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Atendimento aos usuários em situação de violência: concepções dos profissionais de unidades básicas de saúde

Health care given to patients with violence situations: conceptions of professionals in basic health units

Atención a los usuarios en situación de violencia: las concepciones de los profesionales de unidades básicas de salud

Resumos

O objetivo deste estudo foi analisar concepções de profissionais de unidades básicas de saúde sobre o atendimento aos usuários em situação de violência, em suas diferentes manifestações. É uma pesquisa qualitativa realizada por meio de entrevistas com enfermeiros, médicos, técnicos/auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Os dados foram coletados entre outubro de 2007 e março de 2008 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e analisados mediante análise temática. Os profissionais atuam na identificação das situações de violência e elaboração de estratégias de intervenção, visando o bem-estar dos usuários pela recuperação da sua saúde física e mental. A desarticulação da rede de assistência à violência, insegurança, falta de profissionais capacitados e infra-estrutura inadequada são alguns fatores que dificultam o atendimento. Os resultados subsidiam a elaboração de políticas públicas para identificação, acolhimento e assistência aos indivíduos em situação de violência.

Causas externas; Violência; Serviços básicos de saúde; Centros de saúde


The following study aimed to analyze the conceptions of basic health units’ professionals on the service rendered to users with violence situations, within their different manifestations. It is a qualitative research conducted with nurses, doctors, nursing technicians, and communitarian health agents through semi-structured interviews. The set of data was collected from October 2007 and March 2008 in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, and analyzed through theme analysis. The professionals have a role in identifying situations of violence and in elaborating intervention strategies aiming users’ welfare through the recovery of physical and mental health. The break of the violence assistance net, lack of security, lack of capable professionals, and inadequate infrastructure are some of the factors that jeopardize the service. The results might support the elaboration of public policies that help the identification, gathering, and assistance to individuals in violence situations.

External causes; Violence; Basic health services; Health centers


El objetivo del estudio fue analizar las concepciones de profesionales de unidades básicas de salud sobre la atención a los usuarios en situación de violencia, en sus diferentes manifestaciones. Se trata de una investigación cualitativa realizada con enfermeros, médicos, técnicos/auxiliares de enfermería y agentes comunitarios de salud por medio de entrevistas semiestructuradas. La recolección de los datos se hizo entre octubre de 2007 y marzo de 2008 en Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, y se los analizó mediante un análisis temático. Los profesionales actúan en la identificación de situaciones de violencia y elaboración de estrategias de intervención, buscando proporcionar bienestar a los usuarios con su recuperación física y mental. La desarticulación de la red de asistencia a la violencia, inseguridad, falta de profesionales capacitados e infraestructura inadecuada son algunos de los elementos que dificultan la atención. Los resultados pueden auxiliar en la elaboración de políticas públicas que ayuden en la identificación, acogimiento y asistencia a los individuos en situación de violencia.

Causas externas; Violencia; Servicios básicos de salud; Centros de salud


ARTIGO ORIGINAL

Atendimento aos usuários em situação de violência: concepções dos profissionais de unidades básicas de saúde* * Artigo elaborado a partir do projeto de pesquisa "Observatório de Causas Externas na Atenção Básica de Saúde do Município de Porto Alegre".

Atención a los usuarios en situación de violencia: las concepciones de los profesionales de unidades básicas de salud

Health care given to patients with violence situations: conceptions of professionals in basic health units

Maria Alice Dias da Silva LimaI; Taís Regina RückertII; José Luís Guedes dos SantosIII; Isabel Cristina dos Santos ColoméIV; Aline Marques AcostaV

IDoutora em Enfermagem, Professora Associada da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IIEnfermeira graduada pela UFRGS, Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq/UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IIIEnfermeiro, Mestrando em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFRGS, Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IVMestre em Enfermagem, Doutoranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFRGS, Professora Assistente do Curso de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Centro de Educação Superior Norte (CESNORS) de Palmeira das Missões, Rio Grande do Sul, Brasil

