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Percepção sobre a prática de enfermagem em Centros de Atenção Psicossocial

Percepción sobre la práctica de enfermería en Centros de Atención Sicosocial

Perception about the nursing practice in the Psychosocial Care Centers

Resumos

A prática de enfermagem em serviços de atenção em saúde mental é algo construído no cotidiano das instituições, a partir das interações estabelecidas entre profissionais, usuários e familiares. Esta pesquisa é do tipo exploratória, com abordagem qualitativa. Objetiva conhecer a percepção dos profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial sobre a prática cotidiana do(a) enfermeiro(a) nesses serviços. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semi-estruturadas. Da análise temática dos dados emergiram dois temas: a enfermeira estabelece o primeiro contato com o usuário; a enfermeira é o elo entre profissionais e usuários. Os resultados demonstram que a prática de enfermagem em saúde mental busca construir ações inventivas, estabelecer vínculos afetivos, acolhimento e desmistificar o "olhar" que vê no diferente, no "louco" uma ameaça. É uma prática que enfatiza o sentido de produção de vida, do aumento da capacidade do usuário de estabelecer trocas sociais, possibilitando-lhe maior autonomia.

Saúde mental; Enfermagem psiquiátrica; Acolhimento


La práctica de enfermería en servicios de atención en salud mental es algo construido en el diario de las instituciones, a partir de las interacciones establecidas entre profesionales, usuarios y familiares. Esta investigación es de tipo exploratoria, con abordaje cualitativo. Tiene por objetivo conocer la percepción de los profesionales de los Centros de Atención Sicosocial sobre la práctica diaria del (de la) enfermero (a) en eses servicios. El aporte de datos ha sido realizado con cita semiestructurada. Del análisis temático de los datos han emergido dos temas: la enfermera establece el primer contacto con el usuario; la enfermera es el enlace entre profesionales y usuarios. Los resultados demuestran que la práctica de enfermaría en la salud mental busca construir acciones inventivas, establecer vínculos afectivos, acogida y deshacer la "mirada" que ve en el diferente un loco amenazador. Es una práctica que enfatiza el sentido de producción de vida, del aumento de la capacidad del usuario de establecer cambios sociales, posibilitándole mayor autonomía.

Salud mental; Enfermería psiquiátrica; Acogimiento


The practice of nursing in the psychosocial care centers in mental health is something made in the institutions daily from established interactions among professionals, patients, and the patient`s family. This research is somewhat exploratory and has a qualitative approach. It aims to know the daily practice of professionals from psychosocial Care Centers on daily practice of the nurse in this kind of work. The collected data was made by means of-semi-structured interviews. From the thematic analysis of the data, two themes appeared: the nurse establishes the first contact with the patients; that is, the nurse is the link between doctors and patients. The results show that the practice of nursing in mental health searches to construct inventive actions, establish affective ties, welcome the patients, and contradict the different way by which some uncommon people are seen the "insane" as a threat. It is a practice that emphasizes the meaning of life production, that is, the increase of the patient’s capacity to establish social exchanges, giving him/her greater autonomy.

Mental health; Psychiatric nursing; User embracement


ARTIGO ORIGINAL

Percepção sobre a prática de enfermagem em centros de atenção psicossocial* * Trabalho parte da pesquisa "Assistência psiquiátrica na Paraíba: da prática psiquiátrica asilar à prática de reabilitação psicossocial" do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) realizada pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Percepción sobre la práctica de enfermería en centros de atención sicosocial

Perception about the nursing practice in the psychosocial care centers

Francisca Bezerra de OliveiraI; Karla Maria Duarte SilvaII; Joana Celine Costa e SilvaIII

IDoutora em Enfermagem, Professora Associada I da UFCG, Campus de Cajazeiras, Paraíba, Brasil

IIAcadêmica de enfermagem da UFCG, Campus de Cajazeiras, Bolsita PIBIC/CNPq/UFCG no período de agosto de 2004 a julho de 2006, Cajazeiras, Paraíba, Brasil

