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A HERANÇA NA TRAJETÓRIA ESPORTIVA DE UM DOS GRANDES MESTRES BRASILEIROS: PROCESSOS EDUCACIONAIS E ESPORTIVOS DE FORMAÇÃO DE UMA ELITE CULTURAL

HERITAGE IN THE SPORTING TRAJECTORY OF ONE OF BRAZILIAN GRANDMASTERS: EDUCATIONAL AND SPORTS PROCESSES IN THE FORMATION OF A CULTURAL ELITE

EL FACTOR HERENCIA EN LA TRAYECTORIA DEPORTIVA DE UNO DE LOS GRANDES MAESTROS BRASILEÑOS: LOS PROCESOS EDUCACIONALES Y DEPORTIVOS DE FORMACIÓN HACIA UNA ÉLITE CULTURAL

Resumo

O objetivo deste estudo foi investigar as condições de transmissão e os sentidos de produção das disposições relacionadas à prática do xadrez na trajetória esportiva de um dos Grandes Mestres brasileiros. A abordagem qualitativa de pesquisa foi utilizada a fim de identificar e analisar em profundidade tal problemática. A seleção do participante apresentado, GM 12, se deu por seu evidenciado destaque e posição ocupados no espaço social enxadrístico. Os dados foram produzidos por entrevistas retrospectivas semiestruturadas e analisados por meio da Análise Temática. Os resultados oferecem subsídios sobre a constituição social dos processos capazes de construir o sucesso esportivo. Em oposição às concepções naturalizadoras e meritocráticas que atribuem aos desempenhos a presença ou a falta de “dons” e “talentos” predestinados, o desvelar de suas bagagens constituiu-se em fecunda alternativa para refutar a própria produção de desigualdades causadas por sua manifestação oculta.

Palavras-chave
Pierre Bourdieu; Herança Cultural; Xadrez; Sociologia do Esporte

Abstract

The aim of this study was to investigate the conditions of transmission and the meanings of production of the dispositions related to the practice of chess in the sporting trajectory of one of Brazilian Grandmasters. The qualitative research approach was used to identify and analyze this goal in depth. The selection of the presented participant, GM 12, was due to his evident prominence and position occupied in the chess social space. The data were produced through semistructured retrospective interviews and analyzed through the Thematic Analysis method. Finally, it was hoped to offer subsidies on the social constitution of the socializing processes capable of building the sport success. In opposition to the naturalizing and meritocratic conceptions that attribute the presence or lack of predestined “gifts” and “talents” to the players performances, the unveiling of their baggage could be a fruitful alternative to refute one's own inequalities caused by their hidden manifestation.

Keywords
Pierre Bourdieu; Cultural Heritage; Chess; Sociology of Sport

Resumen

El dicho trabajo tiene como objetivo investigar los condicionantes de transmisión y los sentidos de producción de las disposiciones respecto a la práctica del ajedrez en la trayectoria deportiva de uno de los Grandes Maestros brasileños. Para ello, se utilizó una investigación cualitativa con la cual se procuró identificar y analizar en profundidad esta problematización. La selección del participante presentado, GM 12, se debió a su evidente protagonismo y posición que ocupa en el espacio social del ajedrez. La producción de los datos estuvo a cargo de la realización de entrevistas retrospectivas semiestructuradas y estudiadas por Análisis Temático. Los resultados obtenidos ofrecen subsidios relativos a la constitución social de los procesos que llevan al éxito deportivo, en oposición a las concepciones naturalistas y meritocráticas que condicionan las performances a la presencia o ausencia de talentos innatos. Así, al desvelar las experiencias sociales de estos jugadores, se constituye una alternativa fecunda para rehusar la propia producción de desigualdades provocadas por su manifestación oculta.

Palabras clave
Pierre Bourdieu; Herencia Cultural; Ajedrez; Sociología del Deporte

1 INTRODUÇÃO1 1 Este artigo é um desdobramento da dissertação de Januário (2017).

O campo esportivo, espaço de disputas em que concorrem normas, regras e bens cuja posse confere distinção aos sujeitos que com ele se relacionam (BOURDIEU, 1983BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.) engloba, em seu espectro, o subcampo esportivo do xadrez (SOUZA, 2010SOUZA, Juliano. O xadrez em xeque: uma análise sociológica da “história esportiva” da modalidade. 2010. 191 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010.; JANUÁRIO, 2014JANUÁRIO, Jéssica. Trajetória esportiva de grandes mestres brasileiros: aspectos socioculturais e pedagógicos no campo social do xadrez. 2014. 67 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Educação Física e Esporte) – Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2014.; MARQUES, 2015MARQUES, Renato Francisco Rodrigues. O conceito de esporte como fenômeno globalizado: pluralidade e controvérsias. Revista Observatorio del Deporte, v. 1, n. 1, p. 147-185, 2015.). Este, por sua vez, configura-se como uma prática detentora de um rigor ascético e exigente de uma capacidade de interpretação sobre os mecanismos de funcionamento de seu espaço deveras elevada (BOURDIEU; DAUNCEY; HARE, 1998BOURDIEU, Pierre; DAUNCEY, Hugh; HARE, Geoff. The state, economics and sport. Culture, Sport, Society, v. 1, n. 2, p. 15-21, 1998. DOI: https://doi.org/10.1080/14610989808721813
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), tal qual os estilos de vida e julgamentos morais e estéticos de seus agentes (BOURDIEU, 2007BOURDIEU, Pierre. Os universos de possíveis estilísticas. In: BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2007. p. 196-211.). No espaço de oferta e demanda em que concorrem as modalidades esportivas, assim, o xadrez é uma destas práticas que nem todos parecem conhecer (BOURDIEU, 2003BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2003. p. 73-111.).