VAcadêmica de Enfermagem da UFRGS, Bolsista PIBIC/CNPq/UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço do autor Endereço do autor: Maria Alice Dias da Silva Lima Rua São Manoel, 963 90620-110, Rio Branco, Porto Alegre, RS E-mail: malice@enf.ufrgs.br

RESUMO

O objetivo deste estudo foi analisar concepções de profissionais de unidades básicas de saúde sobre o atendimento aos usuários em situação de violência, em suas diferentes manifestações. É uma pesquisa qualitativa realizada por meio de entrevistas com enfermeiros, médicos, técnicos/auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Os dados foram coletados entre outubro de 2007 e março de 2008 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e analisados mediante análise temática. Os profissionais atuam na identificação das situações de violência e elaboração de estratégias de intervenção, visando o bem-estar dos usuários pela recuperação da sua saúde física e mental. A desarticulação da rede de assistência à violência, insegurança, falta de profissionais capacitados e infra-estrutura inadequada são alguns fatores que dificultam o atendimento. Os resultados subsidiam a elaboração de políticas públicas para identificação, acolhimento e assistência aos indivíduos em situação de violência.

Descritores: Causas externas. Violência. Serviços básicos de saúde. Centros de saúde.

RESUMEN

El objetivo del estudio fue analizar las concepciones de profesionales de unidades básicas de salud sobre la atención a los usuarios en situación de violencia, en sus diferentes manifestaciones. Se trata de una investigación cualitativa realizada con enfermeros, médicos, técnicos/auxiliares de enfermería y agentes comunitarios de salud por medio de entrevistas semiestructuradas. La recolección de los datos se hizo entre octubre de 2007 y marzo de 2008 en Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, y se los analizó mediante un análisis temático. Los profesionales actúan en la identificación de situaciones de violencia y elaboración de estrategias de intervención, buscando proporcionar bienestar a los usuarios con su recuperación física y mental. La desarticulación de la red de asistencia a la violencia, inseguridad, falta de profesionales capacitados e infraestructura inadecuada son algunos de los elementos que dificultan la atención. Los resultados pueden auxiliar en la elaboración de políticas públicas que ayuden en la identificación, acogimiento y asistencia a los individuos en situación de violencia.

Descriptores: Causas externas. Violencia. Servicios básicos de salud. Centros de salud.

ABSTRACT

The following study aimed to analyze the conceptions of basic health units’ professionals on the service rendered to users with violence situations, within their different manifestations. It is a qualitative research conducted with nurses, doctors, nursing technicians, and communitarian health agents through semi-structured interviews. The set of data was collected from October 2007 and March 2008 in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, and analyzed through theme analysis. The professionals have a role in identifying situations of violence and in elaborating intervention strategies aiming users’ welfare through the recovery of physical and mental health. The break of the violence assistance net, lack of security, lack of capable professionals, and inadequate infrastructure are some of the factors that jeopardize the service. The results might support the elaboration of public policies that help the identification, gathering, and assistance to individuals in violence situations.

Descriptors: External causes. Violence. Basic health services. Health centers.

INTRODUÇÃO

A violência é uma questão social e de saúde pública no panorama internacional e nacional, pois tem provocado forte impacto na morbimortalidade da população e no cotidiano das experiências humanas, reorientando atitudes e comportamentos. Devido a sua amplitude, o conceito de violência não apresenta consenso entre os autores, os quais a definem pelas suas diversas formas de expressão na sociedade, ou seja, violência de gênero, contra o idoso, a criança, o trabalhador, entre outras(1). Assim, as diferentes manifestações da violência na sociedade são expressas de forma genérica, denominada violência social(2).

Recentemente, o setor saúde, que sempre esteve mais preocupado em atender as vítimas da violência do que estudar as suas causas e planejar estratégias de prevenção, está buscando uma nova forma de abordagem, passando do plano curativo para o preventivo. Essa mudança é norteada pelas idéias de proteção e promoção da saúde, vistas em sua significação mais ampliada de bem-estar individual e coletivo(3,4).

