Acessibilidade / Reportar erro

Violência entre jovens: dinâmicas sociais e situações de vulnerabilidade

Violence among youngsters: social dynamics and situations vulnerability

Violencia entre jóvenes: dinámicas sociales y situaciones vulnerabilidad

Resumos

Esse estudo busca analisar as dinâmicas sociais implicadas na vida de jovens vítimas de violências por meio da (re)construção das relações cotidianas discutindo situações de vulnerabilidade. Trata-se de um estudo descritivo-exploratório, utilizando o genograma e ecomapa como instrumentos de coleta de dados. Entrevistou-se 23 jovens vítimas desse evento, no município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Adotou-se análise de conteúdo do tipo temático. Nas interações sociais dos jovens, observou-se fragilização das redes de relações. A maioria desses jovens são oriundos de famílias com precária inserção social e econômica. A formação escolar é reconhecida enquanto garantia de inclusão social, no entanto para alguns os problemas do ensino público e a violência intra e extramuros, colaboram para a descaracterização da escola como espaço protegido e de aprendizagem. Conhecer as dinâmicas sociais implicadas nas situações de vulnerabilidade, auxilia na compreensão desse fenômeno e pode influenciar ações de prevenção e promoção a partir dos serviços de saúde.

Enfermagem em saúde pública; Violência; Vulnerabilidade; Adolescente


The purpose of this study is to analyze the social dynamics implied in the life of youngsters, victims of violence, by (re)constructing the day-to-day relations and, therefore, discussing vulnerability situations. It is a descriptive and exploratory study that uses the genogram and the ecomap as instruments for data collection. Interview was carried out with 23 young victims of these events in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil. Content analysis of the thematic type was adopted. From the social interactions of the surveyed youngsters, we observed the fragility of their relationship networks. Regarding the family environment, evidence shows that most of the youngsters come from families with precarious social and economic background. School education is recognized as a guarantee of social inclusion; however, for some, the problems with state education and violence in and out of school collaborate for the decharacterization of the school as a protected and learning space. Learning the social dynamics implied in situations of vulnerability helps to understand this phenomenon and can influence prevention and promotion actions from health services.

Public health nursing; Violence; Vulnerability; Adolescent


Este estudio busca analizar dinámicas sociales implicadas en la vida de jóvenes víctimas de violencias por medio de la (re)construcción de las relaciones cotidianas discutiendo situaciones de vulnerabilidad. Se trata de un estudio descriptivo-exploratorio, utilizando el genogramo y el ecomapa como instrumentos de recolección de datos. Fueron entrevistados 23 jóvenes víctimas de estos eventos, en la municipalidad de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Se adoptó el análisis de contenido del tipo temático. Nas interacciones sociales de los jóvenes, se observó la fragilidad de las redes de relaciones. La mayoría de estos jóvenes son oriundos de familias con precaria inserción social y económica. La formación escolar es reconocida mientras garantía de inclusión social. Sin embargo para algunos, los problemas de la enseñanza pública y la violencia intra y extramuros colaboran para la descaracterización de la escuela como espacio protegido y de aprendizaje. Conocer las dinámicas sociales implicadas en las situaciones de vulnerabilidad y protección auxilia en la comprensión de este fenómeno y, puede influenciar acciones de prevención y promoción a partir de los servicios de salud.

Enfermería en salud pública; Violencia; Vulnerabilidad; Adolescente


ARTIGO ORIGINAL

Violência entre jovens: dinâmicas sociais e situações de vulnerabilidadea a Artigo originário da dissertação de Mestrado apresentada em 2007 na Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Violencia entre jóvenes: dinámicas sociales y situaciones vulnerabilidad

Violence among youngsters: social dynamics and situations vulnerability

Marta CoccoI; Marta Julia Marques LopesII

IMestre em Enfermagem, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFRGS, Professora Assistente I da Universidade Federal de Santa Maria – Campus Palmeira das Missões (UFSM/CESNORS), Pesquisadora e membro do Grupo de Estudos em Saúde Coletiva (GESC/UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