IIIAcadêmica de enfermagem da UFCG, Campus de Cajazeiras, Bolsista PIBIC/CNPq/UFCG no período de agosto de 2006 a julho de 2008, Cajazeiras, Paraíba, Brasil

Endereço da autora Endereço da autora: Francisca Bezerra de Oliveira Rua João Coleta, 25, ap. 4, Leopoldina 58900-000, Cajazeiras, PB E-mail: oliveirafb@uol.com.br

RESUMO

A prática de enfermagem em serviços de atenção em saúde mental é algo construído no cotidiano das instituições, a partir das interações estabelecidas entre profissionais, usuários e familiares. Esta pesquisa é do tipo exploratória, com abordagem qualitativa. Objetiva conhecer a percepção dos profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial sobre a prática cotidiana do(a) enfermeiro(a) nesses serviços. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semi-estruturadas. Da análise temática dos dados emergiram dois temas: a enfermeira estabelece o primeiro contato com o usuário; a enfermeira é o elo entre profissionais e usuários. Os resultados demonstram que a prática de enfermagem em saúde mental busca construir ações inventivas, estabelecer vínculos afetivos, acolhimento e desmistificar o "olhar" que vê no diferente, no "louco" uma ameaça. É uma prática que enfatiza o sentido de produção de vida, do aumento da capacidade do usuário de estabelecer trocas sociais, possibilitando-lhe maior autonomia.

Descritores: Saúde mental. Enfermagem psiquiátrica. Acolhimento.

RESUMEN

La práctica de enfermería en servicios de atención en salud mental es algo construido en el diario de las instituciones, a partir de las interacciones establecidas entre profesionales, usuarios y familiares. Esta investigación es de tipo exploratoria, con abordaje cualitativo. Tiene por objetivo conocer la percepción de los profesionales de los Centros de Atención Sicosocial sobre la práctica diaria del (de la) enfermero (a) en eses servicios. El aporte de datos ha sido realizado con cita semiestructurada. Del análisis temático de los datos han emergido dos temas: la enfermera establece el primer contacto con el usuario; la enfermera es el enlace entre profesionales y usuarios. Los resultados demuestran que la práctica de enfermaría en la salud mental busca construir acciones inventivas, establecer vínculos afectivos, acogida y deshacer la "mirada" que ve en el diferente un loco amenazador. Es una práctica que enfatiza el sentido de producción de vida, del aumento de la capacidad del usuario de establecer cambios sociales, posibilitándole mayor autonomía.

Descriptores: Salud mental. Enfermería psiquiátrica. Acogimiento.

ABSTRACT

The practice of nursing in the psychosocial care centers in mental health is something made in the institutions daily from established interactions among professionals, patients, and the patient`s family. This research is somewhat exploratory and has a qualitative approach. It aims to know the daily practice of professionals from psychosocial Care Centers on daily practice of the nurse in this kind of work. The collected data was made by means of-semi-structured interviews. From the thematic analysis of the data, two themes appeared: the nurse establishes the first contact with the patients; that is, the nurse is the link between doctors and patients. The results show that the practice of nursing in mental health searches to construct inventive actions, establish affective ties, welcome the patients, and contradict the different way by which some uncommon people are seen the "insane" as a threat. It is a practice that emphasizes the meaning of life production, that is, the increase of the patient’s capacity to establish social exchanges, giving him/her greater autonomy.

Descriptors: Mental health. Psychiatric nursing. User embracement.

INTRODUÇÃO

Historicamente a assistência psiquiátrica está marcada pela exclusão do louco em espaços de internações devido sua "periculosidade" social, pois o louco era visto em meio à pobreza e a marginalidade, e os manicômios constituíam formas de preservar a ordem social e evitar que os efeitos da desordem se irradiassem para a sociedade. Desse modo, à assistência psiquiátrica no Brasil, até o final dos anos 90 do século XX estava centrada predominantemente no modelo asilar, ou seja, no modelo "hospitalocêntrico", que tem como princípio básico o isolamento do doente mental.