A rede de atenção básica de saúde possui importante papel na assistência ao usuário em situação de violência, assim como na prevenção desses casos, podendo representar um local-sentinela na detecção de possíveis eventos violentos na população, por meio do engajamento e da responsabilização de todos os profissionais de saúde(5).

Entretanto, cada profissional de saúde elabora estratégias próprias para o atendimento às situações de violência no seu cotidiano de trabalho de acordo com suas concepções. Em muitos momentos, por despreparo ou insegurança, os trabalhadores focam sua atenção somente sobre os danos biológicos, sem atuar na detecção de casos e no desenvolvimento de ações preventivas(6).

Estudo realizado acerca das práticas dos profissionais de unidades básicas de saúde no atendimento às mulheres em situação de violência sexual, evidenciou a impotência paralisante dos trabalhadores diante desses casos. Tal atitude pode estar relacionada à falta de preparo dos profissionais, à organização do processo de trabalho e aos valores sociais do grupo pesquisado(7).

Os profissionais das equipes de saúde da família, muitas vezes, têm dificuldades para compreender a dinâmica relacional da violência em seu contexto. A equipe cria suposições com idéias pré-concebidas sobre o perfil da vítima e do agressor, que podem não ser condizentes com a realidade, e dificultam a avaliação do que está acontecendo. Esse aspecto pode interferir na detecção das situações de violência, evidenciando as dificuldades que os profissionais possuem de entender o contexto das famílias e das relações estabelecidas(8).

Há uma lacuna no atendimento aos acidentes e violências na esfera da atenção básica, apesar do incentivo e das diretrizes para qualificar a assistência à população vítima desses agravos em todos os níveis do sistema de saúde(9).

Desse modo, a violência configura-se como uma questão desafiadora para profissionais e gestores dos serviços de saúde, que demanda a construção de novas compreensões no âmbito da atenção primária visando à qualificação dos processos de trabalho e das práticas profissionais. Para tanto, questiona-se: quais as concepções que norteiam o trabalho dos profissionais de unidades básicas de saúde no atendimento aos usuários em situação de violência? Os profissionais enfrentam dificuldades no atendimento a esses agravos? Que estratégias podem ser empreendidas para melhorar o atendimento na atenção básica a esses usuários?

Na busca por respostas a tais questionamentos, desenvolveu-se este estudo com o objetivo de analisar concepções de profissionais de Unidades Básicas de Saúde sobre o atendimento aos usuários em situação de violência, em suas diferentes manifestações.

METODOLOGIA

É um estudo exploratório-descritivo com abordagem qualitativa, que permite estudar os significados que as pessoas atribuem a um dado fenômeno, em torno dos quais elas organizam de certa forma suas vidas e atitudes com relação à saúde(10).

O banco de dados do Observatório de Causas Externas da Região Lomba do Pinheiro e Partenon, localizado no município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, foi utilizado como referência para a seleção do campo do estudo. O Observatório de Causas Externas é uma base de dados institucional criada a partir da parceria entre o Grupo de Estudos em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Rede Básica de Saúde – Gerência Distrital de Saúde Lomba do Pinheiro e Partenon, com o objetivo de sistematizar as informações sobre os agravos à saúde denominados Causas Externas no município de Porto Alegre. Essa área distrital é composta por seis unidades básicas de saúde, sete unidades de Saúde da Família e uma unidade de pronto-atendimento(11).

Considerando-se que na pesquisa qualitativa uma amostra ideal é aquela capaz de refletir a totalidade em suas múltiplas dimensões, esse critério foi utilizado para seleção das unidades de saúde, no intuito de captar a diversidade de concepções e práticas que envolvem o atendimento às situações de violência. Assim, a partir do registro de notificações de agravos por causas externas do período de fevereiro de 2002 a fevereiro de 2005, foram selecionadas quatro unidades de saúde, sendo duas com os maiores percentuais de notificações de agravos por violência em relação à população adscrita e duas com os menores percentuais.

