altinha. Silvio notou maior interesse por parte das meninas ao tratar do assunto dessa forma.

Coincidentemente, havia uma menina que se destacava por sua habilidade, a qual levava para escola uma bola profissional e demonstrava saberes aprofundados sobre o tema. Em outro momento, o professor a convidou para falar sobre suas vivências para os colegas. Contou que esse momento foi importante para a estudante explicar sobre as regras e a história, acrescentando que tal iniciativa contribuiu para que se sentisse valorizada naquele ambiente.

Nota-se que o docente adota uma posição política diante da prática corporal e se preocupa em não fechar ou determinar os significados. A gestualidade de uma jogadora apresentada nos vídeos e a experiência da estudante nas rodas de altinha parecem contribuir para desestabilizar as representações dos estudantes sobre a altinha. Ao problematizar as questões de gênero, puderam identificar aspectos que envolvem as práticas corporais para além da mera vivência e perceber a exclusão e a afirmação de determinadas identidades (NEIRA, 2020NEIRA, Marcos Garcia. A abordagem das diferenças no currículo cultural da Educação Física. Humanidades & Inovação, v. 7, p. 39-56, 2020.). Infere-se, portanto, que a leitura das práticas corporais em seus contextos de ocorrência, quando acompanhada de situações didáticas de aprofundamento e ampliação, possibilita a compreensão dos mecanismos regulatórios que determinam as produções discursivas e as relações sociais.

O professor Silvio também narrou o trabalho realizado durante a pandemia. Explicou a motivação da escolha do tema saúde, informando que o assunto estava em voga e por isso poderia se apresentar como uma questão importante. Pensou numa abordagem distinta da ideia de ausência de doença. Explicou que, até a data da entrevista, estava apenas dando preferência para aulas teóricas e evitando a vivência de práticas corporais por desconhecer e respeitar a realidade dos estudantes, que poderiam não dispor de locais apropriados para determinadas atividades.

Estavam, naquela ocasião, tratando do conceito ampliado de saúde, pensando na vida em sociedade, considerando as condições de transporte, moradia, violência urbana, assistência pública etc. Explicou que iniciaram a tematização a partir de assuntos sobre as desigualdades sociais e as injustiças, as questões de gênero, a dupla ou tripla jornada feminina, que interferem no estilo de vida saudável.

Contrariando a perspectiva tradicional, trocaram o pensamento sobre saúde a partir de hábitos individuais, que provavelmente recairia em questões sobre a alimentação ou a frequência de atividades físicas, para hábitos coletivos, tematizando a saúde a partir de uma concepção que leva em conta determinantes sociais, com ênfase nas experiências de vida dos estudantes.

O professor Vicente encontrou dificuldades ao tentar propor ações pedagógicas culturalmente orientadas no contexto de aulas remotas. Justificou a opção pelo tema saúde porque se trata de um assunto amplamente discutido.

Viemos dialogar a partir de uma questão que surgiu com os estudantes, que é a influência das desigualdades sociais na saúde. E aí começamos a trabalhar alguns recortes. Primeiro: desigualdades sociais, classes sociais e saúde, depois desigualdade sociais, gênero e saúde, e agora a gente está em desigualdades sociais, racismo e saúde e depois a gente vai entrar em saúde mental e nas práticas corporais a partir de toda essa construção, a gente vai dialogar sobre saúde mental que é uma demanda deles porque a gente entende que é legítimo, a gente precisou jogar um pouco mais pra frente justamente para poder estudar, se aprofundar e tratar o tema com todo respeito e importância que ele merece. [...] E a partir disso, propor então a partir da realidade que eles vivenciam, uma prática corporal que possa ser feita em um espaço que não exijam muitas questões assim... A gente está pensando que talvez seja interessante meditação, prática de relaxamento, e aí entra minha avaliação rapidinho pensando que eles façam um portfólio, um diário de bordo, que eles ali colocariam todas as experiências no sentido de como seria a meditação no dia a dia. (Professor Vicente)

Evidencia-se que o contexto de pandemia obrigou à reinvenção da experiência educacional. Os espaços de que os estudantes dispõem não são previsíveis, e o ineditismo do momento conferiu adaptações no modo de tematizar as práticas corporais. Isso não impediu a escuta atenta das vozes dos estudantes, na expectativa de conhecer melhor suas representações sobre as práticas corporais, coadunando com Neira (2020NEIRA, Marcos Garcia. A abordagem das diferenças no currículo cultural da Educação Física. Humanidades & Inovação, v. 7, p. 39-56, 2020., p. 831) ao mencionar que “os conhecimentos abordados nas aulas emergem à medida que se desenvolve a tematização das práticas corporais”. O que confere legitimidade ao campo são as discussões vinculadas às práticas corporais e seus participantes. Quando os discursos dos estudantes, sistemática e repetidamente, se afastam dessa questão, incorre-se no risco de se perder o cerne da discussão.