IIDoutora em Sociologia, Professora Titular da Escola de Enfermagem da UFRGS, Pesquisadora e Coordenadora do GESC/UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço da autora Endereço da autora: Marta Cocco Rua Maurício Cardoso, 574, ap. 104, Centro 98400-000, Frederico Westphalen, RS E-mail: martafwcocco@yahoo.com.br

RESUMO

Esse estudo busca analisar as dinâmicas sociais implicadas na vida de jovens vítimas de violências por meio da (re)construção das relações cotidianas discutindo situações de vulnerabilidade. Trata-se de um estudo descritivo-exploratório, utilizando o genograma e ecomapa como instrumentos de coleta de dados. Entrevistou-se 23 jovens vítimas desse evento, no município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Adotou-se análise de conteúdo do tipo temático. Nas interações sociais dos jovens, observou-se fragilização das redes de relações. A maioria desses jovens são oriundos de famílias com precária inserção social e econômica. A formação escolar é reconhecida enquanto garantia de inclusão social, no entanto para alguns os problemas do ensino público e a violência intra e extramuros, colaboram para a descaracterização da escola como espaço protegido e de aprendizagem. Conhecer as dinâmicas sociais implicadas nas situações de vulnerabilidade, auxilia na compreensão desse fenômeno e pode influenciar ações de prevenção e promoção a partir dos serviços de saúde.

Descritores: Enfermagem em saúde pública. Violência. Vulnerabilidade. Adolescente.

RESUMEN

Este estudio busca analizar dinámicas sociales implicadas en la vida de jóvenes víctimas de violencias por medio de la (re)construcción de las relaciones cotidianas discutiendo situaciones de vulnerabilidad. Se trata de un estudio descriptivo-exploratorio, utilizando el genogramo y el ecomapa como instrumentos de recolección de datos. Fueron entrevistados 23 jóvenes víctimas de estos eventos, en la municipalidad de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Se adoptó el análisis de contenido del tipo temático. Nas interacciones sociales de los jóvenes, se observó la fragilidad de las redes de relaciones. La mayoría de estos jóvenes son oriundos de familias con precaria inserción social y económica. La formación escolar es reconocida mientras garantía de inclusión social. Sin embargo para algunos, los problemas de la enseñanza pública y la violencia intra y extramuros colaboran para la descaracterización de la escuela como espacio protegido y de aprendizaje. Conocer las dinámicas sociales implicadas en las situaciones de vulnerabilidad y protección auxilia en la comprensión de este fenómeno y, puede influenciar acciones de prevención y promoción a partir de los servicios de salud.

Descriptores: Enfermería en salud pública. Violencia. Vulnerabilidad. Adolescente.

ABSTRACT

The purpose of this study is to analyze the social dynamics implied in the life of youngsters, victims of violence, by (re)constructing the day-to-day relations and, therefore, discussing vulnerability situations. It is a descriptive and exploratory study that uses the genogram and the ecomap as instruments for data collection. Interview was carried out with 23 young victims of these events in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil. Content analysis of the thematic type was adopted. From the social interactions of the surveyed youngsters, we observed the fragility of their relationship networks. Regarding the family environment, evidence shows that most of the youngsters come from families with precarious social and economic background. School education is recognized as a guarantee of social inclusion; however, for some, the problems with state education and violence in and out of school collaborate for the decharacterization of the school as a protected and learning space. Learning the social dynamics implied in situations of vulnerability helps to understand this phenomenon and can influence prevention and promotion actions from health services.

Descriptors: Public health nursing. Violence. Vulnerability. Adolescent.

INTRODUÇÃO

As Causas Externas e, particularmente, as violências, vêm sendo alvo de muitas discussões, reflexões e pesquisas por atingirem diferentes gerações, grupos sociais e Instituições. O presente estudo considera a violência um fenômeno social complexo, que atinge a população tanto no espaço público quanto no privado, e considera-se que não ocorre um ato denominado violência, e, sim, violências, as quais configuram-se em expressões da exacerbação de conflitos sociais cujas especificidades precisam ser conhecidas. Outro fator atrelado a este fenômeno encontra-se na dificuldade de sua conceituação, pois se acredita que ao se encerrarem as noções de violência numa definição fixa, corre-se o risco de uma visão simplista, dificultando a compreensão da sua evolução e de suas especificidades históricas, culturais e sociais(1,2).