O número de participantes da pesquisa foi determinado com base no conceito de amostragem por cotas, em que há necessidade de contemplar algumas características dos sujeitos(12). Foram selecionados 16 participantes, sendo quatro indivíduos de cada uma das unidades de saúde mencionadas, representando cada categoria profissional: enfermeiros, médicos, técnicos ou auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde, os quais foram identificados por códigos conforme a categoria e números de 1 a 4, por exemplo: ENF. 1, MED. 1, TÉC./AUX. ENF. 1, ACS. 1.

A coleta de dados foi realizada nas unidades de saúde, de acordo com a disponibilidade dos profissionais, entre outubro de 2007 e março de 2008, por meio de entrevista semi-estruturada(13) com os profissionais das equipes de saúde, utilizando um roteiro contendo questões que abordavam suas concepções sobre o atendimento aos usuários em situação de violência.

Na análise dos dados, utilizou-se a técnica de análise temática(13). Os dados foram classificados e agregados, estabelecendo-se duas categorias empíricas: "Concepções sobre o atendimento aos usuários em situação de violência" e "Dificuldades no atendimento às vitimas de violência e estratégias para superá-las".

O projeto obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (Parecer nº 068/2004). Foram respeitados os princípios éticos preconizados pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde para a realização de pesquisas em saúde(14).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Concepções sobre o atendimento aos usuários em situação de violência

Para os entrevistados, a violência correlaciona-se a um contexto difícil de vida e se caracteriza como toda ação realizada por um indivíduo contra outro, causando-lhe danos físicos, psicológicos e/ou morais. Os profissionais compreendem que existem diversas formas de violência, destacando agressão física, violência sexual, doméstica e também atitudes de negligência no cuidado, por exemplo, dos pais em relação aos filhos e dos filhos em relação aos pais idosos.

Existem várias formas de violência. Elas são, de modo geral, situações, episódios em que ocorre uma agressão, por meio de uma lesão física ou de forma verbal. Há também [...] maus tratos com relação até de pais e filhos, ou a cuidadores e pessoas cuidadas, a negligência também é uma forma de violência (MED. 1).

Todo e qualquer ato que possa agredir ou colocar em risco o bem-estar físico e muitas vezes social também, até cultural, quando tu és privado de alguma coisa (ENF. 2).

Os participantes do estudo entendem que a violência extrapola os aspectos físicos, relacionando-a a fatores de ordem social e cultural, como condições dignas de vida, moradia, trabalho, alimentação e lazer, o que corrobora achados de estudos realizados com profissionais da atenção básica(5,8,15). No entanto, o entendimento da violência como reflexo das condições sociais reitera a permanente associação entre violência e pobreza, e pode comprometer o atendimento e estimular a discriminação contra os pobres(8).

Nas Unidades Básicas de Saúde há possibilidade do estabelecimento de vínculos que permitem identificar e elaborar estratégias de intervenção às situações antes que elas se agravem. Quando os casos de violência já estão identificados, o trabalho dos profissionais é fornecer apoio e buscar junto ao usuário seus direitos, resgatando sua saúde física, mental e espiritual. No atendimento aos usuários em situação de violência, cada profissional desempenha ações específicas de acordo com as particularidades da sua área de atuação, visando ao mesmo objetivo: o bem-estar do usuário.

Os técnicos e auxiliares de enfermagem realizam o primeiro atendimento dos usuários em situação de violência para encaminhá-los à consulta médica ou a outros procedimentos. Esses casos geralmente estão encobertos por sinais e sintomas que levam as pessoas a procurar os serviços de saúde:

[...] geralmente são as mulheres que chegam chorando, nervosas. Muitas vezes elas chegam para consultar [...] aí tu vais fazer triagem e elas acabam comentando o que aconteceu, o que sofreram na verdade e que elas querem alguém para conversar mesmo. [...] o que mais acontece é a conversação inicial que te faz ver, diagnosticar ali de cara que não é nada de problema físico, quando vê é violência, violência pura (TÉC. ENF. 1).

