MOVÊNCIA: UM ELOGIO À EDUCAÇÃO FÍSICA E AO ESPORTE

MOVIMIENTO: UN ELOGIO PARA LA EDUCACIÓN FÍSICA Y EL DEPORTE

Resumo

O ensaio apresenta alguns dos desenvolvimentos da noção de movência e justifica o seu alcance para pensar a Educação Física e o Esporte, bem como suas relações. Inicialmente, são sumarizados alguns dos posicionamentos teóricos sobre a Educação Física e o Esporte em nosso campo. Na sequência, se contextualiza o aparecimento do conceito de movência na trajetória do autor, para, no próximo tópico, defendê-lo como um universal antropológico. Finalmente, busca-se a partir da teoria da movência esboçada apontar o alcance da Educação Física e do Esporte como sistemas de conhecimento na contemporaneidade. Conclui-se que a movência expande o entendimento de Educação Física e Esporte, além de permitir equacionar alguns dos reconhecidos problemas epistemológicos de nosso ofício.

Palavras-chave:
Movência; Educação Física; Esporte; Epistemologia.

Resumen

Este ensayo presenta algunos de los avances acerca de la noción del movimiento y justifica su alcance para pensar en la Educación Física y el deporte, así como en sus relaciones. Inicialmente, se resumen algunas de las posiciones teóricas sobre la Educación Física y el deporte en nuestro campo. Posteriormente, se contextualiza el surgimiento del concepto de movimiento en la trayectoria del autor, para, en el paso siguiente, defenderlo como un universal antropológico. Finalmente, a partir de la teoría del movimiento esbozada, se busca señalar el alcance de la Educación Física y el deporte como sistemas de conocimiento en la contemporaneidad. Se concluye que el movimiento amplía la comprensión de la Educación Física y el deporte, además de permitirnos equiparar algunos de los problemas epistemológicos reconocidos de nuestro oficio.

Palabras clave:
Movimiento; Educación Física; Deporte; Epistemología.

Abstract

The essay presents some of the developments of the notion of movingness and justifies its reach to think about Physical Education and Sport, as well as their relationships. Initially, some of the theoretical positions about Physical Education and Sport in our field are summarized. Subsequently, the emergence of the concept of movingness in the author’s trajectory is contextualized, in order, in the next topic, to defend it as an anthropological universal. Finally, from the theory of movingness outlined, we seek to point out the scope of Physical Education and Sport as knowledge systems in contemporaneity. It is concluded that the movingness expands the understanding of Physical Education and Sport, in addition to allowing us to equate some of the recognized epistemological problems of our craft.

Keywords:
Movingness; Physical Education; Sport; Epistemology.

1 INTRODUÇÃO¹

Parte significativa da produção de conhecimento em Educação Física ao longo das últimas décadas tem consistido na rotinização de críticas à área e aos artefatos culturais que lhe dizem respeito. Em nome da construção de uma visão de mundo ideal, formulou-se uma crítica ferrenha à Educação Física e ao Esporte como subsistemas umbilicalmente comprometidos com as lógicas dominantes, sendo necessário inclusive se desfazer de suas especificidades, forjar outras identidades epistemológicas para esses campos, soldá-los em um projeto de poder que fosse alinhado com mudanças orientadas por premissas teórico-críticas.

Para esse estilo de pensar, a Educação Física é um discurso e/ou uma prática acomodada às dinâmicas do capital, fortemente influenciada por decisões políticas e econômicas, sendo esses domínios, com frequência, evocados para relativizar as lógicas internas dos mundos da ciência, da cultura e da arte, mediante uma leitura interessada, ou no mínimo questionável, do modelo de inteligibilidade histórica que Kuhn (1997) elaborou para discernir os avanços e anomalias do desenvolvimento dos campos científicos. Sob esse ponto de vista, a Educação Física nunca conquistaria uma autonomia científica e estaria a serviço de um projeto político, seja ele conservador, progressista ou outro qualquer.

Mas isso não corresponde ao todo do desenvolvimento científico atual de nosso campo, independentemente de qual seja o contexto de modernização em tela. Há que se destacar então a existência de outro estilo de pensamento consolidado na área, menos radical em suas premissas e sintetizador de parte significativa do que foi e tem sido historicamente acumulado de conhecimentos internos ao nosso métier. Ao seu modo, os participantes dessa forma de pensar têm buscado propor horizontes e afirmar a natureza socialmente válida da Educação Física e do Esporte, sem, contudo, aprofundar um elogio ou um discurso de fundamentação internalista com o objetivo de balizar e fortalecer as especificidades desses domínios da atividade humana.

Nesses termos, pode-se dizer que se a tradição crítica sempre esteve pronta a duvidar da Educação Física e de sua especificidade em nome de uma mudança social guiada pelas suas teorias, essa segunda linhagem de pensamento, ao congregar vozes positivistas, pragmáticas e humanistas em torno da organização do trabalho científico-pedagógico da área, não tem se preocupado muito em demarcar relacionalmente o que distinguiria nosso ofício dos demais, seja na escola ou fora dela. No limite, é possível que esteja subjacente ao horizonte teórico dessa família intelectual uma certa naturalização ontológica daquilo que socialmente caracteriza nossa profissão. A Educação Física seria aquilo que propriamente é.

Há razões para que esse quadro assim se apresente. No meu ponto de vista, quer seja nos países do capitalismo central ou do capitalismo periférico, o processo seguiu linhas comuns, tendo o mesmo a ver em medida significativa com o estatuto das importações teóricas em nossa área no sentido de preencher necessidades sociais de determinados contextos históricos. Nessa esteira, cumpre reconhecer que a lógica de construção da Educação Física como profissão cientificamente orientada, campo acadêmico e ciência com objeto próprio, dependeu inicialmente de conhecimentos de base positivista, com orientações pedagógicas voltadas às ciências naturais e à resolução de problemas pragmáticos, sem manifestar, de fato, preocupações sistemáticas com os porquês e com os sentidos do movimentar-se para além dos utilitarismos.