O professor Moacir relatou situações didáticas desenvolvidas durante a tematização de jogos e brincadeiras de matrizes étnicas na Educação Infantil. Começou a tematização perguntando aos estudantes o que são índios6 6 O professor informou que usou o termo “índio” por considerar de fácil compreensão para os estudantes. . Durante o mapeamento, comentou sobre os diferentes povos existentes, contrariando a expectativa que algumas pessoas têm de que os indígenas são todos iguais, usam as mesmas vestimentas, com mesmos costumes, moram em ocas, usam penas como adereços etc.

Durante as aulas, um estudante demonstrou familiaridade com o assunto. Seu conhecimento de causa ficou notório quando informou que seus familiares são caiçaras da comunidade de Paraty, seu bisavô era indígena e praticava jogos e brincadeiras de sua cultura.

O professor prontamente solicitou que o estudante apresentasse aos demais as brincadeiras que conhecia e sua solicitação foi logo atendida. O docente observou que essa vivência entusiasmou a turma, proporcionando diálogos interessantes e condições para vivenciar outras práticas corporais de origem indígena. Perguntou por que o brincar dos povos indígenas era diferente e ouviu dos estudantes que morar na floresta possibilita certas brincadeiras e em prédios outras.

As ações narradas evidenciam que professores que atuam em consonância com o currículo cultural são agenciados simultaneamente pelos princípios ético-políticos do reconhecimento da cultura corporal da comunidade e da ancoragem social dos conhecimentos (NEIRA, 2018aNEIRA, Marcos Garcia. Educação física cultural: inspiração e prática pedagógica. Jundiaí: Paco, 2018a. v. 1. 166p.; NEVES; NEIRA, 2019NEVES, Marcos Ribeiro das; NEIRA, Marcos Garcia. O currículo cultural da educação física: princípios, procedimentos didáticos e diferenciações. Revista Internacional de Formação de Professores, v. 4, p. 108-124, 2019.). Ademais, privilegiar conteúdos hegemônicos no cotidiano escolar pode contribuir para o silenciamento de manifestações corporais brasileiras, ou seja, ao ignorar e silenciar culturas e conhecimentos dos grupos que compõem uma parcela significativa da população, veicula-se a impressão que sua contínua condição desprivilegiada lhes é merecida (NEIRA, 2011NEIRA, Marcos Garcia. Educação física. São Paulo: Blucher, 2011. (Coleção: A reflexão e a prática no ensino - Educação Física) v. 8.). Parece que o professor Moacir buscou justamente o contrário disso, assumindo a responsabilidade de tematizar a cultura indígena.

Eles queriam fazer aquilo ali toda aula, né? E se eu não falasse: olha a gente vai fazer sim, mas vamos fazer outras, né? Ou seja, mesmo ali de forma inicial, mesmo com as características sócio-cognitivas deles de crianças de 4 anos, eles entenderam aquela brincadeira, gostaram e talvez tenha construído na cabeça deles de que respeitar as brincadeiras de outros povos é importante, né? (Professor Moacir)

Ademais, o docente notou mudanças no estudante que mencionou sua ancestralidade indígena. Antes, o observava pelos cantos da escola, amuado. Para Moacir, a experiência curricular contribuiu para o seu reconhecimento e fortalecimento dos laços de amizade com as outras crianças.

Já o professor Machado tematizou danças brasileiras nas aulas de Educação Física no Ensino Médio. Durante o mapeamento, registrou as danças que os estudantes conheciam ou tinham interesse em conhecer. Além disso, buscou informações sobre danças comuns no território da escola. Identificou o funk, brega, brega funk, axé, jongo, maculelê, forró, samba, entre outras. As turmas lembraram que no entorno da escola havia um Centro de Tradições Nordestinas e que muitos dos que frequentam e trabalham no local são nordestinos. Por isso, decidiram coletivamente tematizar o forró.