Ao realizarem o primeiro atendimento, os técnicos e auxiliares de enfermagem têm um momento privilegiado para observação dos sinais indicativos de violência, destacando-se a sensibilidade para vislumbrar o não referido, buscando acolher e construir vínculo com os usuários:

A gente precisa ter muita paciência, muita calma, conversar muito, não ir direto ao ponto, ir por fora dando exemplos de outras pessoas, fazer com que essa pessoa confie na gente pra a partir daí a gente poder dar o retorno pra ela. Então tem que ser uma pessoa extremamente calma, atenciosa e que inspire confiança (TÉC. ENF. 4).

As tecnologias de relação no atendimento às situações de violência facilitam a aproximação dos profissionais com os usuários, a apreensão daquilo que não é dito e a busca de resolutividade, a fim de satisfazer as suas necessidades. A menção à escuta como um instrumento utilizado no atendimento predominou entre auxiliares/técnicos de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Há registros na literatura de que muitos profissionais têm dificuldades para identificar além das queixas físicas, ou seja, o que está além dos sinais e sintomas referidos pelos usuários(16).

Os médicos atendem aos usuários, principalmente, com base no saber clínico e na terapêutica medicamentosa, em que se destaca a prescrição de ansiolíticos. Na maior parte das vezes, solicitam apoio à enfermeira ou a outro profissional da equipe que possua mais vínculo com os usuários ou o encaminham diretamente para atendimento especializado.

[..] uma coisa mais específica do médico seria o tratamento clínico. Por que a escuta... a conversa, isso pode ser feito até por outros profissionais da equipe, no caso de uma paciente que está com um sofrimento psíquico grande, tu vais acabar prescrevendo alguma coisa para alguma síndrome ansiosa ou depressiva [...] (MÉD. 2).

[...] se tiver que fazer um curativo, a gente faz, se achar que precisa de algum exame, a gente encaminha. Depende muito de cada caso (MÉD. 3).

Identifica-se que os médicos concentram suas ações no tratamento de sinais e sintomas de natureza biológica e na execução de procedimentos no atendimento dos usuários em situação de violência. Resultados semelhantes estão descritos em estudo sobre a assistência multiprofissional à vítima de violência sexual(17).

Os enfermeiros realizam o acolhimento do usuário na unidade e atuam como elo entre os integrantes da equipe, sendo solicitados pelos demais profissionais para resolução e encaminhamento dos casos de violência:

O meu trabalho seria o acolhimento e tentar encaminhar [...] conversar com paciente e ver quais encaminhamentos eu posso dar de acordo com a situação (ENF. 2).

Quando está visível, faço consulta, chamo o médico [...] e encaminha direto. Se é morador, tem acompanhamento, segue observando, de acordo com o caso, tem os curativos e tudo que é tipo de procedimento (ENF. 3).

Destaca-se a atuação do enfermeiro na organização do trabalho e integração dos diversos saberes e fazeres que envolvem a produção do cuidado no cotidiano dos serviços de saúde. Estudo sobre as práticas dos enfermeiros em unidades básicas de saúde de Porto Alegre evidenciou o papel desses profissionais na articulação entre as demandas dos usuários, a estrutura do serviço e os demais profissionais, e ainda como referência para os outros componentes da equipe no encaminhamento de problemas e solicitações(18).

O contato direto dos ACS com as famílias e a comunidade lhes fornece condições de detectar e obter uma visão mais abrangente e detalhada dos casos de violência. Por isso, frequentemente, tornam-se os profissionais de referência para a equipe quando há necessidade de investigações sobre as possíveis situações de violência e acompanhamento da reabilitação das vítimas.

Acho que todo o trabalho do agente comunitário é o mais difícil de fazer, porque a gente acaba aprendendo a detectar situações de violência (ACS. 1).

Olha, primeiro tem o agente de saúde, tem o contato direto, testa de ferro ali, na frente, depois tem o assistente social (TÉC. ENF. 3).

Os ACS estão inseridos na mesma realidade dos usuários e compartilham aspectos culturais e sociais que fazem parte do seu contexto de vida, o que lhes permite identificar com maior facilidade as situações de violência. Tal resultado converge com os achados de estudos que destacaram o papel desses trabalhadores na identificação, investigação, prevenção e intervenção, sustentados pelas informações, pelos processos educativos e conscientização da população, sendo a visita domiciliar uma estratégia privilegiada para esclarecer as suspeitas de violência no interior das famílias(8,15).