Desde, portanto, que a noção de Educação Física apareceu ˗ e foi rotinizada por filósofos, pedagogos, médicos, militares, etc., para sintetizar um processo de investimento cultural, educacional e civilizacional sobre o movimentar-se que, de longa data, já vinha ocorrendo entre os povos -, o fato é que, ao menos nominalmente e do ponto de vista de uma racionalidade técnica institucionalizada, passou-se a se dar uma maior conotação ao físico em relação ao metafísico, ao carnal em relação ao espiritual, ao corpo em relação à mente. Desse contexto em diante, a crescente segmentação do ser humano em partes e a divisão do trabalho pedagógico no sentido de moldá-lo institucionalmente, acabou tornando ambíguas as reconhecidas virtudes da Educação Física, herdeira, até onde sei, do sistema ginástico - gymnádzein -, dos festivais e dos jogos e competições atléticas que prosperaram na antiguidade clássica².

De qualquer modo, cabe introdutoriamente reconhecer que por volta dos anos 1960, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, esse panorama começou a se alterar na medida em que a interlocução com um corpo de conhecimentos que dialogava mais intensamente com os avanços teóricos levados progressivamente a cabo na Psicologia, na Antropologia, na Sociologia e na História permitia colocar outras questões ao movimentar-se. Nessas alturas, a Educação Física já estava nas universidades com direito a cadeira própria e não mais se constituía - ou pelo menos não somente mais - como prática para os estudantes do ensino superior de diferentes cursos universitários. Nossa profissão passava a se abrir e cada vez mais a interrogar o seu passado e o seu estatuto. Precisávamos então urgentemente justificar o nosso lugar frente às demais disciplinas e cátedras universitárias.

Nessa esteira, foram surgindo teorias na Europa e nos Estados Unidos para suprir tal finalidade. Cinesiologia, Ciências do Esporte, Psicocinética, Praxiologia Motriz, Ciência da Motricidade Humana, Ciências da Atividade Física constituem as principais frentes que foram mobilizadas para produzir essa justificação, ainda que a Educação Física para tais vertentes não fosse mais que um ramo aplicado dessas ciências evocadas. No Brasil, por seu turno, também houve um ponto de inflexão importante nos anos 1980, num contexto em que a própria Educação Física mundial ia se destradicionalizando, mas os esforços para abrir a Educação Física no país a olhares mais amplos e sintonizá-la com a modernidade-mundo são anteriores.

Em linhas gerais, pode-se dizer que entre, por um lado, os que afirmam a arte ou ciência da Educação Física e, por outro, os que a criticam no intuito de alinhá-la ao seu ideal político de mundo subsiste uma mesma dificuldade de dimensionar relacionalmente o estatuto e o alcance da profissão naquilo que tem de específica e comum em escala planetária, isto é, para além das tradições nacionais, regionais e das especializações que organizam a área. Sem sombra de dúvidas, pode-se dizer que no contexto da modernidade reflexiva a Educação Física se globalizou, sendo uma ciência aplicada e uma profissão reconhecida aqui e algures, ainda que múltiplas significações epistemológicas tenham sido produzidas para restituir inteligibilidade ao processo em diferentes sociedades. A teoria da movência que venho desenvolvendo é que me despertou para essa diagnose ao mesmo tempo que tem permitido lançar nova luz ao tema. A movência, noção-processo que faltava e não ofende a ninguém, é por excelência um elogio à Educação Física e ao Esporte, bem como uma teoria da especificidade de área e da justificação interna de nosso ofício. No presente ensaio, me proponho a tratar desse aspecto na esperança de estar oferecendo uma apreciação alternativa para alguns dos reconhecidos e antigos problemas epistemológicos de nossa área.

2 A GÊNESE DO CONCEITO DE MOVÊNCIA

A noção de movência emerge do cruzamento entre teoria e experiência. Desde que em 2016 estabeleci um projeto de reexaminar os remanescentes da teoria da Educação Física e do Esporte em seus desenvolvimentos mais paradigmáticos ao longo do século XX, a busca por um conceito suficientemente inclusivo para abarcar uma série de ações e práticas atinentes ao nosso ofício se revelou um problema. Ao revisitar o conjunto de suposições diretivas presentes em nossa área com o propósito de organizar o trabalho científico e orientar a intervenção pedagógica, me ocorreu que muitas dessas noções eram antagônicas e chamavam atenção para determinadas dimensões do movimentar-se em detrimento de outras. Alguns desses conceitos davam ênfase mais aos aspectos motores e biológicos do movimento humano enquanto outros se concentravam mais nas questões culturais. Tinha em meu pensamento que essa antinomia era falsa e que o movimento humano como objeto de estudo central da Educação Física se constituía numa síntese de todos esses olhares que disputavam pelo monopólio da episteme especificadora de nosso métier.

Obviamente que a movência não substitui a noção de movimento humano como aquilo que está no centro da existência de nossa profissão e comunidade científica, mas lhe fortalece teoricamente, lhe acrescenta alguns sentidos e aumenta o seu alcance. Se não me falha a memória, o termo movência é mencionado no livro de Manuel Sérgio intitulado "Para uma epistemologia da motricidade humana". Até onde me é levado a saber, no entanto, o filósofo português não fez uso desse conceito, tendo investido a rigor na noção de motricidade. Além disso, os termos não são sinônimos, tendo lugares diferentes na estrutura argumentativa dos respectivos modelos de inteligibilidade evocados para explicar o desenvolvimento teórico-científico de nosso campo. Segundo o autor português, a Educação Física se configuraria como a pré-ciência da motricidade humana, ao passo que a movência, tal como gnosiologicamente lhe entendo, cumpre requisitos para ser uma pré-teoria da Educação Física e do Esporte. Dito de outro modo, há em Manuel Sérgio (1987) o objetivo de enunciar bases epistemológicas de uma nova ciência para a profissão de Educação Física, a ciência da motricidade humana. Com a noção de movência não se intenta algo nesse sentido, mas tão somente lançar um olhar universalista para o problema do homem em movimento nas diferentes constelações do espaço-tempo e, a par desse entendimento, contribuir para recolocar um problema com potencial de validação interna para uma ciência reflexiva do movimento humano.