O isolamento do louco em instituições psiquiátricas ocorreu, também, em virtude dos profissionais de saúde mental considerarem que a "inofensividade" dos loucos era apenas aparente. O caráter imprevisível e estranho do "louco" transformava-o num "perigo" real que deveria ser eliminado do meio social através de sua reclusão no hospital psiquiátrico(1).

A loucura ao ser isolada no hospício significou uma maneira eficiente "de controlar o 'perigo' que ela representava circulando livremente pelas ruas da cidade. Nesse sentido, a defesa da criação de um estabelecimento para alienados inscrevia-se em um projeto político mais abrangente que objetivava a normatização dos comportamentos da população urbana [...]"(1).

Observa-se que a função da instituição asilar se constituiu numa forma de controlar, excluir e segregar o doente mental do convívio social. O trabalho de controle sobre o doente era exercido pela enfermagem psiquiátrica.

Sobre a prática de enfermagem psiquiátrica em instituições de modelo tradicional é importante destacar que além da vigilância e do controle sobre o doente, herança comum da constituição da enfermagem moderna, o que o(a) enfermeiro(a) faz nos hospícios é reproduzir mecanicamente o saber médico, administrando a medicação prescrita, sem saber o nome do paciente, sua história, sua individualidade(2).

No entanto, nas últimas décadas do século XX ocorreram críticas ao modelo asilar, surgindo novas práticas e formas de cuidar e novas modalidades de atenção em saúde mental, tendo como princípio básico a desinstitucionalização.

No Brasil, a desinstitucionalização, que tem Basaglia como protagonista deste movimento(3), tem sido a palavra-chave da reforma psiquiátrica brasileira. A reforma é compreendida como um processo de desconstrução do paradigma asilar, como invenção de novas possibilidades de atenção em saúde mental; vai de encontro a toda política de sucateamento dos serviços públicos e da desassistência. Representa, sobretudo, a criação de complexos serviços de cuidados como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), residências terapêuticas, etc., e práticas ancoradas em um cuidar solidário, criativo e interdisciplinar(4).

O primeiro CAPS criado foi o da cidade de São Paulo, em 1987, constituindo-se em um centro de irradiação da experiência para todo o país. Atualmente, no Brasil, existem mais de 1.000 CAPS cadastrados e em funcionamento no Sistema Único de Saúde (SUS), desde o Sertão da Paraíba até o Rio Grande do Sul. A Política de Saúde Mental do SUS segue as determinações da Lei nº 10.216/2001(5) e é referendada pela III Conferência Nacional de Saúde Mental(6) e conferências nacionais de saúde.

O CAPS é uma estrutura intermediária entre a hospitalização e a vida comunitária, destinado a atender pessoas com transtornos mentais graves: psicóticos, obsessivos compulsivos, depressivos, entre outros, sempre acompanhados de desajustamento sócio-cultural e econômico.

Assim, postula-se que as práticas nos novos serviços substitutivos em saúde mental devem se constituir em atividades humanas criadoras, afetivas e interdisciplinares, ou seja, atividades que estão sempre em processo de desconstrução/construção de conceitos sobre o universo da loucura, como também maneiras de lidar com o sofrimento psíquico que possam contribuir para a discussão sobre a reforma psiquiátrica em curso em nosso país.