Apesar da atuação de cada profissional estar bem demarcada nos depoimentos, o trabalho em equipe na atenção às vítimas de violência é valorizado e há preocupação com a continuidade do atendimento por meio da integração das suas ações. Para tanto, a equipe de saúde reúne-se para buscar mais informações acerca do caso, do contexto, da família:

A gente procura reunir a equipe que conhece a família, saber um pouco mais daquele caso, ver que tipo de atendimento a gente pode dar pra pessoa agredida naquele momento e depois quando essa pessoa voltar pra casa, quando ela voltar pro contexto social dela, o que a gente pode fazer no meio familiar, enfim nesse meio social em que essa pessoa está inserida. Então a gente tem uma articulação boa na equipe (MÉD 2).

É importante que a equipe busque os pontos comuns que fazem parte do campo de competência e responsabilidade profissional, pois isso pode fazer com que os profissionais sejam capazes de integrar suas competências e habilidades individuais para, conjuntamente, atender de forma integral às necessidades de saúde das vítimas de violência. O diagnóstico das situações requer capacitação profissional, exigindo conhecimento e desenvolvimento da capacidade para realizar escuta qualificada e olhar treinado, identificando e intervindo nos casos de violência.

Dificuldades no atendimento às vitimas de violência e estratégias para superá-las

As principais dificuldades citadas foram a desarticulação da rede de assistência à violência, o medo e a insegurança gerados pela assistência a essa clientela, a falta de profissionais capacitados e a infra-estrutura inadequada para o atendimento nas unidades de saúde.

Com relação à falta de uma rede de atendimento efetiva que promova a resolutividade das situações de violência, os profissionais destacam que realizam o diagnóstico da situação e detectam os problemas; no entanto, não encontram uma estrutura institucional capaz de fornecer suporte e continuidade ao atendimento. Assim, o profissional sente-se incapaz de romper sozinho o ciclo de violência, ficando impotente para encaminhar e resolver determinados casos.

Eu acho que a rede precisa funcionar um pouco melhor... bem melhor. As coisas precisam funcionar melhor, porque a gente até tem pra onde encaminhar algumas coisas [...], mas chega um determinado momento que pára ali sabe, não tem mais pra que lado ir [...] (TÉC ENF. 3).

A falta de profissionais de saúde na unidade resulta em sobrecarga de trabalho e menor tempo para a realização dos atendimentos. A detecção dos casos demanda uma avaliação ampla, tanto no âmbito físico quanto no psicológico. Autores ressaltam que, devido à escassez de tempo, os profissionais não conseguem realizar uma avaliação completa, dificultando na identificação de casos que não apresentam evidências visíveis de violência(19).

A insegurança e o medo também são dificuldades presentes no trabalho com os indivíduos em situação de violência e seus agressores, sendo que ambos estão presentes no cotidiano dos profissionais, em função dos riscos aos quais estão expostos. Alguns limites devem ser respeitados pela equipe no que se refere à interferência em determinadas situações, sendo que esses nem sempre estão muito claros para os profissionais.

Porque nessas situações de violência normalmente se corre risco. Tu vai enfrentar uma outra pessoa. E aí? Se sente ameaçada? Eu mesma já fui ameaçada, fiquei uma semana afastada do trabalho, fiquei fazendo só trabalho interno (ACS 3).

Tu tens um limite, tu não pode te expor muito porque tu vai estar invadindo o convívio familiar que é daquele jeito... Se o agente causador da violência está ali... é violento com um membro da família e o que ele não fará pra ti? Quem é de fora e está se metendo e ninguém te chamou na conversa como eles dizem. Então tu fica meio limitado nesse sentido porque tu vai te expor... e é um trabalho, tu tem que te expor um pouco, mas não muito, porque tu acaba até sendo perseguido muitas vezes (TÉC. ENF. 2).