Cumpre salientar que na condição de qualidade distintiva do homo movens, a movência tem de longa data nos acompanhado. Ela é anterior à Educação Física, ao Esporte, ao jogo, ao trabalho, ao lazer, à religião, etc., sendo condição sine qua non para que tais manifestações e todas as outras que levam a marca do humano pudessem existir. Tenho na memória recente que essa consciência me apareceu com mais elementos em uma expedição pelo norte da Argentina no final de 2018. Os 75 milhões de anos a que remontam os eventos de formação do Cerro das Sete Cores em Purmamarca, um belo cartão postal do noroeste argentino, na rota comercial do antigo império inca, remetia à temporalidade das coisas, nesse caso, ao tempo geológico e à antiguidade de nosso planeta. Purmamarca que na língua aimará significa "pueblo de la tierra virgen", foi um local onde o problema da movência em sua relação com a Educação Física se revelou aos meus olhos como de alcance universal e trans histórico. A pitoresca vila, as crianças jogando futebol na rua principal, os artesãos, a movimentação dos turistas, os trekkers indo e vindo do Cerro das Setes Cores, tudo isso me remeteu a um kairós que é o tempo do significado que pela movência irrompe.

É verdade que nesse contexto em tela, a ideia de Educação Física reflexiva já estava delineada em meu horizonte investigativo e bem eu sabia que as significações para o movimentar-se³ não eram tão somente dadas, mas sobretudo construídas inventivamente pelos agentes. Passei então a inquirir se toda aquela gente com a qual me deparei em Purmamarca estava com o físico educado e o que, consequentemente, seria ter - ou estar com - o físico educado. Ao situar a reflexão nesses termos partia evidentemente de uma concepção de Educação Física mais alargada e que ultrapassava a experiência de escolarização, afinal, a epistemologia reflexiva que venho defendendo para nossa área lhe posiciona como campo de conhecimento e patrimônio cultural preocupado com a existência humana em suas múltiplas dimensões e contextos de ação. Penso, portanto, a Educação Física como um fenômeno transversal a várias instituições, um sistema de conhecimento que orienta a vida das pessoas, sendo uma prática e uma condição de existência acionada em vários domínios da atividade humana. Sob esse ponto de vista, a Educação Física emerge como episteme organizadora e sintetizadora de um estilo de vida. Em que pesem as apropriações individuais e as desigualdades de acesso às múltiplas manifestações do movimentar-se, pode-se dizer que a Educação Física não só está distribuída globalmente como também reflete a diversidade cultural e de atividades ludomotrizes estruturantes de nossa existência.

Como campo particularmente centrado na movência, quer dizer, no movimentar-se com orientações simbólicas no espaço-tempo, a Educação Física convoca, portanto, uma série de componentes motrizes para realizar-se. Esporte, ginástica, dança, lutas, jogos e todas aquelas atividades que atualmente giram em torno da noção inglesa de fitness são algumas das práticas que dão forma ao campo da Educação Física na contemporaneidade. A Educação Física que hoje partilhamos internacionalmente a partir de códigos comuns é por excelência reflexiva. De modo contrário, a Educação Física que respondeu às demandas dos séculos XIX e XX era pré-reflexiva e esteve ancorada no modelo de Estados-nação de modo a resolver problemas prementes da vida pública e da formação do caráter, sem, no entanto, abdicar de dimensões lúdicas. Utilitarismo e ludicidade não são variáveis inimigas como alguns tendem a crer. A Educação Física dos sistemas ginásticos, do sistema esportivo, do treinamento físico-militar, do enfoque médico-higienista embora utilitária e funcional não prescindia dos aspectos simbólico-emocionais imanentes à movência. Boa parte da crítica histórica que tem sido endereçada à Educação Física do passado desconsidera esse aspecto, em especial porque só se ateve em restituir os interesses subjacentes aos usos sociais desses modelos pedagógicos, dando pouca ou quase nenhuma atenção à lógica interna que dá sentido a essas práticas e faz delas algo atrativo para as pessoas⁴.

Quando falo em lógica interna das atividades motrizes estou evidentemente me reportando à teoria de Pierre Parlebas (1981) que tem o mérito de desenvolver uma abordagem científica para o problema do movimento humano tal qual se relaciona com o nosso ofício, uma pedagogia das condutas motrizes fundamentada pela ciência da ação motriz segundo propôs o autor francês. Em todo caso, falta ao modelo de Parlebas uma dimensão mais profunda de historicidade. O que ele chama de lógica interna dos jogos e esportes é, na verdade, o resultado de um processo de desenvolvimento sociocultural, de corte psico e sociogenético no sentido de Elias (1994a), do movimentar-se no espaço-tempo para além das necessidades básicas de sobrevivência. Purmamarca, a exemplo de tantas outras aldeias e vilas que conservam aspectos das formações sociais pré-modernas, convidava a essa reflexão. O entrelaçamento entre os modos de viver tradicionais com as formas de ser-estar no mundo coextensivas à reflexividade da modernidade oferecia um pano de fundo que trazia à baila as continuidades e descontinuidades entre nossos esportes e os jogos dos antepassados, entre nossas atividades atléticas e aquelas das comunidades pré-modernas, entre a nossa movência ludicamente exercida na esfera do lazer e a movência repleta de significado que nos humanizou e permitiu-nos fundar a ordem social.