Esses eventos representados tanto por mortes prematuras, como por altos índices de morbidade, representam um problema de saúde pública de grande importância, em virtude do forte impacto que causam na saúde das populações, necessitando-se estabelecer métodos para a prevenção, promoção e controle. Refere-se que a incidência das mortes violentas recai predominantemente sobre a população masculina de adolescentes e adultos jovens, oriundos das classes menos favorecidas, de cor negra ou descendentes dessa etnia, com pouca ou nenhuma qualificação profissional e com baixa escolaridade(2,3). As violências, particularmente, repercutem no setor de Saúde, essencialmente pelo número de mortes provocadas e pela necessidade de atendimentos às pessoas lesionadas, com longos períodos de consumo de serviço e seqüelas incapacitantes(4).

Considerando esta magnitude social, este estudo faz um recorte geracional e busca compreender as dinâmicas sociofamilares implicadas na morbidade por violências entre jovens. Discute a constituição de situações de vulnerabilidade e de proteção relativas à faixa etária e nas relações de gênero, na comunidade de convívio e na relação com as instituições da Atenção Básica de saúde.

Ao longo do estudo buscou-se compreender aspectos relacionados ao cotidiano dos jovens, considerando que as experiências são construídas nas diferentes vivências, relações e interações sociais mediadas pelas individualidades e situação social em que estão inseridos. Neste enfoque, o conhecimento se constitui para além das dimensões biológicas, envolvendo o universo das relações contextuais dos jovens e seu protagonismo. Ou seja, entende-se que os jovens se constituem enquanto indivíduos vulneráveis, mas também como potencialmente capazes de constituir situações de proteção(5). O conceito de vulnerabilidade, neste estudo, remete-se a um conjunto de fatores agressivos, mas também para a capacidade de reação do indivíduo e a percepção que ele faz do ambiente ameaçador, e, portanto, dos recursos (material e simbólico) que mobiliza para desativar ou contornar um evento negativo(6).

Considerando as contribuições dos autores e sua complementaridade, o conceito em si de vulnerabilidade não tem significado de agravo à saúde. O significado do ameaçador passa a existir a partir dos elementos que se conjugam para definir uma situação; aí, sim, vai se configurar um agravo. Portanto, adota-se essa linha de raciocínio e opta-se por definir essas potenciais ameaças como situações de vulnerabilidade ao adoecimento por violência. Argumenta-se que as situações de vulnerabilidade são as circunstâncias - em termos de momentos e áreas específicas – durante as quais o exercício vital é mais doloroso, difícil e perigoso(7).

Em nosso meio observa-se vulnerabilidades na perspectiva da presença protetora do estado com esse grupo populacional quanto a políticas públicas voltadas à universalização dos direitos e acessos, sem reproduzir desigualdades. Quando se fala em políticas públicas para a juventude, busca-se colocá-las na dimensão dos desafios de dialogar com as experiências sociais dos jovens, reinventando maneiras e sentidos para construção do futuro, considerando adversidades e potencialidades(8).

No entrecruzamento das dimensões situadas acima, buscou-se neste estudo elementos para mediar esse diálogo, com a realidade dos jovens, tencionando as interlocuções no âmbito dos cotidianos pessoais e na relação com os cenários em que a violência se faz presente(7). Salienta-se que este artigo é originário de uma dissertação de Mestrado(9).

CAMINHO METODOLÓGICO

Trata-se de um estudo que apóia-se na tipologia dos qualitativos, entendido capaz de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas(10).

O cenário dos eventos e os jovens são oriundos do município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, das Regiões Lomba do Pinheiro/Partenon. Do ponto de vista dos serviços que se constituíram enquanto fontes de informações, a área em questão é formado por seis Unidades Básicas de Saúde, sete Postos de Saúde da Família e uma Unidade de Pronto Atendimento. Nessa região distrital, estruturou-se um Observatório de Causas Externas, que possibilita, além da detecção dos casos, o seu registro, acompanhamento e encaminhamentos.