Eleger o recorte empírico a percepção da prática do(a) enfermeiro(a) em serviços substitutivos em saúde mental, como objeto deste estudo, constitui-se uma busca de discussão e reflexão sobre o processo de transformação teórico-prátrico de atenção em saúde mental, sobre o modo de inserção do enfermeiro nessas modalidades de atenção, procurando contribuir para o debate sobre a reforma psiquiátrica no Estado da Paraíba. Sendo assim, essa pesquisa tem como objetivo conhecer a prática cotidiana do(a) enfermeiro(a) em centros de atenção psicossocial, a partir da percepção dos demais profissionais da equipe.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de natureza exploratória, com abordagem qualitativa, desenvolvido nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Cajazeiras e Sousa – Paraíba. Para a coleta de dados foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os profissionais de nível superior que desenvolviam atividades nos referidos CAPS. As entrevistas continham um roteiro básico, tendo como questões norteadoras: fale sobre a prática cotidiana do(a) enfermeiro(a) no CAPS; descreva a relação do(a) enfermeiro(a) com os profissionais da equipe; fale sobre a relação interpessoal estabelecida pelo(a) enfermeiro(a) com os usuários e os familiares desse serviço. Na oportunidade, obteve-se a autorização dos coordenadores dos serviços para a realização da pesquisa, e passou-se à fase da coleta de dados. Após a explicitação do objetivo da pesquisa, contou-se com o consentimento livre e esclarecido dos profissionais entrevistados, garantindo-lhes a confidencialidade de suas respostas, obedecendo aos aspectos éticos e legais da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde(7). Os sujeitos concordaram em participar do estudo, bem como com a divulgação do resultado da pesquisa no meio científico. Destaque-se que esta pesquisa foi primeiramente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, do Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal da Paraíba.

As entrevistas com os profissionais foram realizadas nos próprios serviços. Foram entrevistados todos os profissionais de nível superior que concordaram em participar desta pesquisa, totalizando 14 profissionais, sendo seis do CAPS de Cajazeiras: um psicóloga, um assistente social, um terapeuta ocupacional, um pedagoga, um médica psiquiátrica, um terapeuta corporal; e oito do CAPS de Sousa: dois psicólogas, um psicopedagoga, um nutricionista, um médicos psiquiátricos, um assistente social e um terapeuta ocupacional. As entrevistas foram transcritas pelas pesquisadoras.

Os dados coletados foram analisados a partir de uma abordagem qualitativa, tendo como respaldo teórico autores que abordam a temática da reforma psiquiátrica(8,9). O primeiro passo para a organização do material foi as leituras exaustivas das entrevistas, possibilitando uma imersão nos textos para extrair deles as informações do contexto. A partir dessas leituras foi elaborado um texto entremeado por comentários, baseado nas informações registradas no momento da realização da pesquisa, o qual permitiu adentrar nas reflexões sobre a prática cotidiana do(a) enfermeiro(a) e sua inserção nos novos serviços de assistência em saúde mental. Do texto elaborado, emergiram duas temáticas: a enfermeira estabelece o primeiro contato com o usuário; a enfermeira como elo entre profissionais e usuários.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A enfermeira estabelece o primeiro contato com o usuário

De acordo com os entrevistados, ficou evidenciado que o(a) enfermeiro(a) estabelece o primeiro contato com o usuário. Este contato constitui-se como fundamental, uma vez que significa o momento de construção de vínculos de confiança com o profissional e com o serviço, de modo a possibilitar acolhimento, escuta comprometida e relações interpessoais entre profissionais, usuários e familiares.

Ao refletir sobre as relações interpessoais estabelecidas entre o(a) enfermeiro(a) e o usuário, convém ressaltar que "[...] as enfermeiras se dão conta que o paciente é um ser de relações, ser social de direitos e desejos. Um ser que na relação com outros experimenta sentimentos diversos, confia, busca apoio. Parece ser possível afirmar que é nos contatos onde acontecem trocas que se criam possibilidades para a re-construção do paciente como sujeito ativo - pode falar, circular, participar, fazer escolhas"(10).

Nessa perspectiva é importante frisar a fala a seguir de um dos participantes do estudo:

A relação da enfermeira com o usuário é de amor, dedicação, de busca por parte da enfermeira para conseguir, ou melhor, para reabilitar este paciente para conviver em sociedade, junto com a família (Entrevista 2, Nutricionista).

Esta fala demonstra a necessária relação dialógica entre o(a) enfermeiro(a) e o usuário, estabelecendo o diálogo, o confronto, a troca, uma interação afetiva. Isto possibilita considerar o usuário como um ser que se re-significa como sujeito, no convívio e interação com os outros, nos grupos terapêuticos, nas assembléias, nas oficinas etc.