Desde, portanto, que em Purmamarca a noção de movência revelou sua força e seu poder analítico em minha forma de pensar a Educação Física e justificá-la é que imediatamente também me ocorreu que todo ser humano que existe ou existiu teria o seu físico em alguma medida educado, afinal esta é uma dimensão pela qual a estrutura dos afetos e da personalidade é modelada, a via que não só permitiu que nos constituíssemos como seres sociais, mas também a condição distintiva para trazermos à tona a ordem material das coisas por meio da técnica na escala de longuíssimo prazo. Obviamente que o sistema de conhecimento a que se refere à Educação Física se faz reportar ao período moderno, uma noção que provavelmente pôde surgir também em virtude dos contributos levados a efeito nos escritos de proeminentes reformadores educacionais a exemplo de Rabelais, Montaigne, Locke, Rousseau (SARGENT, 1908; BERNIQUE, 1937) e da crescente diferenciação do processo educativo em intelectual, moral e físico.

Em síntese, pode-se afirmar que a educação do físico pela movência sempre existiu, sendo esse um atributo do processo civilizacional, uma necessidade humana pelo qual nosso métier foi possível e ganhou contornos expressivos na modernidade. É verdade que os sentidos e os símbolos de orientação da movência na escala do espaço-tempo nem sempre foram os mesmos. Tampouco é possível sustentar que os usos sociais da movência são invariantes no curso da história. Há que se ressaltar que, em ambientes reflexivamente modelados a exemplo de nossas democracias modernas, cada vez mais estar com o físico educado significa se perceber pelo movimento no contexto em que se vive e, portanto, permitir-se colocar em questão os sentidos das práticas motrizes das quais se participa. Até onde pude perceber em Purmamarca as pessoas estavam com o físico educado e isso não tinha a ver apenas com estética corporal e/ou rendimento físico. Ia além.

3 MOVÊNCIA, UM UNIVERSAL ANTROPOLÓGICO

Advém da menoridade epistêmica em vias de superação em nossa área ou da relação autofágica que nutrimos no campo acadêmico, a dificuldade de muitas vezes reconhecer nossas dívidas com os intelectuais da Educação Física e do Esporte. Por vezes, a sensação que se tem é que o prestígio e o reconhecimento no campo acadêmico-científico, sobretudo para os que trabalham em interface com os referenciais das Ciências Humanas e Sociais, só é possível mediante a alusão a autores consagrados como Weber, Marx, Bourdieu, Giddens, Elias, Foucault, Habermas e assim por diante. De minha parte, percebi que essa lógica joga contra a autonomização científica da Educação Física e retroalimenta o preconceito teórico que de longa data nos acomete no mundo social. Na contramão disso, penso que não há porque silenciar nossas influências internas, tampouco fazer a elas uma menção laudatória. Também não se trata de manifestar filiação dogmática a um ou outro autor da área, embora isso seja possível e aconteça com frequência em nosso campo. É, antes, uma relação pragmática com o saber e de honestidade intelectual. Muito do que penso sobre a Educação Física e sobre o Esporte deve-se também a intelectuais da Educação Física e do Esporte a exemplo de Marchi Júnior, Gebara, Bracht, Tani, Oliveira, Betti, Kunz, Cagigal, Parlebas, Sérgio, Le Boulch, Renson e, mais recentemente, Garcia, dentre outros.

A propósito, foi em minha estada na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto para cursar um pós-doutoramento sob a supervisão do Dr. Rui Proença Garcia que pude aprofundar mais em seu pensamento sobre o Esporte e a Educação Física. A leitura de alguns de seus livros e artigos, bem como as inúmeras conversas acumuladas ao longo do ano de 2021 foram oportunidades para ampliar o entendimento sobre esses campos da ação humana. Devo então ao Dr. Rui Garcia, dentre outros empréstimos intelectuais, a adoção de seu critério de demarcação da especificidade do fenômeno esportivo para delinear parte dos aspectos pelos quais a movência que interessa à Educação Física ganha forma e se configura como um universal antropológico. Aliás, desconheço na literatura especializada outro modelo que tenha se proposto a definir o Esporte a partir dos elementos que fazem dele uma atividade humana singular. Desde minha tese de doutoramento, na circunstância em que me aprouve empreender uma discussão sobre a economia simbólico-emocional do Esporte moderno (SOUZA, 2014), venho buscando por essa especificidade, a qual encontrei de forma convincente na argumentação teórica do livro "No labirinto do desporto" de autoria do professor português. De acordo com Garcia (2015), a ludicidade, o rendimento e a superação são características vetorizadas de forma muito particular nas práticas esportivas, remetendo a uma pedagogia do treino⁵ e a uma relação das pessoas com o Esporte que é de agência e transcendência.

De fato, o treino remete a uma característica distintiva do Esporte e faz dele um fenômeno que modela amplamente a existência dos seres humanos. Pelo treino, mas não só por ele, se constroem tanto padrões biográficos quanto autobiográficos do movimentar-se na contemporaneidade⁶. A movência esportivamente exercida seja no âmbito das atividades de lazer, do alto nível de performance ou da Educação Física escolar implica significativamente em treinar, em buscar níveis de rendimento, em apreender técnicas, valores, gerar sentimentos e fazer de tudo isso um símbolo de orientação da vida. O Esporte é uma das cenas mais importantes da modernidade. O prestígio que alcançou entre nós aliado à sua polissemia e polimorfia seguramente fazem dele o paradigma da movência no universo da Educação Física internacional. Reparem quantas práticas vem passando por um processo de esportivização de seus códigos. O alcance do Esporte na nossa vida é algo incontornável. Em Portugal e Espanha, as pessoas que frequentam os ginásios de musculação, os parques para correr, caminhar ou pedalar se declaram esportistas. Treinar é um verbo que cada vez mais faz parte do léxico pelo qual as pessoas imprimem significados aos seus estilos de vida. A considerar-se o alcance da noção de Esporte na sociedade contemporânea, pode-se afirmar que ele cobre boa parte da movência que abrange o universo da Educação Física.