De acordo com Neira (2020NEIRA, Marcos Garcia. A abordagem das diferenças no currículo cultural da Educação Física. Humanidades & Inovação, v. 7, p. 39-56, 2020., p. 840), “o acesso aos eventuais percursos histórico-sociais da manifestação tematizada tem mais sentido quando se entrecruza com sua presença na comunidade e na vida das pessoas”. A tematização de tal prática, da forma como foi feita, ofereceu maior chance de identificação.

O educador explicou como selecionou o tema e os encaminhamentos pedagógicos decorrentes:

São Cristóvão é um bairro que tem muita gente oriunda do Nordeste, enfim, filhos de nordestinos. Então, é através desse mapeamento que a gente trabalhou também o forró, não esquecemos dos outros, a gente trabalhou funk, o samba, mas com forró a gente aprofundou um pouquinho mais [...] além de ir um dia na feira fazer a nossa, o que a gente chama de culminância, que foi o final do trimestre, que foi ir na feira, então eles poderiam dançar o forró que a gente aprendeu nas aulas ali no Centro de Tradições Nordestinas e a gente ainda fazia um trabalho de ampliação do conhecimento deles, que focavam nas vozes nordestinas. (Professor Machado)

Além de praticar a dança num dos seus locais de ocorrência, os estudantes fizeram entrevistas com seus representantes. A pesquisa buscava, dentre outras respostas, identificar a relação daquelas pessoas com o forró, visando compreender suas trajetórias de vida. Buscaram saber o que motivou a migração para a cidade do Rio de Janeiro, situações que passaram na cidade ao chegar, questões relacionadas a preconceito que sofreram, situações constrangedoras com apelidos etc.

No entender de Neira (2020)NEIRA, Marcos Garcia. A abordagem das diferenças no currículo cultural da Educação Física. Humanidades & Inovação, v. 7, p. 39-56, 2020., as formas pejorativas de ver as práticas corporais e grupos que as manifestam podem ser desconstruídas por meio de atividades específicas, até mesmo dos registros, para que haja o entendimento de como os discursos que diminuem, maltratam, menosprezam são produzidos e reproduzidos e, desse modo, contribuir para que atos de discriminação e preconceito possam ser atenuados e exterminados.

Segundo o professor Machado, o intuito era aprofundar e ampliar o conhecimento dos estudantes para fazer ecoar as vozes nordestinas. O professor explicou que o assunto despertou grande interesse, mesmo assim, tematizar a dança foi desafiador por ser uma prática corporal que ele não tinha muita vivência. Em locais em que atuou anteriormente, costumava abordar essa prática corporal apenas nas datas festivas, o que provavelmente se resumia a ensaiar as crianças para apresentações.

Os estudantes também poderiam entrevistar familiares ou vizinhos, desde que fossem nordestinos ou descendentes. O docente destacou uma situação surpreendente, em que um estudante entrevistou o pai e, a partir dessa entrevista, passou a conhecer episódios de sua vida ao chegar na cidade do Rio de Janeiro, quando enfrentou problemas de moradia, tendo, até mesmo, que dormir no chão de padarias. Tal situação gerou no estudante outro modo de ver o pai e, muito provavelmente, outras visões de mundo.

A análise da narrativa docente não deixa dúvidas do seu agenciamento pelos princípios do reconhecimento da cultura corporal da comunidade, descolonização do currículo e justiça curricular.

4 INCERTEZAS

São inegáveis as disputas por significados existentes no campo da investigação sobre a produção curricular. Ainda que não possa ser capturado, o currículo cultural se mostra passível de ressignificações, estabilizações provisórias e constantes desestabilizações.

Os resultados revelam que os conhecimentos abordados durante as tematizações se originaram de múltiplas fontes. Professores e estudantes interagiram com representantes das práticas corporais, vivenciaram-nas de variadas formas, assistiram a vídeos previamente selecionados ou escolhidos por iniciativa própria, visitaram ambientes onde a manifestação acontece, acessaram a conteúdos de textos digitais, ferramentas digitais interativas, entre outros, sem qualquer espécie de hierarquização, sistematização ou valoração.