Nas novas modalidades de atenção em saúde mental, o relevante é o sujeito e não a doença. Desse modo, conforme os depoimentos dos profissionais dos CAPS, os(as) enfermeiros(as) buscam privilegiar como recorte, o sofrimento psicossocial, a fragilidade, a pessoa. É pela presença e pelo envolvimento com o sujeito adoecido que se podem formar vínculos entre profissionais e usuários.

Em outra pesquisa realizada abordando a perspectiva do(a) enfermeiro(a) sobre a sua prática cotidiana nos CAPS, no Estado da Paraíba, observou-se que tal prática deve incluir, necessariamente, "o relacionamento terapêutico entre enfermeiro(a) e paciente. Um bom profissional de enfermagem é aquele que sabe cultivar essa relação através de trocas de experiências e de vínculos afetivos. Implica, ainda, na capacidade de sensibilizar-se, de partilhar do sofrimento e garantir ao usuário um tratamento de qualidade"(11).

Dessa forma, essa postura terapêutica desenvolvida nos CAPS se contrapõe à prática tradicional em psiquiatria que se caracteriza por uma relação passiva do usuário em relação ao profissional. Nos novos serviços de atenção psicossocial a prática do(a) enfermeiro(a) não é algo "dado", mas uma prática em processo de construção engendrada no diálogo com os atores sociais (profissionais, usuários e familiares). Estes parceiros compartilham saberes, forças concretas da comunidade viabilizando ações que estabelecem vínculos e promovem a cidadania e a autonomia do usuário.

O vínculo de confiança e o acolhimento constituem-se, portanto, como elementos necessários para uma interação comprometida e efetiva com o usuário, uma vez que o (a) enfermeiro(a) é o profissional da equipe que estabelece o primeiro contato com o usuário, conforme está enfatizado na fala a seguir:

É o enfermeiro que faz com que ele [o usuário] adquira confiança nele [o enfermeiro] e nos profissionais. Muito dos problemas, angústia, ele quer compartilhar com o enfermeiro por ter o primeiro contato (Entrevista 4, Psicóloga).

O tratamento de pessoas com transtornos mentais e/ou sofrimento psíquico não deve ter como objetivo a "cura", compreendida como elemento ordenador da subjetividade do sujeito, de busca de retorno a um estado universal de normalidade. A ênfase deve ser colocada no sentido de produção de vida, do aumento da capacidade do usuário de estabelecer trocas sociais, possibilitando maior autonomia deste. Este ganho social está representado pela melhoria da qualidade de vida proporcionada às pessoas com transtornos mentais que antes se encontravam excluídas do meio social e familiar, e hoje, com a diminuição de seus sofrimentos, estudam, passeiam, interagem.

A enfermeira é o elo entre profissionais e usuários

A partir dos depoimentos dos entrevistados foi possível identificar que o(a) enfermeiro(a) se caracteriza como elo entre os profissionais da equipe e os usuários. Pode-se observar que a participação da enfermeira na equipe parece ser a mediação necessária para que ocorra o entrosamento, conforme observado no relato a seguir:

A prática da enfermeira aqui no CAPS é muito atuante. Existe uma relação, todo um envolvimento, a enfermeira tem sido uma peça chave para que tudo se concretize e haja todo um andamento do serviço, desde o atendimento do usuário quando ele chega em crise, até a sua alta [...]. A enfermeira é um elo importantíssimo. Eu creio assim, ela é um elo entre todos os profissionais, então tudo que acontece, a gente sempre procura a orientação dela, saber como está aquele paciente no dia-a-dia [...] (Entrevista 5, Assistente social).

Apreende-se nesta fala que todos os profissionais estão intimamente envolvidos no processo de reabilitação do usuário. Em um dos serviços, o(a) enfermeiro(a) possui uma carga horária maior nas atividades. Por isso, sua relação com o usuário se torna mais próxima, acompanhando-o desde sua acolhida e tratamento na instituição e sua (re)integração na sociedade. Acrescente-se a isso a necessidade do trabalho em equipe, na perspectiva da interdisciplinaridade.