Nem sempre, no entanto, as coisas foram assim. Quando ainda as noções-síntese de Esporte e Educação Física sequer existiam, a movência como fenômeno já estava lá. É também porque resiste à história que a movência constitui um universal antropológico. Desde que a consciência despertou ou medidas significativas de consciência foram vindo progressivamente à tona - e isso pode ter ocorrido por inúmeros motivos - a movência tem consistido na nossa principal qualidade de ser-estar no mundo. Quando o último ser humano partir, a movência, que é o verbo, será retirada. Tudo o que restar de patrimônio arquitetônico, de cultura impressa ou digital deixará de ter sentido a partir do momento em que os seres humanos desaparecerem. Aquilo que pelos nossos movimentos pudemos edificar - a movência feita coisa e a movência feita prática - já não terá mais significado. Na hipótese de alguma vida inteligente circundante descobrir num longínquo futuro os vestígios de nossos feitos e da civilização que erguemos, provavelmente se perguntará sobre como fizemos tantas coisas, mas não conseguimos assegurar nossa continuidade.

Na condição de verbo, a movência que é o movimento humano como símbolo de orientação no espaço-tempo está presente, portanto, em todas as práticas e instituições que criamos. Aristóteles nos livros "Física" e "Metafísica" ao teorizar sobre o movimento com algumas inferências, inclusive, aos movimentos corporais a que se referia como exercício, apoia essa interpretação. Sendo genericamente o movimento delimitado pelo estagirita como "la realización de lo potencial en tanto que potencial" (ARISTÓTELES, 1994, p. 453), ele se faz presente tanto no que foi movido quanto no movente. Diz o filósofo grego que "cuando lo producido es algo distinto del propio ejercicio, el acto de tales potencias se realiza en lo que es producido", ao passo que "cuando no hay obra alguna aparte de la actividad, la actividad se realiza en los agentes mismos" (ARISTÓTELES, 1994, p. 384-385). Evidentemente que nem todas as consequências dessa demarcação puderam ser extraídas por Aristóteles para fundamentar uma base teórica para a Educação Física ou para o Esporte. Seu interesse era antes pela física de um modo geral, uma ciência que teria o movimento como objeto fundamental de sua justificação.

Ademais, era mesmo impossível no contexto em que tais escritos aristotélicos foram elaborados e distante mesmo das pretensões gnosiológicas do estagirita, associar a uma teoria do movimento a dimensão simbólico-emocional do espaço-tempo que é o acrescento que as pessoas conferem aos - e transferem para os - objetos e práticas que criam por meio da técnica. Em todo caso, sabemos a partir de desenvolvimentos teóricos tão distintos da área de Humanidades a exemplo das teorizações levadas a cabo por Gehlen (1987), Leroi-Gourhan (2002) ou Elias (1994b) que foi exatamente isso o que aconteceu e continua - com certos complexadores a mais próprios ao espaço-tempo global em que vivemos e agimos - acontecendo. A movência que está na gênese de jogos, exercícios e competições atléticas, ginástica, dança, lutas e esportes nas formações sociais do passado tinha essa característica no seio dos grupos em que tais práticas ou manifestações do movimentar-se surgiam, eram difundidas, recriadas ou abandonadas em virtude do aparecimento de outras. Muitas dessas práticas poderiam assumir, inclusive, várias funções no perímetro dos grupos sociais, comunidades e sociedades em que gozavam de prestígio, servindo, portanto, para fins rituais, militares, terapêuticos e/ou lúdicos. Seja, no entanto, com sentidos múltiplos ou unívocos, o fato é que tais práticas e atividades motrizes concorriam de modo insofismável para uma educação do físico das pessoas que, ao mesmo tempo, era também uma educação das personalidades e das sensibilidades individuais variáveis e modificáveis ao longo de toda a história humana.

Em meu percurso investigativo alinhado ao exercício de construção de minha autobiografia de movimento por meio das caminhadas em diferentes lugares repletos de significados para nossa história, tenho tido a oportunidade de me deparar com rastros, sinais, evidências e com a monumentalização da movência que interessa ao mundo da Educação Física. Desde que em Purmamarca me convenci que essa noção merecia um investimento mais sistemático em minha agenda de pesquisa é que tenho feito dela um uso retrospectivo e prospectivo não só para objetivar as minhas próprias experiências traduzidas em movimentar-se como também para pensar o lugar que a movência ocupou em outras configurações históricas, sendo a mesma refletida nas práticas que chegaram até nós e nos artefatos culturais e monumentos que ficaram para a posteridade. Dentre algumas das imersões mais significativas que até aqui pude concretizar nesse domínio se encontram as visitas que realizei a alguns sítios arqueológicos pré-colombianos e romanos. As estelas de dançarinos e nadadores que pude visualizar no Monte Albán no sul do México, os campos do antigo jogo de bola maia que percorri em Calakmul, também no México, as caminhadas que realizei pela Piazza Navona em Roma, local que abrigava o antigo Estádio de Domiciano são exemplos da movência que teve vez na história. E o que dizer ainda das telas de Goya ou de Portinari em que o tema da ludicidade está retratado? Há um excesso de movência nessas composições e eu tive a felicidade de apreciá-las in loco.