Se não é simples o seu direito de entrada, o alcance do sucesso nesta modalidade também parece não ser para qualquer um. Fato é que, em toda a história da modalidade no contexto brasileiro, apenas 122 2 Número aferido no ano de realização desta pesquisa (2017). Atualmente, a grande maestria brasileira é composta por 15 sujeitos (dados de 2023). foram os sujeitos que alcançaram a sua graduação de maior prestígio, o título de Grande Mestre (GM). Tais trajetórias, por sua vez, ressentem-se de investigações que privilegiem os processos sociais e pedagógicos a elas inerentes. Neste sentido, em análise destes percursos, Januário (2014)JANUÁRIO, Jéssica. Trajetória esportiva de grandes mestres brasileiros: aspectos socioculturais e pedagógicos no campo social do xadrez. 2014. 67 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Educação Física e Esporte) – Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2014. encontrou que o acúmulo de determinados capitais culturais relacionados ao xadrez e adquiridos de maneira precoce no ambiente familiar pela grande maestria brasileira, por sua vez, fora elemento relevante ao longo de suas carreiras esportivas. Tal acúmulo difuso de bens capazes de conferir a estes sujeitos certa vantagem no sistema de seleção e classificação até o alto rendimento enxadrístico configuraria uma herança cultural (NOGUEIRA; CATANI, 1998NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.; BOURDIEU; PASSERON, 2014BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.), espécie de veredicto relativo à posse de capitais que permitem o acesso, pelos seus herdeiros, a percursos marcados pelo sucesso e pela distinção.

Com a premissa de que os percursos esportivos se constroem essencialmente a partir de processos de socialização dialéticos entre a ordem social e as estratégias adotadas pelos sujeitos, acredita-se que o sucesso de suas histórias não pode encontrar meios de se dar única e predominantemente a partir de explicações ora naturalizadoras, ora meritocráticas que parecem não encontrar eco nos processos reais senão aqueles fortemente enraizados no senso comum. É o campo do esporte, assim, espaço em que, por excelência, se assentam as concepções de “dom” e de “talento” esportivos, sendo estas quase sempre consideradas como predestinações biológicas entre seus sujeitos. Para além de deterministas e substancialistas, tais crenças colaboram, na ausência de investigações sobre as relações entre a origem social dos sujeitos e o seu desempenho no esporte, enfim, para um ciclo de reprodução de mecanismos ocultos, como é o caso daqueles perpetuados pelos modos de aprendizagem e relação com a cultura advindos da transmissão familiar da herança cultural (BOURDIEU; PASSERON, 2014BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.).

Com o propósito de lançar luz aos processos de socialização que possam, porventura, acentuar as desigualdades sociais neste espaço, bem como ao acreditar que a elucidação dos mecanismos de reprodução da herança cultural possam colaborar para a redução destas disparidades, emerge o objetivo deste estudo: investigar as condições de transmissão e os sentidos de produção das disposições relacionadas à prática do xadrez na trajetória esportiva de um dos Grandes Mestres brasileiros.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 PIERRE BOURDIEU: PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA E CONCEITOS-CHAVE MOBILIZADOS

A abordagem teórico-metodológica do sociólogo francês Pierre Félix Bourdieu (1930 – 2002), reflexa e praxiológica, advém da ideia de um pensamento relacional que, por sua vez, considera que a identificação do real deve se dar além daquilo que apenas lhe substancia, mas a partir de suas várias relações. Deste modo, é possível dizer que a realidade social, a partir de uma leitura bourdieusiana, preza por uma análise das posições relativas e das relações objetivas entre estas posições, “como um conjunto de relações invisíveis, aquelas mesmas relações que constituem um espaço de posições exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras, não só pela proximidade, pela vizinhança ou pela distância” (BOURDIEU, 2004BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004., p. 152).

Compreender as práticas de um ponto de vista que considere a sua práxis, deste modo, significa abandonar teorias que as concebam como reações mecânicas, diretamente determinadas por condições pré-existentes e redutíveis ao funcionamento de esquemas preestabelecidos. Neste sentido, os conceitos de campo, capital, habitus e herança cultural – alguns dentre os vários constructos desenvolvidos ao longo da teoria do autor – serão especialmente mobilizados para compor o arcabouço investigativo deste artigo.