Assim, os sujeitos do estudo foram 23 jovens identificados entre os registros dos serviços, sendo quinze do sexo masculino e oito do sexo feminino, que sofreram algum tipo de violência interpessoal, doméstica ou sexual, considerando o extrato etário de 10 aos 19 anos. Como critério de seleção estabeleceu-se a viabilidade e a disponibilidade do jovem em participar da pesquisa, bem como a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Informado, tanto pelo jovem como pelo responsável legal. Outro critério utilizado foi o de saturação dos dados(11). As entrevistas foram realizadas no domicílio do jovem no ano de 2006, com auxílio dos Agentes Comunitários de Saúde locais, facilitando o contato em áreas controladas pelo tráfico de drogas. A maioria dos jovens residiam em locais de urbanização e habitações precárias, em algumas situações era difícil a abordagem, visto as condições de miserabilidade.

As redes de relações que os jovens estabelecem, foram traçadas utilizando elementos como o genograma e o ecomapa de maneira combinada, somando-se as narrativas transcritas. O genograma é um diagrama que detalha a estrutura familiar do jovem, fornecendo informações sobre os vários papéis dos membros da família, das diferentes gerações, bem como auxilia na discussão e análise das interações familiares. O ecomapa é um diagrama das relações entre o jovem e a comunidade, ajudando a avaliar os espaços de socialização e suas inter-relações, sendo uma representação das suas relações com outras pessoas e com as instituições do seu contexto; pode-se dizer, que se trata de uma fotografia das principais relações do jovem com o ambiente(12). Apresenta-se neste artigo, algumas construções gráficas, as quais mediassem a compreensão das reações dos jovens no sentido da vulnerabilidade ou de proteção.

As informações foram analisadas segundo conteúdo temático(10). Respeitou-se as normas éticas da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(13), sendo o estudo aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, processo número 068/2004.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

As dinâmicas das relações sociais na família e na comunidade

Na tentativa de "dar conta" dos múltiplos significados de "família" entende-se a mesma como unidade básica da organização social na nossa sociedade, e é compreendida como intercâmbio simbólico entre gêneros e gerações; mediação entre cultura e natureza; e mediação entre esfera privada e esfera pública(14).

Reconhecendo a multiplicidade de significados, a definimos como espaço de convivência e de relacionamentos de duas ou mais pessoas com vínculos tanto biológico como emocionais ou afetivos. Essa multifacetada instituição exerce influências significativas no processo formativo e na maneira como os jovens idealizam e vivenciam o cotidiano, influenciando situações, como no campo da saúde e da doença, por exemplo, configuradas como protetoras ou não.

No que se refere aos aspectos econômicos, em sua grande maioria, os jovens entrevistados pertencem a grupos desfavorecidos, e as ocupações de seus familiares refletem trabalho não qualificado, com baixa remuneração. O desemprego e a precária inserção no mercado informal de trabalho é a marca hereditária, digno assim, de uma situação que se repete refletindo-se na permanência de certas situações de abandono e falta de oportunidades.

A construção do genograma mostrou que os jovens residem com um número consideravelmente alto de pessoas, sendo que apenas quatro dentre os 23 jovens convivem com mãe-pai-irmão. A composição mais freqüente envolve a presença da mãe e irmãos, constatando-se um número expressivo de separações ou morte do esposo, sendo a responsabilidade de cuidar dos filhos assumida pelas mulheres. As relações dos jovens no ambiente familiar, revelaram um quadro complexo, assentado em ambivalências, permeado por conflitos, declarações de afeto, entre outros aspectos.

A complementariedade das informações do genograma e do ecomapa possibilitou uma aproximação-compreensão das redes de relações vividas pelos jovens. Evidenciou-se que 11 dentre eles, no momento da entrevista, não tinham a presença do pai biológico no domicílio, seja por morte violenta, por abandono da família ou por separação. Complementando 13 jovens manifestaram não ter relação com o pai biológico, ou terem relação problemática e/ou frágil. Essa situação é recorrente e já foi evidenciada em muitos estudos, onde a figura paterna está ausente em grande parte das configurações familiares em situação de precariedade social. Exemplificando, isso pôde ser evidenciado na representação gráfica da vida de relação do Jovem 9 (Figura 1).