4 ALCANCE DA EDUCAÇÃO FÍSICA E ESPORTE NA CONTEMPORANEIDADE

A teoria da movência aqui evocada e fundamentada em meu recente livro "Do homo movens ao homo academicus" (SOUZA, 2021) dimensiona a Educação Física e o Esporte como fatos sociais totais e sistemas de conhecimento. O recuo ontológico promovido por essa forma de (re)colocar os problemas epistemológicos fundantes de nossa área responde tanto ao marxismo latente que sobrepõe um critério de demarcação política ao critério de demarcação científica de nosso ofício, quanto ao culturalismo relativista que reduz a Educação Física a discursos e a jogos de linguagem, tornando-se impossível e inviável qualquer tentativa de organizar científica e pedagogicamente o campo a partir de um consenso teórico mínimo. De minha parte, venho defendendo que uma ontologia forte da Educação Física está centrada na noção de movimento humano, devendo ser essa a unidade teórica que convoca uma diversidade de olhares e abordagens para investigar e intervir em nossa área. No Brasil, apesar da falta de consenso no campo acadêmico sobre o estatuto científico da Educação Física e sobre seu lugar na hierarquia dos saberes, o fato é que nossa profissão cada vez mais, desde uma visão relacional de ciência, tem se apresentado como domínio científico próprio com objeto específico e com uma pluralidade metodológica para desenvolver investigações que respondem aos problemas prementes do homo movens na contemporaneidade.

A Educação Física na sociedade brasileira é um todo articulado e tem sido a teoria de sua prática nos mais diferentes espaços de intervenção. É verdade que os modelos de organização epistemológica adotados para demarcar cientificamente a Educação Física no ensino superior, sobretudo nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, influíram na organização do campo científico que orienta os rumos da profissão no Brasil. Aqui, no entanto, fazer a distinção entre Educação Física - sistema de conhecimento - e Educação Física escolar é uma realidade. Em outros locais, falar de Educação Física escolar soa como uma redundância, afinal percebem e passaram a entender a Educação Física como algo referente à escola. Em Portugal, seja pela via das Ciências do Desporto - predominante - ou da Ciência da Motricidade Humana, a Educação Física é a realização dos aludidos domínios científicos na instituição escolar. São evidentemente modelos legítimos e que respondem aos imperativos da Educação Física e do Esporte nas respectivas sociedades, alinhando teoria e prática em prol da construção de horizontes para as pessoas.

De qualquer modo e apesar das lutas por conceitos no campo acadêmico, o recuo ontológico subjacente a essa teoria da movência permite elaborar o problema do homo movens com um outro alcance em nossa área. Sendo a movência entendida como o movimento tal qual ganha sentido e forma na Educação Física e no Esporte, ela aponta para a perenidade desses domínios da atividade humana, para suas aproximações e seus distanciamentos. Com alguma margem de segurança, pode-se dizer que a Educação Física e o Esporte constituem sistemas de conhecimento relativamente autônomos que seguem para a posteridade. São fenômenos devidamente capilarizados no mundo social e que já estão estabelecidos no campo acadêmico, com ampla defesa filosófica e científica. Em que pese o sentimento de menoridade epistemológica ainda presente em nosso campo, a Educação Física e o Esporte informam a vida e são acionados pelas pessoas por meio das mais diferentes plataformas de informação e veículos de conhecimento para compor suas narrativas reflexivas do eu e suas autobiografias de movimento (SOUZA, 2021). Esporte e Educação Física são fenômenos de reconhecida importância na sociedade, não cabendo mais dúvidas quanto ao seu estatuto científico-pedagógico na hierarquia dos saberes.

Além disso, cabe salientar que independentemente da hierarquização que exista ou procure se justificar entre Educação Física e Esporte ou vice-versa, o fato é que ambos os domínios da atividade social lidam com a necessidade de movência dos seres humanos para além das cadeias operatórias normais, quer dizer, para além de todos aqueles demais movimentos e bases gestuais envolvidas nas atividades profissionais e nas rotinas diárias, conforme me aprouve argumentar a partir de Leroi-Gourhan (SOUZA, 2021). Nisso reside, inclusive, o entendimento de que a movência, tal qual se faz valer no âmbito da Educação Física e do Esporte, não só vem cumprindo como pode cada vez mais cumprir uma função de acrescento cultural às pessoas rumo ao transcendental. Há algo de poético e de singelo na movência que faz valer a pena o treino, o tempo e a energia a que lhe dedicamos. A movência ludicamente exercida ao ar livre, na via pública das cidades, nas praças e parques, nas academias, ginásios e pistas, nos estúdios, nos eventos esportivos, nos clubes, nas aulas de Educação Física, dentre outros espaços, devolve uma perspectiva de encantamento aos seres humanos. Pela movência a Educação Física e o Esporte ganham o coração das pessoas. Nossa condição de homo movens é mais realçada nesses domínios da atividade social do que em outros. Daí essa noção-processo alargar o horizonte de leitura sobre o alcance da Educação Física e do Esporte nas sociedades reflexivas em que vivemos, além de permitir encurtar o hiato entre olhares tão dispares que, de longa data, disputam o monopólio da episteme legítima e legitimadora de nosso métier.

5 A MODO DE CONCLUSÃO

Eu queria pegar na semente da palavra.

BARROS, Manoel de. Poesia completa, p. 443

Pensar a Educação Física e o Esporte desde a perspectiva da movência esboçada ao longo do texto, significa, antes de tudo, reconhecer, justificar e endossar a importância desses fenômenos no contexto da vida e existência humana. A movência que em minha trajetória tem funcionado como teoria, método e estilo de vida, permite equacionar alguns dos antigos problemas epistemológicos presentes e rotinizados em nossa área. É verdade que o desejo de dimensionar esses problemas e solucioná-los já foi motivo de investida científica. Pierre Parlebas (1981), por exemplo, tem o mérito de perceber que o interesse da Educação Física não está, de saída, nem na mente e nem no corpo, mas na ação motriz que é uma síntese dessas dimensões. No meu entendimento, no entanto, o seu modelo, demasiado estruturalista, ao pleitear restituir uma lógica interna das atividades motrizes a partir das práticas e não das pessoas que fazem as práticas, acaba deixando o problema a meio caminho de uma solução. Acertadamente o seu modelo critica essa dicotomia, lhe ultrapassa, mas não explica como isso se dá ontologicamente no curso da história.