Espaços definidos a partir dos conflitos e tensões que concernem à sua própria delimitação, os campos carregam a busca simbólica pelo poder à tônica que configura a rede de relações entre seus membros. A relativa com a macrossociedade, por sua vez, garante ao campo certa autonomia que configura a lógica específica que orienta suas lutas, ao mesmo passo em que estas, por outro lado, sofreriam influência e seriam seletivamente permeáveis às estruturas que são a ele externas (BOURDIEU, 1983BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.). Definidos em função do modo como se distribuem as diferentes formas de poder em cada sociedade, os espaços sociais – e, dentre eles, os campos – estariam estruturados essencialmente pela maneira com que são distribuídos os seus bens que, pelo autor, receberiam o desígnio de capitais (BOURDIEU, 1983BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.). Sendo o recurso que confere poder aos agentes, assim sendo, a distribuição dos sujeitos no espaço global obedeceria, em uma primeira dimensão, o volume global de capital acumulado sob diferentes espécies e, em uma segunda dimensão, o peso relativo destas espécies no volume total que o estrutura (BOURDIEU, 2004BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.).

Crédito atribuído àqueles que obtiveram autoridade suficiente para ter a condição de impor este mesmo reconhecimento, o capital simbólico faz-se como o poder de realizar a constituição dos grupos ou de fazê-los existir por procuração através da mobilização e do prestígio obtido ao cabo de um processo de institucionalização ao término do qual designa-se um mandatário que recebe o poder de fazer o grupo. É assentada na complementariedade e inter-relação entre os diferentes tipos de capitais que o autor constrói uma compreensão multidimensional da realidade social a partir das trocas simbólicas que nela ocorrem. Além do capital simbólico, Bourdieu (1989)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. e Nogueira, Catani (1998)NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998. propõem que estes bens estariam assumidos em três principais tipos: capital econômico, capital social e capital cultural. Estas e outras formas de configuração possíveis de capitais, assim, poderiam converter-se – de acordo com aquilo que é valorizado pelas leis e formas de disputa dos campos – no capital simbólico por dado espaço legitimado ou, complementarmente, entre si.

O primeiro, capital econômico, estaria relacionado ao acúmulo de moedas de troca sob a forma da posse de investimentos e sistemas de produção; são dele exemplos o salário, os imóveis e demais outros tipos de rendimentos (BOURDIEU, 1989BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.) que, sob determinadas condições, são passíveis converterem-se nas suas mais desinteressadas manifestações, quer sejam elas culturais ou sociais (BOURDIEU, 1986BOURDIEU, Pierre. The forms of capital. In: RICHARDSON, John (ed.). Handbook of theory and research for the sociology of education. New York: Greenwood, 1986. p. 241-258.). No cerne de todos os outros tipos de capitais, portanto, os efeitos atrelados aos bens econômicos nunca se reduzem inteiramente apenas em sua definição, produzindo desdobramentos associados à sua convertibilidade e desigual distribuição na medida em que o exercício de ocultá-lo – pelo menos por seus detentores – só reforça o que, em última análise, o torna raiz da produção de seus próprios efeitos (BOURDIEU, 1986BOURDIEU, Pierre. The forms of capital. In: RICHARDSON, John (ed.). Handbook of theory and research for the sociology of education. New York: Greenwood, 1986. p. 241-258.).

O segundo, capital social, se remete ao fundamento dos efeitos sociais que, mesmo compreendidos nas singularidades, são irredutíveis ao conjunto de propriedades individuais dos agentes. Definido pelo “conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de interreconhecimento” (NOGUEIRA; CATANI, 1998NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998., p. 67), em outras palavras, o capital social relaciona-se pelas ligações de vínculo do sujeito a determinado grupo, entendido como um conjunto de agentes que não só detém propriedades em comum passíveis de serem percebidas por outros ou por eles mesmos, mas unidos por relações úteis e que visam a permanência neste grupo. Tais ligações, por sua vez, são fundadas em trocas inseparavelmente materiais e simbólicas, que supõem a proximidade no espaço físico ou social desde a sua instauração até a perpetuação.

O terceiro, capital cultural, se refere ao legado advindo da produção, posse, apreciação ou consumo de bens culturais socialmente dominantes. Segue-se, portanto, que a transmissão do capital cultural é, decerto, a “[...] forma mais dissimulada da transmissão hereditária do capital; por isso, no sistema das estratégias de reprodução, recebe um peso tanto maior quanto mais as formas diretas e visíveis de transmissão tendem a ser mais fortemente censuradas e controladas” (NOGUEIRA; CATANI, 1998NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998., p. 76). Sob o feitio de disposições duráveis no organismo, o estado incorporado está fundamentalmente ligado ao corpo, pressupondo uma incorporação que – sendo trabalho da inculcação e assimilação –, custa o tempo pessoal de seu investidor. Cultivo ou trabalho sobre si mesmo, desta forma, o capital cultural pode ser compreendido como “[...] um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da pessoa” (NOGUEIRA; CATANI, 1998NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998., p. 74), pago pelo sujeito com aquilo que ele tem de mais pessoal, o seu tempo. Sob a forma da posse de bens culturais, por sua vez, o estado objetivado do capital cultural detém propriedades definidas apenas na relação com a sua forma incorporada. Os patrimônios culturais, assim, podem ser objeto tanto de uma apropriação material que pressupõe o capital econômico como de uma apropriação simbólica, sendo nela subentendida o capital cultural. Por fim, sob a forma de títulos e certificações, o estado institucionalizado do capital cultural se coloca como uma das formas difusas de neutralização de certas propriedades individuais devido ao fato de que, estando incorporado, ele apresenta os mesmos limites biológicos de seu suporte. Agindo como uma “[...] certidão de competência cultural que confere ao seu portador um valor convencional, constante e juridicamente garantido no que diz respeito à cultura” (NOGUEIRA; CATANI, 1998NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998., p. 78), o estado institucionalizado produz uma alquimia social do capital cultural relativamente autônoma em relação ao seu portador – e até mesmo em relação ao seu próprio capital cultural corrente – em um dado momento histórico.