Na construção gráfica das relações do Jovem 9, evidencia-se situação conflituosa na família, visto a dificuldade de relacionamento com as pessoas que residem na casa e com os familiares que residem próximo. Esses conflitos são potencializados pelas condições materiais precárias, de moradia, de acesso aos bens de consumo, de acesso ao mercado de trabalho, entre outros. Esse jovem foi vitimizado por violência doméstica, e, durante a entrevista, relatou que as brigas e discussões ocorriam com freqüência, principalmente, pelas dificuldades financeiras enfrentadas pela família e pela falta de diálogo. Neste sentido, o ambiente familiar mostra-se fragilizado em prover segurança material e emocional, potencializando situações de vulnerabilidade as ocorrências violentas.

Mesmo vivenciando relações conflituosas no ambiente doméstico, principalmente, nas relações com a figura paterna ou com padrastos, quando questionados sobre o que tem de positivo em sua vida, 16 dentre os 23 jovens, manifestaram "a família" como elemento fundamental, como ponto de referência importante.

Com freqüência os jovens relataram intolerância dos familiares aos "outros" relacionamentos representados por amigos. Essa não inclusão dessas relações no ambiente familiar ou a difícil convivência com outras pessoas em particular outros jovens, pode resultar em conflitos. Os principais motivos de conflitos ocorreram, em grande medida, em razão do desempenho escolar, do desemprego, das dificuldades financeiras e pelo controle excessivo dos pais sobre a vida social e afetiva desses jovens. Segundo os mesmos, os pais não aceitam determinadas amizades ou grupos, também o excesso de pessoas residindo nas casas resultante de várias uniões paternas e maternas, além de namoros ou gravidez precoce e do consumo de drogas ou envolvimento com o tráfico de drogas, entre outros aspectos são fontes de desajuste e tornam o ambiente de difícil convívio.

Essas situações vivenciais dos jovens no contexto familiar, com certa freqüência refletem-se em dificuldades em lidar com conflitos no interior das famílias. A negação de se incorporar e dar "algum espaço" para o conflito na família, pode favorecer a eclosão da violência sob distintas formas, que viria justamente dessa falta de canais de expressão para os conflitos próprios das relações familiares(15).

Nas entrevistas 12 jovens mencionaram possuir relação problemática e frágil com os vizinhos. As jovens referem conflitos na relação com os vizinhos, moldados na fala de respeito que acaba não sendo um valor importante na construção e fortalecimento das relações. A expressão ter mais respeito foi referida por vários jovens, representando uma necessidade nos ambientes de convívio. As narrativas expressam que a falta de respeito configura-se na negação do direito do outro, resultando na opressão das pessoas e na recusa de seu reconhecimento como sujeito de direito. A necessidade de se desenvolver a noção de respeito é síntese de um desejo da população residente em áreas mais pobres, na qual se busca o reconhecimento da dignidade, mas, também, de reconhecer a dignidade do diferente(16).

A escola: espaço de aprendizagem e socialização... e insegurança

A escola constitui-se em valor na sociedade atual a partir do papel que desempenha, tendo em vista a necessidade da educação formal na socialização dos indivíduos e sua integração nas formas de subsistência. No entanto esse espaço determinante para trajetórias de vida reflete o sistema excludente e a reprodução das desigualdades sociais no momento em que não se configura em espaço de oportunidades e garantias universais.

Na situação desses jovens, evidenciou-se que, no momento da entrevista, 14 tinham vínculo formal com a escola, cinco (27,7%), do sexo masculino, não tinham esse vínculo e encontravam-se desempregados. Dentre as jovens, quatro (50%), não tinham vínculo com a Instituição de ensino. Dentre os motivos, salienta-se o poder do companheiro na proibição de circulação fora do espaço doméstico. Nesse sentido, a gravidez e o cuidado de filhos são fontes de limitação/dominação. A violência doméstica está presente nas relações com padrastos expressas em ameaças, gerando medo na família e resultando no afastamento da escola.

Dos nove jovens que estavam afastados da escola, oito tinham entre 15 e 19 anos de idade, e dentre os motivos apontados destacava-se o trabalho, visto que, configurava-se em necessidade, pois representa sobrevivência e uma atitude responsável para com a família, além do reconhecimento social. Apesar das justificativas elaboradas nos discursos, observou-se que a falta de atrativos e a motivação para freqüentarem a escola era maioria do que o compromisso formal com o trabalho, pois o desemprego era a tônica entre eles. Essa situação reflete falta de oportunidades no mercado de trabalho, associada à falta de qualificação profissional e as dificuldades próprias desse grupo populacional de acesso a postos adequados as suas peculiaridades.