No âmbito da atenção básica à saúde, os trabalhadores têm maior aproximação com o contexto de vida da comunidade, no qual está evidente a problemática da violência. Estudo revelou que os profissionais de saúde destacam as visitas domiciliares como um fator de risco no trabalho para os membros da equipe. Essa atividade está mais presente nas ações dos ACS, os quais, em algumas situações, têm receio de andar pelas ruas aonde residem e acabam cancelando algumas visitas quando são identificadas situações de risco elevado em função de conflitos na comunidade(20).

Os profissionais de saúde sentem-se desprotegidos, já que não há infra-estrutura adequada do serviço para o desenvolvimento do trabalho. Como consequência, muitas vezes, o processo de denúncia e a assistência aos casos de violência são prejudicados e mais demorados(5,20).

Diante dessas dificuldades, os profissionais sugeriram como estratégias maior articulação entre a rede de assistência à violência, qualificação das equipes de saúde para a detecção e atendimento, maior comprometimento dos profissionais com a resolução das situações e veiculação do tema na mídia visando sua desnaturalização, investindo na prevenção dos casos de violência.

Então, eu acho que treinar o pessoal para detectar, ter uma fonte que a gente consiga encaminhar esse paciente pra tentar um apoio, afastar da pessoa, alguma coisa assim (MED. 1).

[...] me lembro que a gente não dá muita bola e só vê quando aparece, quando é mais escancarado assim. Acho que a gente talvez devesse procurar um pouco mais, perguntar mais, dar mais chance das pessoas falarem sobre isso... Se sente muito envergonhada a pessoa que sofre algum tipo de agressão, não quer falar, esconde e tal (MED. 2).

Outra estratégia relaciona-se à ampliação das equipes com a inclusão de profissionais preparados para atender os usuários vítimas de violência em cada unidade, tais como psiquiatra, assistente social e psicólogo.

[...] cada posto deveria ter um psicólogo, um psiquiatra, um assistente social. Seria primordial, seria essencial. Mas isso são sonhos, né? Assim como deveria ter um ginecologista, teria que ter um odontólogo. Teria que ter um específico pra cada um dos casos (TÉC. ENF. 3).

Essa sugestão contraria os preceitos que norteiam a atenção primária em saúde, os quais preconizam o atendimento por uma equipe multiprofissional, visando à prevenção, promoção e recuperação da saúde, com encaminhamento para atendimento especializado somente dos casos que demandam maior complexidade tecnológica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os profissionais expressam que as situações de violência refletem a complexidade do contexto social dos usuários e suas condições de vida, exigindo ações intersetoriais e de caráter interdisciplinar, pois a violência extrapola o âmbito da saúde e abrange os campos político e social.

O atendimento das unidades de saúde tem potencial para a detecção dos casos de violência e o vínculo com uma população adscrita possibilita intervenção precoce. Os resultados deste estudo podem subsidiar a elaboração de políticas públicas que auxiliem a identificação, o acolhimento e a assistência aos indivíduos em situação de violência, uma vez que expressam as concepções dos profissionais de saúde no atendimento a esses usuários.

As dificuldades mencionadas pelos profissionais relacionam-se, principalmente, à desarticulação da rede de assistência à violência, o medo e a insegurança gerados pela assistência a essa clientela, a falta de profissionais capacitados e a infra-estrutura inadequada. Essas questões configuram-se como desafios a serem discutidos por usuários, gestores e profissionais, visando à busca de estratégias políticas e sociais integradas, capazes de construir uma rede de atendimento efetiva.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) pelo apoio financeiro obtido por meio do Edital 024/2004.

Recebido em: 23/06/2009

Aprovado em: 08/12/2009

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  • Endereço do autor:
    Maria Alice Dias da Silva Lima
    Rua São Manoel, 963
    90620-110, Rio Branco, Porto Alegre, RS
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    Artigo elaborado a partir do projeto de pesquisa "Observatório de Causas Externas na Atenção Básica de Saúde do Município de Porto Alegre".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      08 Dez 2009
    • Recebido
      23 Jun 2009
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