Para Pierre Bourdieu, é clara, deste modo, a ideia de que não se pode pensar a existência de um sujeito sem situá-la, de forma relacional, ao espaço social – ou mais especificamente, ao campo – em que concorrem capitais em disputa no qual se encontra. Cada classe ou agente, assim, engendra-se em um sistema de esquemas de produção, percepção e apreciação destas mesmas práticas (BOURDIEU, 2004BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.), produzindo representações objetivamente diferenciadas e disponíveis para a classificação como tal por agentes capazes de sua percepção, isto é, detentores dos esquemas classificatórios necessários para compreender-lhes o sentido social. Princípio gerador, assim, o habitus produziria práticas que não se deduzem diretamente das condições objetivas, tampouco das condições que produziriam o princípio durável de sua produção (BOURDIEU, 2003BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2003. p. 73-111.).

“Ser que se reduz a um ter, a um ter sido e a um ter feito ser” (BOURDIEU, 2003BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2003. p. 73-111., p. 70), o habitus é o produto do trabalho de inculcação e apropriação necessários para a reprodução das estruturas objetivas sob a forma de disposições duráveis nos organismos. À vista disso, o processo educativo torna-se condição fundamental para a introjeção de determinados códigos, modos de socialização e comportamentos que configurariam, particularmente entre as classes dominantes, a transmissão de uma herança cultural. “Matriz da trajetória social e da relação a essa trajetória” (NOGUEIRA; CATANI, 1998NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998., p. 231), a herança cultural encerra, em si própria e no princípio fundante da sucessão geracional do qual se nutre, contradições sempre oriundas da dupla vinculação da qual se originam e, principalmente, das discrepâncias entre as disposições do herdeiro e o destino encerrado em sua herança. Representa, assim, um veredicto relativo à posse de capitais que permitem o acesso, pelos seus herdeiros, a percursos marcados pelo sucesso e pela distinção legitimados pelos mais diversos espaços sociais, sendo este o patrimônio cultural familiar transmitido às futuras gerações de famílias de grupos sociais favorecidos (NOGUEIRA; CATANI, 1998NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.; BOURDIEU; PASSERON, 2014BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.).

3 METODOLOGIA

3.1 PRODUÇÃO DOS DADOS

A escolha pela apresentação única do participante GM 12, neste artigo, se deu por seu evidenciado destaque e posição ocupados no subcampo esportivo do xadrez. Os critérios de elegibilidade foram: a) possuir, durante o período de realização da pesquisa (2015 a 2017), o título de GM homologado pela Federação Internacional de Xadrez (FIDE); b) apresentar nacionalidade de origem brasileira; c) obter o aceite do termo de consentimento livre e esclarecido que envolve as condições de participação próprias deste estudo.

Intencionando-se obter uma prévia sobre a disponibilidade de participação, o contato inicial com o sujeito foi feito por meio do envio de informações referentes ao estudo em seu respectivo endereço eletrônico. Os dados foram coletados por meio do agendamento de encontro pessoal, obedecendo as sugestões de datas e locais propostos pelo participante.

O recurso ao depoimento oral foi adotado por meio de entrevista retrospectiva semiestruturada realizada pessoalmente. No âmbito da investigação qualitativa, tal técnica de produção dos dados caracteriza-se como narrativa, a qual permite o aprofundamento da pesquisa por meio da compreensão da narratividade como uma forma artesanal de comunicação, aliando histórias de vida com seus respectivos contextos sócio-históricos (MUYLAERT et al., 2014MUYLAERT, Camila Junqueira et al. Entrevistas narrativas: um importante recurso em pesquisa qualitativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 48, n. esp. 2, p. 193-199, 2014. DOI: https://doi.org/10.1590/S0080-623420140000800027
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). O roteiro contemplou questões fechadas e abertas com a finalidade de proporcionar tanto a praticidade da obtenção de dados socioeconômicos referentes ao sujeito e à sua família quanto, em um segundo momento, a reflexão do participante sobre a sua trajetória esportiva.

A duração média da entrevista, ao longo da pesquisa de campo, versou entre 1 e 4 horas de duração. O registro do áudio decorrente das falas se deu com o auxílio de um gravador digital com o intuito de facilitar o processo de transcrição dos dados. Toda entrevista contou com o recurso de devolução para o sujeito no momento posterior à sua transcrição.

A identidade do sujeito foi preservada por meio do desígnio aleatório dos números de um a doze (1 a 12) para a sua representação. A ordem adotada para a denominação foi a mesma da realização das entrevistas.

A pesquisa contou com a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) número 57818016.7.0000.5659 e parecer 1.761.845.