Mesmo sabendo que os efeitos do currículo não podem ser controlados, a atitude política adotada pelos docentes, cujas aulas foram narradas, baseou-se num diálogo constante com as diferenças. Os docentes parecem defender uma educação menos violenta e opressora, pautados em princípios democráticos. Esse fato se evidenciou quando a professora Carolina problematizou o desconhecimento de jogos de tabuleiro de origem indígena; no momento em que o professor Moacir convidou um estudante cujo avô era indígena para enunciar suas vivências; na ocasião em que o professor Machado tematizou o forró e propôs debates sobre história de vida dos seus praticantes e a pesquisa sobre a cultura nordestina; enquanto o professor Silvio convidou uma estudante, que possuía saberes sobre a altinha, para narrar sua vivência aos demais estudantes, tratando de questões de gênero; e quando o professor Vicente tematizou saúde problematizando questões relativas às condições de vida disponíveis a uma grande parcela da população.

O currículo cultural e sua maleabilidade inerente podem propiciar a inserção de saberes que englobam os anseios de muitos daqueles que não se veem incluídos na habitual homogeneidade curricular vigente em muitas escolas, voltada à meritocracia e valoração do rendimento. Em tal cenário, ressignificar o ensino da Educação Física é algo latente e o currículo cultural possibilita essa transição.

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    O presente artigo é um desdobramento da pesquisa de mestrado desenvolvida por Souza (2021)SOUZA, Anna Carolina Carvalho de. Possíveis caminhos de ressignificação curricular na Educação Física: uma perspectiva multicultural. 2021. 173f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Escola de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021..
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    Trata-se de uma proposta em constante metamorfose, que dispensa qualquer tentativa de circunscrever ou enquadrá-la em uma definição ortodoxa para tentar defini-la (BONETTO; VIEIRA, 2021BONETTO, Pedro Xavier Russo; VIEIRA, Rubens Antonio Gurgel. Aleturgia do currículo cultural na educação física. Conexões, v. 19, p. e021032-20, 2021. DOI: https://doi.org/10.20396/conex.v19i1.8660658
    https://doi.org/10.20396/conex.v19i1.866...
    ). Essa forma de configuração curricular que se convencionou denominar Educação Física cultural, currículo cultural, culturalmente orientado ou currículo pós-crítico vem se difundindo na Educação Básica. Em síntese, o currículo cultural visa problematizar as relações de poder tencionando as situações opressoras através de uma leitura de um currículo pós-crítico. Além disso, se apresenta como uma proposta curricular que suscita a valorização e reconhecimento da cultura corporal da comunidade, a justiça curricular e a docência dialógica. A produção científica acerca dessa perspectiva curricular pode também ser acessada no site do Grupo de Pesquisas em Educação Física escolar da FEUSP, cujo endereço é http://www.gpef.fe.usp.br/.
  • 3
    Os nomes foram propositalmente escolhidos com intuito de homenagear indivíduos negros e/ou pretos com reconhecida influência e contribuição na cultura brasileira, fazendo menção então a Carolina Maria de Jesus, Silvio de Almeida, Moacir Barbosa, Machado de Assis e Vicente Ferreira Pastinha.
  • 4
    Cabe destacar que os aspectos éticos foram considerados na medida em que a presente pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Colégio Pedro II, número na Plataforma Brasil CAAE 29847820.3.3001.9047, e pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho/HUCFF/UFRJ, CAAE 29847820.3.0000.5257.
  • 5
    Que podem se organizar de forma síncrona, na qual pesquisador e entrevistados e ou/ participantes da pesquisa estão online simultaneamente, ao vivo e em tempo real; ou podem, também, se dar de forma assíncrona, quando não necessariamente ambos estão online simultaneamente, podendo o respondente enviar mensagem quando lhe convier (FÉLIX, 2014FÉLIX, Jeane. Entrevistas on-line ou algumas pistas de como utilizar bate-papos virtuais em pesquisas na educação e na saúde. In: MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (org.). Metodologias de pesquisa pós-crítica em Educação. 2. ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014.).
  • 6
    O professor informou que usou o termo “índio” por considerar de fácil compreensão para os estudantes.
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • ÉTICA DE PESQUISA

    O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa (CEP) do Colégio Pedro II, número na Plataforma Brasil CAAE 29847820.3.3001.9047 e pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho/HUCFF/UFRJ, CAAE 29847820.3.0000.5257.
  • COMO REFERENCIAR

    SOUZA, Anna Carolina Carvalho de; NEIRA, Marcos Garcia; TELLES, Silvio de Cássio Costa. Educação Física Cultural: o currículo em ação pela ótica docente. Movimento, v. 29, p. e29039, jan./dez. 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.127698

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Editado por

EDITORIAL RESPONSIBILITY

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Lisandra Oliveira Silva*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*
* Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2023
  • Aceito
    28 Jul 2023
  • Publicado
    02 Set 2023
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