A teoria da movência surge no intuito não só de criticar o dualismo corpo versus mente como falso no perímetro de nosso ofício, mas demonstrar que a ação humana simplesmente dispensou a separação entre o sensível e o inteligível no intuito de fazer das práticas motrizes símbolos de orientação e comunicação no mundo nas diferentes configurações do espaço-tempo. Pode-se dizer que a movência em suas características lúdica, de rendimento e superação corresponderia à uma pré-lógica daquilo que Parlebas postulou como lógica interna dos esportes e das atividades motrizes. O primado pela razão histórica permite enfrentar alguns problemas que de outro modo ficariam insolucionáveis. Daí a pertinência em indagar os antecedentes da Educação Física e do Esporte moderno e tentar perceber o lugar que ocupavam nas respectivas configurações históricas. Ainda que as noções de Esporte e Educação Física não se fizessem presentes nas formações sociais pré-modernas, o problema da educação do físico, pela experiência e aprendizagem recíproca entre as pessoas, sempre existiu. É uma dimensão ineludível, ontológica e documentada. A movência é um universal antropológico, na medida em que atravessa a história e se faz atuante entre diferentes povos e culturas. Por isso ela se configura como uma pré-teoria da Educação Física e cimenta bases para uma filosofia e ciência do movimento humano, conforme pude argumentar ao longo do ensaio.

No que versa à contemporaneidade da movência, penso que ela está expressando no atual estágio em que vivemos - as duas primeiras décadas do século XXI - a existência de um novo contrato motriz da humanidade⁷, quer dizer, uma renovada hierarquia das preferências esportivas em escala global. A emergência dessa nova hierarquia de oferta e consumo das práticas e artefatos atinentes à área de Educação Física tal como configurada no âmbito das sociedades reflexivas que construímos tem reposicionado o nosso ofício na estrutura social e ampliado consideravelmente o seu raio de ação. Como sistema de conhecimento, a Educação Física tem um alcance e um apelo global. Em que pesem as diferentes soluções teóricas apresentadas para o problema da especificidade científica da Educação Física e sua justificação no contexto das universidades, o fato é que somos internacionalmente reconhecidos em nossa prática como profissionais ou professores de Educação Física. Desde a perspectiva teórica em voga nesse texto, isso não constitui necessariamente um problema, sendo, pelo contrário, base de uma virtude profissional, de um ethos e de um telos que encontra na movência esportivamente exercida rumo ao transcendente - e à construção de sentidos para a vida - a sua justificação. Esse é o elogio que aqui pude fazer à Educação Física e ao Esporte. Por aí tenho me movimentado.