3.2 ANÁLISE DOS DADOS

O exame dos dados foi realizado por meio de categorias teóricas advindas da obra de Pierre Bourdieu, especificamente os conceitos de campo, capital, habitus e herança cultural e, em conjunto, da Análise Temática, aporte teórico-metodológico que tem por finalidade identificar, analisar e reportar padrões temáticos no interior de determinada base de dados de modo a compor, através de uma rica descrição e organização, o corpus particular de interesse delineado pelo estudo (BRAUN; CLARKE, 2006BRAUN, Virginia; CLARKE, Victoria. Using thematic analysis in psychology. Qualitative research in psychology, v. 3, n. 2, p. 77-101, 2006. DOI: https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa
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).

Seja com o propósito de trazer à tona a realidade e/ou desvendar as incógnitas envoltas por trás de sua superfície, nela, é de fundamental importância que se assuma uma posição sobre o processo de tomada de decisões. Considerando o presente artigo, optou-se por uma análise teórica feita a partir do relato detalhado de dado aspecto em particular e por um tema latente, além da utilização de uma epistemologia construcionista. De forma interativa, dinâmica e recursiva em relação aos processos de análise e reanálise, as fases de codificação adotadas foram: a) familiarização com os dados; b) geração dos códigos iniciais; c) procura por temas; d) revisão dos temas; e) definição e nomeação dos temas; f) elaboração do relatório final (BRAUN; CLARKE, 2006BRAUN, Virginia; CLARKE, Victoria. Using thematic analysis in psychology. Qualitative research in psychology, v. 3, n. 2, p. 77-101, 2006. DOI: https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa
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).

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Esta seção tem como propósito analisar as condições de transmissão e os sentidos de produção das disposições relacionadas à prática do xadrez na trajetória esportiva de um dos Grandes Mestres brasileiros.

No encerramento deste prólogo é relevante dizer que, embora seja tentador o desafio de recontar cada uma das trajetórias esportivas transcritas ao longo da dissertação de Januário (2017)JANUÁRIO, Jéssica. A herança na trajetória esportiva de Grandes Mestres brasileiros: processos educacionais e esportivos de formação de uma elite cultural. 2017. 572 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017., optou-se pela apresentação de um recorte de uma das narrativas relatadas. Esta, por sua vez, tem o objetivo de representar uma exemplificação da totalidade dos casos e da complexidade de cada um deles, considerando que uma apresentação e discussão mais detalhada exigiria um espaço consideravelmente maior.

4.1 APRESENTAÇÃO DA SÍNTESE NARRATIVA

4.1.1 GM 12: a precocidade em sua relação com o capital cultural e econômico

GM 12 tem 38 anos, nasceu em Porto Alegre (RS) e atualmente reside em São Paulo (SP). Cursou todas as etapas de escolarização no ensino privado, tendo ingressado na faculdade de Direito. É advogado por profissão, no entanto trabalha atualmente como “trader na mesa de operações da corretora do Itaú”.

À época de sua iniciação no xadrez a sua família era composta pelo seu pai, sua mãe e seu irmão mais novo. Sua mãe cursou o ciclo básico público até o Ensino Médio. Ingressou, mas não concluiu a faculdade privada. Hoje ela é aposentada, porém na época era “do lar”. A categoria socioprofissional da mãe é indicativa do sentido de ascensão e declínio, ambos, vivenciados por seus pais: “na verdade ela trabalhou por um tempo como secretária executiva, quando o meu pai teve uma ascensão na carreira dele. Mais tarde, ela se tornou do lar. Depois que os meus pais se separaram ela passou a fazer alguns trabalhos como costureira”. Seu pai possui Pós-graduação pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), no nível de Mestrado, anteriormente tendo estudado em escolas privadas e sendo, hoje, administrador. Seu irmão mais novo fez todo o ciclo básico privado até ingressar no curso de Engenharia na Alemanha. GM 12 acredita que esta era uma instituição pública, pois seu irmão só tinha “o custeio da manutenção de lá, não do curso”.

GM 12 conheceu o xadrez por meio do seu pai, em casa, com a idade mais tenra dentre os seus pares: “com 2 ou 3 anos ele já me ensinava a montar o tabuleiro e talvez com 3 ou 4 anos eu tenha começado de fato a aprender o movimento das peças”. Relata ter sido o seu pai um “aficionado” por xadrez, cuja prática deste se dera mais entre amigos “na época de faculdade, não mais do que isso”. Era com ele que GM 12 praticava sem tanta recorrência até seus 8 anos: “eu não consigo me lembrar de detalhes, mas mesmo assim eu me recordo de alguns flashes como um ou outro dia à noite que a gente sentava no chão da sala pra ver uma partida que saía no jornal ou alguma coisa desse tipo”.