A necessidade do trabalho interdisciplinar no campo da saúde mental decorre do fato de que o "adoecer psíquico" não é um fenômeno homogêneo e simples, mas complexo. Sendo assim, as formas de acesso ao "sofrimento-existência" devem ser as mais diversificadas possíveis, buscando construir práticas que ousem imaginar o ainda não imaginado e o ainda não experimentado, desenvolvendo formas de cuidados que atendam a totalidade do sujeito em sofrimento psíquico(4).

Percebe-se que o(a) enfermeiro(a) se identifica como profissional de referência para os demais profissionais de nível superior e técnico, bem como para os usuários, isto é, alguém significativo para o serviço que possibilita trocas e mudanças de um "olhar" puramente técnico para um "olhar" humano, visando à relação interpessoal. Os relatos a seguir possibilitam compreender esta questão:

Ela tem uma referência, a gente fala assim um referencial muito grande com o usuário, uma referência de apoio, de apoio psicológico, até mesmo com nós profissionais (Entrevista 5, Assistente Social).

[...] realmente é uma dedicação total e os usuários têm uma identificação muito grande com a enfermeira aqui dentro do CAPS, a maioria a tem como técnico de referência (Entrevista 3, Psicóloga).

Neste estudo ficou caracterizado que o início do trabalho dos profissionais nos serviços pesquisados foi permeado de medo, ansiedade, incerteza e conflito. Isso, possivelmente, seja justificado pela pouca experiência destes no campo da saúde mental, e por ser o CAPS um espaço que exige práticas criativas, fundamentadas na interdisciplinaridade, necessitando transitar nas diversas áreas do conhecimento; desconstruindo práticas silenciadoras e reconstruindo práticas voltadas para a criatividade, para as reais necessidades do usuário; configurando-se como recusa ao modelo psiquiátrico asilar, que centra o tratamento no poder do médico, na hierarquização das funções e na objetividade da doença mental.

Um aspecto que merece destaque é o fato de que em uma das instituições que se realizou este estudo, o(a) enfermeiro(a) desempenhava atividades, simultaneamente, em um serviço tradicional e um serviço substitutivo, que é o CAPS. Esta realidade pode ser evidenciada pelas seguintes falas:

Ela já trabalhava num hospital psiquiátrico desta cidade. Eu especialmente, no primeiro momento tive medo de que a prática dela aqui no CAPS desse continuidade a prática da instituição asilar, mas vi que em nenhum momento esta prática foi desenvolvida aqui. Ela abraçou a reforma psiquiátrica, e faz um trabalho de acordo com a reforma (Entrevista 10, Assistente Social).

A enfermeira já tinha experiência em Saúde Mental, e foi quem realmente norteou todos da equipe em formação. Desta forma, com a experiência dela, ajudou bastante na prática em Saúde Mental (Entrevista 9, Psicóloga).

A partir desses depoimentos vê-se que embora o(a) enfermeiro(a) venha desenvolvendo uma prática em uma estrutura asilar não houve interferência negativa na sua prática nos serviços objeto desta discussão. Ao contrário, esta sua vivência trouxe vantagens à atuação no CAPS, pela experiência que ela possuía no campo da psiquiatria, possibilitando orientar e nortear essa nova modalidade em Saúde Mental.

As atividades desenvolvidas pelas enfermeiras nos CAPS do Alto Sertão Paraibano vão além da administração de medicamentos, alimentação e higiene, que são a essência da assistência de enfermagem psiquiátrica tradicional. Destacam-se também as seguintes atividades: triagem, visita domiciliar, reuniões de equipe, orientação ao usuário e aos familiares sobre a doença, o tratamento e o uso de medicamentos, supervisões dos serviços de enfermagem, participação em eventos festivos (carnaval, semana santa, festa junina, natal e comemoração dos aniversariantes do mês), palestras na comunidade, participação em grupos terapêuticos, entre outras. Essas atividades são realizadas com a participação dos demais profissionais que compõem a equipe. O encaminhamento dos usuários para as atividades é discutido nas reuniões entre os profissionais, sendo estabelecido a partir das necessidades dos mesmos.