A ambiguidade nas falas mostra que um número significativo afirma possuir relação forte com a Instituição de ensino. Por outro lado, ainda que considerem a escola espaço de aprendizagem, salienta-se uma narrativa, que retrata fragilidade na relação com o ambiente escolar, mostrando-o como local desprotegido e inseguro.

[...] a relação com a escola é frágil, pois ocorrem brigas e violência quase todos os dias [...] a escola é um ponto de venda de drogas [...] por isso eu vou sair dessa escola (JF18).

Quando se pensa em violência escolar(17), é preciso lembrar que esta não se limita somente aos espaços físicos, aos prédios onde ela funciona, mas é articulada com os eventos no bairro, na rua em que se localiza, em seu entorno, o que pode tanto facilitar o acesso, melhorar ou piorar as condições de segurança.

No meio social analisado constata-se, que a escola pouco conhece o jovem que a freqüenta, seus desejos, o que faz fora da escola, como ocupa o tempo livre e as expressões culturais com as quais se envolve. No entanto, está claro seu potencial inclusivo na transformação e construção de oportunidades, dito pelos próprios jovens, como fatos de esperança de futuro para romper com a reprodução de iniquidades de toda a ordem.

Taco, bolas de gude, jogo de futebol, conversas, baladas, sons... espaços de gênero nas atividades do tempo livre

Desvelando as redes de convívio dos jovens na comunidade, pode-se observar que o hábito de conversar com os amigos foi apontado pela maioria deles como uma das principais atividades desenvolvidas no tempo livre. Isso se evidencia na representação gráfica do Jovem 6 (Figura 2).


O Jovem 6 foi vítima de violência interpessoal e apresentava um quadro de situações vivenciadas por vários deles nessa região: afastamento da escola, dificuldade de acesso ao trabalho e a bens de consumo e envolvimento no comércio de drogas. Em muitos casos são oportunidades desse comércio que torna-os vulneráveis a ocorrências violentas. No ambiente privações, a principal atividade de lazer é o encontro com os amigos e as baladas. A fala do mesmo retrata essas situações:

[...] hoje ta difícil conseguir emprego, e tem que andar na moda, comprar, então os jovens acabam entrando no mundo do tráfico, é bem fácil, [...] o que eu gosto é encontrar os amigos (JM6).

Os encontros com os amigos permitem aos jovens elaborarem visões de mundo compartilhadas, mediadas por diferentes significados intercambiados, as conversas se configuram importante elemento no viver social juvenil, sendo momento em que se tornam públicos aspectos aparentemente privados como paqueras, brigas, entre outros assuntos. Além disso, as rodas de conversa revelam a existência de um padrão de sociabilidade das classes populares, tendo como principal atributo a base local das relações(18).

As rodas de conversa ocorrem nesse bairro, principalmente, nas ruas, as quais são referidas pela maioria dos jovens como locais centrais para o desenvolvimento das atividades de lazer, dentre elas: jogo de futebol, jogo de gude, taco entre outros entretenimentos. As atividades, como as brincadeiras infantis foram mais relatadas pelos jovens na faixa etária dos 10 aos 14 anos e do sexo masculino. Já na faixa etária dos 15 aos 19 anos o leque de atividades vai se estreitando, apontando o aumento da responsabilidade e de novos interesses, sendo esses ligados à aproximação com o sexo oposto e às "baladas" ou aos "ambientes de som", expressões dos próprios jovens. Observou-se que as jovens articulavam suas atividades no tempo livre "na casa das amigas" e a principal forma de interação centra-se na conversa.

Com relação às festas, ou "som" como referem constatou-se que as jovens têm maior dificuldade em participar dessas atividades. Primeiramente pela privação ou o controle dos pais, e segundo, pelo medo da violência. A fala a seguir ilustra esse aspecto.

[...] a gente quer ir para o som, e o nosso pai não deixa. A gente não pode fazer tudo o que se quer na vida. Mas, tem algumas coisas tem, mas meu pai não deixa eu sair de noite, meu pai não deixa ficar na rua [...] (JF8).