Nesta mesma idade, GM 12 relata ter começado aulas sistematizadas de xadrez, “assim como várias outras atividades esportivas e musicais” que fazia, tais quais o piano3 3 Para ele, tal instrumento era demonstrativo do estado objetivado do capital cultural acumulado pela sua família, uma vez que o seu uso se assemelhava, “no fim das contas,” à “uma peça decorativa”, como comenta. Já sobre o que se refere ao xadrez, ao exemplo da estante de livros da modalidade presente em sua atual residência, GM 12 demonstra o tempo e o esforço demandados pela incorporação deste mesmo capital: “por exemplo, só nessa estante eu já doei ou já joguei fora umas três vezes o tamanho dela do que tá aí de livro, então eu estudei muito”. , a ginástica olímpica, o futebol e a natação. Estas se davam em um clube privado paulista que tinha um “departamento de xadrez com sócios bastante ativos e que gostavam muito da prática”, o que lhes rendia certa estrutura e incentivo. Foi neste ambiente que, a partir das primeiras viagens com a delegação do clube para os torneios estaduais, teve sua “primeira experiência de ter saído sozinho de casa, além de terem ido vários amigos e de ter sido muito divertido”, denotando o cultivo de seus primeiros capitais sociais ali. GM 12 relata – e todos os seus pares em relação à grande maestria, embora conscientes em diferentes graus sobre isso – que poderia ser considerado um “peixe dentro d’água”. Neste início e em um ambiente diferente do lar, GM 12 afere a importância da prática anterior caseira para a sua consagração no espaço do clube. Para além, ressalta a presença do pai enquanto figura que demonstrava interesse e dedicação em suas aulas iniciais neste espaço, versando estas entre a frequência de “uma ou duas vezes por semana”:

Por já jogar às vezes com o meu pai e já saber um pouquinho eu me identifiquei muito com o xadrez, eu era tão interessado que me dedicava relativamente bastante ainda sem a necessidade de ter aulas, então aprendi e cresci muito rápido no jogo. Eu gostava do ambiente e me sentia muito à vontade com as outras pessoas e com as aulas, elas poderiam ser com os adultos ou em grupos e eu gostava bastante. Acho que isso me incentivou principalmente nos primeiros meses, além do fato de que o meu pai também participava um pouquinho delas.

Às vezes eu fazia as minhas lições e estudava lá mesmo na sala do xadrez que era grande e tinha várias mesas. Enquanto isso eu ficava sempre olhando e ouvindo o que o pessoal fazia. Muitas vezes não era nem a minha aula, mas o professor vinha e me falava ‘olha aquela partida ali!’ ou ‘olha esse livro!’. Então eu sempre tinha algum material pra estudar. Olhando de longe, hoje, eu acho que um dos grandes elementos desse começo foi o meu interesse pelo xadrez, eu realmente gostava e queria me desenvolver, estava curioso e então tudo o que aparecia eu ia pegando.

A minha carreira foi muito sobre isso de estar confortável com o ambiente, com os amigos que eu fazia e gostar daquilo, então eu meio que ficava muito à vontade em tudo que se relacionava ao xadrez. Além de ter muita curiosidade e vontade de aprender eu era bem competitivo. É óbvio que os bons resultados também te desafiam a querer ganhar novamente no próximo ano e, nesse sentido, ter largado na frente foi um grande empurrão que eu tive.

Também guiado por seu pai e por indicação dos professores do clube que os alertaram que aquele era um lugar no qual “valia a pena conhecer”, GM 12 frequentou o “Clube de Xadrez São Paulo”. Segundo ele, “uma das experiências mais importantes” nos seus seis primeiros meses de contato com a modalidade”, onde vira “aquilo tudo, aquele monte de gente”. Isto é, momento em que se familiarizou com o modo de funcionamento e com os agentes deste subcampo que, antes, eram para ele mais restritos. Sobre esta experiência, também a dianteira dos passos de seu pai o guiou para que, em atitude resiliente, pudesse frequentar o ambiente em que aquele já conhecia:

A ida ao clube de xadrez de São Paulo foi uma das experiências mais importantes que eu tive nesses meus primeiros 6 meses. Em um fim de tarde o meu pai me levou pra conhecer lá e aí eu vi aquilo tudo, aquele monte de gente, né? Nesse clube tinha um torneio relâmpago aos sábados pros adultos, aí uma vez o meu pai foi jogar e me falou “não, você não vai!”. Aí eu fiquei meio bravo em casa, mas peguei um livrinho de combinações e fiquei ‘matando’ os exercícios porque eu queria ir jogar também.

Acumulando a frequência aos clubes e às aulas particulares de xadrez contratadas por seu pai, a motivação se viu aumentada devido ao relativo sucesso que os seus primeiros torneios disputados – em categorias cuja faixa etária era superior à sua – se deram. Para além, ressalta a alta frequência da participação em competições e o fato de que já gostava da prática: “basicamente eu ganhava os Campeonatos Paulistas Sub-10 e Sub-12 e ia me classificando pro Campeonato Brasileiro, no meu primeiro ano dele eu acabei ganhando mesmo e fiquei muito feliz por conseguir ir pro Mundial”. Nesta ocasião, dá especial ênfase à bagagem cultural e de amadurecimento proporcionados, distintivamente, pelas peregrinações culturais compostas pelas viagens enxadrísticas:

E aí, puxa! O Mundial foi uma experiência muito marcante pela viagem, pela turma que estava lá, pela minha independência, por me virar... Depois, tinha também o receio da primeira partida, eu não queria fazer feio e estava bem temeroso antes de sentar na mesa.

Desde pequeno eu já falava vários idiomas, com o xadrez e com a prática nos torneios eu aprendi o espanhol, o inglês, o russo, já falava o alemão da escola e aprendi o sueco no ano em que fiquei por lá.