A triagem é uma atividade desenvolvida pelo(a) enfermeiro(a) nos serviços abordados neste estudo. Essa atividade se constitui o momento de acolher a pessoa com transtorno mental e valorizar o conteúdo de suas falas, buscando identificar o perfil da pessoa a ser atendida. Na triagem, procura-se dar direção ao tratamento, que será baseado na problemática apresentada pelo usuário. É importante que a triagem seja realizada no mínimo por dois profissionais da equipe, "pelo fato do sofrimento psíquico ser decorrente de fenômenos multifacetados (biológico, social, cultural, psicológico e político) [...], pois uma abordagem interdisciplinar, uma escuta diferenciada facilita a compreensão desse fenômeno complexo"(4).

A visita domiciliar compreendida como um projeto também faz parte da estratégia terapêutica dos serviços investigados, sendo realizada por profissionais de nível superior e médio, com uma maior participação do(a) enfermeiro(a) e da assistente social, devido aos questionamentos dos familiares estarem relacionados à medicação, ao tratamento e ao auxílio doença, embora envolva outras discussões. A visita domiciliar enquanto projeto terapêutico é um contraponto importante para os demais projetos, pois possibilita o conhecimento das reais necessidades dos usuários e familiares.

É fundamental a participação da família no tratamento do usuário em Saúde Mental. Destaque-se que a família nem sempre está preparada para lidar com o parente com transtorno mental, sente carência de informação qualificada e, muitas vezes, sente-se obrigada a dedicar grande parte do seu cotidiano para o cuidado ao mesmo. Os delírios, as alucinações e os comportamentos estranhos desestruturam as formas da família tratar o doente, que por sua vez sente-se frustrado, triste e com medo. A culpa também passa a fazer parte do cenário familiar, que busca explicações em erros do passado para amenizar seu sofrimento. Por isso a participação dos familiares no tratamento, como também a vivência com outros familiares, passando a conhecer outros contextos, pode ser um caminho enriquecedor para todos os envolvidos no processo de reabilitação psicossocial dos sujeitos adoecidos(12).

A atividade grupal e individual é uma das ações desenvolvidas pelos(as) enfermeiros(as) nos CAPS. Destaca-se a atividade grupal por apresentar algumas vantagens: possibilita que o usuário se encontre no universo, isto é, que possam sentir que o que experimenta como preocupante e ameaçador, os companheiros também experimentam ou já experimentaram; proporciona relações interpessoais em ambiente protegido pelo grupo; rapidez de resultados, pela oportunidade dos usuários de experimentarem o papel de terapeutas, encontrando formas de solucionar seus próprios problemas. Essa atividade é realizada semanalmente nos dois CAPS pesquisados, objetivando trabalhar questões referentes ao uso da medicação (sintomas, dose, efeitos colaterais, etc.), abordando também temas como sexualidade, doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), higiene corporal e auto-estima.

Parece ser possível inferir que a prática cotidiana do(a) enfermeiro(a) nos novos serviços de atenção psicossocial está sendo construída/desconstruída na convivência com os demais profissionais e usuários, de modo a possibilitar práticas criativas, dinâmicas e trocas entre os vários saberes, tendo como eixo norteador o aumento do grau de autonomia e liberdade do usuário.

Enfim, o(a) enfermeiro(a) que atua no campo da saúde deve ser uma pessoa apaixonada pela produção da vida alegre, por uma estética da existência, por agenciamento de experiências subjetivas; deve desenvolver habilidades para proporcionar aumento da capacidade do sujeito adoecido de estabelecer trocas sociais no contexto sócio-cultural, bem como descobrir os "tesouros soterrados nos escombros" daqueles que apresentam sofrimento, dor na alma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível afirmar que a mudança do pensar e agir da enfermagem psiquiátrica e em saúde mental passa pela busca de um "olhar" nas experiências singulares, inovadoras que estão sendo construídas e desenvolvidas nos municípios brasileiros – desde o Sertão da Paraíba ao Rio Grande do Sul – que, de modos diferenciados, buscam concretizar a reforma psiquiátrica.