Observa-se as diferenças de gênero, no que se refere a mobilidade nos ambientes público e privado. A prática de jogos na rua, ou outras atividades físicas, bem como a circulação em espaços de socialização que ameaçam a integridade física e "moral" das jovens são restringidas pela autoridade paterna e se assenta nas culturas de gênero, mas também no risco objetivo da vulnerabilidade física à violência. O espaço público tende a ser território masculino, tanto no argumento da ação como naquele em que as atitudes culturais e mesmo o físico mais forte são argumentos protetores, o que, na verdade, expõe mais os homens às ameaças e ao perigo do que os protege(19,20).

Em outra perspectiva, mostram-se disputas de gangues ou grupos de tráfico de drogas pelos espaços na comunidade e a insegurança em frequentar ambientes considerados perigosos, gerando, em muitos casos, a busca de lazer em lugares distantes da comunidade. Violências-drogas-tráfico os expõe a situações de vulnerabilidade real, ou seja, ameaças à segurança pessoal, representada pelo sentimento de medo e exclusão no convívio comunitário e familiar.

Nesse sentido, reconhece-se que fatores sociais intrínsecos à vida na cidade, como o desemprego, a pobreza crescente, as dificuldades de acesso aos bens de consumo, às estruturas de cuidados de saúde e educacionais, e enfim às desigualdades sociais representam alguns fatores coercitivos para a vida do indivíduo ou um grupo de indivíduos. Nestas condições, as situações de vulnerabilidade remetem-se às condições gerais da vida material e social do indivíduo, e leva em conta a dinâmica de mudanças inscritas no sistema social como elementos que participam no processo de sua própria reprodução.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreender esses diferentes aspectos do cotidiano dos jovens e seus contextos são pressupostos imprescindíveis para se conhecer as situações de vulnerabilidade e de proteção frente ao fenômeno da violência. A pesquisa permitiu compreender algumas situações de violência, escapando de um determinismo único, reconhecendo sua complexidade, e introduzindo novos olhares sobre a formulação das políticas públicas e de saúde, onde o contexto social e local tornam-se elementos interagentes. As situações de vulnerabilidade e de proteção descritas pelos jovens á violência centram-se em interfluências dos contextos familiares, políticos, econômicos e socioculturais. Portanto, a vida do jovem na comunidade, emerge como lugar de formas bastante peculiares de socialização e de se estabelecer as relações sociais; logo, os diferentes mecanismos mediadores das relações podem desencadear situações de vulnerabilidade.

A maioria dos jovens fez referência a uma violência difusa, que está em todos os lugares, que acaba alimentando o medo e condicionando as escolhas. Essa realidade aprisiona as pessoas em suas casas e de alguma forma, configura-se em um tipo de violência em si. Essa situação de confinamento nas casas mostra o isolamento dos jovens e de seus familiares do espaço público e a ausência de redes de apoio social, refletem assim a violência social, ou seja, a privação dos direitos, da cidadania. Esse afastamento do convívio social associa-se à violência cotidiana, resultado da atenuação das redes protetoras representadas pelas relações sociais.

Dessa forma, a responsabilização na prevenção é esforço de toda a comunidade. Os serviços de saúde, por meio do desenvolvimento de políticas e ações podem construir intervenções consistentes nos desencadeantes dos processos violentos, valorizando o sentido de cidadania, reconhecendo-o como elemento importante na qualidade de vida e saúde das populações. Visto que em poucos momentos os jovens mencionaram possuírem relação com os serviços de saúde, e nem como local de referência para esses eventos. Identificou-se um vazio e ausência do Estado por meio de serviços de saúde qualificados que contemplem essas questões como reais problemas de saúde pública.

Neste sentido, os jovens precisam de um atendimento direcionado aos princípios como a integralidade, a equidade, valorizando sua participação no processo saúde/doença/cuidado, entendendo as transformações que ocorrem nessa etapa da vida e buscando compreender as situações de vulnerabilidades e de proteção dos mesmos a se tornarem vítimas ou agentes das violências.