Pelo relativo sucesso, GM 12 também conquistava um capital social que lhe agradava, reconhecimento expresso nas situações de competição, na escola e na empresa em que o patrocinava. Com os resultados cada vez mais expressivos obtidos ao longo do tempo, a visibilidade se estendia “em tudo, até mesmo na mídia”:

Eu dava entrevistas pra jornais, revistas, enfim. Eu não era um pop star, mas tinha uma agenda com bastante coisa. As minhas fotos e conquistas saíam nesses jornais de grande circulação como o Estadão, a Folha de São Paulo, o Diário Popular, entre outros. Vira e mexe algumas revistas como a Superinteressante ou a própria televisão vinham me entrevistar e, embora eu achasse legal cumprir essa agenda toda recheada, confesso que eu também não via a dimensão que aquilo tinha.

A cada cinco finais de semana eu acredito que jogava em praticamente três deles, foram muitos torneios e muitas partidas. O lado positivo disso era que, obviamente, todo mundo acabava me conhecendo, então eu achava aquilo ali muito bacana.

E era algo legal porque eu ia na fábrica e os diretores – eu nem sabia quem eram, mas eu acho que eram eles – me cumprimentavam e falavam “olha, então é você, que legal!”, né? Eu lembro que eu saía de lá com um monte de caixa de chiclete e aí distribuía na escola pra todo mundo, assim eu era popular e às vezes tinha um monte de amigos [risos].

Sempre fui uma certa referência aqui no Brasil e na América do Sul por ter um networking muito bom dentro do xadrez.

Não relata quaisquer cobranças por parte de seus pais, dando ênfase à certa autonomia com que tratava a prática e suas decisões pela sua estrutura privilegiada: “o xadrez era algo muito meu e era eu quem decidia se queria ir viajar e essas coisas, é claro que isso também era assim porque eu tinha como ir e tinha certa estrutura”. No entanto, ressalta a importância do patrocínio que tivera de uma empresa para ajudar os pais a custear os treinamentos e as viagens, além de enxergar tal subsídio como uma certa “recompensa” por aquilo que fazia. Em época de crise financeira no país, GM 12 se recorda que a estrutura de patrimônios de sua família também piorou, além de coincidir com a separação de seus pais. Mesmo assim, comenta que isso não importou tanto pra ele à época, mas que hoje sabe que “é preciso algum investimento para o suporte e para o staff do jogador”, uma vez que atualmente é pai de dois filhos cujo envolvimento com o xadrez já se dera de forma sistematizada e competitiva. Traduz, assim, um alicerce principalmente econômico e cultural que, mesmo em crise nacional e familiar, sempre lhe fora muito confortável:

Nunca me faltou nada, e isso tanto em termos de educação como de condições pra seguir a minha carreira no xadrez como, por exemplo, treinadores, torneios adequados pra jogar, professores e tudo. Em relação ao xadrez eu acabava sendo muito independente em tudo, raramente os meus pais iam ou precisavam me acompanhar nos torneios, praticamente eu sempre ia pra tudo sozinho. Às vezes eles iam me acompanhar porque queriam me ver jogar, mas na maioria das vezes – e também porque eu tinha uma agenda muito frequente – eu acabava indo com uma equipe formada pelos meus treinadores e amigos.

GM 12 estudava em uma “escola alemã tida como excelente, mas também como muito tradicional, muito rígida”. A partir do diagnóstico de oferta de maiores desafios feito por psicólogos sobre o seu comportamento em sala de aula, avançou um ano letivo, chegando a cursar concomitantemente a 5ª e a 6ª série do Ensino Fundamental. Segundo GM 12, no entanto, a agenda lotada pelos compromissos escolares e esportivos, incluso o xadrez, não fora algo que atrapalhara o seu desempenho. Na escola, embora o xadrez não existisse, GM 12 era reconhecido e compreendido por seus pares e professores no que dizia respeito à agenda lotada de compromissos desde muito cedo, possuindo certas vantagens no que tange à circulação de lucros advinda do mercado escolar:

Obviamente o colégio que eu estudava não precisava fazer propaganda do meu desempenho no xadrez, mas eles admiravam e enalteciam quando podiam, organizando alguma exibição que me valorizava enquanto aluno. Todos os meus professores sabiam de como eu ia bem no xadrez e a maioria deles sempre me parabenizava ou me ajudava no sentido de entender que eu viajava bastante porque tinha uma agenda cheia de compromissos.

GM 12 é consciente sobre a oferta de oportunidades de prática e relação com o xadrez com que contara, além de uma base que, ao longo do exposto, configurou-se como uma das mais privilegiadas heranças culturais transmitidas entre os seus pares:

O que me foi ofertado foi o alicerce, a base, a entrada... Afinal, você precisa entrar em um meio pra depois poder crescer dentro dele, né? E isso em qualquer coisa, você precisa ter primeiro a oportunidade de entrada e, preferencialmente, esta ser uma entrada que tenha uma primeira impressão positiva. Pra mim essa primeira impressão foi positiva porque eu achei tudo muito legal: gostei do treino, gostei da aula, gostava das partidas de brincadeira, gostava dos torneios internos e externos.

O talento me ajudou muito principalmente no começo, mas era um talento combinado com o prazer e essa eu acho que é uma combinação bem explosiva, né? Afinal, o talento atrelado ao prazer deságua no interesse que, por sua vez, é necessário para o esforço e para a vontade de querer mais e mais em alguma coisa que você faça. Se você não tem essa vontade... Precisa ter vontade, né? Isso é uma coisa bem simples de se dizer, mas que às vezes é mais difícil de ser colocada em prática.