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  Esse texto corresponde ao primeiro capítulo da Tese de Livre-Docência defendida pelo autor em dezembro de 2022 na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo.
• 2
  O problema da movência como expressão distintiva do homo movens nos acompanha de longa data e teve formulações nas mais diferentes formações sociais pré-modernas, sem necessariamente se firmar uma rede de conexões íntimas entre essas civilizações. Independentemente dessa assertiva, reconheço, no entanto, que a antiguidade clássica representou um salto na elaboração do problema da movência que retrospectivamente interessa à Educação Física. Há questões institucionais e fenomenológicas subjacentes a essa argumentação, mas aqui não há espaço para desenvolvê-las. Quero só chamar atenção para a alta institucionalidade dos jogos e festivais gregos, bem como para os aspectos ascéticos e hedonistas que marcavam os usos dos corpos. Comparativamente à outras civilizações da história, é provável que uma filosofia potente para a Educação Física e para o Esporte estivesse por se desprender na Grécia clássica, de modo, portanto, a liberar esses domínios (ainda não denominados nesses termos) das estruturas conceituais e práticas da religião e da guerra. Essa é uma hipótese auxiliar importante para investigar as configurações de movência naquele contexto.
• 3
  Quando falo em significações do movimentar-se estou evidentemente me reportando à capacidade das pessoas produzirem sentidos e símbolos no espaço-tempo para as inúmeras práticas motrizes que realizam, direta ou indiretamente, por meio da Educação Física e do Esporte como sistemas científico-pedagógicos relativamente autônomos e que ora se aproximam, ora se distanciam. Aqui cabe estabelecer uma distinção com a noção de se-movimentar presente em Kunz (2004). Para o autor, o se-movimentar (como algo próprio ao sujeito, uma ação livre e criativa de dentro para fora) estaria mais presente em algumas atividades motrizes que em outras. Danças e atividades lúdicas, segundo Kunz (2004), expressariam mais paradigmaticamente as qualidades de um se-movimentar do que o Esporte (de alta performance) ou as práticas que ele engloba na noção de aprendizagem motora. Não partilho desse entendimento por uma série de razões metateóricas e teóricas. Aqui não há espaço para desenvolver esse tema como mereceria. Sem desconsiderar as contribuições da teoria do se-movimentar divulgada e ampliada no Brasil por Kunz, quero apenas apontar que a teoria da movência que venho esboçando reconhece que toda atividade motriz atinente ao mundo da Educação Física, do Esporte, da atividade física, enfim da cultura de movimento de uma forma ampla, é potencialmente um ato de apropriação singular por parte das pessoas e grupos, sendo as similaridades ou diferenças desse exercício de apropriação de movimentos por meio da técnica uma questão empiricamente aberta e a ser, portanto, investigada. Assim como Kunz (2004), também tenho algumas críticas à abordagem do movimento humano desde a perspectiva de um paradigma analítico-instrumental e, para suprir tal lacuna, também busco uma orientação teórica capaz de realçar a capacidade inventiva dos agentes na apropriação de movimentos pela técnica. A dimensão fenomenológica que está implícita à noção de movência é, no entanto, coproduzida socialmente na medida em que a construção de símbolos e de sentidos por parte das pessoas para o movimentar-se nas aulas de Educação Física, no Esporte, na ginástica, nas lutas, na musculação, etc. não se dão em um vácuo existencial. Além disso, essa orientação fenomenológica estruturalmente informada no arcabouço que venho me esforçando para erguer não tem um ponto de partida normativo. Reconheço que uma atitude crítica ao mundo por meio da movência é possível, mas isso de modo algum esgota o potencial da Educação Física e do Esporte na vida das pessoas.
• 4
  É uma leitura presente, por exemplo, em alguns momentos da narrativa historiográfica formulada por Soares (1994). Para uma avaliação do argumento ver: SOARES, Carmen Lucia. Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas: Autores Associados, 1994.
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  De acordo com Garcia (2017, p. 99): "O treino, como tantas outras realidades da vida, possui uma pluralidade de formas e de sentidos, não deixando nunca de ser treino". Adiante, aponta o autor que: "O treino é assim a condição para conhecermos a excelência humana, a areté grega, possuindo um valor muito para além de um simples adestramento técnico. O treino abre-nos as portas da existência humana, perguntando e buscando os seus limites" (GARCIA, 2017, p. 102). De fato, o treino tal qual ganha forma nos contextos da Educação Física e do Esporte nos permitem níveis de transcendência inegáveis, alguns culminando com a produção da excelência de desempenho a propósito do que ocorre em vários outros domínios da atividade social a exemplo da ciência, do trabalho, das artes, da tecnologia, da literatura e assim por diante. Para a teoria da Educação Física que venho defendendo, a noção de treino é importante, mas não chega a se caracterizar como uma dimensão pré-doutrinal pela razão maior de não esgotar a noção de movência, afinal embora todas as ações motrizes possam ser treinadas, não necessariamente necessitam de uma ação metódica nesse sentido.
• 6
  Essa distinção entre biografia e autobiografia de movimento foi enfrentada em meu recente livro "Do homo movens ao homo academicus: rumo a uma teoria reflexiva da Educação Física". Em linhas gerais, por biografia de movimento entendo a escrita do movimentar-se que é feita na cumplicidade professor-aluno, ao passo que a autobiografia de movimento é a relação que o ser humano constrói com a Educação Física e com o Esporte independentemente da intervenção direta de um professor ou profissional da área.
• 7
  Para um maior aprofundamento do tema, ver: SOUZA, Juliano de; OLIVEIRA, Vinicius Machado de; GARCIA, Rui Proença. Um novo contrato motor nos domínios do esporte, lazer e Educação Física? Aportes para uma teoria reflexiva do movimento humano. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 44, p. 1-9, 2022.
• FINANCIAMENTO
  A tradução deste artigo foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

• COMO REFERENCIAR

  SOUZA, Juliano de. Movência: um elogio à Educação Física e ao Esporte. Movimento, v. 29, p. e29004, jan./dez. 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.121546

REFERÊNCIAS

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• BARROS, Manoel de. Poesia completa São Paulo: LeYa, 2013. p. 443
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• ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994a.
• ELIAS, Norbert. Teoria simbólica. Oeiras: Celta, 1994b.
• GARCIA, Rui Proença. No labirinto do desporto: horizontes culturais contemporâneos. Belo Horizonte: Casa da Educação Física, 2015.
• GARCIA, Rui Proença. Desporto de alto rendimento ou a busca dos limites humanos. Revista Portuguesa de Ciências do Desporto, v. 17, n. 3, p. 92-107, 2017. DOI: https://doi.org/10.5628/rpcd.17.03.92
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• GEHLEN, Arnold. El hombre: su naturaleza y su lugar en el mundo. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1987.
• KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.
• KUNZ, E. Transformação didático-pedagógica do esporte. 6. ed. Ijuí: Unijuí, 2004.
• LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra: 2 - Memória e ritmos. Lisboa: Edições 70, 2002.
• PARLEBAS, Pierre. Contribution á un lexique commenté en sicience de l'action motrice. Paris: INSEP, 1981.
• SARGENT, Dudley A. Physical training as a compulsory subject. The School Review, v. 16, p. 42-55, jan. 1908. Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/epdf/10.1086/435103 Acesso em: 1 fev. 2023.
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• SÉRGIO, Manuel. Para uma epistemologia da motricidade humana. Lisboa: Compendium, 1987.
• SOARES, Carmen Lúcia. Educação Física: raízes europeias e Brasil. Campinas: Autores Associados, 1994.
• SOUZA, Juliano de. Do homo movens ao homo academicus: rumo a uma teoria reflexiva da Educação Física. São Paulo: Liber Ars, 2021.
• SOUZA, Juliano de. O “esporte das multidões” no Brasil: entre o contexto de ação futebolístico e a negociação mimética dos conflitos sociais. Tese (Doutorado em Educação Física) - Curitiba, Universidade Federal do Paraná, 2014.
• SOUZA, Juliano de; OLIVEIRA, Vinicius Machado de; GARCIA, Rui Proença. Um novo contrato motor nos domínios do esporte, lazer e Educação Física? Aportes para uma teoria reflexiva do movimento humano. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 44, p. 1-9, 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/rbce.44.e011121
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Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga*, Elisandro Schultz Wittizorecki*, Mauro Myskiw*, Raquel da Silveira*

*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  25 Ago 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  02 Fev 2022
• Aceito
  08 Nov 2022
• Publicado
  16 Mar 2023