Recebido em: 07/10/2009

Aprovado em: 15/03/2010

  • 1 Minayo MCS. Violęncia como indicador de qualidade de vida. Acta Paul Enferm. 2000;3(n esp):159-80.
  • 2 Mello-Jorge MHPM. Violęncia como problema de saúde pública. Rev Soc Bras Prog Cięnc. 2003;54(1):90-7.
  • 3 Souza ER, Lima MLC. Panorama da violęncia urbana no Brasil e suas capitais. Cięnc Saúde Colet. 2006;11(Supl):1211-22.
  • 4 Riquinho DL, Correia SG. O papel dos profissionais de saúde em casos de violęncia doméstica: um relato de experięncia. Rev Gaúcha Enferm. 2006;27(2):301-10.
  • 5 Ayres JRCM, Freitas AC, Santos MAS, Saletti Filho HC, França Júnior I. Adolescęncia e aids: avaliaçăo de uma experięncia de educaçăo preventiva entre pares. Interface Comun Saúde Educ. 2003;7(12):123-38.
  • 6 Desclaux A. La vulnerabilité au VIH/sida en Thailande: construction sociale, pratiques preventives: programme de recherche: "Figures de la vulnerabilité au VIH/Sida dans les pays du sud". France: Université de Bordeaux II; 1998.
  • 7 Delor F, Hubert M. Revisiting the concept of 'vulnerability'. Soc Sci Med. 2000;50(11):1557-70.
  • 8 Novaes R. Juventude, exclusăo e inclusăo social: aspectos e controvérsias de um debate em curso. In: Freitas MV, Papa FC, organizadores. Políticas públicas: juventude em pauta. Săo Paulo: Cortez; 2003. p. 115-134.
  • 9 Cocco M. Geraçăo e gęnero na constituiçăo de situaçőes de vulnerabilidade aos acidentes e violęncia entre jovens de Porto Alegre [dissertaçăo]. Porto Alegre: Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2007.
  • 10 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10Ş ed. Săo Paulo: Hucitec; 2007.
  • 11 Rocha SMM, Nascimento LG, Lima RAG. Enfermagem pediátrica e abordagem da família: subsídios para o ensino de graduaçăo. Rev Latino-Am Enfermagem. 2002;5(10):709-14.
  • 12 Ghiglione R, Matalon B. O inquérito: teoria e prática. 3Ş ed. Portugal: Celta; 1997.
  • 13
    Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde. Resolução 196, de 10 de outubro de 1996: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF); 1996.
  • 14 Serapioni M. O papel da família e das redes primárias na reestruturaçăo das políticas sociais. Cięnc Saúde Colet. 2005;10(Supl):243-53.
  • 15 Sarti CA. A família como ordem simbólica. Psic USP. 2004;15(3):11-28.
  • 16 Zaluar A, Leal MC. Violęncia extra e intramuros. Rev Bras Cięnc Soc. 2001;16(45):145-64.
  • 17 Njaine K, Minayo MCS. Violęncia na escola: identificando pistas para prevençăo. Interface Comun Saúde Educ. 2003;7(13):119-34.
  • 18 Franch M. Nada para fazer? Um estudo sobre atividades no tempo livre entre jovens de periferia no Recife. Rev Bras Estud Popul. 2002;19(2):117-33.
  • 19 Gomes NP, Diniz NMF, Araújo AJS, Coelho TMF. Compreendendo a violęncia doméstica a partir das categorias gęnero e geraçăo. Acta Paul Enferm. 2007;20(4):504-8.
  • 20 Souza ER. Masculinidade e violęncia no Brasil: contribuiçőes para a reflexăo no campo da saúde. Cięnc Saúde Colet. 2005;10(1):59-70.
  • Endereço da autora:
    Marta Cocco
    Rua Maurício Cardoso, 574, ap. 104, Centro
    98400-000, Frederico Westphalen, RS
    E-mail:
  • a
    Artigo originário da dissertação de Mestrado apresentada em 2007 na Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Recebido
      07 Out 2009
    • Aceito
      15 Mar 2010
    Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Enfermagem Rua São Manoel, 963 -Campus da Saúde , 90.620-110 - Porto Alegre - RS - Brasil, Fone: (55 51) 3308-5242 / Fax: (55 51) 3308-5436 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: revista@enf.ufrgs.br