Os mais bem dissimulados direitos de entrada e de manutenção pelos quais contam as práticas esportivas consideradas distintivas no subcampo esportivo estiveram, para GM 12, desde tenra idade garantidos. Sejam eles a tradição familiar, a aprendizagem precoce, as formas de sociabilidade ou as atitudes – em ambos os sentidos de conduta digna e de maneiras corretas – (BOURDIEU, 2007BOURDIEU, Pierre. Os universos de possíveis estilísticas. In: BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2007. p. 196-211.), fato é que a herança cultural de GM 12 compõe uma das mais consolidadas entre os seus pares. Um legítimo, portanto, exemplo de “herdeiro herdado pela herança” (NOGUEIRA; CATANI, 1998NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história de vida do participante representativo da grande maestria brasileira, considerada a sua síntese biográfica, demonstrou que os caminhos percorridos para a construção da herança foram, corroborando Bourdieu (2003, p. 71), demonstrativos do que pode significar um grupo constituído da “diversidade em sua homogeneidade”. Com isto se quer dizer que, embora seja este um grupo representativo de uma elite no subcampo esportivo do xadrez, mesmo ele reflete condições sociais de produção e de interiorização do habitus de seus sujeitos advindas de distintas experiências individuais com seus meios sociais. “Não sendo a história do indivíduo mais que uma especificação da história coletiva de seu grupo ou de sua classe” (BOURDIEU, 2003BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2003. p. 73-111., p. 72), foi na especificação dos sistemas de disposições individuais – ou na variância de um habitus considerado em sua unidade de grupo – que as particularidades e generalizações que os segmentam e expressam seus diferentes trajetos e posições foram possíveis de serem apreendidas. Assim, não é possível dizer que, mesmo entre os herdeiros, a herança é sempre una, advém sempre de uma influência unificante de seu transmissor ou, mesmo, age de modo unívoco sobre aquele que a herda.

Dentre esta rede de configurações ambientais, estruturas familiares e relações sociais, pôde-se verificar, ademais, que o sentido atribuído à precocidade ou ao envelhecimento do início de cada um dos trajetos precisa ser colocado em contexto com o modo como o sujeito o percebe. Da mesma forma, constatou-se que apesar da herança familiar constituir-se como um importante fator para o modo com que pode se dar a relação dos seus herdeiros com o xadrez, há de se considerar que outras instâncias socializadoras, tais quais o clube e a escola, foram também capazes de participar na construção de prolongamentos ou rupturas relacionados aos habitus primários dos praticantes. Ademais, a fórmula da intensificação da prática esportiva contou não só com o peso de cada um dos capitais mencionados, mas pela reunião do tempo livre e, principalmente, oportunidades de oferta da prática.

O sucesso esportivo aqui verificado parece ter sido, assim, enraizado em processos socializadores, condições de existência, valores e afetos. Ao demonstrar a dimensão relacional, interdependente e contextual que cada uma destas disposições adquiriu, de acordo com instâncias socializadoras distintas e distintivas, espera-se que as reflexões produzidas colaborem para afastar as tão arraigadas explicações essencialistas sobre o sucesso ou fracasso atribuídos aos desempenhos esportivos. Sugere-se, neste sentido, que a partir deste estudo se dê um olhar capaz de desnaturalizar as aquisições do desempenho esportivo, considerando-os em sua completude.

  • 1
    Este artigo é um desdobramento da dissertação de Januário (2017).
  • 2
    Número aferido no ano de realização desta pesquisa (2017). Atualmente, a grande maestria brasileira é composta por 15 sujeitos (dados de 2023).
  • 3
    Para ele, tal instrumento era demonstrativo do estado objetivado do capital cultural acumulado pela sua família, uma vez que o seu uso se assemelhava, “no fim das contas,” à “uma peça decorativa”, como comenta. Já sobre o que se refere ao xadrez, ao exemplo da estante de livros da modalidade presente em sua atual residência, GM 12 demonstra o tempo e o esforço demandados pela incorporação deste mesmo capital: “por exemplo, só nessa estante eu já doei ou já joguei fora umas três vezes o tamanho dela do que tá aí de livro, então eu estudei muito”.
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • ÉTICA DE PESQUISA

    Projeto aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade de São Paulo. Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) Plataforma Brasil: 57818016.7.0000.5659.
  • COMO REFERENCIAR

    JANUÁRIO, Jéssica dos Anjos. A herança na trajetória esportiva de um dos Grandes Mestres brasileiros: processos educacionais e esportivos de formaçãode uma elite cultural. Movimento, v. 29, p.e29050. jan./dez. 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.129244

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  • JANUÁRIO, Jéssica. A herança na trajetória esportiva de Grandes Mestres brasileiros: processos educacionais e esportivos de formação de uma elite cultural. 2017. 572 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017.
  • JANUÁRIO, Jéssica. Trajetória esportiva de grandes mestres brasileiros: aspectos socioculturais e pedagógicos no campo social do xadrez. 2014. 67 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Educação Física e Esporte) – Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2014.
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Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2023
  • Revisado
    25 Set 2023
  • Aceito
    14 Nov 2023
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
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