Esta pesquisa evidenciou, a partir da percepção dos demais profissionais da equipe, que a prática do(a) enfermeiro(a) nos serviços de atenção psicossocial constitui-se como fundamental, uma vez que este profissional quase sempre é responsável pela acolhida do usuário, estabelecendo vínculos afetivos, de confiança, de escuta e de relações interpessoais entre usuários e familiares. A enfermeira constitui-se como o profissional de referência para a maioria dos usuários dos CAPS pesquisados.

Além disso, foi observado que o(a) enfermeiro(a) representa o elo entre profissionais e usuários, a mediação necessária para que informações importantes acerca dos usuários circulem, haja maior interação entre profissionais e usuários, e continuidade no tratamento. O(a) enfermeiro(a) ao favorecer o envolvimento efetivo dos profissionais da equipe no processo terapêutico estimula formas de cuidados que atendem a totalidade do sujeito com transtorno mental.

Observou-se ainda, que a filosofia de trabalho desenvolvida pelos(as) enfermeiros(as) nos CAPS do "Alto Sertão Paraibano" diferencia-se da prática tradicional em psiquiatria. A prática de atendimento nestes serviços busca construir ações inventivas, estabelecer vínculos afetivos e de confiança, e desmistificar o "olhar" que vê no diferente, no "louco", uma ameaça. Assim, a ênfase deve ser colocada no sentido de produção de vida, do aumento da capacidade do usuário de estabelecer trocas sociais, possibilitando maior autonomia deste.

Desse modo, as atividades desenvolvidas pelas enfermeiras nos novos serviços de reabilitação psicossocial, diferentemente das instituições psiquiátricas tradicionais, vão além das funções tradicionais de supervisão, administração de medicamento, alimentação e higiene. Esses profissionais participam de atividades de triagem, visita domiciliar, atividades grupais e individuais, reuniões de equipe, realizam palestras na comunidade, participam de eventos festivos, etc.

Apesar desses avanços, as ações cotidianas de enfermagem apresentam ainda limitações, contradições e incertezas. Em espaço flexível, aberto como deve ser o CAPS, demanda mais competência, criatividade do profissional que no modelo baseado no paradigma de medicalização da loucura. Nessa modalidade de atenção, o fazer cotidiano coloca a necessidade de um trabalho interdisciplinar, de formas plurais de cuidar, em que os papéis profissionais estão em constante processo de transformação.

O momento atual exige um repensar da prática de enfermagem e da sua inserção nos novos serviços em saúde mental. Sendo assim, deve-se fazê-la, numa perspectiva construtiva, criativa, humanística, crítica e reflexiva, deve-se dizer não a exclusão, e sim ao cuidar, a solidariedade, a liberdade, em uma dinâmica interdisciplinar.

No mundo atual permeado por relações fragmentadas, é imperativo colocar nossa razão e paixão na construção de uma sociedade mais tolerante, justa e participativa; na construção de práticas que acolha o desconhecido, conviva com a diversidade, compreenda que loucura não significa desrazão, que existe positividade na experiência da loucura, que "desordem" não se identifica com "não ordem", que os saberes são sempre imprevisíveis e inacabados, e defenda a verdade a serviço da liberdade.

Espera-se que este estudo possa contribuir para a formulação de políticas públicas voltadas para as reais necessidades dos usuários em saúde mental dos municípios de Cajazeiras e Sousa – Paraíba, para o debate sobre a reforma psiquiátrica no Estado da Paraíba, e para a um repensar a inserção e a prática do(a) enfermeiro(a) nos novos serviços.

Recebido em: 06/04/2009

Aprovado em: 21/12/2009

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  • Endereço da autora:
    Francisca Bezerra de Oliveira
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    58900-000, Cajazeiras, PB
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    Trabalho parte da pesquisa "Assistência psiquiátrica na Paraíba: da prática psiquiátrica asilar à prática de reabilitação psicossocial" do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) realizada pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      21 Dez 2009
    • Recebido
      06 Abr 2009
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